Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
22082/15.0T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
CRITÉRIOS
DANOS PATRIMONIAIS
DANO BIOLÓGICO
DANOS FUTUROS
PERDA DE CAPACIDADE DE GANHO
EQUIDADE
REMUNERAÇÃO
IRS
DESCONTOS PARA A SEGURANÇA SOCIAL
Data do Acordão: 10/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I - Para o cálculo da indemnização pela perda da capacidade de ganho, deve tomar-se em consideração o valor dos rendimentos líquidos que o lesado, sendo trabalhador por conta de outrem, auferia regularmente no período que antecedeu o acidente, uma vez que esta indemnização está isenta de IRS e de descontos para os sistemas de segurança social.

II – No cálculo da mesma indemnização deve também considerar-se que durante todo o tempo de vida ativa que o lesado ainda tinha pela frente, era previsível que o seu nível salarial aumentasse.

III - Quanto à preocupação de que o valor do capital antecipadamente pago ao lesado por um dano que se irá a refletir continuadamente no futuro se esgote no termo previsível da sua vida, o facto de, no período já decorrido, o nível da remuneração dos depósitos a prazo ser baixo, embora seja uma realidade a atender, não justifica que não se deva operar uma redução do valor a atribuir, uma vez que essa não é a única forma de investir uma soma avultada em dinheiro, assim como não existe uma previsibilidade dessa realidade se manter durante muito tempo.

Decisão Texto Integral:

Autor: AA

Ré: Lusitânia, Companhia de Seguros, S.A.


*



I – Relatório

O Autor intentou contra a Ré, ação declarativa de condenação, com processo comum, alegando, em síntese, que no dia ... de Setembro de 2012, pelas 21h15, ocorreu um acidente de viação na Rua , do qual resultaram danos para o Autor, concluindo que a Ré deveria ser condenada a pagar ao Autor a quantia de € 461.546,40, bem como no que se vier a liquidar em execução de sentença, quantia aquela acrescida de juros legais de mora a partir da citação.

A Ré contestou, impugnando a versão do acidente em parte, bem como a extensão dos danos e a obrigação do seu ressarcimento, tendo concluído pela sua absolvição.

Foram admitidas as ampliações ao pedido inicial que vieram a ser formuladas pelo Autor, inicialmente de € 2.046,71 e posteriormente de € 575.000,00.

Procedeu-se à realização de julgamento, tendo sido proferida sentença que julgou parcialmente procedente a ação, tendo condenado a Ré a pagar ao Autor:

- a quantia global de € 400.000,00 como indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais por ele sofridos, quantia a que acresce o valor de € 2.046,71, relegando para execução o agravamento das lesões que possa ocorrer e despesas associadas ao respetivo agravamento bem como os custos com consultas, deslocações e aquisição de medicamentos, perdas de tempo e incómodos pelo Autor carecer de frequentar regularmente consultas de psiquiatria e de ortopedia, de tomar diariamente psicofármacos e de se submeter a fisioterapia.

As supra referidas quantias são acrescidas de juros de mora à taxa anual de 4% incidentes:

1) Sobre a quantia de €50.000,00 fixado a título de indemnização do dano patrimonial futuro decorrente da incapacidade funcional permanente de que ficou a padecer o autor, contados desde a data de citação e até integral pagamento;

2) Sobre a quantia de €200.000,00 fixado a título de indemnização do dano patrimonial pela necessidade de terceira pessoa, contados desde a data de citação e até integral pagamento;

3) Sobre a importância de €150.000,00, atribuída a título de indemnização dos danos não patrimoniais, contados desde a data da prolação desta sentença, até efetivo e integral pagamento

4) Sobre a importância de €2.046,71, contados desde a data da citação até integral pagamento;

A Ré foi absolvida do demais peticionado.

Recorreram desta decisão, para o Tribunal da Relação, quer a Ré, quer o Autor, tendo sido proferido acórdão que decidiu julgar totalmente improcedente a apelação da Ré e parcialmente procedente a apelação do Autor, condenando-se a Ré a pagar ao Autor o montante de 100.000 euros a título de danos futuros pela perda da capacidade de ganho, confirmando-se, no mais, a sentença recorrida.

Desta decisão interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça a Ré, constando o seguinte das conclusões das alegações de recurso:

1. Com o devido respeito, entende a Ré/Recorrente que o juízo de equidade em que se fundou o Tribunal a quo na fixação do montante da indemnização é passível de censura dado que não se conteve dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que o legitima, tendo por referência a evolução da jurisprudência e a observância do princípio da igualdade no tratamento prudencial de situações similares.

2. O Tribunal a quo invoca o princípio da equidade para atribuir ao A./Recorrido o montante de 150.000,00€ à título de dano não patrimonial, 200.000,00 à título de auxílio de terceira pessoa e ainda 100.000,00€ pelo dano patrimonial futuro.

3. Começando pela indemnização atribuída pelo «dano não patrimonial» no valor de 150.000,00€, diremos que a mesma é sobrevalorizada se comparada a casos julgados em que os danos sofridos foram francamente mais gravosos.

4. Sempre com o devido respeito, entende a Ré/Recorrente que a decisão proferida no Acórdão recorrido atenta contra o sentido de justiça que se pretende alcançar com o recurso ao princípiodaequidade, considerando que “a equidade é ajustiçadocaso, sendo importante atentar na jurisprudência e encontrar em situações semelhantes e próximas padrões, referências que confiram à imprescindível casuística uma certa objectividade.”

5. Não se compreende a indemnização fixada no valor de 150.000,00€ ao A./Recorrido que sofreu traumatismos múltiplos, foi submetido a uma cirurgia, teve um quantum doloris de 6 e sequelas psiquiátricas; enquanto que no caso da Revistan.º 3265/08.6TJVNF.G1.S1, 6.ª Secção, de 19.01.2016 o lesado foi submetido a pelo menos duas intervenções cirúrgicas, tendo lhe amputado o membro, sido atribuído um quantum doloris igualmente de grau 6 numa escala de 7, dano estético de graus 6 numa escala de 7, vários outros graves danos somáticos e psíquicos (stress pós-traumático crónico e quadro depressivo inclusivamente com ideação suicida, e foi-lhe atribuído o valor de 125.000,00€!

6. Outro caso mais evidente de que o princípio da equidade se mostra desvirtuado na sua aplicação será do Acórdão em que foi atribuído o valor de 125.000,00€ a um jovem de 23 anos afetado no membro superior esquerdo completamente paralisado resultando numa incapacidade permanente de 62 pontos (o A./Recorrente ficou a padecer de DF de 54 pontos), que cursava informática e que a partir do acidente ficou a necessitar de ajuda para o resto da vida de ajuda de terceira pessoa.

7. Ou ainda o caso do Acórdão proferido no âmbito do Processo 1852/17.0T8GMR.G3 pelo Tribunal da Relação de Guimarães de 11.03.2021 onde o A. tinha 44 anos de idade à data do acidente, sofreu de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 54 pontos, engenheiro de polímeros e desempenhava as funções de Diretor Comercial de uma empresa que comercializa baterias industriais, que se encontra reformado por invalidez com efeitos desde 26/05/2017 (depois do acidente), que ficou com graves sequelas que o incapacitam de executar determinadas tarefas inerentes à sua atividade profissional e implicaram que ficasse com limitações na sua condição física necessária ao desempenho de tarefas do seu dia-a-dia, comum quantum doloris de grau 6 (numa escala de 1 a 7), dano estético de grau 4, repercussão nas atividades desportivas e de lazer de grau 4 e repercussão na atividade sexual de grau 5, que ficou com sequelas do foro psiquiátrico, apresentando um quadro depressivo, com sentimentos de angústia, tristeza, receios e ansiedade, bem como a diminuição e vergonha sentidas perante a transformação do seu corpo e a disfunção eréctil total de que padece, onde o Tribunal entendeu por justa uma indemnização por danos não patrimoniais, de acordo com uma jurisprudência atualista, seja fixada em € 60.000,00!

8. Perante os casos encontrados na jurisprudência que retratam circunstâncias mais gravosas que a do A./Recorrido em que foi arbitrado uma quantia de indemnização a título de dano não patrimonial inferior, é questionável se o recurso ao princípio da equidade pelo Tribunal a quo foi a mais correta.

9. Como se denota, ao mesmo tempo em que recurso a aplicação do princípio da equidade pelos Tribunais é uma “regra” para o arbitramento das indemnizações, é, no entanto, questionável se o aludido princípio está a ser praticado de acordo com os critérios que devem ser adotados numa jurisprudência que se espera seja uniforme sem se afastar as circunstâncias do caso em concreto.

10. Entende a Ré/Recorrente que a invocação do princípio da equidade para a atribuição da indemnização nos presentes autos carece de ser reapreciada pelo douto Tribunal ad quem, sendo de extrema relevância jurídica uma vez que se encontra claramente em causa a aplicação real de um princípio basilar que tem levado a discrepâncias de valores arbitrados.

11. Há que existir coerência na aplicação do referido princípio de maneira a não insurgir na comunidade jurídica a temível insegurança, dado as abissais diferenças na aplicação de critérios nas atribuições de indemnizações pelos danos, neste caso, não patrimoniais

12. Daí que, entende a Ré/Recorrente, deverá a indemnização atribuída a título de danos não patrimoniais ser reduzida para o valor de 70.000,00€ atento que o A./Recorrido tinha 59 anos a data do acidente, desempenhava a profissão de assentador, era reformado por velhice, ficou a padecer de um DF de 54, quantum doloris 6/7, realizou apenas uma cirurgia e padeceu de dores durante os tratamentos.

13. Quanto ao montante da indemnização arbitrado a título de dano patrimonial decorrente da «contratação de terceira pessoa» entende igualmente a Ré/Recorrente que o valor de 200.000,00€ é, com o devido respeito, extremamente exagerado.

14. Ora, o A./Recorrido desde a data do acidente até atualidade não despendeu qualquer quantia com ajuda de terceira pessoa, foi a sua esposa quem lhe prestou auxílio e supõe-se que no futuro também auxiliará dado ser uma obrigação natural entre os cônjuges.

15. Neste caso, entende a Ré/Recorrente mesmo tendo sido dado como provado que o A./Recorrido necessitará de ajuda de terceira pessoa a ser desempenhada por duas pessoas, naturalmente que uma delas deverá ser a sua esposa; pelo que, recorrendo novamente ao princípio da equidade, entende a Ré/Recorrida que a indemnização a ser arbitrada a este título deverá ser reduzida para o montante próximo de 100.000,00€ (480,43€ mês x 12 = 5.765,16€ x 18 anos = 103.772,88€).

16. Acresce que não teve o Tribunal a quo em consideração o facto de que o A. irá receber tudo de uma só vez. Desta forma, atendendo aos critérios de aplicação do princípio da equidade entende a Ré/Recorrente que, mais uma vez, não foram observados os princípios da igualdade e da proporcionalidade imposta pela equidade.

17. A Ré/Recorrente quanto a indemnização pelo «dano patrimonial futuro» conformou-se com o montante atribuído em 1ª instância, não encontrando motivo para a alteração do quantum indemnizatório pelo Tribunal da Relação.

18. Mais se diz que não terá o Tribunal a quo tido em conta para o cálculo de indemnizações por danos patrimoniais, passados ou futuros, a remuneração líquida do A., desta forma o valor a ser fixado a título de dano patrimoniais futuros não poderá ultrapassar o valor de 73.964,52€ (543,55€ (776,50€ x 70%) x 54% = 293,51€ x 14 = 4.109,14€ x 18 anos).

19. Relativamente a data início da «contagem dos juros» referente aos danos não patrimoniais e dano patrimonial futuro, a decisão proferida no Acórdão recorrido manteve a sentença.

20. Porém a decisão de 1ª instância fixou os juros relativamente aos danos não patrimoniais a contar desde a prolação da sentença e dano patrimonial futuro desde a citação.

21. Contudo, entende a Ré/Recorrente que atendendo a especial natureza dano patrimonial futuro e o cálculo por equidade que foi atualizado no Acórdão para os danos, os juros deverão ser contabilizados desde a última decisão. Veja-se nesse sentido o Acórdão do STJ de 24.09.2020 Processo 4871/18.6T8VNF.G1.S1: «V. Tendo a indemnização sido fixada atualizadamente em acórdão, os juros de mora contam-se a partir da data do mesmo acórdão.

21. Os presentes autos têm o valor de € 461.546,40, pelo que, sendo o valor da causa superior a 275.000,00€, poderá haver lugar, de acordo com a citada disposição legal, ao pagamento do remanescente da taxa de justiça.

22. É verdade que por um lado as partes poderiam ter requerido a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça ainda em sede de alegações na audiência final; porém as partes ainda dispõem de mais dois momentos na tramitação do processo para o fazer, por meio de requerimento de reforma da decisão quanto a custas ou, se houver lugar a recurso da decisão final (artigo 616.º n.º1 do CPC), na respetiva alegação, como é o caso.

23. Acresce que, conforme decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2022 de 03 de janeiro, Processo n.º 1118.16.3T8VRL-B.G1.S1-A disponível em https://dre.pt/dre/detalhe/acordao-supremo-tribunal-justica/1-2022-176907543 “A preclusão do direito de requerer a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, a que se reporta o n.º 7 do artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais, tem lugar com o trânsito em julgado da decisão final do processo.”

24. Pelo que está a Ré/Recorrente em tempo para requerer a «dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça» considerando que a decisão não transitou em julgado.

25. Tendo em conta que os presentes autos contêm apenas, em termos de articulados, a petição inicial e a contestação, não tendo sido deduzidos quaisquer articulados supervenientes ou quaisquer incidentes, que a prova produzida não excedeu a prova comummente existente em qualquer acção de valor igual ou inferior aos citados 275.000,00€, tendo em consideração que o tempo médio de inquirição de cada uma das testemunhas não ultrapassou a normalidade, consideramos que o caso dos autos não se mostrou especialmente complexo, acrescendo ainda o facto da conduta processual das partes não merecer qualquer censura por ter sido irrepreensível.

26. Nestes termos se requer a V.ª Ex.ª. que seja a Ré/Recorrente dispensada do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

Nestes termos e nos mais de Direito que V. Ex.ª.s doutamente suprirão, a Ré/Recorrente pugna pela revogação da Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto e a sua substituição por Decisão que aprecie a aplicação do Princípio da Equidade decidindo em conformidade com os critérios jurisprudências, só assim se fazendo a costumada Justiça.

O Autor respondeu, sustentando a inadmissibilidade do recurso interposto pela Ré, e, subsidiariamente, a sua improcedência.

O Autor também recorreu, subordinadamente, do acórdão da Relação, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:

1.ª- O montante fixado no douto acórdão (100.000,00€) como indemnização devida ao recorrente a título de ressarcimento dos danos de natureza patrimonial decorrentes da Incapacidade Permanente Geral de que este ficou a padecer é manifestamente exíguo e insuficiente.

2.ª- A indemnização destinada a ressarcir o dano patrimonial resultante da IPG deve, tal como tem sido fartamente sufragado pela jurisprudência conhecida representar um capital que reponha a perda de capacidade de trabalho e de ganho perdida e proporcione um rendimento compensatório que se extinga no fim do tempo provável de vida do lesado.

3.ª- Ultimamente, tem-se entendido – e bem – que o lesado precisa de manter o nível de rendimento enquanto viver, mesmo para além da idade da reforma e até ao

final da vida (78 anos, em média, atualmente).

4.ª- Sem perder de vista a equidade, será adequado, na esteira do que tem sido decidido em várias decisões dos nossos Tribunais Superiores, que, em casos como o presente, se recorra, como auxiliar de cálculo da indemnização pelo dano material inerente à IPG, à fórmula de cálculo utilizada no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 04/04/1995 – CJ – Ano XX – Tomo II.

5.ª- Esta fórmula, na verdade, tem em conta vários fatores relevantes, tais como a progressão na carreira, a erosão monetária, e o crescimento dos rendimentos salariais.

6.ª- Os valores assim encontrados deverão, depois, ser temperados à luz das circunstâncias concretas de cada caso e da equidade.

7.ª- In casu, haverá, desde logo, que levar em conta que, talqualmente se provou, a IPG que afeta o recorrente, conquanto seja de 54 pontos, é total e absolutamente impeditiva do exercício da sua profissão habitual e de qualquer outra, inexistindo possibilidade de reconversão.

8.ª- Nos cálculos, deverão ter-se em consideração os seguintes fatores relevantes: a Idade do lesado, com 59 anos, apenas, a IPG de 54%, com IPA e sem reconversão e a remuneração auferida na data do acidente, de 776,50€ mensais, como assentador.

9.ª- Através da mencionada fórmula, considerando os fatores relevantes (salário anual de 10.491,50€, idade de 59 anos e grau de incapacidade, que é absoluta para toda e qualquer profissão (IPA) e tendo em conta o período de vida expectável, até aos 78 anos e baixa da taxa de juro (neste momento e face à realidade atual, é de 0,5%) e perda de rendimentos, encontramos um capital de cerca de 200.000,00€.

10.ª- Será igualmente pertinente lançar mão do método de cálculo usado no douto acórdão do STJ, de 09/09/2015, proferido no proc. n.º 146/08.7PTCSC.L1.S1, 3.ª Secção.

11.ª- Mediante este método e utilizando os mesmos fatores, chegamos a um valor idêntico – ou seja, cerca de 200.000,00€ (por arredondamento).

12.ª- Tendo, pois, presentes as regras da equidade e da justa medida das coisas, afigura-se que será adequado compensar o Autor com o montante de 200.000,00€, como indemnização pelo dano patrimonial sofrido em razão da incapacidade permanente (IPA) que o afeta.

13.ª- As despesas a suportar pelo recorrente com a assistência de terceira pessoa durante o resto da vida traduzem-se em danos futuros, cujo valor exato, atentas as especificidades e vicissitudes que lhe são próprias, não é passível de fixação, pelo que tal valor só pode ser quantificado com recurso à equidade e dentro dos limites objetivos que foram dados como provados.

14.ª- Não deixará, porém, de ser pertinente utilizar como auxiliar de cálculo as conhecidas fórmulas matemáticas e tabelas financeiras, cujos resultados, por abstratos, terão de ser corrigidos à luz da equidade e tendo presentes as concretas circunstâncias do caso

15.ª- Conforme ficou provado, o Autor, à data do acidente, tinha 56 anos, tem necessidade definitiva de apoio de terceira pessoa e depende de terceiros para as suas atividades diárias, mesmo as mais singelas até ao final da sua vida

16.ª- O apoio de terceira pessoa de que o Autor precisa, torna-se necessário durante 16 horas por dia, a prestar por duas pessoas

17.ª- Há que ponderar também que, de acordo com os dados oficiais conhecidos elaborados pelo INE e constantes da base de dados da Pordata (www.pordata.pt), a esperança média de vida da população portuguesa masculina cifra-se atualmente em cerca de 78 anos (com tendência para aumentar face à evolução dos conhecimentos da ciência médica).

18.ª- Mostra-se necessário contratar duas pessoas para trabalhar 8 horas por dia, cada, seja em regime de contrato de trabalho, seja em regime de prestação de serviços, todos os 365 ou 366 dias do ano, visto que a carência do Autor não se suspende nos fins-de-semana, feriados e férias.

19.ª- As duas pessoas a contratar, a tempo inteiro, não poderão auferir um salário mensal inferior ao salário mínimo nacional, atualmente de 760,00€ x 14 meses

20.ª- Impõe-se igualmente considerar que essas pessoas terão direito a férias, tendo o Autor de contratar alguém para as substituir nesses períodos.

21.ª- Essas pessoas terão ainda o direito a gozar os dias de descanso semanal (obrigatório e complementar) e os feriados, havendo que contratar quem as substitua; caso assim não suceda terão direito a receber remuneração por trabalho suplementar.

22.ª- Ou seja, só em salários com duas pessoas, a assistência de 3.ª pessoa, terá um custo mensal não inferior a 1.520,00€, a que acresce a taxa social única a cargo do Autor, atualmente de cerca de 20%, em média, ou seja, na ordem de 304,00€ (1.520,00€ x 20%) e, bem assim, os prémios de seguros de acidentes de trabalho e gastos com pessoal de substituição nas férias e dias não úteis e/ou o pagamento de trabalho suplementar.

23.ª- De sorte que o encargo mensal que o Autor terá de suportar em cada mês para satisfazer a necessidade de auxílio de terceira pessoa ascenderá a um montante nunca inferior a 1.800,00€, o que equivale ao montante anual global de cerca de 25.200,00€, no mínimo (1.800,00€ x 14 meses).

24.ª- Sendo, por outro lado, certo que o Autor carecerá desse auxílio até ao final dos seus dias, é de prever que o mesmo auxílio se torne necessário por 19 anos (78 anos de vida expectável – 59 anos de idade).

25.ª- Assim, multiplicando-se a despesa anual de 25.200,00€ por 19 anos, atinge-se o valor de 478.800,00€.

26.ª- Será, pois, este (478.800,00€) o montante da indemnização justa e adequada ao ressarcimento do dano patrimonial futuro inerente à necessidade de contratação de duas pessoas para assegurar o auxílio diário de que carece o Autor.

27.ª- Os montantes reclamados (para a incapacidade permanente e para o custeio de 3.ª pessoa) não deverão ser alvo de qualquer desconto ou redução por suposto benefício económico e financeiro em razão do recebimento antecipado e de uma só vez.

28ª- Importa, com efeito, considerar que tendo em atenção o previsível agravamento das limitações do Autor, quer em consequência da sua situação clínica quer as inerentes ao avançar da idade, os cuidados de que necessitar tenderão a ser cada vez maiores, mais especializados, e por isso, mais dispendiosos.

29.ª- Tem também se ser ponderado o previsível aumento dos salários, principalmente ao nível do salário mínimo, pois que é nesse nível salarial que se encontram as pessoas que, desprovidas de qualificação profissional, cuidam de pessoas que se encontram impossibilitadas de satisfazer as suas necessidades básicas.

30.ª- Haverá, ainda, que considerar a erosão monetária inerente à taxa de inflação expetável.

31.ª- E haverá, por fim, que ponderar que, conforme é público e notório, as aplicações financeiras isentas de risco, ou seja, os depósitos bancários, seja a prazo, seja à ordem, apenas rendem, nos dias de hoje, juros simbólicos.

32.ª- De sorte que não ocorre qualquer benefício económico e financeiro sensível em razão do recebimento antecipado e de uma só vez.

33.ª- Ademais, esse benefício existisse, seria ele residual e não chegaria para cobrir o malefício inerente à erosão monetária, à inflação dos custos e à evolução dos salários, que a indemnização também terá de compensar.

34.ª- O douto acórdão recorrido violou, entre outras normas, os artºs 562.º, 564.º e 566.º, todos do Código Civil.

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II – Da delimitação do objeto dos recursos

A sentença da 1.ª instância, julgando parcialmente procedente a ação, condenou a Ré a pagar ao Autor as seguintes parcelas indemnizatórias, correspondentes aos seguintes danos:

a) - € 50.000,00 fixado a título de indemnização do dano patrimonial futuro decorrente da incapacidade funcional permanente de que ficou a padecer o Autor

b) - € 200.000,00 fixado a título de indemnização do dano patrimonial pela necessidade de terceira pessoa;

c) - € 150.000,00, atribuída a título de indemnização dos danos não patrimoniais

d) - € 2.046,71, atribuída a título de despesas com tratamentos médicos.

O cálculo de cada uma destas indemnizações parcelares teve uma fundamentação autónoma.

A Ré no recurso interposto para o Tribunal da Relação questionou o valor das indemnizações acima referidas em b) e c).

A Autora no recurso interposto para o Tribunal da Relação questionou o valor das indemnizações acima referidas em a) e b).

Em ambas os recursos, a impugnação das indemnizações parcelares teve fundamentação autónoma.

Foi aprovado acórdão no Tribunal da Relação que julgou totalmente improcedente o recurso da Ré e parcialmente procedente o recurso do Autor, tendo alterado o valor indemnizatório acima referido em a), para € 100,000,00.

Também este acórdão apreciou a impugnação das diferentes indemnizações parcelares de forma autónoma.

No AUJ n.º 7/2022, aprovado em 20.09.2022, definiu-se que em ação de responsabilidade civil extracontratual fundada em facto ilícito, a conformidade decisória que caracteriza a dupla conforme impeditiva da admissibilidade da revista, nos termos do artigo 671.º, n.º3, do CPC, avaliada em função do benefício que o apelante retirou do acórdão da Relação, é apreciada, separadamente, para cada segmento decisório autónomo e cindível em que a pretensão indemnizatória global se encontra decomposta.

Na fundamentação deste acórdão explicou-se que, embora a decisão judicial em si imponha uma obrigação de indemnização em função de um montante global (artigo 609.º, n.º1, do CPC), a mesma, porque traduzindo as pretensões da parte, mostra-se constituída por segmentos decisórios respeitantes às parcelas em que o pedido indemnizatório se decompõe, que poderão ser analisados/avaliados, separadamente, para efeitos da aferição de dupla conformidade decisória (permitindo às partes restringir o objeto do recurso a cada um desses segmentos) se os mesmos se configurarem independentes; assim, são, se materialmente autónomos entre si e juridicamente cindíveis, requisitos avaliados em função da fundamentação em que cada segmento se encontra alicerçado, pois que, se ocorrer dependência essencial entre os fundamentos que sustentam tais parcelas decisórias falha o pressuposto para a cindibilidade e a decisão terá de ser vista como uma unidade para efeitos de dupla conformidade decisória.

Neste recurso, como facilmente se constata, estando apenas em causa a determinação do valor que as indemnizações parcelares por determinados danos devem atingir, tendo o cálculo desses valores uma fundamentação perfeitamente individualizada, estamos perante segmentos decisórios materialmente autónomos e juridicamente cindíveis, pelo que, para apurarmos a recorribilidade desses segmentos, nos termos do disposto no artigo 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, há que verificar a existência de uma dupla conformidade decisória, relativamente a cada um deles.

A situação de “dupla conforme” verifica-se, relativamente aos segmentos acima referidos sob as alíneas b) e c), tendo o acórdão do Tribunal da Relação apenas alterado a decisão da 1.ª instância quanto à indemnização fixada a título de indemnização do dano patrimonial futuro decorrente da incapacidade funcional permanente de que ficou a padecer o Autor (acima referida em em a)

O impedimento recursório resultante da “dupla conforme” pode ser ultrapassado através da interposição do recurso de revista excecional, nos termos do artigo 672.º do Código de Processo civil.

No requerimento de interposição de recurso, a Ré disse que interpunha recurso de revista (excecional) ... à cautela, uma vez que entendia não existir dupla conforme.

No entanto, não referiu minimamente as razões da excecionalidade do recurso, tendo-se limitado a unicamente invocar o disposto no artigo 672.º n.º 1, al. a), n.º 2 al. a), e n.º 3 a 5, do Código de Processo Civil, pelo que não tendo o recurso interposto, enquanto revista excecional, o mínimo de alegação quando às razões da excecionalidade, o mesmo não reúne sequer condições para ser remetido à Formação, uma vez que não dispõe do mínimo de alegações que pudessem permitir a esta sequer apurar do cumprimento do ónus exigido pelo n.º 2, do artigo 672.º, do Código de Processo Civil.

Assim, o recurso interposto pela Ré apenas pode ser conhecido, como revista comum, na parte em que impugna o segmento decisório que arbitrou uma indemnização parcelar a título de indemnização do dano patrimonial futuro decorrente da incapacidade funcional permanente de que ficou a padecer o Autor, relativamente ao qual inexiste uma dupla conformidade, além do pedido de dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

Já quanto ao recurso de revista comum subordinado, interposto pela Autora, também por se verificar uma dupla conformidade quanto ao segmento decisório referido em b), o mesmo não pode ser conhecido, nos termos do artigo 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, devendo também, apenas ser conhecido na parte em que impugna o valor fixado pelo Tribunal da Relação a título de indemnização do dano patrimonial futuro decorrente da incapacidade funcional permanente de que ficou a padecer o Autor.

Apesar da Relação, julgando parcialmente procedente o recurso do Autor, ter aumentado este valor indemnizatório, verificando-se uma situação de reformatio in mellius, não é aplicável nesta situação o disposto no referido AUJ n.º 7/2022, quanto à avaliação da dupla conformidade, em função do benefício obtido no acórdão recorrido.

Na verdade, seguindo a mesma posição que foi sustentada no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 10.11.2022 (Rel. Maria da Graça Trigo), a não admissão do recurso do Autor quanto ao segmento em que viu a sua posição “melhorada” pelo acórdão recorrido, poria em causa o princípio da igualdade de armas, como as exigências constitucionais do processo justo e equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição) e do princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição).

Na verdade, parafraseando o acórdão acima referido, a razão de ser da dupla conforme, enquanto obstáculo à admissibilidade do recurso de revista, é a racionalização do acesso ao terceiro grau de jurisdição, sem, porém, se sobrepor ou confundir com a ratio do pressuposto da sucumbência, pelo que, numa situação como a dos autos – em que ambas as partes impugnam os valores indemnizatórios fixados a título de compensação pelo dano patrimonial futuro decorrente da incapacidade funcional permanente de que ficou a padecer o Autor, e em que o Supremo Tribunal de Justiça não pode deixar de apreciar tal questão na perspetiva da Ré – fica postergada a própria razão de ser do regime da dupla conforme, tornando-se injustificado e, consequentemente, arbitrário, não apreciar a mesma questão, tanto na perspetiva da Ré como na perspetiva da Autora.

E o facto do AUJ n.º 1/2020, aprovado em 27.11.2019, ter decidido que o recurso subordinado de revista está sujeito ao n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil, a isso não obstando o n.º 5 do artigo 633.º do mesmo Código (e neste caso o recurso do Autor é um recurso subordinado), não evita que se faça a mencionada interpretação conforme com a Constituição, uma vez que, nessa leitura, não se considera que a reformatio in mellius integre uma situação de dupla conforme subordinada ao impedimento previsto no artigo 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Considerando que as exigências da interpretação conforme à Constituição, da norma do n.º 3, do artigo 671.º, do Código de Processo Civil, conduzem ao conhecimento do recurso do Autor quanto à questão do valor indemnizatório pelo dano patrimonial futuro decorrente da incapacidade funcional permanente de que ficou a padecer, o objeto dos recursos cognoscível interpostos por ambas as partes coincide, devendo ainda ser apreciado o pedido de dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça deduzido pela Ré.

*

III – Dos factos provados

Neste processo mostram-se provados os seguintes factos:

1. No dia 21 de Setembro de 2012, pelas 21h15, ocorreu um acidente de viação na Rua , sensivelmente em frente ao edifício com o número de polícia 963, na freguesia de ..., na área do concelho de ....

2. Tal acidente consistiu no atropelamento do A. pelo veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula XT-..-...

3. O XT-..-.. era conduzido por BB.

4. No local em que o atropelamento se deu existia, pintada sobre o pavimento da via, uma passadeira destinada à travessia de peões,

5. Tal como existiam ali dois sinais regulamentares de trânsito, verticais, indicativos da presença da dita passadeira.

6. A Rua desenvolve-se, no local do atropelamento, em reta, precedida de uma curva ligeira e aberta para o lado esquerdo, atento o sentido Cruz...-C....

7. A faixa de rodagem possui ali a largura de 7,50 metros, dividida em duas metades, destinadas a sentidos de trânsito inversos.

8. O tempo estava bom e, sendo noite, havia ali iluminação pública em funcionamento, e a visibilidade era boa.

9. O A. pretendia atravessar a Rua , da direita para a esquerda, atento o sentido Cruz...-C....

10. Para o efeito, utilizou a alegada passadeira.

11. Iniciou a travessia em passo normal e caminhando sobre a Passadeira.

12. Quando o A. tinha dado alguns passos nessa travessia e se encontrava já sensivelmente sobre o eixo da via, surgiu repentinamente o veículo XT-..-.., conduzido pelo BB.

13. Este último circulava pela Rua no sentido Cruz...-C....

14. O condutor do XT-..-.. transitava pela metade esquerda da faixa de rodagem, considerando o seu sentido de marcha, a "Cortar" a curva que antecede o local do atropelamento,

15. Não se apercebeu da presença do A., sobre a passadeira e a atravessar a via.

16. Quando se deu conta do A. ainda travou a fundo.

17. Deixou, bem vincados sobre a faixa de rodagem, rastos de travagem numa extensão de 20,70 metros, junto à berma esquerda, atento o sentido Cruz...-C... e que terminam no centro da via, sobre a passadeira, no local onde viria a dar-se o atropelamento.

18. O embate ocorreu com o peão com a frente esquerda do XT-..-...

19. Sobre a passadeira ficaram vidros do farolim frontal esquerdo do XT-..-..

20. A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo XT-..-.. achava-se transferida para a Lusitânia, Companhia de Seguros, S.A, ora R. através do contrato de seguro titulado pela apólice na 5030740, válido e em vigor na data do acidente.

21. O A., por virtude do embate, foi projetado alguns metros pelo ar e caiu ao solo.

22. Foi assistido no local do acidente pelos serviços do INEM, que lhe prestaram os primeiros socorros.

23. Foi imobilizado em plano duro e com colar cervical e transportado ao Hospital de ....

24. Deu entrada nos serviços de urgência da mencionada unidade hospitalar e aí realizou vários exames.

25. Verificou-se que o A. havia, além do mais, sofrido:

-- traumatismo craniano, com fratura occipital bilateral e hemorragia cerebral; -- traumatismo da bacia, com fratura e indicação cirúrgica;

-- traumatismo do membro superior direito;

-- traumatismo e lesão ligamentar do joelho direito.

26. O A. foi internado no serviço de ortopedia do Hospital de ....

27. Aí foi submetido a intervenção cirúrgica à bacia, com aplicação de fixadores externos.

28. Devido à lesão que o A. apresentava no joelho direito, foi-lhe aplicada tala gessada cruropedálica.

29. O A. permaneceu internado no serviço de ortopedia, onde igualmente era alvo de vigilância por parte do serviço de neurocirurgia.

30. Em ... de Novembro de 2012, o A. retirou os fixadores externos, mantendo-se internado.

31. Em .../01/2013 o A teve alta hospitalar, não curado, para o domicílio

32. Tendo-lhe sido dada indicação para prosseguir tratamentos nas consultas externas de ortopedia e neurocirurgia e, ainda, para realizar fisioterapia sob orientação do médico de família

33. Durante 4 meses, o A. permaneceu acamado, tendo iniciado a marcha sem apoios técnicos após este período de tempo,

34. Após a alta hospitalar, o A. começou a revelar comportamentos estereotipados e anómalos do ponto de vista psicológico.

35. Por isso, recorreu aos serviços do médico psiquiatra Dr. CC, que o observou e tratou.

36. O A. foi observado pelo referido médico psiquiatra em consulta ocorrida em .../01/2013 e, desde então, tem sido tratado e acompanhado por ele em consultas médicas periódicas e regulares, que mantém atualmente.

37. Este médico psiquiatra diagnosticou um quadro clínico consequente a TCE (traumatismo crânio encefálico), com sintomatologia e oscilações de humor.

38. Foi também o A. observado nos serviços clínicos da R., no Hospital de S..., onde mantém, aliás, consultas de controlo.

39. Fez tratamentos regulares de fisioterapia, que atualmente mantém.

40. Foi também o A., em .../04/2013, sujeito a avaliação neuro-psicológica pela Prof. Dra. DD, que, conforme exarou no relatório que fez, diagnosticou:

-- funcionamento cognitivo abaixo do esperado para as caraterísticas demográficas;

-- dificuldades significativas em provas que medem a atenção, destreza manual, memória e funções executivas;

-- alterações de comportamento importantes.

41. Ainda de acordo com o mesmo relatório, o sobredito perfil psicológico é sugestivo de disfunção frontal bilateral e é compatível com sequelas de traumatismo crânio encefálico-

42. Somente em ... de Julho de 2014 é que as lesões sofridas pelo A atingiram a consolidação médico-legal e a fase sequelar.

43. O A, em resultado das lesões que sofreu no acidente, ficou a padecer de

Ao nível da cabeça:

-- Perturbações psiquiátricas, enquadradas no sindrome Psiquiátrico pós TCE, com alterações permanentes de humor.

Ao nível do ombro direito:

-- Rigidez do ombro com abdução / flexão a 900.

Ao nível da bacía:

-- Cicatriz à direita com 7 cm e cicatriz com cerca de 2 cm (cirúrgica);

-- Cicatriz à esquerda com 8 cm e cicatriz com cerca de 3 cm (cirúrgica);

-- Dor na região sagrada.

Ao nível do joelho direito:

-- Dor à mobilização, com instabilidade lateral.

44. As mencionadas dificuldades e dores ao nível do joelho, ombro e bacia impedem o A. de fazer esforços, pegar e transportar objetos pesados.

45. Não consegue também o A, por virtude dessas mesmas dores, nos joelhos e na bacia, permanecer muito tempo na mesma posição, seja sentado, seja em pé.

46. Não pode correr, saltar, nem caminhar depressa.

47. Tem dificuldade em correr, em percorrer pisos irregulares ou inclinados em subir e descer escadas e cansa-se com facilidade.

48. Tem ainda dificuldades na execução das atividades da vida diária, tais como vestir, calçar e tratar da higiene pessoal.

49. Tem também dificuldades em dormir e em descansar, acordando frequentemente acometido por dores intensas na região da bacia, ombro e joelho.

50. Sob os pontos de vista neurológico e psiquiátrico, o A. ficou, em virtude do acidente, a sofrer de:

-- transtornos de personalidade e do comportamento em disfunção cerebral consequente a TCE;

-- oscilações do humor e emoções, dificuldades na compreensão e execução de situações do quotidiano.

Com consequente reação emocional intensa e desajustada

-- grandes limitações do ponto de vista do funcionamento pessoal e social o quadro psiquiátrico atual acima descrito constitui consequência direta e necessário do acidente e do grave traumatismo craniano (TCE) nele sofrido.

51. Sendo que esse mesmo quadro clínico obriga atualmente a acompanhamento psiquiátrico permanente, a toma diária de psicofármacos, tudo por um período de tempo indeterminado, mas que se prevê durar pelo resto da vida do A..

52. E está definitivamente arredada a possibilidade de o A exercer qualquer atividade profissional.

53. Todas estas sequelas, permanentes e irreversiveis, determinam que o A esteja afetado de uma incapacidade permanente gerar (lPG) de, 54 pontos.

54. Essa incapacidade, é permanente e absoluta para a profissão habitual do A..

55. É, previsível que as sequelas em apreço, atentas as suas localização e tipologia, irão agravar-se com o decorrer dos anos.

56. O A. nasceu em ... de Fevereiro de 1953, pelo que tinha 59 anos, à data do acidente.

57. Tinha a profissão de assentador, que exercera por conta, sob as ordens e ao serviço da firma I... - Unipessoal, Lda, detendo a categoria profissional de assentador.

58. Auferindo a retribuição mensal de € 650,00, acrescida de subsidio de alimentação no valor mensal de € 126,50, o que perfaz o total mensal de € 776,50.

59. O trabalho em apreço (assentador) é, árduo e pesado. exigindo robustez e força física e deambulação e permanência de pé durante horas a fio.

60. O A. carece de frequentar regularmente consulta de Psiquiatria e de ortopedia, de tomar diariamente psicofármacos e de se submeter a fisioterapia, o que se prevê que acontecerá até ao final da sua vida.

61. Tal situação acarretará custos, com consultas, deslocações, aquisição de medicamentos, perdas de tempo e incómodos

62. O A. também carece e carecerá, até ao final dos seus dias, de acompanhamento e apoio de terceira pessoa para o vigiar, tratar e auxiliar nas tarefas do dia-a-dia (confecionar refeições e alimentar, vestir, calçar, tratar da higiene pessoal, acompanhar ao médico e estabelecimentos de saúde, etc.), visto não ter capacidade, nem autonomia para realizar tais atividades.

63. O A. padeceu fortes dores, em virtude das lesões sofridas.

64. Foi submetido a melindrosa intervenção cirúrgica à bacia, com anestesia geral. 65. Sujeitou-se a prolongados e dolorosos tratamentos, sendo o quantum doloris fixável no grau 6, numa escala crescente de O a 7.

66. Sofreu grandes incómodos e privações, bem como uma incapacidade temporária de 589 dias.

67. O A. vê-se apoquentado por dores intensas na bacia, no ombro direito e joelho direito e limitado funcionalmente.

68. Para atenuar as referidas dores, o A. é obrigado a recorrer frequentemente a medicação.

69. Tem dificuldade em transportar objetos pesados e em permanecer muito tempo na mesma posição.

70. Tem também dificuldades no sono, acordando por vezes com dores e/ou com insónias.

71. Mostra-se triste, deprimido e revela nervosismo e ansiedade.

72. Possui várias cicatrizes, já alegadas, que o desfeiam e que lhe causam complexos, sendo o prejuízo estético do grau 5, numa escala crescente de 0 a 7.

73. Isola-se das pessoas, tem perdas de memória e dificuldades de orientação.

74. Vê o futuro com apreensão e angústia, face à impossibilidade de voltar a trabalhar e angariar sustento.

75. Depende de terceiros para as suas atividades diárias, mesmo as mais singelas.

76. De modo que se sente um "fardo" e um inútil.

77. O A. vê também prejudicada a sua atividade sexual, visto que a presença constante da dor diminui a líbido

78. Sendo certo que, anteriormente ao acidente, o A. era uma pessoa ativa, saudável e escorreita.

79. Em despesas médicas, medicamentosas e em transportes para acorrer aos locais de tratamento, gastou o A a quantia de € 1.577,92+ 269,79;

80. O A., em consulta médica despendeu ainda a quantia de € 200.00 - doc. 9.

81. Em virtude das lesões sofridas no acidente, o A. ficou, após a alta hospitalar e durante o período de ITA, impossibilitado de realizar as suas tarefas pessoais) tais como deitar-se, levantar-se, vestir, calçar, impossibilitado até de tratar da sua higiene diária;

84. O A. foi reformado em ... .06.2010 por velhice com o valor mensal de pensão de € 552,07 (doc. de fls. 642 e 642v).

85. No ano de 2021 o A. auferiu de pensão anual o valor total de € 8.029,56.

86. O autor necessitara do auxílio e apoio de terceira pessoa durante 16 horas por dia, a prestar por duas pessoas.

87. As sequelas de que padece o Autor no futuro se virem a agravar.

*

IV – O direito aplicável

1. O valor da indemnização

Está em causa nos recursos interpostos quer pela Ré, quer pelo Autor, o valor da indemnização a atribuir pelo dano patrimonial futuro decorrente da incapacidade funcional permanente de que ficou a padecer o Autor em resultado do acidente.

O Acórdão recorrido, alterando o valor fixado pela 1.ª instância (€ 50.000,00), arbitrou essa indemnização em € 100.000,00.

Nas suas alegações de recurso, a Ré revela a sua concordância com o valor fixado pela sentença proferida na 1.ª instância e não admite que o valor da indemnização ultrapasse o valor de € 73.964,52, uma vez que este valor corresponde ao montante de todos os salários líquidos que o Autor auferiria mensalmente até ao termo da sua esperança de vida.

Discorda ainda do momento do vencimento dos respetivos juros de mora, o qual entende verificar-se apenas com a prolação da decisão definitiva.

Já o Autor sustenta que a indemnização por este dano deve ser fixada em € 200.000,00, dado que é esse o valor que corresponderia segundo as fórmulas matemáticas, tendo em consideração a progressão salarial que, entretanto, seguramente ocorreria, não havendo razão para proceder ao desconto de qualquer valor pelo pagamento antecipado da indemnização, uma vez que a remuneração dos depósitos a prazo tem sido nula.

Tendo o lesado optado pela reparação deste dano, através do pagamento de uma indemnização, sob a forma de capital, deve encontrar-se um valor que, tendo em consideração a previsível perda de rendimentos que este auferiria no futuro, não deixe de relevar o benefício para o lesado que resulta do pagamento antecipado desses rendimentos, com recurso necessariamente a um juízo equitativo, uma vez que estamos a operar com dados meramente hipotéticos.

O acórdão recorrido recusou a utilização das conhecidas fórmulas matemáticas para calcular a indemnização a arbitrar para este tipo de dano, tendo considerado que a matemática é um processo contínuo de abstração e de análise de estruturas amplas, determinado pela coerência das proposições num campo limitado e preestabelecido do saber que, nesta medida, se afasta do concreto da realidade sensível.

E por isso preferiu, engendrar um cálculo matemático muito simples, em que ponderou as seguintes circunstâncias:

Em 2013, na data do acidente, a esperança média de vida para os homens era de 77,2 (INE/ PORDATA, www.pordata, última atualização em 9/8/2022).

Todas as sequelas, permanentes e irreversíveis, determinaram que o autor esteja afetado de uma incapacidade permanente geral (lPG) de 54 pontos, sendo que está definitivamente arredada a possibilidade de vir a exercer qualquer actividade profissional.

O autor nasceu em ... de Fevereiro de 1953, pelo que tinha 59 anos à data do acidente, restando-lhe uma esperança média de vida de cerca de 18 anos.

Tinha a profissão de assentador, que exercera por conta, sob as ordens e ao serviço da firma I... - Unipessoal, Lda, detendo a categoria profissional de assentador, auferindo a retribuição mensal de € 650,00, acrescida de subsídio de alimentação no valor mensal de € 126,50, num total mensal de € 776,50, pelo que 776,50 x 14 = 10871; 10871x18=195678 euros.

Como a antecipação da disponibilidade do capital justifica uma redução deste, embora de forma mais moderada, por efeito das taxas de juros mais baixas, fazendo apelo a juízos de proporcionalidade e razoabilidade, fixou o montante da indemnização em € 100.000,00.

Para o cálculo da indemnização pela perda da capacidade de ganho, tal como sustenta a Ré, deve tomar-se em consideração o valor dos rendimentos líquidos que o lesado, trabalhador por conta de outrem, auferia regularmente no período que antecedeu o acidente, uma vez que esta indemnização está isenta de IRS e de descontos para os sistemas de segurança social.

No entanto, deve também considerar-se que durante todo o tempo de vida ativa que o lesado ainda tinha pela frente, sendo este um trabalhador por conta de outrem, era previsível que o seu nível salarial aumentasse, o que também deve ser ponderado. Neste caso, auferindo o lesado um valor perto do salário mínimo, há, desde logo, que ter em consideração que este foi o tipo de salários que registaram um elevado incremento nos últimos tempos.

Quanto à preocupação de que o valor do capital antecipadamente pago ao lesado por um dano que se irá a refletir continuadamente no futuro se esgote no termo previsível da sua vida, o facto de, no período já decorrido, o nível da remuneração dos depósitos a prazo ser efetivamente muito baixo, embora seja uma realidade a atender, não justifica que não se deva operar uma redução do valor a atribuir, uma vez que essa não é a única forma de investir uma soma avultada em dinheiro, assim como não existe uma previsibilidade dessa realidade se manter durante muito tempo.

Apesar de algumas destas ponderações não terem sido consideradas pelo acórdão recorrido, uma vez que elas influiriam em sentidos opostos no nível da indemnização fixada e o valor desta não se mostra desajustado com aquele que os tribunais têm vindo a atribuir em situações idênticas, não se vê razões para alterar esse valor, pelo que ambos os recursos, nesta parte, devem improceder.

Quanto aos juros de mora que devem incidir sobre esta quantia indemnizatória, há que ter em consideração que foi a sentença proferida na 1.ª instância que fixou o momento da contabilização dos juros na data da citação da Ré, não tendo esta questionado essa opção no recurso deduzido para o Tribunal da Relação. Ora, o acórdão proferido por esse tribunal, que é o acórdão agora recorrido, duplicou o valor da indemnização aqui em análise, sem que tenha denunciado que o fazia, tendo em consideração qualquer atualização do valor da moeda, pelo que deve considerar-se que o novo valor continuou a refletir esse valor à data da citação, sendo esse também o valor que tivemos em consideração ao decidirmos manter a indemnização arbitrada.

Assim sendo, não se justifica a alteração da condenação no pagamento de juros de mora.

2. Da dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça

No recurso interposto, a Ré aproveitou para pedir a dispensa do pagamento da taxa de justiça.

Dispõe o artigo 7.º, n.º 6, do Regulamento das Custas Processuais:

Nas causas de valor superior a (euro) 275.000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento.

Se a conduta processual das partes não merce qualquer reparo em especial, o processo, sobretudo em termos probatórios, revelou significativa complexidade, tendo demorado mais de 8 anos a ser decidido em tribunal, pelo que, tendo em consideração o valor da taxa de justiça devida apenas se justifica uma redução de 25%.


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Decisão

Pelo exposto, julgam-se improcedentes os recursos interpostos por ambas as partes, confirmando-se a decisão recorrida.


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Custas de cada um dos recursos pelos respetivos recorrentes.

Dispensa-se o pagamento da taxa de justiça na proporção de 25%.


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Notifique.

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Lisboa, 12 de outubro de 2023


João Cura Mariano (relator)

Afonso Henrique

Maria da Graça Trigo