Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B1998
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MOITINHO DE ALMEIDA
Nº do Documento: SJ200206270019982
Data do Acordão: 06/27/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 9137/01
Data: 11/22/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1.A intentou a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra B, Empresa de Construções S.A., pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 24414660 escudos, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal de 10% desde 22 de Julho de 1998 e até efectivo pagamento.

Alega para o efeito e em substância que trabalhara em Angola numa empresa do grupo CUF e que ao regressar a Portugal, em consequência do processo de descolonização, foi, em 1 de Setembro de 1981, integrado nos quadros de pessoal do Banco Totta & Açores. Em Janeiro de 1983 foi nomeado vogal do conselho de Administração da ....., S.A., sociedade cujo capital social era maioritariamente detido pelo Banco Totta & Açores, funções que desempenhou durante três anos.

Foi depois nomeado, por proposta daquele Banco, como vogal do conselho de Administração da ".... Empresa de Administração e Construções S.A.", cujo capital social era detido integralmente pelo B.T.A., funções que exerceu ininterruptamente e a tempo inteiro, com o último mandato válido para o triénio 1996-1999. Em 1991, a "...." passou a designar-se " B - Empresa de Administração e Construções S.A".

Durante todos estes anos, continuou a integrar os quadros do Banco Totta & Açores, embora o seu contrato de trabalho tenha sido suspenso. Manteve, porém, todos os benefícios e regalias decorrentes da antiguidade, tendo sido promovido por mérito e dedicação aos níveis 14, 15,16 e 17 do respectivo Acordo Colectivo de Trabalho. Parta efeitos de reforma e de antiguidade foram tidos em conta oito anos de serviço em Angola.

O autor auferia a remuneração mensal, como administrador-executivo da Ré, de 1187644 escudos, remuneração processada pelo Banco Totta e Açores e, em seguida, debitada à Ré.

Tendo em 30 de Abril de 1998 passado à reforma, deixou aquele Banco de assim proceder. Ora, não obstante o pedido nesse sentido do Autor, a Ré recusou-se a pagar a sua retribuição mensal, limitando-se, a título de adiantamento, a atribuir-lhe a quantia de 620000 escudos, acrescida do valor correspondente ao cartão executivo, viatura de serviço e combustível.

Em 22 de Julho de 1998 foi, por deliberação do Conselho de Administração, destituído das suas funções, sem qualquer justificação.

A quantia pedida corresponde aos prejuízos sofridos em consequência da destituição

A acção foi julgada parcialmente procedente e a Ré condenada a pagar ao Autor a quantia de 12694660 escudos, acrescida de juros à taxa supletiva legal, desde a data da propositura da acção e até integral pagamento.

Por acórdão de 22 de Novembro de 2001, a Relação de Lisboa concedeu parcial provimento à apelação da Ré, revogando a sentença recorrida na parte em que condenou a Ré ao pagamento de uma quantia superior a 9131728 escudos.

Inconformada recorre B para este Tribunal, concluindo as alegações da sua revista nos seguintes termos:

-Nos termos do disposto no n°1 do artigo 399° do Código das Sociedades Comerciais "Compete à assembleia geral dos accionistas ou a uma comissão de accionistas por aquela nomeada fixar as remunerações de cada um dos administradores, tendo em conta as funções desempenhadas e a situação económica da sociedade";

-Dispõe também o artigo 63° do mesmo Código que

"As deliberações dos sócios só podem ser provadas pelas actas das assembleias gerais ou, quando sejam admitidas deliberações por escrito, pelos documentos donde elas constem";

-Por sua vez, dispõe o n°2 do artigo 655° do Código de Processo Civil, que "... quando a lei exija, para a existência ou prova de facto jurídico, qualquer formalidade especial, não pode esta ser dispensada".

-Ou seja, a prova de que o autor, ora recorrido, auferia remuneração enquanto administrador da Ré, só podia legalmente ser feita através da respectiva Acta da sua Assembleia Geral, no caso, da sua Comissão de Fixação de Vencimentos.

-É que mesmo no caso das remunerações dos administradores serem fixadas por uma comissão de accionistas, está-se,na realidade, perante uma deliberação dos sócios e, como tal, nos termos do artigo 63° do C.S.C., esta só pode ser provada pela respectiva acta da reunião ou por documento escrito.

-No entanto, esta prova não foi feita.

-a única acta que se encontra junta aos autos, é precisamente a Acta da Comissão de Fixação de Vencimentos da ora Recorrente, de 8 de Janeiro de 1997, que foi junta com a contestação como doc. n°16, onde foi deliberado expressamente que o autor não auferia qualquer remuneração pelo desempenho do cargo.

-Não podia, pois, o Tribunal de 1ª Instância dar como provado o que deu, quanto à atribuição de remunerações ao autor, pela Ré, uma vez que esta matéria só podia ser provada por documentos e, tendo-o feito, devia o Tribunal "a quo" ter modificado a decisão da matéria de facto.

-Deve, assim, ao abrigo do disposto no artigo 722°, n°2ª parte, do C.P.C., a decisão sobre a referida matéria de facto ser alterada por Vossas Excelência, em conformidade com o acima exposto, ou seja, dando-se como não provado que o autor auferisse da ré, como seu administrador, qualquer remuneração e provando-se exactamente o contrário- que o autor não auferia da ré qualquer remuneração pelo desempenho desse cargo- uma vez que os elementos constantes dos autos impõem, como se disse, decisão diversa, o que desde já se requer.

-Não auferindo o autor, ora recorrido, qualquer remuneração da Recorrente, pelo exercício das suas funções de administrador, não tem o mesmo direito a ser indemnizado, nem a quaisquer diferenças de "remunerações".

-De facto, a destituição sem justa causa poderá implicar o pagamento de uma indemnização pelos prejuízos sofridos, a qual, contudo, não poderá nunca ultrapassar o montante das remunerações vincendas até ao termo do mandato.

-Ora, como o A. não era remunerado pela Ré, conforme foi deliberado pela Comissão de Fixação de Vencimentos da Ré, não podia a ora Recorrente ser condenada a pagar ao autor qualquer indemnização por destituição do autor, nem pode a ora Recorrente ser condenada a pagar ao Recorrido quaisquer diferenças relativas aos meses de Maio a Julho de 1998.

-Pelo contrário, o autor é que deve à ora Recorrente a quantia de 1860000 escudos que recebeu indevidamente.

-Foi com o Banco Totta & Açores que o autor acordou os termos e condições em que iria desempenhar funções na Administração da Recorrente, pelo que, se o acordo que o Recorrido tinha com o Banco não foi cumprido, era a esse Banco, e não à ora Recorrente, que o mesmo devia ir reclamar.

-O facto de, depois, o Banco Totta e Açores debitar à ora Recorrente o custo com as remunerações do autor, é algo que é completamente estranho ao autor.

-Se o contrato de trabalho do autor esteve suspenso, não foi por força da lei, dado, ao contrário do sustentado na douta decisão recorrida, o artigo 398°,n°2 do Código das Sociedades Comerciais ser inconstitucional.

-Trata-se, assim, de uma inconstitucionalidade formal, por ofensa dos preceitos constitucionais (actuais artigos 54°,n°5 al.d) e 56°,n°2, a) da Constituição e anteriores artigos 55°, al.d) e 57°,n°2, al.a) da Constituição vigente em 1986).

-Ao decidir, como decidiu, o douto acórdão recorrido violou, na parte em que confirmou a sentença do tribunal de 1ªInstância, os artigos 399°,n°1, e 63°,n°1, e os artigos 430° e 257°,n°s 1 e 7 (por aplicação analógica), todos do Código das Sociedades Comerciais, o artigo 655°,n°2 do Código de Processo Civil e os artigos 54°,n°5, al.d) e 56°,n°2, al.a) da Constituição da República Portuguesa..

2.Estão provados os seguintes factos, com relevância para a apreciação do presente recurso:

Em 1986, o autor passou a exercer, a tempo inteiro, o cargo de administrador da ..... ,Empresa de Administração e construções, S.A.(que, a partir de 1991, tem a denominação B, Empresa de Administração e Construções S.A..)cujo capital era detido integralmente pelo Banco Totta e Açores. Auferia, a esse título a remuneração mensal líquida de 1187644 escudos (683740 escudos,de retribuição base) e a quantia de 2926 escudos, anuais (participação nos lucros), pagos por aquele Banco. Para este, todavia, tal pagamento não constituía encargo, uma vez que se limitava a processá-lo.

3.A Recorrente pretende a alteração da matéria de facto na parte respeitante à remuneração do Recorrido e suscita a inconstitucionalidade do artigo 398°, n°2, do Código das Sociedades Comerciais.

3.1 Alteração da matéria de facto

Com base no disposto nos artigos 399° e 63°, do Código das Sociedades Comerciais, sustenta a Recorrente que a matéria de facto, na parte respeitante à remuneração do Recorrido como seu administrador, devia ser considerada como não provada.

Com efeito, as remunerações dos administradores são fixadas pela assembleia geral ou por uma comissão por esta nomeada (artigo 399°,n°1), e a deliberação, como todas as deliberações dos sócios, só pode ser provada pela respectiva acta (artigo 63°). No caso de as remunerações serem fixadas por uma comissão de accionistas, a deliberação deste órgão é uma deliberação dos sócios e, por isso, sujeita ao regime prevista neste último artigo.

Uma vez que a remuneração do Recorrido não foi provada por qualquer acta, não podia a primeira instância dar como provado o que deu no que a essa remuneração respeita. Trata-se de fixação dos factos materiais da causa que pode ser objecto de revista nos termos do disposto no artigo 722°,n°2, do Código de Processo Civil.

Resulta aliás expressamente da Acta da Comissão de Fixação de Vencimentos da Recorrente, de 8 de Janeiro de 1997, que o autor não auferia qualquer remuneração pelo desempenho do cargo.

Importa observar ,antes do mais, que o facto de se ter dado como provada a remuneração do Recorrido não significa que esta tenha sido legalmente fixada.Não é a alteração da matéria de facto que está em causa (excepto no que respeita ao valor probatório da acta da Comissão de Vencimentos de 8 de Janeiro de 1997, que adiante será apreciado) mas a questão de saber se pode ter-se em conta tal remuneração.

No que se prende com esta questão, a interpretação feita pela Recorrente das disposições em causa é a que corresponde à jurisprudência deste Tribunal. Quando a prática de um acto deva assumir a forma de deliberação social só através da respectiva acta pode ser provado (acórdão de 4 de Novembro de 1997, processo n. 449/96). " A despeito de se tratar de uma formalidade ad probationem a sua falta, face aos termos peremptórios do texto legal..., não pode ser suprida por outro meio de prova, como a confissão expressa, ao contrário do que sucede no âmbito do direito civil "(acórdão de 2 de Julho de 1996, processo n°67/96).

Verifica-se, porém, que a nomeação do Recorrido como administrador da Recorrente não é contestada quanto à sua validade. Nestas condições e face ao disposto no artigo 59°, n. 1 a) da Constituição, tem direito a remuneração segundo a quantidade, natureza e qualidade do seu trabalho, remuneração esta que, face à nulidade da estabelecida, deve ser fixada judicialmente. Assim o tem entendido o Tribunal da Cassação italiano, face a disposições semelhantes (artigo 2389°, do Código Civil e 36°,n°1 da Constituição - Francesco Borelli, Gli Amministratori di Società per Azioni, Milão, 1985, p.146).

Na fixação da retribuição deve o tribunal atender à "retribuição corrente no mercado para análogas prestações, relativamente a sociedades de dimensões análogas" (Borelli, op.cit., p.151).Mas é de presumir que a fixada ao longo de vários anos no que respeita a um administrador nomeado nas condições em que o Recorrido o foi, sem particular influência nos destinos da Sociedade, é a que corresponde a tais factores.

Deve pois concluir-se no sentido de que, embora por razões de direito diferentes, bem andou o acórdão recorrido ao ter em conta tal remuneração. A tal se não opõe a referida acta da Comissão de Vencimentos, na medida em que tal acta não dispõe de força probatória plena.

Enfim, a idêntica conclusão se chegaria com base no abuso de direito.Com efeito, traduz-se num venire contra factum proprium invocar a nulidade de um contrato para que o próprio contribuiu sem que nada o fizesse esperar e ao arrepio de comportamento anterior (acórdão de 14 de Março de 2002, Revista n°405/02). O mesmo se dirá quanto à invocada nulidade da fixação da remuneração do Recorrido.

3.2 Inconstitucionalidade do artigo 398°,n°2 do Código das Sociedades Comerciais

Considera a Recorrente que o artigo 398, n. 2 do Código das Sociedades Comerciais viola o disposto nos artigos 54, n. 5, alínea d) e 56, n. 2, alínea a) da Constituição, pois não foram ouvidos os organismos representativos dos trabalhadores.

Trata-se, porém, de matéria que em nada releva para a apreciação do presente recurso. A questão de saber qual a situação do Recorrido relativamente ao Banco em que trabalhava após a sua nomeação como administrador da Recorrente não é de natureza a repercutir-se na matéria de facto dada como provada, no sentido de que era esta quem, a final, suportava a respectiva remuneração.

Termos em que se nega a revista.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 27 de Junho de 2002.

Moitinho de Almeida,

Joaquim de Matos,

Ferreira de Almeida.