Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
99A1015
Nº Convencional: JSTJ00040053
Relator: ARAGÃO SEIA
Descritores: CONVENÇÃO ARBITRAL
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
PRETERIÇÃO DO TRIBUNAL ARBITRAL
ARBITRAGEM VOLUNTÁRIA
APOIO JUDICIÁRIO
ACESSO AO DIREITO
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: SJ200001180010151
Data do Acordão: 01/18/2000
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N493 ANO2000 PAG327
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 419/99
Data: 05/18/1999
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: ANULADA A DECISÃO.
Área Temática: DIR PROC CIV. DIR TRIB - DIR CUSTAS JUD ASSIST JUD.
DIR CONST - DIR FUND.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 790 N1.
L 31/89 DE 1989/08/29 ARTIGO 1 N1 ARTIGO 5 ARTIGO 7 ARTIGO 15 ARTIGO 30.
CPC95 ARTIGO 48 N2 ARTIGO 90 N2 ARTIGO 494 N1 J ARTIGO 495.
DL 387-B/87 DE 1987/12/29 ARTIGO 1 N1 N2 ARTIGO 7 N1 ARTIGO 15 N1 ARTIGO 16 N1 ARTIGO 21.
CONST97 ARTIGO 20 N1 ARTIGO 202 N1 N2 N3 ARTIGO 209 N2.
Sumário : I- Da convenção arbitral nasce um direito potestativo para as partes e se para a resolução de um litígio objecto dela uma parte recorrer ao tribunal comum deve a outra arguir, sem isso importar qualquer restrição do direito de acesso aos tribunais, a excepção dilatória de preterição de tribunal arbitral, a qual não é de conhecimento oficioso.
II- O apoio judiciário não se aplica à jurisdição arbitral.
III- A jurisdição plena é exercida pelos juízes estaduais.
IV- A arbitragem voluntária é contratual na sua origem, privada na sua natureza, e, porque o Estado quebrou o monopólio do exercício da função jurisdicional por reconhecer a sua utilidade pública, jurisdicional na sua função e pública no seu resultado.
V- Se, posteriormente à celebração da convenção arbitral, a parte se viu, sem culpa sua, na impossibilidade de custear as despesas da arbitragem a que se comprometeu submeter o caso, pode recorrer, sem lhe ser oponível a excepção dilatória, aos tribunais estaduais.
VI- A norma constante da última parte da alínea j) do n. 1 do artigo 494 do CPC, na actual redacção, antiga alínea h) não é inconstitucional: ela não viola o n. 1 do artigo 20 da Constituição da República Portuguesa, nem qualquer outra norma ou princípio constitucional.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I- Da Tramitação Processual
A, porpôs acção de condenação com processo ordinário contra:
Como primeiros réus:
- B; C; D; E; F; G; H; I; J; K; L;
Como 2. Réu
- Caixa Económica M.
Requereu a intervenção principal activa de
I- N,O; P; Q; R; S; T; U; V;
II- X e mulher W, Z.
Requer:
Seja declarada a nulidade do contrato de 30 de Maio de 1990 celebrado entre os 1s. Réus e o Autor e do de 6 de Novembro de 1991 celebrado entre a 2. Ré, o Autor e o primeiro grupo de chamados à intervenção principal e, em consequência:
a) Declarados nulos todos os actos subsequentes àqueles contratos que não afectem direitos de terceiros de boa-fé e, designadamente, as divisões e cessões de quotas da O efectuadas pelo autor e pelo 2.grupo de chamados a intervir, pela escritura de 31 de Janeiro de 1992, (artigos 121 e 121 B), as deliberações tomadas pelo O posteriores àquela data e a dação em cumprimento, efectuada pela O à N por escritura de 17 de Maio de 1993, da fracção autónoma com a letra "D", 1. andar esquerdo, do prédio urbano em propriedade horizontal sito na Rua..., em Lisboa, descrito sob o n. 17074 na 1. Secção da Cons. Reg. Predial de Lisboa e inscrito na matriz da freguesia de S. João de Deus sob o artigo 408, e da fracção com a letra "L", 2.andar - Porta C, do prédio urbano em ...... propriedade horizontal sito na Rua ..., em Lisboa, com a descrição n. 249 da freguesia do Coração de Jesus, na 5. Cons. Reg. Predial de Lisboa e inscrito na matriz da freguesia de Arroios sob o artigo 1317 (dosc. 28, 42 e 43).
b) Cancelados os registos efectuados na Conservatória do Registo Comercial e na Conservatória do Registo Predial dos actos atrás referidos, i.é., das transmissões de quotas a favor da N operadas pela escritura de 31 de Janeiro de 1992 e da transferência das fracções, também a favor da M, operadas pela escritura de 17 de Maio de 1993.
c) Os primeiros Réus ser condenados a restituir ao Autor as acções correspondentes a 53,6% do actual capital social da M, na proporção em que cada um o subscreveu (artigos 143 A e 143 B da petição), e, na hipótese de terem alienado acções, ser condenados a pagar ao Autor o valor correspondente ao preço das acções alienadas.
d) Declarar-se nulos os empréstimos concedidos pela M às empresas chamadas, sem prejuízo do direito da 2. Ré de reclamar às empresas mutuárias a restituição das quantias mutuadas sem os juros convencionados, bem como todos os avales prestados pelo Autor em garantia desses empréstimos e, designadamente, quando da subscrição dos chamados "contratos" de 28 de Outubro de 1992, ou, no caso de se julgar que não ocorre nulidade, devem ser anulados os actos de prestação de avales mencionados.
e) Condenada a M a restituir ao Autor todas as livranças em que este tiver prestado os referidos avales.
f) Condenada a M a restituir ao Autor o valor dos créditos cobrados a terceiros referidos no artigo 5 da Petição, com juros nos termos referidos nos artigos 277 a 280 B.
II- Subsidiariamente
a) se não forem julgados nulos os contratos de 30 de Maio de 1990 e de 6 de Novembro de 1991, ou se entender que a sua nulidade parcial não acarreta a nulidade total, deve ser declarada a sua resolução, por vontade do Autor, e devem ser condenados os Réus, nos termos das alíneas a) a f) do pedido principal e ainda a satisfazer uma indemnização ao Autor a liquidar em execução de sentença, de acordo com a que se articulou nos artigos 226 a 280, com juros de mora a partir da citação.
b) E, se se entender que a M tinha o poder discricionário de decidir o tempo, o modo e o quantitativo dos financiamentos com base na cláusula n. 9.3 do contrato de 6 de Novembro de 1991 (artigos 160 a 162 da petição), deve este contrato ser anulado, deve ser declarada a resolução do de 30 de Maio de 1990 e devem ser os Réus condenados como se pede na alínea a).
III- Cumulativamente:
- Com qualquer dos pedidos, deve a 2. Ré ser condenada a entregar ao Autor, com os respectivos juros, o saldo dos depósitos à ordem, o valor dos depósitos a prazo e os títulos que o Autor, tem em dossier, depositados na M ou o seu valor de cotação, em conformidade com o que se articulou nos ns. 281 a 295 da petição.
Para tanto alegou que o tribunal judicial é o competente para esta acção pois não pode ver limitado a direito de acesso à justiça, consagrado no artigo 20 da C.R.Portuguesa, por ter celebrado os contratos de 30 de Maio de 1990 e de 6 de Novembro de 1991 quando ainda tinha meios para recorrer à arbitragem, caso se suscitassem questões relativas a esses contratos.
O tribunal arbitral é um luxo e pressupõe que as partes que a ele recorrem têm meios para pagarem aos árbitros, submetendo-se a uma justiça de excepção.
As circunstâncias em que as partes convencionaram o recurso à arbitragem em 30 de Maio de 1990 e em 6 de Novembro de1991 alteraram-se por culpa exclusiva dos Réus. Mesmo a arbitragem então convencionada pressupunha que as partes tinham igualdade relativa no plano económico e que estavam em situação de equilíbrio que lhes abria o acesso à justiça.
Mas isso era falso já então e ofendia os artigos 13 e 20 da C. R. Portuguesa, posto que as partes eram, de um lado, os Réus, empresas e serviços públicos e uma instituição bancária, e do outro lado o Autor, um mero cidadão comum.
Hoje, arrastado para a miséria, privado de todos os bens e rendimentos e apenas precariamente mantido na administração da X, contra a vontade de M, o autor tem razões válidas, para recorrer ao tribunal comum e preterir a justiça arbitral.
Outra não podia ser a interpretação dos artigos 7, 24 n. 1 alínea d) e 53 do DL 387-B/87, posto que a Lei 31/86 não prevê o apoio judiciário.
Caso contrário aquelas normas do DL 387-B/87 ofenderiam o artigo 20 da C. R. Portuguesa.
E não é renunciável o direito à justiça, nem o Autor quis renunciar a ele.
Pelo contrário, confiou em que jamais os Réus o arrastassem para uma situação de carência económica e financeira que o forçasse a recorrer ao tribunal.
Contestaram os Réus excepcionando a preterição do tribunal arbitral e impugnando a versão do Autor.
Houve réplica.
Foi admitida a intervenção principal activa das sociedades chamadas e indeferidas a intervenção das pessoas singulares. Agravou o Autor.
Na audiência preliminar frustrou-se a tentativa de conciliação mas, aquando da discussão da matéria de direito, o Autor requereu que, ao abrido do artigo 97 n. 1 e 279 n. 1 do CPC, extensivamente ou analogicamente interpretados, seja suspensa a instância relativamente àquelas questões que não são manifestamente da competência do tribunal arbitral, designadamente:
a- Nulidade dos actos e contratos, subsequentes, aos celebrados em 30 de Maio de 1990 e 6 de Novembro de 1991, referidos na alínea a) n. 1, do pedido principal, bem como o correspondente cancelamento, dos registos efectuados, a que se refere a alínea b), do referido n. 1.
b- O pedido de entrega ao Autor, do saldo dos depósitos efectuados na M, pedido este formulado sobre o n. 3 autonomamente, relativamente aos restantes pedidos, e com causa de pedir, igualmente autónoma. Mesmo que alguma questão de interpretação, dos contratos de 1990 e 1991, se venha a por, que possa ter alguma implicação, na subsistência desses depósitos, o que aliás, nem o Autor, nem nenhum dos Réus, fez no presente processo, ao tribunal arbitral, caberia apenas a eventual interpretação, dos contratos de 30 de Maio de 1990 e 6 de Novembro de 1991, tal constituindo, questão prejudicial á apreciação desse pedido, cumulativamente formulado com o n. 3.
O Mmo. Juiz julgou procedente a execpção dilatória da preterição do tribunal arbitral e absolveu os Réus da instância.
Agravou o Autor, sem êxito.
II- Do recurso
1- Das Conclusões
Inconformado, recorreu, agora, para este Supremo Tribunal, concluindo, assim, as suas alegações:
a- O Estado está obrigado a garantir o acesso ao direito e aos tribunais aos cidadãos que não têm meios económicos para suportar os respectivos custos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência desses meios.
b- O apoio judiciário concedido pelo Estado não abrange, porém, as remunerações dos árbitros e demais despesas do processo arbitral.
c- Tal omissão não se pode considerar inconstittucional, já que aquilo a que o Estado está constitucionalmente obrigado é a fornecer gratuitamente os serviços do aparelho judiciário, não estando vinculado a pagar as taxas da justiça particular pela qual os cidadãos possam vir a optar.
d- Não disposndo de meios para fazer face aos custos do processo arbitral e não podendo beneficiar do apoio judiciário no tribunal arbitral, estava o Autor impossibilitado de a ele recorrer para fazer valer os seus direitos.
e- Por imposição do artigo 20 n. 1 da Constituição, os efeitos da convenção de arbitragem não podem produzir-se enquanto por ela esteja vinculado alguém que não tenha possibilidade económica de aceder ao tribunal arbitral, não sendo, em tal caso, procedente a excepção de preterição do tribunal arbitral.
f- O autor denunciou a convenção de arbitragem, mediante a proprositura da presente acção no tribunal judicial - devidamente justificada nos artigos 296 a 310 da p.i. -, e, caso essa possibilidade lhe fosse negada, o autor ficaria, por motivo de insuficiência económica, impossibilitado de recorrer aos tribunais para fazer valer os seus direitos.
g- Para recorrer ao tribunal comum, não carecia o autor, nomeadamente - ao contrário do que entendeu a Relação - de, previamente à interposição desta acção, tentar junto dos réus um (mais que improvável) acordo que permitisse ultrapassar o problema da sua insuficiência económica.
h- Por tal implicar negação do direito de acesso à justiça, é inconstitucional, por violação do artigo 20 n. 1 da Constituição, a interpretação do artigo 494 alínea j) do CPC, bem como do artigo 1 n. 1 da Lei n. 31/86, feita pelo tribunal a quo, no sentido de imporem o tribunal arbitral quando uma das partes que convencionou a arbitragem carece de apoio judiciário.
i- O autor requereu apoio judiciário nesta acção, alegando ter encargos superiores aos seus rendimentos, apoio esse que lhe foi concedido pelo tribunal; mas se se entendesse que o autor tinha ainda de demonstrar não ter meios para pagar as (mais elevadas ...) custas do tribunal arbitral, nunca a excepção de violação da convenção de arbitragem poderia ser declarada procedente com esse fundamento sem se conceder ao autor a oportunidade de fazer prova dos respectivos factos,devidamente alegados na p.i. (artigos 296 a 310), caso em que o Supremo deveria revogar o acordo recorrido e substitui-lo por outro que ordenasse o prosseguimento do processo.
j- O tribunal judicial é, em conclusão, competente para conhecer de todos os pedidos formulados pelo autor nesta acção.
l- Ainda que assim não fosse, sempre o tribunal seria competente para conhecer dos pedidos referidos nestas alegações: o último baseia-se em causas de pedir anteriores aos contratos em que foram insertas as convenções de arbitragem - e deles inteiramente independentes; os restantes fundam-se em causas de pedir posteriores, decorrendo a invalidade dos actos a que se reportam, não apenas da invalidade dos contratos cuja apreciação seria da competência do tribunal arbitral, mas do reflexo jurídico que se julga que esta invalidade poderá ter nesses outros contratos (quanto a estes pedidos, poderia o tribunal fazer uso do poder de suspender a causa até que o tribunal arbitral se pronunciasse, mas o que nunca poderá é declarar-se incompetente para conhecer de pedidos para os quais é competente).
m- O tribunal a quo errou ao recusar decidir sobre a competência do tribunal judicial para conhecer desses pedidos com o fundamento de que não seria razoável apreciar da competência do tribunal arbitral: todo o tribunal é competente para conhecer da sua própria competência e, de resto, a própria lei determina que é ao tribunal judicial (e não ao tribunal arbitral) que cabe a definição do objecto do litígio a submeter a arbitragem quando as partes não estejam de acordo sobre essa questão.
Em contra alegações G e M pugnam pela confirmação do decidido.
Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
2- Da Matéria de Facto Fixada Pela Relação:
Dão-se como reproduzidos os factos dados como provados no Tribunal da Relação - artigos 713 n. 6, 749 n. 1, do CPC -, que aliás não foram impugnados por qualquer das partes.
3- Das Questões a Decidir:
Alega o Autor recorrente que, posteriormente aos contratos celebrados, as circunstâncias com base nos quais as partes convencionaram o recurso à arbitragem se haviam alterado por culpa exclusiva dos Réus, ora recorridos, e, em consequência de os não terem cumprido, ficou numa situação de carência económica que o impossibilita de fazer face aos elevados custos inerentes à constituição e funcionamento do tribunal arbitral.
garantindo a Constituição da República que o acesso ao direito não pode ser denegado por insuficiência de meios económicos, mas sendo o benefício do apoio judiciário limitado aos tribunais estaduais, só a estes pode recorrer para fazer valer o seu direito.
Por esta razão, na sua óptica, tem de se considerar como competente o tribunal judicial, sob pena de efectiva denegação de justiça por razões de insuficiência económica.
São, assim, duas as questões a resolver.
- se a competência pertence ao tribunal arbitral ou ao tribunal comum; e, se pertencer a este,
- se na presente acção há que conhecer de outros pedidos para além do principal.
4- Da Convenção Arbitral:
A convenção arbitral é um negócio jurídico bilateral, no sentido de que há vontade concorrente de duas partes para a sua formação. Com ela pretende-se submeter à decisão de árbitros a resolução de um litígio eventual - modalidade tradicionalmente designada de cláusula compromissória - ou de um litígio actual - modalidade também tradicionalmente designada de compromisso; ambas estas modalidades foram hoje absorvidas pela convenção arbitral.
Desta convenção nasce um direito potestativo para as partes, que as vincula à constituição de um tribunal arbitral para o julgamento de litígios nela previstos.
A convenção não afecta directamente a relação jurídica material, sendo acessória dela; não é a solução para o litígio entre as partes, mas apenas o meio de elas o poderem solucionar.
Recorrendo uma das partes ao tribunal judicial para a resolução de um litígio objecto da convenção arbitral, em vez de se socorrer do tribunal arbitral, a outra parte deve arguir a execpção dilatória de preterição do tribunal arbitral, mencionada na anterior redacção da alínea h) do n. 1 do artigo 494 do CPC, ou de violação de convenção de arbitragem, a que hoje, na redacção actual, se refere a alínea j) do mesmo preceito, que não é do conhecimento oficioso - artigo 495 do CPC - e que, como refere o Prof. Raul Ventura, Convenção de Arbitragem, Rev. Ordem dos Advogados, 46, 301, não sanciona o incumprimento de uma obrigação do demandante, antes efectiva o direito potestativo do demandado.
E, acrescenta a fls. 391, que o tribunal arbitral é preterido quando não é respeitada a convenção de arbitragem que permita constituí-lo. Arguida a respectiva excepção o tribunal estadual não goza de qualquer poder discricionário na sua apreciação. Verificados os respectivos pressupostos, deve julgar a excepção procedente e absolver da instância.
5- Do Apoio Judiciário:
A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos - n. 1 do artigo 20 da Constituição da República Portuguesa.
Em cumprimento da 2. parte do preceito surgiu o DL 387-B/87, de 29 de Dezembro, que consagrou o regime geral do apoio judiciário.
Aí se diz que o sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina-se a promover que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, de conhecer, fazer valer ou defender os seus direitos. Para concretizar os obejctivos referidos no número anterior desenvolver-se-ão acções e mecanismos sistematizados de informação jurídica e de protecção jurídica (artigo 1 ns. 1 e 2).
Acrescenta-se que o regime de apoio judiciário aplica-se em todos os tribunais, qualquer que seja a forma de processo (artigo 16 n. 1).
Pretende-se, assim, que a insuficiência de meios económicos das pessoas não lhes dificulte o acesso à justiça dos tribunais estaduais.
Quer-se dizer, com isto, que se entende que as normas do DL n. 387-B/87 não têm aplicação à jurisdição arbitral. Em sentido idêntico se pronunciou o Desembargador Dr. Salvador da Costa, Apoio Judiciário, 2. ed., 120 e segs.
É o que resulta do artigo 21, onde se estabelece que a concessão do apoio judiciário compete ao juiz da causa para a qual é solicitada, constituindo um incidente do respectivo processo e admitindo oposição da parte contrário; do artigo 28, que impõe que o M.P. tenha vista do processo, quando não for o requerente, a fim de se pronunciar sobre o pedido de apoio judiciário; e do artigo 41, que manda desempenhar ao relator, nos tribunais superiores, as competências cometidas ao juiz da causa.
Por sua vez o n. 1 do artigo 7 enuncia que têm direito a protecção jurídica, as pessoas singulares que demonstrem não dispor de meios económicos bastantes para suportar os honorários dos profissionais forenses, devidos por efeito da prestação dos seus serviços, e para custear, total ou parcialmente, os encargos normais de uma causa judicial; o apoio judiciário compreende a dispensa, total ou parcial, de preparos e do pagamento de custas, ou o seu diferimento, assim como do pagamento dos serviços do advogado ou solicitador - n. 1 do artigo 15.
Já o artigo 5 da Lei 31/86, de 29 de Agosto (Arbitragem Voluntária) dispõe que a remuneração dos árbitros e dos outros intervenientes no processo, bem como a repartição entre as partes, deve ser fixada na convenção de arbitragem ou em documento posterior subscrito pelas partes, a menos que resultem dos regulamentos de arbitragem escolhidos nos termos do artigo 15.
E seria caso para perguntar, se fosse possível o apoio judiciário na jurisdição arbitral, quem suportaria as despesas com o funcionamento do tribunal se a ambas as partes fosse concedido apoio judiciário.
Acresce que os tribunais estaduais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, incumbindo-lhe
assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesse públicos e privados, tendo direito, no exercício das suas funções, à coadjuvação das outras autoridades - ns. 1, 2 e 3 do artigo 202 da CRP.
Portanto o exercício da função judicial é reservado aos tribunais órgãos de soberania; a jurisdição plena é exercida pelos juízes estaduais.
Os tribunais arbitrais voluntários assentam na autonomia privada, sendo instituições de natureza privada.
Como nota o Dr. Francisco Cortez, A Arbitragem Voluntária em Portugal, O Direito, 555, não o deixam de ser para se transformarem em órgãos do Estado. O Estado é que, reconhecendo a utilidade pública da arbitragem voluntária, quebra o monopólio do exercício da função jurisdicional pelos seus órgãos atribuindo à decisão os efeitos próprios da sentença judicial: a força de caso julgado e a força executiva. Em suma, a arbitragem voluntária é contratual na sua origem, privada na sua natureza, jurisdicional na sua função e pública no seu resultado. Fazendo participar os tribunais arbitrais no exercício da função jurisdicional, o Estado, através da lei, quebra o velho dogma do monopólio estatal, não da titularidade mas do exercício, da função jurisdicional.
Não sendo os tribunais órgãos de soberania não se lhes aplica directamente o artigo 20 da CRP.
A sua competência é limitada, pois só podem intervir a pedido das partes desde que o litígio entre elas não respeite a direitos indisponíveis e desde que, por lei especial, não esteja submetido exclusivamente a tribunal judicial ou a arbitragem necessária - n. 1 do artigo 1 da Lei 31/86, de 29 de Agosto; e, embora, as suas decisões tenham a mesma força executiva das do tribunal judicial da 1. instância, porque, como se viu, não são dotados de jus imperium, não podem executá-las, correndo a execução no tribunal de 1. instância, nos termos da lei de processo civil - artigo 30 do mesmo Diploma e artigos 48 n. 2 e 90 n. 2, do CPC.
6- Da Suscitada Questão de Inconstitucionalidade:
Por entender implicar negação do direito de acesso à justiça, em violação do artigo 20 n. 1 da CRP, o Autor questiona a inconstitucionalidade da interpretação pelo tribunal recorrido da actual alínea j), antiga alínea h), do n. 1 do artigo 494 do CPC, bem como do n. 1 da Lei 31/86, no sentido de imporem o tribunal arbitral, mesmo quando uma das partes que convencionou a arbitragem carece de apoio judiciário.
De notar, desde já, que não está em causa o problema da constitucionalidade das normas do DL 387-B/87, de 29 de Dezembro, que apenas previu a concessão de apoio judiciário quando se litiga perante os tribunais estaduais.
O Autor recorrente questiona, se, a constitucionalidade da norma processual civil que erige em excepção dilatória a violação de convenção arbitral, ou seja, a norma constante da alínea j) do n. 1 do artigo 494 do CPC, na sua actual redacção (correspondente á anterior alínea h)), que dispõe: "São dilatórias, entre outras, as excepções seguintes: A preterição do tribunal arbitral necessário ou a violação de convenção de arbitragem".
Porém, não tem razão.
De facto, a existência de tribunais arbitrais voluntários - e é disso que se trata quando existe uma convenção arbitral - está prevista na própria Constituição, no artigo 209 n. 2 (Podem existir tribunais marítimos, tribunais arbitrais e julgados de paz), que deixa às partes a possibilidade de submeter os litígios que as oponham à decisão de árbitros. E em execução dessa abertura constitucional a Lei 31/89, de 29 de Agosto, veio posteriormente regular, como se referiu, a arbitragem voluntária, dispondo que quando o litígio respeite a direitos disponíveis, as partes podem convencionar que ele seja decidido por árbitros, desde que, claro é, o mesmo não esteja, por força de lei especial, submetido a tribunal judicial ou a tribunal arbitral necessário.
É, pois, a vontade das partes que determina o recurso à arbitragem, num domínio em que, a liberdade das pessoas tem uma enorme força conformadora - domínio que é dos direitos disponíveis.
Ora, se o recurso à arbitragem se encontra, por força da própria lei, na dependência da vontade das partes, não pode pretender-se que a previsão de uma excepção dilatória traduzida na violação dessa expressão de vontade das parte, importe violação, ou sequer, restrição do direito de acesso aos tribunais.
A norma constante da última parte da alínea j) do n. 1 do artigo 494 do CPC, na actual redacção, antiga alínea h), não é, pois, inconstitucional: ele não viola o n. 1 do artigo 20 da Constituição, nem qualquer outra norma ou princípio constitucional.
7- Da Impossibilidade Superveniente de Custear as Despesas da Arbitragem:
Com o que se disse não fica, porém , toda a questão resolvida.
Na verdade, importa ainda saber se, quando exista uma convenção de arbitragem, a superveniência de uma situação de insuficiência económica que impossibilite uma das partes dessa convenção de suportar as despesas com a constituição e funcionamento da arbitragem constitui ou não causa legítima de incumprimento dessa convenção, isto é, se nesse caso, a parte que se viu impossibilitada de custear as despesas de arbitragem pode ou não deixar de a ela recorrer e submeter o litígio que a oponha à outra parte aos tribunais estaduais.
Esta questão não encontra resposta directa na lei. A lei contém, tão só no domínio das obrigações, uma norma - n. 1 do artigo 790 do CCIV - que estabelece que a obrigação se extingue quando se torna impossível por causa não imputável ao devedor.
No caso, porém, não se está no domínio das obrigações em sentido técnico, mas de uma vinculação, e a "prestação", ou seja, a obrigação de recorrer a tribunal arbitral, não se tornou impossível. O que se tornou impossível foi o pagamento das despesas da arbitragem, que o mesmo é dizer, de uma "obrigação" acessória da "obrigação" principal.
O que então pode perguntar-se é se esta ideia da extinção da obrigação fundada na impossibilidade do seu incumprimento por causa não imputável ao devedor, não deverá valer aqui também. Se uma tal ideia for transponível para o domínio da convenção arbitral, então haverá que concluir que, não podendo uma das partes custear as respectivas despesas, deve ela ficar desonerada da obrigação de recorrer à arbitragem, podendo, em tal caso, dirigir-se aos tribunais estaduais, não obstante a convenção que subscreveu e, nesse caso, não lhe será oponível a excepção dilatória de violação da convenção de arbitragem.
Podendo, embora, julgar-se que se trata de uma solução duvidosa, existe, no entanto, um tópico interpretativo que aponta no sentido de permitir o recurso aos tribunais estaduais, não obstante a existência de uma convenção arbitral, sempre que - mas só quando -, por culpa não imputável à parte, esta se veja colocada, supervenientemente, na impossibilidade de custear as despesas da arbitragem a que se comprometeu submeter o caso. E este tópico, é o de que, se assim for, face à impossibilidade de custear tais despesas, essa parte estará impossibilitada de obter justiça para o seu caso, isto é, ver-se-á impedida de ver satisfeito o seu direito de acesso à justiça para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos; melhor dizendo, num tal caso, a parte veria ser-lhe denegada justiça por insuficiência de meios económicos.
Ora, este é um resultado que a Constituição não aceita - cfr. citado n. 1 do artigo 20.
Mas, se assim é, então é razoável concluir que a força expansiva dos direitos - ou melhor, do direito de acesso aos truibunais - impõe que, na hipótese que se figurou de a parte na convenção arbitral que, posteriormente à celebração desta, se viu, sem culpa sua, arrastada para uma situação de insuficiência económica que a impossibilitam de custear as despesas dessa arbitragem, possa deixar de cumprir tal convenção e recorrer aos tribunais estaduais, pedindo a resolução do caso, sem que seja possível opor-lhe a competente excepção dilatória.
No caso dos autos o Autor alegou, precisamente, que posteriormente
aos contratos celebrados, as circuntâncias com base nas quais as partes convencionaram o recurso à arbitragem se haviam alterado por culpa exclusiva dos Réus, ora recorridos, e, em consequência de os não terem cumprido, ficou numa situação de carência económica que o impossibilita de fazer face aos elevados custos inerentes à constituição e funcionamento do tribunal arbitral (designadamente artigos 296 a 310 da petição inicial).
Este aspecto não consta da matéria de facto fixada pela Relação, nem foi considerado no Acórdão recorrido; há que ampliar a matéria de facto e, sendo caso disso, seleccionar factos para constarem de base instrutória e sobre eles fazer recair prova.
Por este motivo, e para tal finalidade, devem os autos baixar à Relação.
Fica prejudicada a apreciação da outra questão.
Dir-se-á, a finalizar, que no Acórdão recorrido decidiu-se, que "o Autor saltou um degrau no processo de arbitragem voluntária, no sentido de afastar a aplicação da convenção de arbitragem que contratualmente assinou. Tomou a posição de unilateralmente resolver, por incapacidade económica, a convenção de arbitragem acordada. Tal procedimento é contrário aos artigos 1 n. 1, 5, 7 e 15 da Lei 31/86, que não permite a resolução unilateral da convenção de arbitragem".
Se o Autor caiu em situação de insuficiência económica após a celebração da convenção de arbitragem, ficando impossibilitado de suportar as despesas com ela, não tinha de reunir com a outra parte para chegar a acordo naqueles pontos necessários para o bom funcionamento do tribunal arbitral.
A insuficiência económica a verificar-se nos termos referidos, constituindo uma alteração das circunstâncias em que contratou a convenção arbitral, possibilita-lhe, só por si, recorrer ao tribunal comum.
8- Da Decisão
Acorda-se em se conceder a revista, anulando-se o Acórdão recorrido e ordenando-se a baixa do processo ao Tribunal da Relação para os apontados fins.
Custas pelo vencido a final.
Lisboa, 18 de Janeiro de 2000.
Aragão Seia,
Lopes Pinto,
José Saraiva.