Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
330/22.0TXPRT-B.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: HABEAS CORPUS
PENA DE PRISÃO
TRÂNSITO EM JULGADO
RECURSO PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
COARGUIDO
APROVEITAMENTO DO RECURSO AOS NÃO RECORRENTES
Data do Acordão: 06/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO
Sumário :
I - Deve ser indeferida a providência de habeas corpus a arguido que se encontra em cumprimento de pena de prisão, e não na situação de prisão preventiva como alegara, pois é acertado considerar que a decisão condenatória transitou em julgado quanto a ele, independentemente de ter sido interposto um recurso para o TC por co-arguido.

II - Da regra de que o recurso interposto por um dos arguidos aproveita aos restantes em caso de comparticipação não resulta o tratamento do arguido não recorrente como se de um recorrente  se tratasse; resulta sim que o caso julgado que se formou é um caso julgado rebus sic stantibus.

Decisão Texto Integral:

1. Relatório

1.1. No processo n.º 330/22.OTXPRT, do Tribunal de Execução de Penas do Porto, o arguido AA veio apresentar, por sua mão,  um pedido de habeas corpus, fazendo-o ao abrigo do disposto no art. 222.º, n.º 2 al. c), do CPP. A petição é a seguinte:

AA, arguido nos autos acima mencionados, encontrando-se preso no Estabelecimento Prisional ..., em ..., ..., vem, ao abrigo do art. 31°, da CRP e dos artigos 222° e 223° do CPP, requerer providência de HAEEAS CORPUS em virtude de prisão ilegal,

Nos termos e com os seguintes fundamentos:

•  Por Acórdão proferido pelo Tribunal - Juízo Central Criminal … - Juiz …, em sede de 1.ª instância, foi o Arguido AA condenado na pena de 05 (cinco) anos de prisão, "...em co-autoria material...” (co-autoria com o Arguido BB) de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. peio artigo 21°, n° 1, do Decreto Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à Tabela I-B anexa - cfr. Douto Acórdão proferido no dia 11 de Dezembro de 2020.

• De tal Decisão recorreram ambos os Arguidos.

•  Por requerimento apresentado aos autos no dia 11-04-2022, o Arguido BB refere: Citando:

• O arguido BB, tendo tomado conhecimento do pedido de informação ao STJ sobre o processo onde foi proferido o acórdão do TC n° 542/21, no qual foi proferido o acórdão n° 7/22, vem informar, que estão pendentes, ainda, no TC os autos de recurso n° 103/22 (provindos do provindos do TRlx - Pn 5429/19.8JAPRT. L1, 9a secção) (negrito nosso).

Na sequência de tal requerimento,

•  O Tribunal exarou o despacho que segue: Com a devida vénia, transcrevendo:

"Face à informação prestada pelo Ilustre Mandatário do arguido BB oficie ao processo do Tribunal Constitucional que aí se encontra (segundo informação daquele e com o número indicado) solicitando informação sobre o estado do mesmo e comunicando qual a data em que se alcança o prazo máximo de OPHVE relativamente ao arguido AA. Mais oficie ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa  solicitando que informem qual dos arguidos interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e Tribunal Constitucional, e solicitando que confirmem se o acórdão desse Tribunal da Relação de Lisboa  transitou em julgado relativamente ao arguido AA, que é quem está sujeito a medida de coação privativa da liberdade (indicando-se uma vez mais o prazo máximo dessa medida). "

Ora,

•  Como resulta do Douto Acórdão proferido pelo Tribunal (1a Instância), os Arguidos foram   condenados   em   "co-autoria    material"    pelo   crime   de   tráfico   de estupefacientes.

• Ambos os Arguidos apresentaram recurso da Douta Decisão do Tribunal.

• Como refere o Arguido BB, no requerimento citado - "... estão pendentes, ainda, no TC os autos de recurso n° 103/22 (provindos do TRLx - Pn 5429/19.8JAPRT. L1, 9a, 9a secção) (negrito nosso).

Posto isto,

• Decorre do disposto no artigo 402°, n° 1, do CP, que "... o recurso interposto de uma sentença abrange toda a decisão. "

• E refere o n° 2 da citada disposição legal "- Salvo se for fundado em motivos estritamente pessoais, o recurso interposto: a) Por um dos arguidos, em caso de comparticipação, aproveita aos restantes;"

•  Ambos os Arguidos interpuseram recurso da Douta Decisão proferida pelo Tribunal.

•  Consta dos autos uma designada "Certidão de Trânsito em Julgado" considerando que a decisão condenatória proferida em relação ao Arguido AA, já transitou em julgado.

•  Com base em tal "Certidão de Trânsito em Julgado", o Tribunal ordenou a condução do Arguido AA a estabelecimento prisional para cumprimento da pena de prisão.

Ora, com o devido respeito,

•   O Acórdão proferido nos autos, ainda não transitou em julgado.

1. Como refere o Tribunal - "o arguido AA está preso preventivamente à ordem destes autos desde 25 de novembro de 2019..., pelo que se alcançará o prazo máximo da medida de coacção ... em 25 de maio de 2022."

2.  À semelhança dos restantes prazos máximos fixados na Lei Processual Penal para a manutenção de medidas de coacção, o prazo máximo de dois anos de submissão a prisão preventiva visa proteger, acautelar eventuais violações e injustiças proporcionadas pela manutenção da medida de coacção mais gravosa a arguidos que beneficiam, de resto, até trânsito em julgado de decisão válida, do princípio in dúbio pro reu.

3.  O artigo 28.°, n.° 4, da Lei Fundamental confere aos prazos máximos de prisão preventiva a dignidade de imperativo Constitucional.

4.  Dúvidas não restam que a situação do requerente é coincidente com o preceito supra transcrito - o requerente encontra-se preso preventivamente sem que haja sido condenado por decisão transitada em julgado.

5.   Sucede que, nos presentes autos, conforme já referimos, tal prazo está claramente ultrapassado.

 6.     Pelo que, a prisão preventiva aplicada ao requerente extinguiu-se no passado dia 25 de Maio de 2022.

7.    Não obstante, ainda não foi dada ordem de libertação ao requerente, conforme impõe o n° 1 do artigo 217.º do CPP.

Pelo exposto, o Requerente encontra-se ilegalmente preso nos termos da al. c), do n° 2, do artigo 222°, do CPP, em clara violação do disposto nos artigos 27º e 28º, n° 4, da CRP e no artigo 217°, n° 1, do CPP.

Assim, deve ser declarada ilegal a prisão do Requerente e ordenada a sua imediata libertação, nos termos do art. 31°, n° 3, da CRP e dos artigos 222° e 223°, n° 4, ai. d), do CPP.”

1.2. A informação a que se refere o art. 223.º, n.º 1 do CPP foi a seguinte:

“Tendo o requerimento em presença sido apresentado neste TEP do Porto, no âmbito do preceituado no artigo 223.º, n.º 1, do CPP, passo a lançar nos autos a competente informação de acordo com os elementos aqui disponíveis, sem prejuízo de, se assim for entendido, o Supremo Tribunal de Justiça poder solicitar informações complementares ao Tribunal da condenação.

O recluso AA, identificado no processo, cumpre, no Estabelecimento Prisional ..., a pena de 5 anos de prisão, à ordem do processo n.º 5429/19...., da Comarca ... – Juízo Central Criminal ... – Juiz ..., no âmbito do qual foi condenado pela autoria de um crime de tráfico de estupefacientes (artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro).

O processo da condenação certificou o trânsito em julgado da decisão condenatória com referência à data de 29.04.2021.

A metade da pena está calculada para 25.05.2022 e o seu termo para 24.11.2024.

Os elementos de reporte ao artigo 477.º, n.º 1 e 2, do CPP, foram recebidos neste TEP do Porto em 11.05.2022, estando, desde então, em curso os termos processuais que visam a apreciação da medida de liberdade condicional.”

1.3. Notificados o Ministério Público e o defensor do arguido, realizou-se a audiência na forma legal, tendo-se reunido para deliberação.

2. Fundamentação

O habeas corpus é uma providência com assento constitucional, destinada a reagir contra o abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegal, podendo ser requerida pelo próprio detido ou por qualquer outro cidadão no gozo dos seus direitos políticos, por via de uma petição a apresentar no tribunal competente (art. 31º da CRP).

A petição de habeas corpus tem os fundamentos previstos taxativamente no art. 222.º, n.º 2. do CPP, que consubstanciam “situações clamorosas de ilegalidade em que, até por estar em causa um bem jurídico tão precioso como a liberdade ambulatória (…), a reposição da legalidade tem um carácter urgente”. O “carácter quase escandaloso” da situação de privação de liberdade “legitima a criação de um instituto com os contornos do habeas corpus” (Cláudia Cruz Santos, “Prisão preventiva – habeas corpus – recurso ordinário”, in RPCC, ano 10, n.º 2, 2000, pp. 303-312, p. 310).

Os autores convergem no sentido de que “a ilegalidade que estará na base da prevaricação legitimante de habeas corpus tem de ser manifesta, ou seja, textual, decorrente da decisão proferida. Pela própria natureza da providência, que não é nem pode ser confundida com o recurso, tem de estar em causa, por assim dizer, uma ilegalidade evidente e actual. (…) O habeas corpus nunca foi nem é um recurso; não actua sobre qualquer decisão; actua para fazer cessar «estados de ilegalidade»” (José Damião da Cunha, “Habeas corpus (e direito de petição «judicial»): uma «burla legal» ou uma «invenção Jurídica»?”, in Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva (coord. José lobo Moutinho et al.), vol. 2, lisboa: uce, 2020, pp. 1361-1378, pp 1369 e 1370).

E constitui também jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça a excepcionalidade da providência e a sua distanciação da figura dos recursos. O habeas corpus não é um recurso e não se destina a decidir questões que encontram no recurso o seu modo normal de suscitação e de decisão. E assim o tem decidido, sem divergência, o Supremo, repete-se, como se constata por exemplo no acórdão de 16-03-2015 (Rel. Santos Cabral) – “II - A providência de habeas corpus não decide sobre a regularidade de actos do processo, não constitui um recurso das decisões em que foi determinada a prisão do requerente, nem é um sucedâneo dos recursos admissíveis. III - Nesta providência há apenas que determinar, quando o fundamento da petição se refira à situação processual do requerente, se os actos do processo produzem alguma consequência que se possa reconduzir aos fundamentos referidos no art. 222.º, n.º 2, do CPP. IV - Como não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários, o habeas corpus não é o meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão, porquanto está reservado para os casos indiscutíveis de ilegalidade que impõem e permitem uma decisão tomada com a celeridade legalmente definida.”

Preceitua, então, o art. 222.º do CPP, sob a epígrafe “Habeas corpus em virtude de prisão ilegal”, que o Supremo tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência a qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa (n.º 1).

Por força do n.º 2 da mesma norma jurídica, a ilegalidade da prisão deve (ou tem de) provir de uma das seguintes circunstâncias:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei o não permite;

c) Se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

No presente caso, o requerente invocou o requisito da al. c), considerando que o prazo limite da prisão preventiva ocorreu a 25.05.2022, data a partir da qual, sempre na sua alegação, ocorreria uma situação de prisão ilegal, uma vez que continua detido.

Relativamente ao requisito da al. c), que é aquele (único) que o requerente invoca, tem-se efectivamente entendido que ele ocorre com a ultrapassagem de prazos legais ou judiciais, como sucede no caso de manutenção da prisão preventiva para lá dos prazos fixados no art. 215.º CPP. E, em concreto, tal excesso ocorreria efectivamente, caso o requerente se encontrasse na situação que invoca, de prisão preventiva. Mas tal não sucede.

Na verdade, da informação judicial a que se refere o art. 223.º, n.º 1, do CPP, informação que está em conformidade com todos os elementos que instruem a presente certidão e a cuja análise se procedeu neste Supremo, resulta claro que o requerente se encontra, não na situação que nomeia, mas em cumprimento de pena.  

A pena de cinco anos de prisão em que foi condenado por acórdão de 1.ª instância de 11.12.2020, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes do art. 21.º, n.º 1, do D.L. 15/93, foi confirmada por acórdão da Relação ... de 11.03.2021 (existindo um segundo acórdão proferido a 15.02.2021 que indeferiu reclamação apresentada do primeiro), que, em relação a este arguido, transitou em julgado. E trânsito em julgado ocorreu quanto a ele a 29.04.2021, conforme se mostra devidamente certificado no processo.

Argumenta o requerente que a interposição de recurso (para o Tribunal Constitucional), não por si, mas por co-arguido  comparticipante nos factos e no crime da condenação,  obstaria ao trânsito em julgado do acórdão. E que a sua situação de privação de liberdade (anteriormente, OPHVE) seria enquadrável em contexto de medida de coacção, e não de pena. Mas não tem razão.

Constitui jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, sempre em conformidade com a Constituição e a lei, que em caso de comparticipação criminosa o recurso de um arguido da decisão condenatória não obsta ao trânsito em julgado do acórdão em relação a co-arguidos não recorrentes. Este caso julgado, que desde logo opera quanto a arguidos não recorrentes, está necessariamente sujeito à condição resolutiva de uma futura e eventual reforma “in mellior” do decidido (vide art. 403.º, n.º 2, al. e 3, do CPP). O condenado que não interpôs recurso da decisão condenatória está em cumprimento de pena, mesmo em caso de condenação por crime cometido em comparticipação com outros arguidos, que dela tenham recorrido.

Veja-se a título de exemplo acórdão do STJ de 16-05-2012 (Rel. Henriques Gaspar), em cujo sumário pode ler-se:

“V - O requerente foi condenado em 1.ª instância na pena de 6 anos de prisão e o recurso que interpôs para o Tribunal da Relação foi rejeitado por falta de motivação. Como não recorreu desse acórdão, a decisão condenatória transitou em julgado quanto a ele, independentemente de ter sido interposto recurso por dois co-arguidos.

VI - A regra de que o recurso interposto por um dos arguidos “aproveita aos restantes” “em caso de comparticipação” significa apenas que o tribunal de recurso, ao conhecer do objecto definido no recurso, na parte em que respeite aos elementos do crime que seja da responsabilidade, em comparticipação, de arguido recorrente e de não recorrente, tem de apreciar e decidir nos termos delimitados pelo recorrente nas conclusões da motivação, mas que no que for matéria objectiva da comparticipação a procedência pode “aproveitar” na precisa medida, ao comparticipante não recorrente.

VII - Nesta compreensão do art. 402.º, n.º 2, al. a), do CPP, que estabelece e define os poderes de cognição do tribunal de recurso e não direitos processuais do arguido não recorrente, o ”aproveitamento” não significa tratamento do não recorrente como se fora recorrente e tivesse exercido direitos que não exerceu, ou que, nem sequer, podia exercer.

VIII - Deste modo, o prazo de prisão preventiva respeitou o limite fixado no art. 215.º, n.ºs 1, al. c), e 2, do CPP ─ 2 anos até ao trânsito em julgado da decisão em relação ao requerente.”

De tudo resulta que, no caso presente e tal como consta da informação prestada pelo Senhor Juiz do Tribunal de Execução de Penas, o requerente está em cumprimento de pena de prisão. Cumpre 5 anos de prisão à ordem do processo n.º 5429/19…, no âmbito do qual foi condenado pela autoria de um crime de tráfico de estupefacientes do art. 21.º, n.º 1, do D.L. n.º 15/93. O trânsito em julgado da decisão condenatória ocorreu a 29.04.2021, o meio da pena a 25.05.2022, e o seu termo está previsto para 24.11.2024. Encontram-se ainda em curso os legais termos que visam a apreciação da liberdade condicional, de tudo se retirando que inexiste qualquer ultrapassagem de prazos de prisão.

3. Decisão

Pelo exposto, delibera-se neste Supremo Tribunal de Justiça em indeferir o pedido de habeas corpus, por alta de fundamento bastante (art. 223.º, n.º 4, do CPP).

Custas pelo requerente, com 4 UC de taxa de justiça, indo condenado na importância de 6 UC a título de sanção processual (art. 223.º, n.º 6, CPP).


Lisboa, 22.06.2022


Ana Barata Brito (Relatora)

Pedro Branquinho Dias (Adjunto)

Nuno Gonçalves (Presidente de Secção)