Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A3808
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
MATÉRIA DE FACTO
QUESITOS
REGISTO PREDIAL
Nº do Documento: SJ200611290038081
Data do Acordão: 11/29/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1) Na sua fixação da base instrutória o juiz deve atentar no "distinguo" entre facto, direito e conclusão, seleccionando apenas os factos materiais simples.
2) A posse é um conceito normativo que integra uma conduta concreta - detenção e fruição - ("corpus") e uma atitude do foro interno - convicção de domínio; de exercer um direito próprio ("animus"), não assimilada univocamente na linguagem comum, em termos de poder quesitar-se como facto.
3) Os embargos de terceiro não se destinam, apenas, à defesa da posse mas também de qualquer outro direito incompatível com a diligência judicial.
4) A conversão do registo provisório por natureza em registo definitivo retroage à data daquele e prevalece sobre os realizados posteriormente à data da inscrição provisória.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


"AA" - depois, substituído pelos seus sucessores habilitados, BB, CC e DD - intentou execução, com processo ordinário, contra EE.

Aí foi penhorado um prédio misto situado em ..., na freguesia de Alcanede do município de Santarém, tendo FF e GG, deduzido embargos de terceiro contra a penhora.

No Circulo Judicial das Caldas da Rainha os embargos foram julgados procedentes.

As embargadas apelaram para a Relação de Lisboa que, revogando a sentença da 1ª instância, julgou improcedentes os embargos.

As embargantes pedem revista assim concluindo:

- A posse das recorrentes é anterior quer ao despacho que ordenou a penhora, quer ao seu posterior registo;

- As recorrentes desde 28 de Novembro de 2001, se mantêm na posse do imóvel;

- Os réus encontram-se a ocupar parte do referido prédio, desde Março de 2002;

- As recorrentes alegaram e provaram que se encontravam e encontram ainda, na posse do imóvel, aliás;

- As recorrentes nunca deixaram de estar na posse do prédio;

- O executado EE e mulher permanecem no prédio descrito em 1, mais concretamente em parte do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Santarém sob o nº 00921/310190 da freguesia de Alcanede, um prédio misto, ... - Terra de Semeadura com oliveiras e casa de rés-do-chão, palheiros e logradouro - 7.250m2, norte: estrada pública, sul: HH, nascente: II, poente: caminho; artigo 10 AL rústico, rc 2.259$00, artº 11 urbano, rc 113$00/resultado da desanexação dos números 00919310190 - Alcanede e 00920/310190 - Alcanede;

- Tal ocupação de parte do prédio foi autorizada pelas recorrentes;

- As recorrentes não recebem dos executados qualquer importância por permanecerem do prédio;

- O Acórdão recorrido não teve em conta o disposto nos artigos 351º do CPC, artigos 1251º, 1263º alínea b), 1268º, 1285º e 1286º do Código Civil e artigo 5º do Código de Registo Predial.

Contra alegaram os recorridos em defesa do julgado, concluindo, em síntese:

- A penhora do prédio misto em causa, incidiu sobre bens pertencentes ao executado, EE, tendo sido por isso licitamente requerida e efectuada nos termos do artigo 817º do Código Processo Civil, não ofendendo a posse ou qualquer direito incompatível das ora recorrentes.

- A nomeação à penhora do prédio misto, sito em ...., freguesia de Alcanede, concelho de Santarém, inscrito na matriz respectiva sob o artigo 10/AL rústico e 11º urbano, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santarém sob o nº 00921/310190, foi feita pelas ora recorridas em 23/11/01, vide fls. 15 dos autos de execução.

- O despacho que ordenou a penhora foi dado em 30/11/01, vide fls. 16 dos autos de execução e respectiva inscrição de penhora provisória por natureza, na Conservatória do Registo Predial de Santarém, F-2 e consequentemente conversão em definitiva, F-3, ambas da descrição supra mencionada 00921/310190.

- Pois, conforme a prova produzida a posse do misto em causa, não pertencia às ora recorrentes, mas sim ao executado, EE e mulher, titulares inscritos na Conservatória do Registo Predial de Santarém, conforme inscrições G-1 e G-2.

- No caso dos autos, o registo da penhora a favor das ora recorridas, data de 10/12/01, inscrição F-3.

- Era, às ora recorrentes que competia o ónus da prova, nos termos do disposto no artigo 342º do CC, o que não conseguiram.

- Também, segundo o estabelecido no artigo 819º do CC "São ineficazes em relação ao exequente, ora recorridas, os actos de disposição ou anexação dos bens penhorados.

- Por outro lado, as embargantes, ora recorrentes ao propor os embargos de terceiro não alegaram nem provaram realmente a posse o prédio misto penhorado.

- A A. A dos embargos de terceiro, não alegaram qualquer facto que as habilitasse a provar que estavam em posse do prédio em causa desde 28/11/01.

- Ora: a execução foi instaurada em 12/07/01; o executado EE, foi citado em 29/10/01; o prédio misto em causa foi nomeado à penhora em 23/11/01 (fls.5); a penhora foi ordenada em 30/11/01 (fls.16); o executado, só em 12/12/01, conferiu poderes de representação à ora recorrente GG (fls. 22); a escritura de venda ás ora recorrentes foi lavrada e outorgada em 07/03/2002, portanto muito depois do bem em causa ter sido penhorado, tornando-se assim esta venda irrelevante (artº 819º do CC e artº 2º do Código de Registo Predial).

- Conforme o disposto no artigo 351º nº1 do CPC e artigo 1268º do CC, o direito à restituição de bens penhorados, em embargos de terceiro, com fundamento na posse dos bens, assenta na presunção de que o possuidor goza da titularidade do direito.

- Porém, é uma simples presunção legal, iludível por prova em contrário e foi feita prova de que o direito de propriedade sobre o imóvel em causa pertence ao executado, EE, à data em que a diligencia foi promovida - penhora, artº 350 nº2 CC.

- O registo da penhora prevalece sobre o da posterior alienação do misto dos autos às ora recorrentes, pelo que se deve ter como excluída a referida presunção.

- Assim, não se mostra comprovada a posse das ora recorrentes, relativamente ao prédio dos autos.

- Também não se verificaram os demais requisitos dos embargos de terceiro.

As instâncias deram por assente a seguinte matéria de facto:

- Encontra-se descrito na CRP de Santarém sob o nº 00921/310190 da freguesia de Alcanede um prédio misto, .... - terra de semeadura com oliveiras e casa de rés-do-chão, palheiros e logradouro - 7250 m2, norte: estrada pública; sul: HH; nascente: II; poente: caminho - artº 10AL rústico, rc 2259$00, artº 11 urbano, rc 113$00/ resultado da anexação dos nºs 00919310190 - Alcanede e 00920/310190 - Alcanede.

- Pela Ap. 34/310190, correspondente à cota G-1, encontra-se inscrita a aquisição do prédio nº 00919/310190 Alcanede a favor de EE c/c JJ por compra a KK.

- Pela Ap. 35/310190, correspondente à cota G2, encontra-se inscrita a aquisição do prédio nº 00920/310190 Alcanede a favor de EE c/c JJ por compra a KK.

- Pela Ap. 36/101201, correspondente à cota F2, encontra-se inscrita a penhora, provisória por natureza, do imóvel descrito em 1), ordenada em 30/11/2001 em execução movida por AA.

- Esta inscrição foi, pela Ap. 39/120702 objecto de Av. 1 com menção de convertido.

- Pela Ap. 29/120302 correspondente à cota G3, foi inscrita a aquisição, provisória por dúvidas, a favor de GG e de FF.

- Em 7/6/2002 foi, no âmbito dos autos de execução ordinária que BB, CC e DD, na qualidade de sucessoras de AA, movem a EE lavrado termo de penhora do "prédio misto, sito em ..., freguesia de Alcanede, concelho de Santarém, composto de terra de semeadura, oliveiras e casa de rés-do-chão, palheiros e logradouro. Inscrito na respectiva matriz rústica sob o artº 10 da secção AL e na matriz urbana sob o artigo 11, descrito na Conservatória respectiva, sob o nº 921 da freguesia de Alcanede, penhora esta que havia sido ordenada por despacho de 30/11/2001.

- No dia 12/12/2001 EE e mulher, JJ, que também usa JJ, outorgaram a fls. 40 a 41 do livro 1-G de instrumentos avulsos do Cartório Notarial de Alpiarça, constituíram bastante procuradora GG a quem conferiram poderes para vender o prédio misto, sito em ..., acima descrito, podendo ela própria ser a compradora, fazendo o negócio consigo própria, outorgando e assinando a respectiva escritura, procuração esta conferida no interesse da mandatária, não podendo ser revogada sem o acordo dos interessados e não caducando por morte, interdição ou inabilitação dos mandantes.

- No dia 7/3/2002, em escritura outorgada a fls. 98 a 99 do livro de notas para escrituras diversas nº 164 F do 1º Cartório Notarial de Santarém, a referida GG, outorgando na qualidade de procuradora dos EE e mulher e em nome próprio, declarou vender a si própria e a FF, o prédio misto acima descrito, onde se mostra registado a favor dos seus representados nos termos da inscrição G2, inscrito na matriz urbana sob o artº 11 e na matriz cadastral sob o artº 10 da secção AL.

- Mais declarou que a venda era efectuada pelo preço de 49.879,79 €, já recebidos.

- As embargantes entregaram ao executado e mulher a quantia referida em cheques, numerário e entrega de veículos.

- O executado EE e mulher permanecem no prédio.

- Os embargantes autorizaram essa permanência.

- Não recebendo por tal qualquer importância dos executados.

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo,

1- Posse e embargos de terceiro.
2- Embargos de terceiro e penhora.
3- Conclusões.

1- Posse e embargos de terceiro.

1.1- Na petição inicial, as embargantes alegaram, tão-somente, o conhecimento da penhora (artigo 1º); que o prédio lhes pertence por o terem adquirido por compra e pago o preço (artigos 2º, 4º, 5º, e 8º a 11º); que os executados ali permanecem sem qualquer contrapartida por a sua situação económica ser muito precária (artigo 7º); e que "já se encontravam na sua posse desde 28 de Novembro de 2001" (artigo 3º).
Tudo foi levado à base instrutória, excepto esta última alegação.
E bem, já que dizer-se que se "encontravam na sua posse", não integra qualquer facto quesitável, mas, tão-somente, a mera afirmação de um conceito de direito.
Na fixação da base instrutória o juiz deve atentar, previamente, no "distinguo" entre facto, direito e conclusão seleccionando, apenas, matéria de facto (ou factos materiais simples), como impõe o artigo 511º do Código de Processo Civil.
Ensinava o Prof. Antunes Varela (in "Manual de Processo Civil", 2ª ed, 40 ss) que factos são "as ocorrências concretas da vida real", "captáveis pelas percepções do homem", tal como "os eventos do foro interno, da vida psíquica sensorial ou emocional do indivíduo".
Ora, a posse é um conceito normativo que, precisamente, integra uma conduta concreta - detenção e fruição - ("corpus") e uma atitude do foro interno - convicção de domínio, de exercer um direito próprio - ("animus").
E se, com alguma frequência, os conceitos normativos vêm sendo assimilados, na linguagem coloquial, pelos conceitos correntes, o certo é que a palavra "posse" não beneficia dessa assimilação por, no discurso vulgar, ser equivoca pois incorpora a mera detenção - posse precária, posse em nome alheio, posse, enfim, sem "animus". (cf., a propósito do "distinguo" dos conceitos e, entre outros, os Profs. Castro Mendes, in "Conceito de Prova em Processo Civil" e Barbosa de Magalhães "Revista da Ordem dos Advogados", 8º, 304).
Desde que não lhe corresponda um sentido factual preciso e inequívoco, apreensível pelo homem comum, a expressão integradora de um "nomen juris" não pode equivaler à alegação de um facto.
Assim a sua determinação terá de ser feita a partir de factos alegados "quo tale" a que o juiz atenderá na fase de subsunção.
De qualquer modo, só se poderá condescender com o uso de uma expressão consagrada comumente se a mesma não envolver, de qualquer forma, o conhecimento do objecto da lide.
Fica, pois, claro que os embargantes não alegaram, validamente, factos permissivos de concluir pela sua posse, nos termos e para os efeitos do nº1 do artigo 351º do Código de Processo Civil, por se terem limitado a afirmar um conceito jurídico.

2- Embargos de terceiro e penhora.

Ao contrário do regime anterior (nº1 do artigo 1037º do CPC), hoje os embargos de terceiro não se destinam apenas à defesa da posse lesada pela diligência judicial mas, também, à defesa de "qualquer direito incompatível com a realização ou âmbito da diligência" (nº1 do artigo 351º).
Daí a desactualização doutrinária e jurisprudencial que apontava para a necessidade de reivindicação quando a diligencia ofendia o direito de propriedade, que não a posse efectiva (cf., "inter alia", Dr.ª Maria do Rosário P. Ramalho, "Sobre o fundamento possessório dos embargos de terceiro" - ROA, 1991, 649; Prof. M. Teixeira de Sousa, "A penhora de bens na posse de terceiros", ROA, 1991, 75; "Fase Introdutória dos embargos de terceiro", 1992; e Acórdão do STJ de 26 de Junho de 1991 - BMJ 408-495).
As embargantes invocam a sua propriedade transmitida pelo executado por compra e venda vertida em escritura pública outorgada em 7 de Março de 2002.
Em 30 de Novembro de 2001 foi determinada a penhora do prédio, sendo que a mesma foi registada (provisoriamente por natureza) em 10 de Dezembro de 2001.

Dois dias depois deste registo (12 de Dezembro de 2001) os executados mandataram as embargantes para os representarem na escritura de compra e venda, outorgando negócio consigo mesmo.
Fizeram ingressar a aquisição no registo (provisório por natureza) em 12 de Março de 2002.
Lavrado o termo de penhora, o registo provisório da mesma foi convertido em definitivo em 12 de Julho de 2002.
Ora, a conversão do registo provisório em definitivo retroage à data daquele (nº3 do artigo 6º do Código de Registo Predial), prevalecendo sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, pelo número de ordem das correspondentes apresentações.
Assim, quando os embargados adquiriram o prédio a penhora estava registada, sendo ineficaz, em relação aos exequentes o acto de disposição do bem penhorado.
Ademais, a função primeira do registo predial é, precisamente, "dar publicidade à situação jurídica dos prédios", tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário, de acordo com o artigo 1º do Código do Registo Predial, pelo que quer o executado transmitente quer as embargantes não podiam ignorar a existência da penhora.
Por tudo isso, e pelas razões que, aqui eventualmente omissas, constam do Acórdão recorrido, improcedem as conclusões da alegação, não sendo sequer de invocar presunção (e sua eventual ilisão) do nº 1 do artigo 1268º do Código Civil por, como acima se referiu, ter quedado improvada a posse dos embargantes.

3- Conclusões.

De concluir que:

a) Na sua fixação da base instrutória o juiz deve atentar no "distinguo" entre facto, direito e conclusão, seleccionando apenas os factos materiais simples.
b) A posse é um conceito normativo que integra uma conduta concreta - detenção e fruição - ("corpus") e uma atitude do foro interno - convicção de domínio; de exercer um direito próprio ("animus"), não assimilada univocamente na linguagem comum, em termos de poder quesitar-se como facto.

c) Os embargos de terceiro não se destinam, apenas, à defesa da posse mas também de qualquer outro direito incompatível com a diligência judicial.
d) A conversão do registo provisório por natureza em registo definitivo retroage à data daquele e prevalece sobre os realizados posteriormente à data da inscrição provisória.

Nos termos expostos, acordam negar a revista.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 29 de Novembro de 2006
Sebastião Póvoas
Moreira Alves
Alves Velho.