Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
33/08.9TAMRA.E1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: MAIA COSTA
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ACORDÃO DA RELAÇÃO
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DO JÚRI
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL COLECTIVO
PENA ÚNICA
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 10/21/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :

I - A reforma introduzida pela Lei 48/2007, de 29-08, guiada, em matéria de recursos, por um “desígnio de celeridade”, veio restringir por diversas vias a admissibilidade de recurso para o STJ e estabelecer uma diferente linha de demarcação de competências entre as Relações e este Tribunal.
II - Duas alterações sobressaem neste domínio: a da al. f) do n.º 1 do art. 400.º do CPP, que veio estabelecer como parâmetro de referência de recorribilidade dos acórdãos das Relações para o STJ a pena concreta (8 anos de prisão) e não a moldura abstracta, como era anteriormente; e a das als. c) e d) do art. 432.º, que vieram restringir o recurso directo para o STJ aos acórdãos proferidos pelo tribunal de júri e pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, quando anteriormente todas as decisões do júri subiam directamente para o STJ, assim como as decisões do tribunal colectivo que visassem exclusivamente o reexame da matéria de direito.
III -Assim, sempre que a pena aplicada seja superior a 5 anos de prisão, é admissível recurso directo para o STJ. E não só é admissível como é obrigatório o recurso per saltum, por força do n.º 2 do art. 432.º do CPP.
IV - As dúvidas surgem, porém, quando a pena superior a 5 anos de prisão é a pena do concurso, sendo as penas parcelares iguais ou inferiores a 5 anos, englobando o objecto do recurso não só a pena única como também as penas parcelares.
V - Para a resolução dessas dúvidas, teremos necessariamente de partir do dispositivo do citado n.º 2 do art. 432.º, que impõe que, sempre que seja aplicada uma pena superior a 5 anos de prisão, o conhecimento do recurso de direito é exclusivamente da competência do Supremo Tribunal, não estando na disponibilidade do recorrente escolher o tribunal de recurso. Devendo o recurso ser dirigido ao Supremo, este não poderá deixar de ter competência para apreciar as penas inferiores a 5 anos de prisão, pois, de outra forma, seria sonegado ao recorrente o direito ao recurso da condenação relativamente a essas penas.
VI -Entende-se, pois, que as regras conjugadas dos n.ºs 1, al. c), e 2 do art. 432.º do CPP determinam a competência (exclusiva) do STJ para apreciar os recursos de decisões do tribunal colectivo que apliquem pena conjunta superior a 5 anos de prisão, competência essa que abrange a impugnação não só da pena conjunta como de todas as penas parcelares, ainda que inferiores àquela medida, assim se cumprindo o “desígnio” do legislador (celeridade e economia processual), sem prejuízo, antes pelo contrário, das garantias processuais.
VII - O arguido que, resumidamente, praticou os seguintes actos:
- por diversas vezes, encostou o pénis às nádegas do menor A;
- por diversas vezes, fez com que o mesmo menor lhe friccionasse o pénis;
- por diversas vezes, roçou o pénis nas nádegas deste menor, sendo que em duas vezes o menor estava despido e o pénis ficou erecto;
- por diversas vezes, friccionou o pénis erecto na zona vulvar da menor B, ejaculando para o chão, estando ambos despidos;
- por diversas vezes, apalpou os seios desta menor e agarrou-lhe as coxas;
- por diversas vezes, roçou o pénis erecto nas nádegas da mesma menor;
- por duas ou três vezes, a mesma menor friccionou o pénis do arguido;
- por diversas vezes, agarrou as pernas da menor C;
- por diversas vezes, meteu uma das mãos no meio das pernas desta menor, estando ela vestida nessas ocasiões, como nas antecedentes;
- uma vez, baixou as cuecas desta menor e com a mão acariciou-lhe a região vulvar;
- uma vez, masturbou-se à frente desta menor,
comete inquestionavelmente três crimes do art. 171º, n.º 1, do CP, cuja moldura penal é de 1 a 8 anos de prisão, sendo adequadas as penas parcelares fixadas de 3 anos e 6 meses de prisão, 3 anos e 6 meses de prisão e 2 anos de prisão.
VIII -Considerando que:
- assume especial relevo a primariedade do arguido, atendendo à sua idade (57 anos);
- a personalidade revelada pelo arguido não se mostra propriamente desviante, embora o domínio da sexualidade seja sempre de manifestações imprevisíveis;
- a personalidade do arguido, que tem levado uma vida de trabalho, e que não será seguramente insensível ao cumprimento de uma pena de prisão e à “punição moral” que uma condenação por um crime deste tipo inevitavelmente suscita junto da comunidade onde se insere;
- e que os crimes ocorreram em circunstâncias específicas, de que o arguido se aproveitou, mas que não se repetirão facilmente,
entende-se que a pena única deverá ser reduzida para 6 anos de prisão, a qual não inviabilizará os fins preventivo-gerais, que são imperiosos.

Decisão Texto Integral:


I. RELATÓRIO

AA com os sinais dos autos, foi condenado pelo Tribunal Colectivo de Moura, como autor material de três crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171º, nº 1 do Código Penal (CP), em duas penas de 3 anos e 6 meses de prisão e numa de 2 anos de prisão, sendo, em cúmulo, condenado na pena única de 7 anos de prisão.
Desta decisão recorre o arguido, que conclui assim a sua motivação:

1º. - A douta sentença recorrida condenou o Arguido na pena de SETE ANOS de prisão;
2º. - A razão do recurso reporta-se tão-somente à medida da pena;
3º. - No que respeita à matéria de facto dada como provada o Recorrente nada tem a reclamar porque é o resultado fiel da prova produzida em audiência de julgamento e nos autos;
4º - Em face da matéria de facto dada como provada e não provada entendemos que o douto acórdão violou, por erro de interpretação, o disposto nos Art° 71° e 171°, n° 1, ambos do C.P.
5°. - No que respeita ao número de crimes andaram bem os M° Juízes ao considerarem uma situação motivacional unitária;
6°. - Uma pluralidade de factos externamente separáveis deve conformar uma acção unitária quando os diversos actos parciais respondem a uma única resolução volitiva se encontram ligados no tempo e espaço;
7°. - Na verdade certas actividades às quais presidiu uma pluralidade de resoluções, todavia devem ser aglutinadas numa só infracção na medida em que revelam uma diminuição de culpa do agente;
8°. - Nos termos do Art° 171°, n° 1 do Código Penal: "Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.":
9º. - A determinação da medida da pena far-se-á em função da culpa do agente e das exigências da prevenção - Art° 71°, n° 1, do CP;
10°. - Ponderando a matéria de facto dada como provada, entendemos que a pena aplicada não levou em consideração as circunstâncias em que os factos ocorreram, assim como as condições familiares, sociais e económicas do Arguido;
11°. - Os menores começaram a frequentar a casa do Arguido sensivelmente a partir de Março de 2006, e desde aquela data que se habituaram a frequentar a casa para tomarem banho, para verem televisão e brincarem;
12°. - Houve inicialmente boa vontade e generosidade do Arguido e não se vislumbra da matéria de facto dada como provada que o Arguido tivesse aceite os menores com outras intenções;
13º. - O Arguido deixou-se envolver com a lidação, a proximidade, os contactos e as festas e carinhos que as crianças são tão generosas nessa matéria;
14º. - Foi esse ambiente envolvente que contribuiu decisivamente para a prática dos factos e o Arguido não conseguiu controlar os seus impulsos e pulsões sexuais;
15º. - No entanto o Arguido não padece de qualquer perversão sexual grave que leve a ser condenado com severidade;
16°. - O relatório de perícia sobre a personalidade de fls. 808 é claro sobre este ponto. Estamos na presença de uma pessoa imatura, retraída, inibida, mas com sentimentos cooperantes e generosos;
17º. - A nível intelectual revela um nível intelectual reduzido;
18º. - O Arguido é primário e goza de boa reputação na vizinhança;
19º. - Em audiência de julgamento, o Arguido confessou parcialmente os factos de que era acusado, e afirmou-se envergonhado e culpado pelo seu comportamento de cariz sexual;
20º. - Tal postura revela inequivocamente o seu arrependimento;
21°. - Acresce que o Arguido é pessoa de humilde condição social e está integrado social e familiarmente;
22º. - Neste contexto, é manifestamente elevada a pena de prisão de sete anos de prisão;
23º. - Violou por isso a douta decisão recorrida as normas constantes dos Art° 71º, Art° 171°, n° 1, do Código Penal, por aplicar pena manifestamente excessiva;
24°. - Tudo ponderado, entendemos adequado a aplicação ao Arguido das seguintes penas:
- na pena de dois anos e seis meses de prisão em relação ao menor BB;
- na pena de dois anos e seis meses de prisão em relação à menor CC;
- na pena de um ano de prisão em relação à menor DD, e em cúmulo jurídico na pena única de 5 anos de prisão.
25°. - Finalmente é nosso entendimento que tal pena deverá ser suspensa por igual período.

O magistrado do Ministério Público respondeu, concluindo:

1ª - O Tribunal a quo considerou como provado, que os menores BB, CC e DD, foram abusados sexualmente pelo arguido durante cerca de um ano.
2ª - Os menores tinham as idades de 12, 11 e 9 anos quando foram sujeitos às primeiras práticas sexuais, enquanto que o arguido era homem de 55 anos de idade.
3ª - As exigências de prevenção geral para a punição deste tipo de crime são fortes e levam a que as penas de prisão devam ser substanciais e efectivas.
4ª - O meio da pena para o crime em questão situa-se em quatro anos e meio de prisão.
5ª -As penas parcelares foram aplicadas manifestamente abaixo desse meio.
6ª - Igualmente a pena única se encontra doseada de forma bastante suave.
7ª - Pelo exposto entendemos que se deverão manter na íntegra as penas parcelares aplicadas, bem como a pena unitária, assim se fazendo Justiça!

Neste Supremo Tribunal de Justiça, o sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:

II. Questão prévia.
1. O recurso do arguido tal como vem configurado e resulta das respectivas conclusões tem como único objectivo a redução das penas parcelares e única aplicadas ao arguido, por este reputadas de exageradas, ao mesmo tempo que se pretende a suspensão da sua execução.
Dessas penas, como se viu, só a pena única ultrapassa os 5 anos de prisão, enquanto as penas parcelares se situam em montantes inferiores.
2. Com efeito, constata-se da motivação do presente recurso que se procura impugnar a determinação das penas parcelares e daí o apelo à violação do art. 71.º do Código Penal, propondo-se o abaixamento dessas penas para, respectivamente, 2 anos e 6 meses, 2 anos e 6 meses e 1 ano de prisão, ao mesmo tempo que em relação à pena única ressalta a intenção de fazer baixar para um limite não superior a 5 anos, suspensa na sua execução.
3. Nos termos do art. 432.º do CPP, recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito (alínea c)).
No caso, estamos perante uma decisão de tribunal colectivo, o recurso visa exclusivamente matéria de direito, e das penas aplicadas só a pena única (7 anos de prisão) é superior aos 5 anos.
4. Os recursos de decisões de 1ª instância são em regra interpostos para o tribunal da relação, exceptuados os casos em que há recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça – art. 427.º do CPP.
5. Com tais pressupostos poder-se-ia dizer que a competência para conhecer o presente recurso pertencia a este Supremo Tribunal.
Contudo, jurisprudência firme deste Supremo Tribunal invocando a tendência restritiva do legislador ao definir a competência do STJ, acentuada com a reforma introduzida no ano de 2007 (quer pela referência da recorribilidade à pena efectivamente aplicada e não aplicável, quer no caso de recurso directo pela restrição às penas superiores a 5 anos de prisão), vem defendendo nos casos de recurso interposto de acórdão da relação a sua admissibilidade desde que a pena aplicada ultrapasse os 8 anos de prisão, seja pena única ou parcelar, mas sem abranger as penas parcelares inferiores a tal limite.
Como se diz no ACSTJ de 7.05.09 – Rec. n.º 108/09-5ª, “…seria um contra-senso, na perspectiva focada de restrição do recurso para o Supremo Tribunal, que o legislador, ao falar de pena aplicada em concreto, em vez de pena aplicável em abstracto, pretendesse levar o STJ a conhecer de todos os crimes que formam um concurso de infracções, mesmo que tais crimes correspondam àquela noção que normalmente se designa de criminalidade bagatelar ou que, tendo já passado pelo crivo da Relação, e não sendo crimes de bagatela, viram as respectivas condenações confirmadas por aquela, até um limite de gravidade tido como razoável (na opção legislativa, 8 anos de prisão), a partir do qual se justifica a revisão do caso pelo Supremo Tribunal de Justiça”.
6. O mesmo tipo de questão se coloca em relação às situações em que se recorre directamente para o Supremo Tribunal de Justiças de decisão de tribunal colectivo questionando todas as penas aplicadas, ainda que só a pena única ultrapasse os 5 anos de prisão.
Como é evidente, as penas parcelares, todas inferiores a 5 anos de prisão, não possibilitariam só por si a recorribilidade directa para o STJ por lhes faltar aquele pressuposto, entendido pelo legislador como limite razoável até ao qual se não justifica a intervenção do mais Alto Tribunal.
Mas sendo assim, não será o facto de tais infracções terem sido julgadas conjuntamente que justificará o afastamento de tal princípio.
Dito de outra forma, “não há razões substanciais ou processuais para que se adopte um regime diverso de recorribilidade em função da circunstância de, por razões de «conexão» («de processos» - art. 25.°), terem sido conhecidos simultaneamente os crimes «concorrentes», quando o recorrente quer ver discutida as respectivas penas parcelares”.
Daí que, “nos casos como o dos autos, em que o recorrente questiona cada uma das penas aplicadas em medida não superior a 5 anos de prisão, deve seguir-se a regra de que o recurso é dirigido ao tribunal da relação. O recurso só deveria ser interposto directamente para o STJ se o recorrente se limitasse a discutir a medida da pena única, pois esta foi aplicada em medida superior a 5 anos de prisão e, assim, a caber na excepção prevista no art. 432.°, al. c), do CPP (DS de 2.03.09 – Rec. 585/09-5ª, Cons. Santos Carvalho.)
7. Pelo exposto, atentas as razões sumariamente apontadas, deve julgar-se este Supremo Tribunal de Justiça hierárquico e materialmente incompetente para conhecer do recurso e determinar a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Évora, que para o efeito é competente.

Cumprido o disposto no art. 417º, nº 2 do Código de Processo Penal (CPP), o recorrente nada disse.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO

Questão prévia

Suscita o MP a questão da incompetência deste Supremo Tribunal de Justiça (STJ) para a apreciação do recurso, citando alguma jurisprudência deste mesmo Tribunal.
A questão precisa que se coloca é a da atribuição da competência para o julgamento do recurso (apenas de direito) interposto de decisão do tribunal colectivo que condena em penas parcelares não superiores a 5 anos de prisão, sendo a pena única superior a essa medida.
É verdade que a jurisprudência deste STJ não tem sido uniforme. Contudo, pronunciamo-nos no sentido da competência, pelas razões que sinteticamente vamos enunciar.
A reforma introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29-8, guiada, em matéria de recursos, por um “desígnio de celeridade”, veio restringir por diversas vias a admissibilidade de recurso para o STJ e estabelecer uma diferente linha de demarcação de competências entre as Relações e este Tribunal.
Duas alterações sobressaem neste domínio: a da al. f) do nº 1 do art. 400º do CPP, que veio estabelecer como parâmetro de referência de recorribilidade dos acórdãos das Relações para o STJ a pena concreta (8 anos de prisão) e não a moldura abstracta, como era anteriormente; e a das als. c) e d) do art. 432º, que vieram restringir o recurso directo para o STJ aos acórdãos proferidos pelo tribunal de júri e pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, quando anteriormente todas as decisões do júri subiam directamente para o STJ, assim como as decisões do tribunal colectivo que visassem exclusivamente o reexame da matéria de direito.
Assim, sempre que a pena aplicada seja superior a 5 anos de prisão, é admissível recurso directo para o STJ. E não só é admissível como é obrigatório o recurso per saltum, por força do nº 2 do art. 432º do CPP.
As dúvidas surgem, porém, quando, como é o caso dos autos, a pena superior a 5 anos de prisão é a pena do concurso, sendo as penas parcelares iguais ou inferiores a 5 anos, englobando o objecto do recurso não só a pena única como também as penas parcelares.
Para a resolução dessas dúvidas, teremos necessariamente de partir do dispositivo do citado nº 2 do art. 432º, que impõe que, sempre que seja aplicada uma pena superior a 5 anos de prisão, o conhecimento do recurso de direito é exclusivamente da competência do Supremo Tribunal, não estando na disponibilidade do recorrente escolher o tribunal de recurso.
Devendo o recurso ser dirigido ao Supremo, este não poderá deixar de ter competência para apreciar as penas inferiores a 5 anos de prisão, pois, de outra forma, seria sonegado ao recorrente o direito ao recurso da condenação relativamente a essas penas.
Entende-se, pois, que as regras conjugadas dos nºs 1, c) e 2 do art. 432º do CPP determinam a competência (exclusiva) do Supremo Tribunal de Justiça para apreciar os recursos de decisões do tribunal colectivo que apliquem pena conjunta superior a 5 anos de prisão, competência essa que abrange a impugnação não só da pena conjunta como de todas as penas parcelares, ainda que inferiores àquela medida.
Assim se cumprirá o “desígnio” do legislador (celeridade e economia processual), sem prejuízo, antes pelo contrário, das garantias processuais.
Decide-se, assim, considerar improcedente a questão prévia.

Objecto do recurso: medida das penas

O recorrente não contesta a qualificação dos factos, mas somente a medida das penas. Defende que as penas parcelares devem ser reduzidas para 2 anos e 6 meses de prisão, em relação aos menores BB e CC, e para 1 ano, relativamente à menor DD. Pretende ainda que a pena única seja fixada em 5 anos de prisão, e que a mesma seja suspensa na sua execução.
Invoca em seu favor a facilidade que o facto de as crianças frequentarem a sua casa proporcionou ao seu comportamento, a sua baixa capacidade intelectual, a sua primariedade, a sua boa reputação junto da vizinhança e, enfim, o seu arrependimento.
Torna-se necessário, antes de mais, conhecer a matéria de facto apurada, que é a seguinte:

a) BB nasceu a 17 de Fevereiro de 1995 e é filho de EE e de FF.
CC nasceu a 6 de Outubro de 1996 e é filha de EE e de FF.
DD nasceu a 6 de Maio de 1998 e é filha de EE e de FF
b) A mãe dos menores acabados de referir separou-se do pai dos mesmos em data que não foi possível apurar, mas anterior a Março de 2006.
c) Após tal separação, a FF efectuou serviços de limpeza em casa do Arguido.
Com regularidade, fazia-se acompanhar pelos filhos quando se deslocava a casa do Arguido, com o propósito acabado de mencionar.
d) Devido às condições da casa onde habitavam [servida de casa de banho comum a outras casas sitas no mesmo bairro], a FF e os filhos, com frequência, tomavam banho em casa do Arguido.
e) Os menores BB, CC e DD frequentavam a casa do Arguido em outras ocasiões para além das já referidas - nomeadamente para verem televisão ou para brincarem.
Aí se deslocavam uns com os outros ou sozinhos.
Nas ocasiões em que tinha os menores em sua casa, sozinhos ou acompanhados uns com os outros, o Arguido dava-lhes de comer, e entregava-lhes guloseimas e pequenas quantias em dinheiro.
f) Entre o final do Verão de 2007 e 15 de Outubro de 2008, por seis ou sete vezes, mas em datas não concretamente apuradas, no interior da residência do Arguido, este disse ao menor BB para se despir da cintura para baixo e se sentar ao seu colo.
Com o menor desnudado da forma acabada de referir, sentado ao seu colo e de costas para si, o Arguido retirava o pénis para fora das calças e encostava-o às nádegas do BB.
Em outras ocasiões não concretamente determinadas, do período de tempo acima referido, por cinco ou seis vezes, a pedido do Arguido, o menor BB agarrou-lhe no pénis e friccionou-o para trás e para diante.
Nessas ocasiões, o pénis do Arguido ficava erecto.
Em ocasiões não concretamente determinadas, no período de tempo acima referido, por cinco vezes, o Arguido aproximou-se do menor BB pelas costas, encostou-se ao mesmo e roçou o seu pénis contra o corpo do menor, na zona das nádegas.
Em duas dessas ocasiões, o menor estava despido.
E nestas duas ocasiões, o pénis do Arguido ficou erecto.
g) Entre o final do Verão de 2007 e 15 de Outubro de 2008, por diversas vezes, em datas não concretamente apuradas, no interior da residência do Arguido e no quarto deste, o mesmo e a CC desnudaram-se da cintura para baixo e deitaram-se na cama.
Nessas ocasiões, o Arguido friccionou o seu pénis erecto na zona vulvar da menor, acabando por ejacular para o chão.
Em outras ocasiões não concretamente apuradas, do período de tempo acima referido, o Arguido apalpou os seios da menor e agarrou-lhe as coxas.
Por diversas vezes, em datas não concretamente apuradas do período de tempo acima referido, o Arguido roçou o seu pénis erecto nas nádegas da menor.
Por duas ou três vezes, a menor, a pedido do Arguido, agarrou com uma das suas mãos o pénis do mesmo e friccionou-o para trás e para a frente.
h) Entre o final do Verão de 2007 e 15 de Outubro de 2008, em datas não concretamente apuradas, no interior da residência do Arguido, o mesmo deitou a mão às pernas da menor DD, agarrando-as.
Por cerca de cinco vezes, em datas não concretamente apuradas do período de tempo acima mencionado, o Arguido meteu uma das suas mãos no meio das pernas da menor DD.
Em todas estas ocasiões, a menor DD encontrava-se vestida.
Por uma ocasião, em data não concretamente apurada do período de tempo acima referido, o Arguido baixou as cuecas da menor DD e meteu uma das suas mãos no meio das pernas da mesma, acariciando-a na região vulvar.
Nessa ocasião, o Arguido meteu a outra mão por dentro das calças que trazia vestidas, e mexeu no seu pénis.
Por uma ocasião, em data não concretamente apurada do período de tempo acima referido, o Arguido masturbou-se à frente da menor DD.
Quando se comportou da forma acabada de descrever com a menor DD, o Arguido disse-lhe que não contasse nada a ninguém.
i) Agiu o Arguido com o propósito de obter satisfação do seu desejo sexual.
O Arguido conhecia a idade dos menores BB, CC e DD.
j) Agiu o Arguido de forma deliberada, livre e consciente.
Sabia o Arguido que os seus descritos comportamentos eram proibidos e punidos por lei.
l) Nada consta do certificado do registo criminal do Arguido.
m) As pessoas que o conhecem e que com ele privam, por relações de vizinhança, consideram o Arguido pessoa com comportamento normal.
n) O Arguido não apresenta índices de deterioração das funções cognitivas. A sua eficiência intelectual situa-se ao nível normal reduzido, situação que decorre não só da baixa escolaridade, mas também de ausência de investimento em actividades mais diferenciadas ao longo da vida.
Ao nível cognitivo, destacam-se as dificuldades de memória a curto prazo, planeamento lógico, capacidade de adaptação a novas situações e pensamento abstracto.
Revela suficiente capacidade de compreensão verbal e das responsabilidades sociais, de representação mental de situações concretas, organização perceptiva, bem como a manutenção de memória a longo prazo.
Ao nível dos afectos, o Arguido revela alguma superficialidade, fazendo uma descrição mais funcional do que afectiva das pessoas.
Evita envolvimento emocional face a receio de rejeição.
As relações de maior intimidade com os pares são substituídas por relações de maior proximidade com crianças, face às quais se sente menos inseguro e inadequado.
O Arguido revela, ainda, uma organização de personalidade com características paranóides, nomeadamente rigidez, desconfiança, ressentimento, a par de características depressivas como sejam sentimentos de inutilidade, desvalorização e inferioridade, que lhe conferem uma baixa auto-estima e auto-confiança.
Revela instabilidade emocional, impulsividade e risco de suicídio.
A nível interpessoal, revela baixa capacidade de insight. A manipulação dos outros com vista à satisfação das próprias necessidades aparece como recurso possível.
o) Após os acontecimentos acabados de relatar, por causa deles, de insucesso escolar e de comportamentos pró-delinquenciais do menor BB, este e as suas irmãs CC e DD foram institucionalizados e encontram-se actualmente em Beja - o BB na "Casa Pia", a CC e a DD, na "Fundação Manuel Gerardo".
O menor BB revela grande constrangimento relativamente ao comportamento do Arguido, de que foi vítima.
No decurso do exame psicológico, manteve atitude de protecção em relação ao Arguido, evitando relatar os factos que acima de consideraram como provados.
No decurso da audiência de julgamento, revelou dificuldade em relatar os mencionados factos, que lhe dizem respeito.
A menor CC revelou, no decurso da audiência de julgamento, grande constrangimento no relato do comportamento do Arguido, de que foi vítima.
A menor DD não revela constrangimento anormal relativamente ao comportamento do Arguido, de que foi vítima.
p) O descrito comportamento do Arguido é adequado a causar depressão, inibição sexual ou comportamentos desviantes.
q) O Arguido é o primeiro de uma fratria de dois elementos.
Os seus pais eram trabalhadores rurais e proporcionaram aos filhos um ambiente familiar adequado e com a imposição de regras de comportamento.
O Arguido completou a 4ª classe, com onze anos de idade.
Falta de recursos económicos levaram-no a abandonar a escola e a começar a trabalhar no campo.
No tempo próprio, cumpriu o serviço militar, durante vinte e sete meses.
Após e durante cerca de quatro anos, trabalhou como empregado de balcão.
Com vinte e sete anos de idade, o Arguido emigrou para França, onde esteve cerca de dois meses, desempenhando trabalhos na agricultura.
Daí, seguiu para a Suíça, onde trabalhou nas vinhas durante cerca de vinte anos.
O Arguido regressou a Portugal em 1999.
Dedicou-se ao pastoreio de rebanho próprio, durante cerca de um ano.
Depois e durante cerca de dois anos, explorou o Bar na "Filarmónica dos Amarelos", em Moura, e o Bar "Casa do Benfica", também em Moura.
A data em que foi detido à ordem dos presentes autos, o Arguido beneficiava, há já quatro anos, de rendimento social de inserção.
Tal subsídio social, desde Julho de 2008, ascendia a € 187,00 (cento e oitenta e sete euros) mensais.
O Arguido vive em casa própria e era auxiliado, nas tarefas domésticas, por algumas vizinhas.
Ao longo da sua vida, o Arguido manteve dois relacionamentos amorosos estáveis.
Um ano após ter regressado a Portugal, o Arguido separou-se da companheira com quem vivia há dezasseis anos. Esta companheira tinha menos quinze anos que o Arguido.
Desde então, o Arguido passou a viver sozinho. E deslocava-se a Espanha, uma ou duas vezes por mês, a casa de prostituição.
No Estabelecimento Prisional onde se encontra, o Arguido não desenvolve qualquer actividade, nem regista problemas disciplinares.
Ultrapassou a hostilidade dos outros reclusos - derivada da natureza dos crimes que lhe são imputados - com a oferta de dinheiro ou de bens.
O Arguido revela alguma insensibilidade pela negligência parental a que os menores BB, CC e DD se encontravam expostos e atribuiu ao comportamento dos dois primeiros - que classificou de provocatório - os actos de natureza sexual que com os mesmos levou a cabo.
r) De não forma determinante para a sua descoberta, o Arguido confessou parcialmente os factos que acabam de se relatar.
s) O Arguido afirmou-se envergonhado e culpado pelo seu comportamento, de cariz sexual, que assumiu ter levado a cabo apenas com os menores BB e CC.

Resumidamente, o arguido praticou os seguintes actos:
- por diversas vezes, encostou o pénis às nádegas do menor BB;
- por diversas vezes, fez com que o mesmo menor lhe friccionasse o pénis;
- por diversas vezes, roçou o pénis nas nádegas deste menor, sendo que em duas vezes o menor estava despido e o pénis ficou erecto;
- por diversas vezes, friccionou o pénis erecto na zona vulvar da menor CC, ejaculando para o chão, estando ambos despidos;
- por diversas vezes, apalpou os seios desta menor e agarrou-lhe as coxas;
- por diversas vezes, roçou o pénis erecto nas nádegas da mesma menor;
- por duas ou três vezes, a mesma menor friccionou o pénis do arguido;
- por diversas vezes, agarrou as pernas da menor DD;
- por diversas vezes, meteu uma das mãos no meio das pernas desta menor, estando ela vestida nessas ocasiões, como nas antecedentes;
- uma vez, baixou as cuecas desta menor e com a mão acariciou-lhe a região vulvar;
- uma vez, masturbou-se à frente desta menor.
Estes factos integram inquestionavelmente três crimes do art. 171º, nº 1 do CP, cuja moldura penal é de 1 a 8 anos de prisão.
Nos termos dos arts. 40º e 71º do CP, a pena visa fins essencialmente preventivos, não podendo, no entanto, ultrapassar a medida da culpa.
A ilicitude dos factos é elevada e o mesmo se dirá da culpa.
Na verdade, se é certo que o arguido aproveitou as “facilidades” proporcionadas pelo facto de os menores frequentarem a sua casa, acompanhando a mãe nas limpezas que esta aí fazia, certo é também que esse aproveitamento é muito censurável, porque as crianças estavam assim mais expostas e mais indefesas perante o assédio do arguido.
Os factos prolongaram-se por um ano e os menores, com excepção da DD (a menos “devassada”), revelaram em julgamento “grande constrangimento” relativamente aos comportamentos do arguido de que foram vítimas.
São de reduzido ou nulo valor as atenuantes invocadas pelo arguido, Com efeito, se o arguido tem um nível intelectual reduzido, apresenta funções cognitivas sem deterioração. A tipologia penal que lhe é imputada não exige, aliás, especial nível de conhecimentos para expor a sua reprovabilidade.
A inserção social e as relações de boa vizinhança são irrelevantes, sabido como é que este tipo de criminalidade é praticado normalmente por pessoas sem quaisquer problemas de inserção social.
Por outro lado, a confissão foi parcial (negando qualquer acto na pessoa da menor DD), e pouco relevante, e a manifestação de “arrependimento” algo duvidosa (“afirmou vergonha pelo seu comportamento”, diz-se na motivação da matéria de facto).
Nestas circunstâncias, e atentas as exigências muito fortes de prevenção geral, considera-se que as penas parcelares fixadas são adequadas, não ultrapassando a medida da culpa.
Resta DD a pena única. A sua moldura varia entre 3 anos e 6 meses e 9 anos de prisão.
Na fixação da pena conjunta, deve avaliar-se conjuntamente os factos e a personalidade do agente (art. 77º, nº 1 do CP).
Especial relevo assume aqui a primariedade do arguido, atendendo à sua idade (57 anos).
A personalidade revelada pelo arguido não se mostra propriamente desviante, embora o domínio da sexualidade seja sempre de manifestações imprevisíveis. Mas a personalidade do arguido, que tem levado uma vida de trabalho, não será seguramente insensível ao cumprimento de uma pena de prisão e à “punição moral” que uma condenação por um crime deste tipo inevitavelmente suscita junto da comunidade onde se insere.
Acresce que os crimes ocorreram em circunstâncias específicas, de que o arguido se aproveitou, mas que não se repetirão facilmente.
Com base nestas considerações, entende-se que a pena única deverá ser reduzida para 6 anos de prisão, a qual não inviabilizará os fins preventivo-gerais, que são imperiosos.
Prejudicada fica a questão da suspensão da pena (art. 50º, nº 1 do CP).
III. DECISÃO

Com base no exposto, concedendo-se provimento parcial ao recurso, condena-se o arguido na pena única de 6 (seis) anos de prisão, no mais se confirmando a decisão recorrida.
Vai o recorrente condenado em 5 UC de taxa de justiça.


Lisboa, 21 de Outubro de 2009
Maia Costa (Relator)
Pires da Graça



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