Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9/21.0T8STR.E1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: SIMULAÇÃO
DAÇÃO EM PAGAMENTO
DOAÇÃO REMUNERATÓRIA
ESCRITURA PÚBLICA
INTERPRETAÇÃO
NEGÓCIO JURÍDICO
VONTADE REAL
CANCELAMENTO
REGISTO
VANTAGEM PATRIMONIAL
COLAÇÃO
VENDA A FILHOS OU A NETOS
NULIDADE
EFEITOS
Data do Acordão: 09/23/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE
Sumário :
A convenção das partes, formalizada em escritura pública, que exterioriza uma dação em pagamento, não corresponde à vontade real das partes desse negócio, quando esta vontade foi de os primeiros réus proporcionarem uma vantagem patrimonial aos segundos e ao terceiro réus (filha, genro e neto dos primeiros) com o propósito de enganar o autor (também filho do primeiro réu), pelo que tal negócio se considera simulado. Existindo simulação, o negócio é nulo, devendo as partes restituir o que receberam em execução do negócio simulado.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. BB e CC propuseram ação declarativa contra AA, DD, EE e FF, na qual formularam, em síntese, os seguintes pedidos:

- Ser declarada nula, por simulação absoluta, a escritura de dação em pagamento, celebrada no dia 13 de agosto de 2019, no Cartório Notarial de Santarém, a cargo do Notário GG, com o consequente cancelamento de todos os registos efetuados com base na mesma;

- Serem os Réus condenados, solidariamente, no pagamento de compensação por danos morais no montante de € 9.500,00 (nove mil e quinhentos euros).

2. Alegaram, em síntese, que: o autor, filho do 1.º réu, irmão da 2.ª ré e tio do 3.º réu (que é filho dos 2.ºs réus), tomou conhecimento de que o 1.º réu e a sua falecida mulher outorgaram uma escritura de dação em pagamento através da qual transmitiram os dois únicos imóveis de que eram proprietários aos 2.ºs e 3.º réus.

Tal dação em pagamento teve em vista o pagamento de duas hipotéticas dívidas do 1.º réu e da sua falecida esposa, uma no valor de €3.934,61 (aos 2.ºs réus), e outra no valor de €2.172,48 (ao 3.º réu).

Sucede que tais dívidas nunca existiram, sendo que a única razão que esteve na base da outorga de tal escritura de dação em pagamento foi a existência de desavenças familiares entre as partes, e os réus pretenderam enganar e prejudicar os autores, retirando da esfera jurídica do 1.º réu e da sua falecida mulher os únicos bens imóveis de que estes eram titulares, e que constituíam o único acervo patrimonial dos mesmos, deixando-os assim sem quaisquer bens suscetíveis de serem partilhados, num clara beneficiação dos 2.ºs e 3.º réus, que viram ser-lhes adjudicados os referidos bens, em detrimento do autor.

Alegaram ainda os autores que a atuação dos réus lhes causou instabilidade emocional com impacto na sua saúde física e psicológica, o que se traduziu em danos morais, que computam no valor de € 9.500,00.

3. Os réus contestaram (em conjunto), sustentando a improcedência da ação e afirmando, em síntese, que com a outorga da escritura de dação em cumprimento em causa nos autos não tiveram intenção de prejudicar os autores ou de beneficiar os réus, pois tal dação em cumprimento foi feita para saldar as dívidas que o 1.º réu e a mulher tinham para com os 2.ºs e 3.º réus. Tais dívidas tiveram origem em empréstimos de várias quantias monetárias, para que o 1.º réu e a esposa pudessem suportar despesas diversas.

4. A primeira instância veio a proferir sentença que julgou a ação improcedente e absolveu os réus do pedido.

5. Inconformados, os autores interpuseram recurso de apelação, tendo o TRE, depois de alterar o julgamento da matéria de facto, proferido acórdão com o seguinte dispositivo:

«Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência:

a) Revogar a sentença, na parte em que absolveu os RR. do pedido formulado sob a alínea a) da petição inicial, declarando-se nulos, por simulação, os negócios intitulados de “dações em cumprimento”, celebrados pela escritura de 13 de Agosto de 2019, a que se reporta o ponto D) dos factos assentes, e determinando-se o cancelamento dos registos de aquisição efectuados a favor dos 2º e 3º RR., a que se reportam a AP.378, de 2019/08/14, e AP.382, de 2019/08/14;

b) Manter a sentença recorrida quanto ao mais decidido

6. Contra essa decisão, os réus interpuseram recurso de revista. Nas suas alegações formularam as seguintes conclusões:

«1) Vem o presente recurso interposto do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora que decidiu julgar parcialmente procedente apelação e, em consequência, revogar a sentença na parte em que absolveu os RR. do pedido formulado sob a alínea a) da petição inicial, declarando-se nulos, por simulação, os negócio intitulados de "dações em cumprimento", celebrados pela escritura de 13 de Agosto de 2019, a que se reporta o ponto D) dos factos assentes, e determinando-se o cancelamento dos registos de aquisição efetuados a favor dos 2.° 3.° RR., a que se reportam a AP. 3 78, de 2019/08/14, e AP. 382, de 2019/08/14, mantendo-se no demais.

2) Os motivos que conduziram à alteração da matéria de facto e concomitantemente à parcial procedência do recurso resume-se, na ótica do Acórdão ao apuramento de três indícios que conjugados com as regras da experiência e normalidade da vida levam à presunção de que a intenção dos RR. foi outra que não o declarado pagamento da divida.

3. E tais indícios são: A desproporção entre a dívida do 1.° R. e o valor dos prédios objeto da dação em pagamento; Não ter sido demonstrada a existência das dívidas do primeiro para 1.° RR. para com os 2.°s e 3.° RR.; O facto de à data da celebração do negócio o 1.° R. ter na sua conta bancária valor suficiente para o pagamento das dívidas.

4. O douto Acórdão prolatado não esgrime qualquer argumento ou fundamento lógico e/ou válido que permita formar diferente convicção, limitando-se a esgrimir uma opinião, confundindo a livre convicção com a íntima convicção do julgador, acabando, porém, por fazer assentar a decisão em premissas erradas e contraditórias.

5. Com efeito, ou bem que há desproporção entre o valor da divida e o valor dos bens objeto da dação em pagamento, ou bem que não há divida.

6. O que não se aceita é que se conclua que há desproporção de uma divida que não existe, o que conjugado com o facto de à data da celebração do negócio o l.° R. ter na sua conta bancária valor suficiente para o pagamento das dívidas não é suscetível de consubstanciar indício(s) de coisa nenhuma.

7. A lei impõe ao julgador que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso, e valoradas segundo parâmetros da lógica do homem médio e as regras da experiência.

8. Tal não é o que resulta da decisão recorrida!

9. Antes apresenta uma motivação ilógica, contraditória, insuscetível por isso de suportar a conclusão que defende.

10. Ao decidir deste modo, violou o Acórdão recorrido o princípio da livre convicção do julgador, impondo-se por isso a nulidade do acórdão recorrido, devendo concluir-se como se concluiu na decisão da primeira instância.

11. O Acórdão recorrido viola ostensivamente os princípios da imediação e da oralidade.

12. Com efeito, a decisão da primeira instância, aquando da apreciação critica dos depoimentos das testemunhas, salientou a propósito do comportamento tido pelas testemunhas em audiência dizendo expressamente: “...que as declarações da autora pautaram-se por um hostilidade evidente para com as pessoas dos réus, sendo notória a existência de um conflito aceso entre todos os familiares, circunstância que, a par da natural parcialidade da autora, afecta a credibilidade das declarações que prestou. Quanto ao depoimento das testemunhas, é de salientar que todas prestaram depoimentos frágeis, pouco isentos e eivados de grande subjectividade, sendo notória a parcialidade com que depuseram, tanto mais que, umas estão de relações cortadas com os réus há vários anos, e outras, não estando de relações cortadas, nada sabem da vida dos réus, e são muito amigas dos autores.... HH, apesar de não ter assumido qualquer conflito com os réus, prestou um depoimento altamente apaixonado (chegando a chorar durante o depoimento por sentir «pena» do autor). Disse que a falecida mãe do autor dizia a toda a gente no supermercado que ia deserdá-lo se ele se casasse com a autora”.

7. Os recorridos apresentaram contra-alegações, que concluíram nos seguintes termos:

«i. Inconformada com o teor do Douto Acórdão, os Recorrentes vêm apresentar recurso de revista excecional, meramente dilatório, para que a decisão favorável aos Recorridos não transite em julgado;

ii. De acordo com os Recorrentes, estamos perante um recurso excecional de revista, contudo, o mesmo não cumpre com os requisitos essenciais para a sua admissibilidade (artigo 672.º CPC), pelo que deve ser liminarmente recusado, com as legais consequências;

iii. Não se vislumbra a necessidade do Supremo Tribunal para uma melhor aplicação do direito quando não se antevê na apreciação feita pelo tribunal recorrido qualquer erro grosseiro ou decisão descabidamente ilógica, ostensivamente errada ou juridicamente insustentável;

iv. Como bem andou o Douto Tribunal a quo, e de acordo com os factos dados como provados e não provados, e de acordo com a análise e decisão exemplar do Tribunal da Relação de Évora, este Douto Tribunal valorou e ponderou livremente as provas trazidas aos autos, recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus próprios conhecimentos das pessoas e das coisas, ou seja, a tudo o que possa concorrer para a formação da sua livre convicção acerca de cada facto controvertido;

v. Mal seria se o Tribunal da Relação não tivesse a possibilidade de alterar a matéria de facto dada como provada e não provada sem violar os princípios que os Recorrentes vêm enunciar;

vi. Ao contrário do alegado pelos Recorrentes, o Acórdão proferido pelo TRE encontra-se bem fundamentado e não existe qualquer controvérsia no ordenamento jurídico sobre esta questão;

vii. O facto de os Tribunais decidirem de forma diferente àquela que os Recorrentes pretendem, não é fundamento para o presente Recurso;

viii. A decisão do TRE não padece de qualquer erro e muito menos ostensivo ou grosseiro, e não há qualquer erro ostensivo na aplicação do direito pelo TRE que origine a necessidade de intervenção do STJ;

ix. O Douto Acórdão não esgrime apenas uma opinião e não assenta em premissas erradas e contraditórias.

x. O Douto Acórdão conseguiu, através dos factos e da prova trazida para o processo, alcançar que dívidas no montante de €6.107,08, nunca seriam pagas através de dação em pagamento por imóveis que valiam cerca de 182.000,00 euros. Quando o alegado devedor, o 1.º Recorrente já falecido, tinha valores na conta de cerca de 9.000,00 euros, que daria para pagar as dividas alegadamente existentes – como bem refere o Douto Acórdão;

xi. Portanto, os Recorrentes não podem querer passar um atestado a quem olha para estes factos e vê o que se passou aqui: os aqui Recorrentes pretendiam deserdar o Autor, aqui Recorrido, tal como foi dito pela Testemunha HH. Pura má fé. E continuam, com este recurso meramente dilatório e sem fundamento;

xii. Face a todo o exposto, não se visiona qualquer erro grosseiro na aplicação do direito pelo Tribunal a quo, para intervenção do STJ, assim como não se encontram preenchidos os requisitos de admissibilidade do recurso de revista, nos termos do artigo 672.º do CPC, pelo que deve ser, o presente recurso, rejeitado, ou, em caso de admissão, ser julgado improcedente;

xiii. Os Recorrentes vêm, inconformados, com o Douto Acórdão proferido porque alegam que o mesmo viola os princípios da imediação e da oralidade, contudo, carece os Recorrentes de razão uma vez que o Acórdão teve em consideração o respeito pelos princípios indicados, assim como decidiu de acordo com a sua convicção e análise critica sobre a prova;

xiv. Ora, entendem os Recorridos que bem andou o Douto Tribunal a quo e, neste sentido, os factos dados como provados e não provados devem-se manter na medida em que estão no Acórdão aqui em crise;

xv. Concluindo-se pela verificação dos pressupostos da simulação, sendo os negócios, obrigatoriamente, declarados nulos;

xvi. Face a todo o exposto, deve o Douto Acórdão proferido manter-se nos precisos termos em que o foi, improcedendo in totum o Recurso apresentado pelos Recorrentes. Fazendo-se assim a costumada justiça

Cabe apreciar.

*

II. FUNDAMENTOS

1. Admissibilidade e objeto do recurso

Tendo a segunda instância revogado a sentença, em sentido desfavorável aos recorrentes (e preenchidos os requisitos gerais de recorribilidade previstos no artigo 629.º, n.º 1 do CPC) a revista é admissível, nos termos do artigo 671.º, n.º 1 do CPC, como revista normal (e não enquanto revista excecional, como alegado pelos recorrentes).

2. A factualidade provada

Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos [assinalando-se os factos alterados em recurso]:

Factos assentes - Da petição inicial:

A) O autor é filho do 1.º Réu, irmão da 2.ª Ré e tio do 3.º Réu (filho dos 2.º Réus).

B) As relações familiares estabelecidas entre as partes nem sempre foram as melhores.

C) Em 29 de Junho de 2020, faleceu a mãe do aqui Autor, II, tendo deixado como seus únicos e universais herdeiros, o seu marido aqui 1.º Réu, e os seus dois filhos, o aqui Autor e a 2.ª Ré.

D) Por escritura pública, outorgada no dia 13 de Agosto de 2019, no Cartório Notarial de Santarém, AA e mulher II declararam ser devedores a DD e a EE, sua filha e genro, da quantia de €3.934,61, e a FF, seu neto, da quantia de €2.172,48, referentes a vários empréstimos que estes lhes concederam e que foram sendo colocados à disposição deles em diversas datas, e que para pagamento total das referidas dívidas declararam fazer a dação em cumprimento a DD e a EE do seu prédio misto, sendo a parte urbana composta de casa de rés do chão destinada a habitação, anexo destinado a arrecadação e logradouro e a parte rústica composta de vinha, sito em Alpiarça, à Rua 1, denominado por Localização 1, na freguesia e concelho de Alpiarça, inscrito na matriz rústica sob o artigo 45 da secção .18, com o valor patrimonial, para efeitos de IMT, de €434,61, e na matriz urbana sob o artigo ..11, com o valor patrimonial actual de €58.798,95, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alpiarça sob o número ..00 da freguesia de Alpiarça, ao qual atribuíram para efeitos de dação o valor global de €3.934,61, correspondendo €3.500,00 à parte urbana e €434,61 à parte rústica, e declararam fazer a dação em cumprimento a FF do seu prédio rústico, composto de oliveiras, pomar e vinha, sito em Localização 2, concelho da chamusca, inscrito na respectiva matriz sob os artigos 32 e 33, ambos da secção A, com o valor patrimonial, para efeitos de IMT, respectivamente, de €2.147,72 e €24.76, descrito na Conservatória do Registo Predial da Chamusca sob o número .26 da freguesia de Localização 2, ao qual atribuem para efeitos da dação o valor global de 2.172,48, correspondendo 2.147,72 ao artigo 32 e €24,76 ao artigo 33, tendo DD, EE e FF declarado aceitar as dações em pagamento e, em consequência, a extinção das dívidas de AA e mulher II.

E) Através da escritura referida em D) o 1.º réu e a esposa transmitiram os dois únicos imóveis de que eram proprietários;

F) Pela AP 378 de 14/08/2019, encontra-se registada a aquisição, por dação em cumprimento, a favor de DD e de EE, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Alpiarça sob o número ...........12 da freguesia de Alpiarça, denominado Localização 1, sito na Rua 1, em Alpiarça, inscrito na matriz urbana sob o artigo ..51 e na matriz rústica sob o artigo 45, secção 18;

G) Pela AP 382 de 14/08/2019, encontra-se registada a aquisição, por dação em cumprimento, a favor de FF, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial da Chamusca sob o número ..........10 da freguesia de Localização 2, sito em Localização 2, inscrito na matriz rústica sob os artigos 32 e 33, ambos da secção A.

Factos Provados - Da petição inicial:

1) A autor, a expensas suas, mandou avaliar os dois imóveis objecto da dação em cumprimento, tendo resultado de tal avaliação que o prédio misto, denominado Localização 1, composto por casa de rés-do-chão destinada a habitação, anexo destinado a arrecadação e logradouro com 1.007 m2 e vinha, sito em Alpiarça, na Rua 1, na freguesia e concelho de Alpiarça, tem um valor de mercado que se cifra em € 141.900,00; Consta da mesma avaliação que o prédio rústico, composto por oliveiras, pomar e vinhas, sito em Localização 2, Localização 3, na freguesia de Localização 2, concelho da Chamusca, tem um valor de mercado que se cifra em €40.100,00.

2) O autor sentiu-se enganado e injustiçado, criando assim um clima de instabilidade emocional não só no autor, mas também na sua esposa;

3) A conta à ordem com o número .........85 titulada pelo 1.º réu no Crédito Agrícola apresentava um saldo de €1.341,71 na data de 08-01-2018, de €9.021,69 na data de 13-08-2019, e de €1.147,96 na data de 30-12-2019;

4) A conta poupança com o número .........73 titulada pelo 1.º réu no Crédito Agrícola apresentava um saldo de €10.507,92 na data de 28-03-2018 e de €0,00 na data de 13-08-2019;

5) A conta poupança com o número .........58 titulada pelo 1.º réu no Crédito Agrícola apresentava um saldo de €3.512,00 na data de 23-06-2018 e de €0,00 na data de 07-02-2019.

6) O facto de as relações familiares entre as partes não serem as melhores contribuiu para a outorga da escritura referira em D); [facto aditado em recurso]

7) Ao outorgarem a referida escritura os RR., actuando em conjunto, tiveram a intenção de enganar os AA. e retirar do património do 1º R. e da esposa, II, entretanto falecida, os únicos bens imóveis de que estes eram titulares, susceptíveis de virem a ser partilhados. [facto aditado em recurso]

8) O facto referido em 2) ocorreu devido à conduta dos réus referida nos pontos D) e 7) dos factos provados. [facto aditado em recurso]

*

3. O direito aplicável

3.1. O acórdão recorrido, alterando o julgamento da matéria de facto, aditou (além do mais) os factos n.º 6 e n.º 7, com o seguinte teor:

«6) O facto de as relações familiares entre as partes não serem as melhores contribuiu para a outorga da escritura referira em D);

7) Ao outorgarem a referida escritura os RR., actuando em conjunto, tiveram a intenção de enganar os AA. e retirar do património do 1º R. e da esposa, II, entretanto falecida, os únicos bens imóveis de que estes eram titulares, susceptíveis de virem a ser partilhados

Esta alteração da matéria de facto foi determinante para sustentar a decisão sobre o mérito da causa, concluindo no sentido da existência de simulação.

Afirma-se na fundamentação do acórdão recorrido, em síntese, que:

«Em face da alteração efectuada à matéria de facto temos, pois, que concluir que se mostram verificados os requisitos da simulação, já referidos, a que se reporta o artigo 240º do Código Civil): (i) uma divergência bilateral entre a vontade real e a vontade declarada; (ii) um acordo ou conluio entre o declarante e o declaratário (o acordo simulatório, também denominado pactum simulationis); (iii) intenção de enganar terceiros (animus decipiendi).

De facto, como resultou apurado, os RR., outorgaram a escritura da “dação em cumprimento”, actuando em comunhão de esforços, com o objectivo de retirar do património do 1º R e da esposa, II, entretanto falecida, os únicos bens imóveis de que estes eram titulares, susceptíveis de virem a ser partilhados.

Com a menção de que a “dação em cumprimento” se destinava a solver dívidas do 1º R. e da sua esposa, e ao atribuírem aos bens dados em pagamento da dívida valor idêntico àquelas, quiseram criar a aparência de que o negócio se destinava efectivamente a pagar as ditas dívidas, quando, na realidade, nem sequer foi feita prova da sua existência, e se apurou que procuraram esconder um “negócio” que visou, sim, retirar do património do 1º R. e da falecida mulher, os únicos bens imóveis de que eram titulares e que seriam susceptíveis de virem a ser partilhados também pelo A. marido, filho do 1º R e da sua falecida esposa, e irmão da 2ª R.

Do exposto resulta, pois, não só a convergência de vontades de todos os RR., no sentido de declararem um negócio que não correspondia à realidade pretendida, procurando não só enganar o A., mas também prejudicá-lo, ao retirarem da titularidade do 1º R. e da sua mulher os únicos bens imóveis que estes possuíam, atribuindo-os, pela forma artificiosa engendrada, à 2ª R., irmã do A., e ao sobrinho deste, filho dos 2ºs RR.

Assim, em face do disposto nos artigos 240º, n.º 2, do Código Civil, o negócio em causa é nulo, operando a nulidade retroactivamente, nos termos do n.º 1 do artigo 289º do Código Civil, implicando ainda o cancelamento do registo de aquisição efectuado em nome dos 2º e 3º RR., por falta de facto que sustente a aquisição em causa, o que se determina.»

3.2. Os recorrentes discordam do modo como a segunda instância reapreciou a prova testemunhal, afirmando, em síntese, que nessa reapreciação foram violados os princípios da imediação e da oralidade. E sustentam que a decisão do mérito seria nula por existir contradição nos seus fundamentos e por violação do princípio da livre convicção do julgador.

3.3. No que respeita à reapreciação da prova de facto e sua alteração (com aditamento de factos provados), deve ter-se presente que está em causa a produção de prova testemunhal, matéria onde vale a regra da livre convicção do julgador sobre o relevo dos depoimentos prestados. Nos termos do artigo 682.º, n.º 2 do CPC, a decisão proferida pelo acórdão recorrido sobre a matéria de facto não pode ser alterada pelo STJ, exceto na hipótese a que se refere o artigo 674.º, n.º 3 do CPC, ou seja, quando exista ofensa de uma disposição legal que exija determinada espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova. Ora, como é manifesto, tal exceção à regra de que o STJ não reaprecia o julgamento da matéria de facto não se verifica no caso concreto, no qual está em causa, essencialmente, o valor da prova testemunhal (que é admitida nos termos do artigo 394º, n.º 3 do CC), e onde não existe divergência quanto ao valor da prova documental. Improcede, assim, a pretensão dos recorrentes no que respeita a este ponto do recurso.

3.4. Quanto ao julgamento do mérito da causa, pode, desde já, afirmar-se que não existe razão para revogar o acórdão recorrido quando este concluiu pela existência de negócio simulado.

Dispõe o artigo 240.º do Código Civil que:

«1. Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado.

2. O negócio simulado é nulo

Como se encontra doutrinalmente reafirmado e sedimentado, a simulação corresponde a uma hipótese clássica de divergência entre a vontade e a declaração.

Pode afirmar-se que existe, portanto, no plano normativo, uma ausência de sintonia entre a vontade exteriorizada pelas partes contratantes (que conduz a determinado efeito jurídico) e a respetiva vontade contratual real (que conduz a um efeito prático-normativo distinto), tendo tal divergência, intencionalmente planeada pelos contratantes, o propósito de enganar terceiros (em regra, também prejudicados com os efeitos produzidos pelo negócio exteriorizado).

Como afirmam Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Pais Leitão de Vasconcelos: «Na simulação é de crucial importância o pacto simulatório. Trata-se de um acordo, de um pacto, que tem como conteúdo a estipulação entre as partes da criação de uma aparência negocial, da exteriorização de um negócio falso, e a regulação do relacionamento entre o negócio aparente assim exteriorizado e o negócio real. A esta aparência negocial assim criada pode corresponder um negócio verdadeiro que as partes mantêm oculto ou pode também não corresponder qualquer negócio. Quando, sob a aparência criada com a simulação existe um negócio oculto, fala-se de simulação relativa; quando sob o negócio aparente nenhum negócio verdadeiro existe, fala-se de simulação absoluta.»; Teoria Geral do Direito Civil (9ª edição), páginas 678 e 679.

E afirmam ainda estes autores (op. cit., pág. 679) que:

«As partes, num só negócio complexo, querem tanto o “negócio simulado” como o “dissimulado”, querem num negócio só obter uma eficácia diferenciada. Querem obter dois planos de eficácia, uma entre as partes e outra perante terceiros. Num caso clássico em que uma compra e venda dissimula uma doação, as partes querem entre si a eficácia da doação e querem que, perante terceiros, a eficácia seja a da compra e venda. Esta separação e duplicação de planos de eficácia, entre as partes e perante terceiros, urdida e efetuada com o intuito de enganar os terceiros, não é admitida

3.5. No caso concreto, como decorre da factualidade provada, para ressarcimento de uma dívida de €3.934,61, pela escritura pública de 13.08.2019, AA e mulher, II, procederam à dação em pagamento a DD e EE, sua filha e genro, de um prédio misto, que veio a ser avaliado em € 141.900,00. E para ressarcimento de uma dívida de €2.172,48 a FF, seu neto, aqueles declarantes procederam a uma dação em pagamento de um prédio rústico, que veio a ser avaliado em €40.100,00.

E esses eram os dois únicos imóveis dos quais aqueles declarantes eram proprietários [facto provado E]. Sendo o autor filho desses declarantes, perdeu, assim, a expetativa de vir a aceder à partilha de qualquer imóvel dos seus pais.

Pode concluir-se, a partir da alteração do julgamento da matéria de facto feita pela segunda instância (essencialmente do aditado facto n.º 7), que a convenção das partes formalizada em escritura pública, que exteriorizou uma dação em pagamento, não corresponderia à vontade real das partes desse negócio, a qual terá sido a de os primeiros réus proporcionarem uma vantagem patrimonial aos segundos e ao terceiro réus (filha, genro e neto dos primeiros) com o propósito de enganar o autor (também filho do primeiro réu e da sua mulher, entretanto falecida).

Como se entendeu no acórdão recorrido, a vontade real dos declarantes daquele negócio terá sido a de “retirarem do património” dos alienantes os únicos bens imóveis de que estes eram titulares, suscetíveis de virem a ser partilhados, divergindo, assim, das declarações negociais formalizadas nas escrituras públicas, com o intuito de enganar o autor, pelo que se verificam os requisitos da simulação nos termos do artigo 240.º do CC.

E, sendo simulado, o negócio de dação em cumprimentos dos dois imóveis em causa é, necessariamente, nulo, como determina o artigo 240.º, n.º 2 do CC, com as inerentes consequências substantivas, previstas no artigo 289.º do CC, e com o consequente cancelamento dos registos de aquisição a favor dos segundos e terceiro réus, como se entendeu no acórdão recorrido.

3.6. A factualidade provada não permite concluir se a vontade real das partes foi a de fazerem uma doação, contornando a regra da colação a que ficaria sujeita nos termos do artigo 2104.º do CC, ou uma venda pelos valores declarados nas escrituras públicas (que seriam bastante inferiores ao valor patrimonial dos imóveis) e, simultaneamente, contornando a limitação constante do artigo 877.º do CC, que exigiria o consentimento do autor (enquanto filho dos primeiros declarantes). Efetivamente, nos termos do artigo 877.º do CC, a validade da venda a filhos ou netos está condicionada pelo consentimento dos outros filhos ou netos. Nos termos do n.º 3 deste artigo: “A proibição não abrange a dação em cumprimento feita pelo ascendente.

De todo o modo, o negócio exteriorizado (a escritura de dação em cumprimento) permitiu aos contratantes evitarem as limitações decorrentes dessas duas disposições legais, com isso enganando (e prejudicando numa futura partilha) os autores.

Assim, ao celebrarem a escritura de dação em cumprimento (na qual os ascendentes também procedem ao reconhecimento das dívidas a extinguir por essa via) os contratantes afastariam a proibição de venda a filhos ou netos (constante do n.º 1 do artigo 877.º do CC), sem o consentimento do autor. Por outro lado, tendo o negócio formalizado natureza onerosa, os adquirentes dos respetivos imóveis, apesar de descendentes dos alienantes, também não ficariam sujeitos à regra da colação prevista no artigo 2104.º do CC.

Afigura-se inequívoco que, através da escritura de dação em cumprimento, as partes encontraram um “mecanismo legal” para enganar e prejudicar o autor, ao transferirem para a titularidade dos adquirentes dois imóveis de valor substancialmente superior ao valor das dívidas a saldar com a entrega desses imóveis. Efetivamente, os alienantes entregaram um imóvel avaliado em €141.900,00 para pagamento de uma dívida de €3.934,61; e entregaram um imóvel avaliado em €40.100,00 para pagamento de uma dívida de €2.172,48, sendo os beneficiários filha e neto dos alienantes.

Com os formalizados negócios de “dação em cumprimento”, os alienantes transferiram para os adquirentes os únicos imóveis dos quais eram proprietários, revelando esses negócios um manifesto desequilíbrio em benefício dos adquirentes, conduzindo (pelo menos parcialmente) aos efeitos próprios de uma doação ou de uma venda por baixo valor, e não estando sujeitos a posterior colação, como estariam se tivesse sido realizada uma escritura de doação, nem sujeitos ao consentimento dos autores, como estariam se tivesse sido celebrado um contrato de compra e venda.

A vontade real dos alienantes foi, assim, como decorre da factualidade provada, a de atribuírem uma vantagem patrimonial aos adquirentes, enganando (e prejudicando numa futura partilha) os autores da presente ação, pelo que é inequívoca a existência de simulação.

Em resumo, não existe razão para alterar o acórdão recorrido, o qual não violou regras sobre a reapreciação do julgamento da matéria de facto (que possam ser controladas pelo STJ), não merecendo qualquer censura o consequente julgamento do mérito da causa.

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DECISÃO: Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 23.09.2025

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Luís Correia de Mendonça

Ricardo Costa