Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B4420
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: ACÇÃO CÍVEL
TRANSACÇÃO JUDICIAL
CASO JULGADO MATERIAL
ABUSO DO DIREITO
REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
USUCAPIÃO
Nº do Documento: SJ20071218044207
Data do Acordão: 12/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
1. Não ofende o caso julgado formado pela sentença homologatória de transacção na acção cível enxertada em processo penal por crime de dano, cujo objecto foi o de condenação dos arguidos no pagamento à assistente de determinada quantia e a aceitação de implantação do tranqueiro por aqueles destruído, a sentença proferida na acção cível subsequente, intentada pelos primeiros contra a última, declarativa da aquisição do direito de propriedade sobre identificada parcela de terreno cujo acesso aquele tranqueiro visava vedar, com fundamento em contrato de compra e venda e usucapião.
2. A referida instauração da acção cível pelos autores, apesar do conteúdo da aludida transacção, é insusceptível de ser qualificada de abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium.
3. A inscrição no registo predial da titularidade do direito de propriedade de uma pessoa sobre o prédio, sem ilisão pela parte contrária da respectiva presunção, justifica a conclusão da propriedade, mas não a respectiva dimensão nem a abrangência da questionada parcela de terreno.
4. Assente que aquela parcela de terreno se integra no prédio dos autores e que tal prédio foi por eles adquirido por usucapião, deve declarar-se a sua titularidade do direito de propriedade sobre ela.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I
AA e BB intentaram, no dia 21 de Junho de 2001, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra CC e DD, pedindo a declaração de serem donos e possuidores de identificado prédio abrangente de uma área triangular com cerca de dez metros quadrados no seu canto norte-poente e de que identificado prédio dos réus a não abrange, bem como a condenação destes a demolirem os muros, o tranqueiro e o portão na parte que ocupam, deixando-a livre de quaisquer restolhos ou entulhos.
Motivaram a sua pretensão na circunstância de terem adquirido o direito de propriedade sobre aquele prédio por escritura pública e usucapião e de os réus, sem o seu consentimento, o terem ocupado naquela parte.
Em contestação, afirmaram os réus terem adquirido o mencionado terreno por usucapião e que as áreas dos terrenos em causa evoluíram e foram rectificadas, terminando por pedir a condenação dos autores a indemnizá-los, com fundamento na litigância de má fé, no montante de 300 000$, e os autores, na réplica, negaram a versão apresentada pelos primeiros.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, no dia 2 de Novembro de 2005, por via da qual os autores foram declarados proprietários do prédio abrangente da questionada parcela de terreno e os réus condenados na demolição do muro, do tranqueiro e do portão e a deixarem essa parte da parcela livre de quaisquer restolhos, entulhos o congéneres.
Interpuseram os réus recurso de apelação, e a Relação, por acórdão proferido no dia 9 de Julho de 2007, negou-lhe provimento.

Interpuseram os apelantes recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- os recorridos não gozam de presunção de propriedade sobre a mencionada parcela de terreno, relevando não a compra titulada pela escritura, mas a acordada divisão posterior, que não foi levada ao registo;
- os recorrentes tinham a posse da parcela de terreno desde Março de 1997, e, mesmo que dúvidas houvesse, o seu poder de facto sobre ela, confirmado pela construção do muro que a delimitou e pela colocação do tranqueiro e do portão, faz presumir a sua posse;
- o registo da aquisição do prédio pelos recorridos ocorreu depois do início da posse dos recorrentes, pelo que, mesmo beneficiando da presunção derivada do registo, ela seria afastada pela sua posse anterior, nos termos do artigo 1268º, nº 1, do Código Civil;
- o acórdão viola os artigos 493º a 495º, 497º e 498º do Código de Processo Civil, porque contraria a sentença homologatória de transacção, retirando-lhe toda a eficácia e autoridade, havendo contradição prática entre ambos por não poderem ser simultaneamente executados sem detrimento de algum;
- ainda que assim se não entenda, têm os recorrentes justo título para continuarem a ocupar a faixa de terreno em causa do mesmo modo por que vêm fazendo, o que não pode ser posto em causa pelo acórdão recorrido;
- ainda que não haja caso julgado, é abusivo o direito reclamado pelos recorridos, porque choca gravemente o sentido de justiça a circunstância de se terem comprometido na transacção a reconstruir o tranqueiro colocado como forma de delimitar a faixa de terreno e na acção virem pedir o contrário;
- ainda que os recorridos tivessem tal direito, o seu exercício excederia manifestamente os limites impostos pela boa fé, bons costumes e fins do direito por eles invocado.

Responderam os recorridos, em síntese de conclusão:
- acusados da prática de crime de dano, na iminência de condenação criminal e cível, optaram por aceitar pagar aos recorrentes 25 000$ contra a desistência da queixa criminal, nunca tendo estado em causa no processo criminal a questão da propriedade entre uns e outros;
- os recorrentes não têm posse sobre a faixa de terreno em causa, sendo dela meros detentores, mas têm-na os recorridos por si e antecessores, há mais de vinte anos, consubstanciada em actos materiais demonstrativos da intenção de exercerem o direito de propriedade sobre ela;
- adquiriram o direito de propriedade sobre o prédio por usucapião, nos termos do artigo 1296º do Código Civil, a sua acção não revela abuso do direito, não tendo os recorrentes justo título de ocupação;
- não há contradição entre decisões judiciais, porque a sentença homologatória da transacção apenas reconheceu como válida a vontade das partes nessa altura expressa, sem qualquer pronúncia sobre a definição dos limites dos prédios;
- não há ofensa de caso julgado porque não há identidade de sujeitos, nem de pedido ou de causa de pedir.

II
É a seguinte a factualidade considerada no tribunal recorrido:
1. Em 1983, os autores e os réus combinaram comprar um prédio misto, composto por um artigo urbano e por um artigo rústico, que posteriormente dividiriam e demarcariam entre si, de modo a formarem dois prédios distintos, para cada um ficar a pertencer a cada um deles, na sequência do que o réu outorgou nas escrituras públicas abaixo mencionadas.
2. Em escritura pública lavrada no dia 28 de Janeiro de 1983 na Secretaria Notarial de Vila Nova de Famalicão, EE, por um lado, e DD, por outro, declararam, a primeira vender e o último comprar, por 200 000$, o prédio urbano constituído por uma casa de habitação, com quintal, sito no lugar da Lamela, da freguesia de Landim, a confrontar do norte com o caminho público, do sul com herdeiros de ... e EE, do nascente com herdeiros de ... e do poente com ..., parte da descrição predial nº 30 367, inscrito na matriz sob o artigo 253.
3. Em escritura pública lavrada no dia 28 de Janeiro de 1983 na Secretaria Notarial de Vila Nova de Famalicão, EE, por um lado, e DD, como gestor de negócios de AA, por outro, declararam, a primeira vender e o último comprar, por 100 000$, o prédio rústico denominado "Bouça da Porta", sito no lugar de Lamela, freguesia de Landim, concelho de Vila Nova de Famalicão, a confrontar do norte com DD, do sul com herdeiros de .., do nascente com herdeiros de ... e do poente com herdeiros de ---, parte da descrição predial nº 30367, inscrito na matriz rústica sob o artigo 302.
4. Nessa altura, os autores e os réus demarcaram os dois prédios através de marcos, assinalados no terreno pela implantação de esteios da antiga ramada.
5. Os autores fizeram construir no prédio referido sob II 3 uma casa de habitação de rés-do-chão e anexos, sendo tal prédio constituído pela referida habitação, anexos e quintal, prédio esse com uma área de, pelo menos, 1420 metros quadrados, confrontando, actualmente, do norte com caminho público, do sul com herdeiros de ..., do nascente com herdeiros de ... e do poente com os réus, e está descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Famalicão com o nº 00470/130597, e inscrito em nome dos autores no dia 13 de Maio de 1997.
6. Em 1997, os réus rectificaram as áreas do seu prédio e reduziram a área de quintal para 756 metros quadrados, de forma a deixarem livre uma certa área de terreno - em concreto não determinada – que, conforme a demarcação acordada com os autores, a estes pertencia, e, por essa razão, em 1999, os serviços de finanças eliminaram o artigo 253º urbano e atribuíram ao prédio dos réus o novo artigo urbano 1199º.
7. Em 1997, para procederam ao registo em seu nome do prédio referido sob II 3, os autores apresentaram nos serviços de finanças do concelho o seu pedido de inscrição, declarando-o omisso, e, no pedido de inscrição, atribuíram ao prédio a área de 1 420 metros quadrados, o que foi aceite por aqueles serviços sem qualquer confirmação da sua parte, sendo que o prédio dos autores está actualmente inscrito sob o artigo 714º rústico.
8. Em Março de 1997, procederam os réus à construção de um muro e tranqueiro, assim como à colocação de um portão, com o que invadiram o canto norte/poente do prédio dos autores mencionado sob II 3 e ocuparam uma parcela triangular do mesmo com cerca de dez metros de altura, 1,6 metros de lado e 10,5 metros de hipotenusa.
9. Os réus promoveram o registo do prédio mencionado sob II 2 no dia 20 de Janeiro de 1998, na Conservatória do Registo Predial, extractado para ficha, pelo que deixou de fazer parte da descrição nº 30 367 e passou a constituir a descrição nº O0475/2001998­ Landim, estando a inscrição a seu favor identificada pela referência G-2.
10. Os autores por si e antepossuidores, desde há mais de vinte anos que arrendam o prédio referido sob II 3, colhendo os respectivos frutos, recebendo rendas, procedendo a construções, venerando-as, assim como aos quintais e culturas, pagando as respectivas contribuições, o que fizeram e fazem ininterruptamente, à vista de toda a gente, nomeadamente dos vizinhos, sem oposição de quem quer que seja, na convicção de estarem a exercer um direito próprio e ignorando lesar direitos alheios, sendo por todos considerados como seus donos.
11. No 2º Juízo do Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão, no processo crime comum singular n.º 30/98, em que era ofendida DD, e arguidos BB e AA, foi lavrada a seguinte transacção: a ofendida disse desistir da queixa apresentada contra os arguidos e transaccionar quanto ao pedido de indemnização civil, nos seguintes termos: 1º - Reduz o pedido para 25 000$00 a pagar no prazo de 8 dias no escritório do mandatário da ofendida, contra recibo de quitação; 2º - O tranqueiro será reconstruído no local onde antes se encontrava
12. Foi proferida sentença no dia 3 de Maio de 1999, transitada em julgado, que julgou válida e relevante a desistência de queixa, homologando-a e julgando extinto o procedimento criminal, e homologada a transacção, condenando e absolvendo nos seus precisos termos.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se os recorridos têm ou não direito de propriedade sobre a questionada parcela de terreno.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação dos recorrentes e dos recorridos, a resposta às referidas questões pressupõe a análise da seguinte problemática:
- ocorre ou não ofensa do caso julgado?
- efeitos da presunção de propriedade resultante do registo predial da aquisição;
- pressupostos de aquisição do direito de propriedade com base na posse;
- adquiriram os recorridos o direito de propriedade sobre o prédio mencionado sob II 3?
- adquiriram os recorridos o direito de propriedade sobre a faixa de terreno em causa?
- é abusivo o exercício pelos recorridos do direito de acção?
- síntese da solução para o caso decorrente dos factos provados e da lei.


Vejamos, de per se, cada uma das referidas subquestões.

1.
Comecemos com a análise da questão de saber se ocorre não a ofensa de caso julgado invocada pelos recorrentes.
O caso julgado é uma excepção dilatória de conhecimento oficioso e que tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (artigos 494º, alínea i), 495º e 497, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Caracteriza-se essencialmente pela não susceptibilidade de impugnação de uma decisão em razão do seu trânsito em julgado, que decorre, por seu turno, da não susceptibilidade de interposição de recurso ordinário ou de reclamação (artigo 677º do Código de Processo Civil).
A ofensa do caso julgado material depende de a decisão recorrida contrariar uma outra que lhe seja anterior, transitada em julgado, proferida entre as mesmas partes, sobre o mesmo objecto, baseada na mesma causa de pedir (artigos 497º, 498º, 671º e 672º do Código de Processo Civil).
A ofensa do caso julgado formal ocorre, por seu turno, quando no mesmo processo é proferida decisão contrária a outra sobre a relação processual, salvo se esta, por sua natureza, for insusceptível de recurso de agravo (artigo 672º do Código de Processo Civil).
O caso julgado formal envolve a força obrigatória dentro do processo, e o material no processo e fora dele (artigos 671º e 672º do Código de Processo Civil).
O objecto da transacção em causa foi a obrigação de pagamento da quantia de 25 000$ a título de indemnização e a reconstrução do tranqueiro no local onde antes se encontrava, em que os recorridos outorgaram na posição de requeridos e a recorrente na posição de requerente.
A sentença condenou os recorrentes a pagar à recorrida a mencionada quantia e reconheceu o direito da última a reconstruir o tranqueiro no local onde antes se encontrava.
O objecto da acção penal foram factos integrantes de um crime de dano decorrente da destruição do tranqueiro, na qual figuraram como sujeitos a recorrente, que foi a denunciante, e os recorridos, que foram arguidos.
O processo terminou por desistência da queixa por parte da recorrente e por transacção outorgada entre ela e os recorridos no que concerne à indemnização e à reconstrução do tranqueiro no local onde antes se encontrava.
A causa de pedir relativa à acção cível enxertada no processo penal reporta-se ao prejuízo da recorrente derivada da destruição do tranqueiro, enquanto a causa de pedir nesta acção se consubstancia na aquisição do direito de propriedade sobre determinada parcela de terreno por compra e venda e usucapião e na sua ocupação não consentida por outrem.
O pedido cível formulado na acção penal consubstanciou-se no pagamento de determinada quantia em dinheiro e o pedido nesta acção visa a declaração da titularidade do direito de propriedade sobre identificada parcela de terreno e a condenação na prestação de facto concernente à demolição de muros, tranqueiro e portão.
Em consequência, não há, no caso-espécie, coincidência de pedidos nem de causa de pedir, que constituem pressupostos da excepção dilatória do caso julgado.
Em consequência, a sentença homologatória proferida na acção penal nada decidiu daquilo que foi decidido nesta acção, nem podia decidir dado o conteúdo do contrato de transacção que se limitou a homologar.
O acórdão recorrido não a contraria, por isso, nem lhe retira a respectiva eficácia – condenação no pagamento de determinada quantia e legitimação de reconstrução do tranqueiro.
Não há contradição prática entre as duas sentenças, porque cada uma delas pode ser executada no tempo em que adquiriu a eficácia de caso julgado.
A conclusão é, por isso, no sentido de que o acórdão recorrido não ofendeu o caso julgado material que se formou na acção penal no âmbito da acção cível que nela foi enxertada, pelo que não ocorre a excepção dilatória de caso julgado invocada pelos recorrentes.

2.

Prossigamos com a análise dos efeitos da presunção de titularidade derivada do registo predial.
Enquanto os recorridos inscreveram no registo predial a aquisição do direito de propriedade a seu favor sobre o prédio mencionado sob 3 no dia 13 de Maio de 1997, os recorrentes inscreveram a aquisição do direito de propriedade a seu favor sobre o prédio mencionado sob 2 no dia 20 de Janeiro de 1998.
No tribunal da primeira instância considerou-se serem os recorridos titulares do direito de propriedade sobre o aludido prédio por via da presunção derivada do registo.
A principal finalidade do registo predial é dar publicidade à situação jurídica dos prédios, assegurando a quem adquirir direitos sobre eles o conhecimento de toda a realidade subjectiva e objectiva que os envolva (artigo 1.º do Código do Registo Predial).
Dada a sua natureza essencialmente declarativa e a sua função de publicitação de direitos sobre prédios, não pode o registo predial assegurar a efectiva existência do direito na titularidade da pessoa em nome da qual está inscrito.
Conforme resulta de II 5, a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio mencionado sob II 3 está inscrita no registo predial na titularidade dos recorridos.
O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos termos em que o registo o define (artigo 7.º do Código do Registo Predial).
Em virtude da mencionada presunção, estão os recorridos dispensados de provar os factos constitutivos do seu direito de propriedade sobre o referido prédio (artigo 350.º, n.º 1 do Código Civil).
Consequentemente, reverteu para os recorrentes o ónus de prova dos factos reveladores de que os recorrentes não são titulares do direito de propriedade cuja presunção decorre do registo predial (artigo 344º, nº 1, do Código Civil).
Como os recorrentes não ilidiram a mencionada presunção, a conclusão é no sentido de que os recorridos são titulares do direito de propriedade sobre o prédio mencionado sob II 3.
Todavia, a referida presunção, reportada à definição da situação jurídica dos prédios, não abrange os seus elementos de identificação, designadamente a área respectiva, as confrontações e os artigos matriciais de referência.

3.

Atentemos agora nos pressupostos de aquisição do direito de propriedade com base na posse.
A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (artigo 1251º do Código Civil).
Nela se diferenciam dois elementos, o corpus ou domínio de facto sobre a coisa, traduzido no exercício efectivo de poderes materiais sobre ela ou na possibilidade física desse exercício, e o animus, consubstanciado na intenção de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio.
A aquisição originária da posse é susceptível de derivar, além do mais, do apossamento, ou seja, da aquisição unilateral da posse por via do exercício de um poder de facto, isto é, pela prática reiterada, com publicidade, de actos materiais correspondentes ao exercício do direito (artigo 1263º, alínea a), do Código Civil).
A posse também é susceptível de se obter por via da sua transferência, ou seja, por tradição ou sucessão por morte ou entre vivos.
A tradição consubstancia-se na transferência voluntária da posse entre vivos, em regra quando a transmissão da situação jurídica e da situação de facto coincidem, o que ocorre quando há entrega da coisa. Mas a entrega efectiva não é essencial à referida transmissão, visto que a lei se basta, para o efeito, com a entrega simbólica (artigo 1263º, alínea b), do Código Civil).
Quem suceder na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte pode juntar à sua a posse do antecessor, e se a posse do antecessor for de natureza diferente da posse do sucessor, a acessão só ocorre nos limites da de menor âmbito (artigo 1256º do Código Civil).
Reporta-se este artigo à soma facultativa de situações consecutivas de posse propriamente dita, isto é, com corpus e animus, independentemente da natureza do respectivo acto translativo.
A posse mantém-se enquanto durar a actuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar, e presume-se que continua em nome de quem a começou (artigo 1257º Código Civil).
Assim, embora seja o corpus que marca a existência e a duração da posse, a sua conservação não depende em absoluto da continuidade dos actos materiais. Com efeito, se a posse se mantém enquanto haja a possibilidade de continuar a actuação correspondente ao exercício do direito, a relação da pessoa com a coisa legalmente exigida para o efeito não implica necessariamente que ela se traduza em actos materiais.
Nesta perspectiva, há corpus enquanto a coisa estiver submetida à vontade do sujeito em termos de ele poder, querendo, renovar a actuação material sobre ela.
A posse de direitos reais de gozo, incluindo o direito de propriedade, mantida por certo lapso de tempo, faculta, em regra, ao possuidor a aquisição por usucapião do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação, cujos efeitos revertem retroactivamente à data do seu início (artigos 1287º e 1288º do Código Civil).
É titulada se fundada em algum modo legítimo de adquirir - negócio jurídico abstractamente idóneo à transferência do direito - independentemente do direito de quem transmite e da validade substancial do negócio jurídico (artigo 1259º, nº 1, do Código Civil).
É de boa fé quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem, presumindo-se como tal a posse titulada e de má fé a não titulada e a que for adquirida por violência, ainda que seja titulada (artigo 1260º do Código Civil).
A ignorância a que a lei se reporta envolve, em regra, a convicção do exercício de um direito próprio, adquirido por título válido, sendo o momento relevante para o efeito o da aquisição da posse, seja por apreensão da coisa, seja por tradição material ou simbólica.
É pacífica a posse adquirida sem violência, considerando-se violenta a obtida pelo uso de coacção física ou moral, e pública a que é exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados (artigo 1261º do Código Civil).
O possuidor goza da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada no registo anterior ao início da posse (artigo 1268º, nº 1, do Código Civil).
A regra é, pois, a de que a posse implica a presunção legal da titularidade do direito, e a excepção no caso de colisão entre ela e a presunção derivada do registo de um direito anterior ao início da posse, caso em que prevalece esta última presunção.
Assim, no caso de o início da posse em relação a um direito ser anterior ao registo predial do referido direito, a prevalece a presunção derivada da posse sobre a presunção derivada do registo.
Resulta, pois, da lei gozar o possuidor da presunção da titularidade do direito. A excepção da segunda parte consiste em dar prevalência à presunção fundada no registo de um direito anterior ao início da posse se houver colisão entre a presunção resultante da posse e a resultante do registo.
Havendo título de aquisição e registo deste, a usucapião tem lugar quando a posse de boa fé durar dez anos contados desde a data do registo ou, ainda que seja de má fé, houver durado quinze anos contados da mesma data (artigo 1294º do Código Civil).
Inexistindo registo do título ou da mera posse, a usucapião só ocorre no termo do prazo de quinze anos se a posse for de boa fé, e de vinte anos se a posse for de má fé ou de boa fé não titulada (artigo 1296º do Código Civil).
Na hipótese de a posse ter sido constituída por violência ou de modo oculto, a contagem do prazo de usucapião começa cessada que seja a violência ou tornada a posse pública (artigo 1297º do Código Civil).
Ora, resulta do exposto que apenas a posse tomada oculta ou violentamente é insusceptível de fundar a usucapião, porque o prazo para o efeito só começa quando cesse a violência e surja a publicidade (artigo 1297º do Código Civil).

4.
Vejamos agora se os recorridos adquiriram ou não o direito de propriedade sobre o prédio mencionado sob II 3 com base na posse.
No tribunal da primeira instância considerou-se serem os recorridos titulares do direito de propriedade sobre prédio por via da usucapião.
A Relação confirmou o mencionado julgado com base na posse sobre o prédio, envolvida de corpus e animus e na circunstância de os recorrentes apenas terem sido detentores a partir de determinada altura.
Salientou, por um lado, não ter a divisão dos prédios a virtualidade de interromper a posse anteriormente existente, continuada por cada um dos nela intervenientes na parte que lhes coube nessa divisão.
E, por outro, não ter fundamento a argumentação dos recorrentes quanto à contagem do prazo e à questão da boa fé cuja existência os factos apurados revelavam.
Sintetizemos os factos provados que relevam, aos quais importa aplicar as normas jurídicas pertinentes.
Os recorrentes e os recorridos acordaram, no início do ano de 1983, comprarem um prédio com parte urbana e rústica a dividir entre eles de modo a formarem dois prédios distintos, que posteriormente dividiriam e demarcariam.
No dia 28 de Janeiro daquele ano, foram celebrados dois contratos de compra e venda, em que figurou como vendedora ... e como compradores, primeiro o recorrente quanto ao prédio urbano constituído por uma casa de habitação, parte da descrição predial, matricialmente inscrito sob o artigo 253º, e, depois, o recorrido quanto ao prédio rústico, parte da mesma descrição predial, matricialmente inscrito sob o artigo 302º, com identificadas confrontações, a norte com o recorrente, e nessa altura, eles demarcaram os dois prédios.
Os recorridos construíram uma casa de habitação no mencionado prédio, que ficou com anexos e quintal, confrontando a poente com os recorrentes, o qual foi descrito no registo predial e inscrito na sua titularidade no dia 13 de Maio de 1997.
Para inscreverem a aquisição do prédio na sua titularidade, declararam, em 1997, a sua omissão e requereram a respectiva inscrição matricial com a área de 1420 metros quadrados, sem confirmação de outrem, ficando sob o artigo rústico 714º.
Os recorrentes, por seu turno, rectificaram, em 1997, as áreas do seu prédio, reduzindo a do quintal a 756 metros quadrados, deixando livre uma área de terreno que, conforme a demarcação acordada com os recorridos a estes pertencia.
Além disso, no mesmo ano, construíram um muro e um tranqueiro e colocaram um portão, com o que invadiram o canto norte/poente do prédio dos recorridos, ocupando uma parcela triangular do mesmo com cerca de dez metros de altura, 1,6 metros de lado e 10,50 metros de hipotenusa.
Ademais, promoveram, no dia 20 de Janeiro de 1998, o registo do seu prédio, deixando de fazer parte da descrição nº 30 367 e passando a constituir a descrição nº 00475, e ficando inscrito na sua titularidade.
Por virtude da rectificação de áreas mencionada, os serviços de finanças eliminaram o artigo urbano 253º e atribuíram ao seu prédio o novo artigo urbano 1199º.
Os recorridos, por si e anteriores possuidores, há mais de vinte anos, arrendam o aludido prédio, colhendo os respectivos frutos, recebendo rendas, procedendo a construções, venerando-as, assim como aos quintais e culturas, pagando as respectivas contribuições, ininterruptamente, à vista de toda a gente, nomeadamente dos vizinhos, sem oposição de alguém, convictos de estarem a exercer um direito próprio, ignorando lesarem direitos alheios, e por todos considerados como seus donos.
Conforme já se referiu, uma das formas de aquisição do direito de propriedade, reportada ao momento do início da posse, é a usucapião (artigos 1288º, 1316º e 1317º, alínea c), do Código Civil).
Os recorridos adquiriram a posse do prédio em causa por via da tradição, na sequência do contrato de compra e venda mencionado sob II 3, que se traduz em justo título de aquisição, conforme resulta do artigo 1316º do Código Civil, no dia 28 de Janeiro de 1983.
O referido título de aquisição foi levado ao registo no dia 13 de Maio de 1997, com a consequência de o prazo de aquisição do direito de propriedade sobre o prédio em causa, porque os recorridos eram possuidores de boa fé, se completar no dia 13 de Maio de 2007 (artigos 279º, alínea c) e 1294º, alínea a), do Código Civil).
Independentemente disso, importa ter em conta que a sua posse acrescida à dos anteriores titulares do direito de propriedade foi pacífica, pública, de boa fé e durou mais de vinte anos.
A conclusão é, por isso, no sentido de que os recorridos adquiriram originariamente, por usucapião, o direito de propriedade sobre o prédio mencionado sob II 3.

5.
Continuemos com a análise da subquestão de saber se os recorridos adquiriram ou não o direito de propriedade sobre a questionada faixa de terreno.
No tribunal da primeira instância considerou-se que os recorridos adquiriram o direito de propriedade sobre ela por usucapião.
A Relação, por seu turno, confirmou o decidido, justificando com a circunstância de os recorrentes não terem posse sobre a mencionada faixa de terreno, e de só serem seus detentores.
A sentença homologatória da transacção não constitui título de ocupação da parcela de terreno em causa, porque ele não decorre do seu conteúdo, certo que não conheceu sobre algum direito de propriedade ou de posse ou que ele lhes fosse reconhecido.
Os recorrentes exerceram, na sequência da implantação do muro, do portão e do tranqueiro, um poder de facto sobre a parcela de terreno em causa desde 8 Março de 1997, o qual constitui elemento integrante do corpus da posse.
Incumbia-lhes, porém, a prova de que a sua posse, nessas circunstâncias, até a recorrida ter operado a destruição do tranqueiro, havia durado mais de um ano, o que não lograram (artigos 342º, nº 2 e 1276º, nº 1, alínea d), do Código Civil).
Assim, a circunstância de os recorrentes haverem exercido os referidos actos de posse não permite a conclusão de os recorridos haverem perdido a posse que sobre a mencionada parcela vinham a exercer.
Por isso, não tem fundamento legal a alegação dos recorrentes no sentido de que a sua posse sobre a parcela de terreno em causa inutilizou a presunção de propriedade a favor dos recorridos derivada do registo.
De qualquer modo, esta problemática não podia assumir relevo no caso vertente, porque o registo predial não podia ter a virtualidade de definir a titularidade do direito de propriedade sobre a questionada faixa de terreno que recorrentes e recorridos entendem integrar o seu prédio.
Tal como os recorrentes alegaram, face à estrutura da acção de reivindicação em causa, impunha-se aos recorridos a prova dos factos reveladores de que adquiriram o direito de propriedade sobre a questionada parcela de terreno, objecto crucial do litígio (artigos 342º, nº 1, 1311º, nº 1, do Código Civil e 498º, nº 4, do Código de Processo Civil).
Todavia, dados os factos provados e a respectiva conexão, a solução desta questão é tributária daqueloutra da aquisição do direito de propriedade sobre o prédio mencionado sob II 3.
Com efeito, está assente que, celebrados os contratos de compra e venda mencionados sob II 2 e 3, os recorridos e os recorrentes demarcaram os prédios que constituíram o respectivo objecto mediato, e que, cerca de treze anos depois, no dia 8 de Março de 1997, os últimos construíram o muro e o tranqueiro e colocaram um portão.
Mas também está assente que os recorrentes, com a mencionada acção, invadiram o canto norte/poente do prédio dos recorridos mencionado sob II 3, ocupando uma parcela triangular do mesmo com cerca de dez metros de altura, 1,6 metros de lado e 10,5 metros de hipotenusa.
Assim, resulta desta factualidade, que a discutida área de terreno se integra no prédio dos recorridos, em relação ao qual estes últimos adquiriram o direito de propriedade por usucapião, ou seja, originariamente, com efeitos à data do início da posse.

6.
Prossigamos agora com a análise da questão de saber se os recorrentes agiram ou não com abuso do direito.
Alegaram os recorrentes que se os recorridos tivessem tal direito, a circunstância de se terem comprometido na transacção a reconstruir o tranqueiro delimitador da faixa de terreno e na acção pedirem o contrário, o seu exercício chocaria gravemente o sentido de justiça e excederia manifestamente os seus limites impostos pela boa fé pelos bons costumes e fins.
Expressa a lei ser ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (artigo 334º do Código Civil).
Reporta-se, pois, este artigo à existência de um direito substantivo exercido com manifesto excesso em relação aos limites decorrentes do seu fim social ou económico, em contrário da boa fé ou dos bons costumes, proibindo essencialmente a utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de interesses exorbitantes do fim que lhe inere.
O fim económico e social de um direito traduz-se, essencialmente, na satisfação do interesse do respectivo titular no âmbito dos limites legalmente previstos; os bons costumes são, grosso modo, o conjunto de regras de comportamento relacional, acolhidas pelo direito, variáveis no tempo e, por isso, mutáveis conforme as concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade de referência em determinados tempo e espaço.
O seu funcionamento, como excepção peremptória imprópria de direito adjectivo que é, não depende da sua consciencialização por parte do respectivo sujeito.
O entendimento da jurisprudência, no seguimento da doutrina, tem sido no sentido de que este instituto funciona como limite ao exercício de direitos quando a atitude do seu titular se manifeste em comportamento ofensivo do sentido ético-jurídico da generalidade das pessoas em termos clamorosamente opostos aos ditames da lealdade e da correcção imperantes na ordem jurídica.
Uma das vertentes do abuso do direito é o designado venire contra factum proprium, no confronto com o princípio da tutela da confiança, como é o caso de ser exercido contra alguém que, com base em convincente conduta, positiva ou negativa de quem o podia exercer, confiou em que tal exercício não ocorresse e programou em conformidade a sua actividade.
Dir-se-á, nessa hipótese, que o titular do direito opera o seu exercício no confronto de outrem depois de a este fazer crer, por palavras ou actos, que o não exerceria, ou seja, depois de gerar uma situação objectiva de confiança em que ele não seria exercido.
Aproximemos do caso concreto em análise as referidas considerações de ordem jurídica.
Os recorridos eram possuidores da mencionada parcela de terreno, posse que foi perturbada pelos recorrentes, no dia 8 de Março de 1997, por via da implantação do muro, do tranqueiro e do portão.
A recorrida reagiu a tal perturbação por via da destruição do mencionado tranqueiro, foi accionada criminalmente cerca de um ano depois e, um ano passado, ocorreu a transacção e, cerca de dois anos após, foi instaurada esta acção cível.
A referida transacção ocorreu em acção criminal, a recorrida não se comprometeu a reconstruir o mencionado tranqueiro nem a discutir judicialmente a titularidade do direito em causa.
Em consequência, ao invés do que os recorrentes alegaram, os factos provados não revelam terem os recorridos agido na acção em causa com abuso do direito, incluindo a modalidade de conduta contraditória.

7.
Finalmente, a síntese da solução para o caso-espécie, decorrente dos factos provados e da lei.
O acórdão recorrido não ofende o caso julgado decorrente da sentença homologatória da transacção cível preferida no processo-crime em que a recorrente era requerente e os recorridos requeridos.
A inscrição da titularidade do direito de propriedade sobre o prédio mencionado sob II 3 a favor dos recorridos no registo predial, sem ilisão pelos recorrentes da presunção de propriedade daqueles, justifica a conclusão de que os primeiros os proprietários daquele prédio.
A referida presunção não abrange, porém, a dimensão do referido prédio, ou seja, não permite a inclusão do direito de propriedade presumido dos recorridos sobre a questionada parcela de terreno.
Mas os recorridos adquiriram por usucapião o direito de propriedade sobre o aludido prédio que inclui a mencionada parcela de terreno.
Não ocorrem, na espécie, os pressupostos da excepção peremptória imprópria do abuso pelos recorridos do exercício do seu direito.

Improcede, por isso, o recurso.
Vencidos, são os recorrentes responsáveis pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).


III
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condenam-se os recorrentes no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 18 de Dezembro de 2007.

Salvador da Costa (relator)
Ferreira de Sousa
Armindo Luis