Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B1847
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: REGISTO PREDIAL
NUA-PROPRIEDADE
NULIDADE
VENDA DE BENS ALHEIOS
TERCEIRO
INOPONIBILIDADE DO NEGÓCIO
Nº do Documento: SJ200706210018477
Data do Acordão: 06/21/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

1. O conceito de terceiro a que se refere o artigo 291º do Código Civil, motivado pela ideia de estabilidade das situações jurídicas, pressupõe a sequência de nulidades e o conflito entre o primeiro transmitente e o último sub-adquirente, e é diverso do conceito de terceiro para efeito de registo a que se reporta o artigo 5º, nº 1, do Código do Registo Predial.
2. Não tendo o primitivo adquirente da nua propriedade sobre a fracção predial inscrito a sua aquisição no registo predial, e tendo outrem adquirido do mesmo vendedor o direito de propriedade plena sobre ela inscrito no registo a sua aquisição, não pode o primeiro ao último a nulidade do contrato de compra e venda com fundamento na venda de coisa alheia.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I
AA intentou, no dia 9 de Outubro de 1995, contra BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ e KK, acção declarativa constitutiva, com processo ordinário, pedindo a declaração da nulidade ou a revogação de identificada procuração, a declaração da nulidade do subsequente contrato de compra e venda, ordenado o cancelamento do registo de aquisição a favor dos réus e a sua condenação a indemnizá-lo por litigância de má fé.
Fundamentou a sua pretensão na circunstância de a ré BB lhe haver vendido a nua propriedade da fracção predial “H” do prédio sito na Calçada da ......, nº ..., Lisboa e, depois, disso, a haver vendido aos réus, e de a vendedora, por virtude de anomalia psíquica, não haver compreendido o sentido da procuração irrevogável que emitiu para o efeito.
Em contestação, BB impugnou os factos articulados pelo autor e, em reconvenção, pediu a anulação do contrato de compra e venda celebrado com aquele, sob o fundamento da exploração do seu estado de necessidade e de dependência por LL.
Os outros réus, por seu turno, impugnaram os factos articulados pelo autor, arguíram a ilegitimidade deste relativamente ao pedido de declaração de nulidade da procuração e a ilegitimidade dos réus KK, MM, FF e de NN
O autor, na réplica, pronunciou-se no sentido da sua legitimidade ad causam e impugnou os factos articulados pela ré BB na reconvenção.
No despacho saneador, foi a excepção de ilegitimidade do autor julgada improcedente e a excepção da ilegitimidade de KK de MM, de FF e de NN julgada procedente, pelo que foram absolvidos da instância.
Falecida a ré BB, foram declarados habilitados para o prosseguimento dos termos da demanda, PP, QQ, RR e SS.
Falecido o réu DD, foram declarados habilitados em sua substituição os réus CC, EE, GG, HH e JJ, e, na sequência do falecimento de PP, foi habilitado em sua substituição TT.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença no dia 31 de Março de 2006, por via da qual foi declarada a nulidade do contrato de compra e venda celebrado entre a ré BB, representada por DD, e os réus DD, GG e II e ordenado o cancelamento do respectivo registo predial de aquisição.
Apelaram os réus, e a Relação, por acórdão proferido no dia 13 de Fevereiro de 2007, por maioria, negou provimento ao recurso, essencialmente com base na natureza declarativa do registo predial, na presunção ilidível dele resultante e na circunstância de os recorrentes haverem fundado a sua pretensão no contrato de compra e venda e não na referida presunção, acrescentando dever a questão dever ser decidida segundo as regras da nulidade dos negócios jurídicos e da compra e venda.

Interpuseram os apelantes recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- a questão a dirimir não depende apenas da apreciação e decisão em termos substanciais e civilísticos estritos, mas também das regras e normas de registo predial aplicáveis;
- aquando do contrato que celebraram, os recorrentes, compradores, ignoravam a alienação a favor do recorrido;
- face ao disposto no artigo 5º, nº 1, do Código do Registo Predial, a venda da nua propriedade ao recorrido é ineficaz em relação aos recorrentes por a sua aquisição ter sido levada ao registo antes do contrato de compra e venda que celebraram e não implicar a nulidade deste;
- não há venda de bens alheios por a vendedora, titular da propriedade da fracção predial inscrita no registo estar legitimada para realizar a segunda venda;
- o registo que efectuaram é aquisitivo ou tabular, pelo que beneficiam do seu efeito substantivo, que não pode ser prejudicado;
- são terceiros registais e gozam da presunção do registo consagrada nos artigos 7º e 17º nº 2, do Código do Registo Predial;
- é inaplicável o artigo 291º do Código Civil por este se restringir à hipótese de o terceiro de boa fé não ter agido com base no registo anterior a favor do transmitente, ou seja, às aquisições nulas ou anuláveis em que o subadquirente não é um verdadeiro terceiro registal;
- o acórdão recorrido violou os artigos 291º, nºs 1 e 2 e 892º do Código Civil e 5º a 7º, 17º, nº 2 e 122º do Código de Registo Predial, pelo que deve ser revogado.

Respondeu o recorrido, em síntese de conclusão:
- extinto o usufruto por morte da vendedora, cessou a sua autonomização em relação ao direito de propriedade.
- o recorrido não procedeu ao registo de aquisição da nua propriedade da fracção predial por mero descuido, mas como a vendedora continuou a usufruir a casa na qualidade de usufrutuária, não relevava para si o registo no imediato;
- ao conhecer que os recorrentes adquiriram a fracção, apresentou a registo a sua aquisição com o usufruto, que foi efectuado provisoriamente por dúvidas em razão da falta de legitimidade da vendedora;
- os recorrentes adquiriram coisa alheia, por falta de legitimidade da vendedora, sendo aplicável o disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 291º do Código Civil;
- o recorrido, ao invés dos recorrentes, é segundo de boa fé por virtude da sua aquisição, do pagamento da sisa, da oferta à câmara do direito de preferência e da publicidade da venda, pelo que não releva a boa fé por eles alegada quanto à outorga da escritura, ao pagamento do preço e à efectivação do registo.

II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. A ré BB era dona da fracção autónoma designada pela letra “H”, correspondente ao 3º andar do prédio urbano sito na Calçada ....., nºs ......-B, ...... e ......-C, descrito na 5ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº ../...., da freguesia da Graça (Santo André), Lisboa.
2. O autor e a ré BB, na escritura pública outorgada no dia 14 de Janeiro de 1993, no 2º Cartório Notarial de Lisboa, declararam, a última vender e o primeiro comprar, por 6 000 000$, a raiz ou nua propriedade da fracção predial mencionada sob 1.
3. O autor, para além do pagamento daquela escritura, procedeu previamente ao pagamento do imposto municipal de sisa, tendo, para a efectivação de tal venda, apresentado requerimento à Câmara Municipal de Lisboa, edilidade territorial com preferência na eventual aquisição da citada fracção.
4. A ré BB sempre manteve com os seus sobrinhos boas relações, estes sempre a estimaram, e ela afirmou a elementos da família O.... S.... que pretendia doar aos sobrinhos, EE, GG, HH e JJ os prédios rústicos e urbanos de que era proprietária nos concelhos de Banavente, Salvaterra de Magos e Guarda e os direitos de usufruto de duas fracções autónomas sitas no concelho de Lisboa, bem como afirmou que pretendia vender aos mesmos sobrinhos a fracção onde habitava mencionada sob 1.
5. Por isso, a fim de assegurar a execução do que pretendia, no dia 26 de Maio de 1995, no 17º Cartório Notarial de Lisboa, onde se deslocou pelo seu próprio pé e outorgou a procuração inserta a folhas 48 a 57, onde se exprimiu-se com clareza, compreendendo o teor do acto praticado, e assinou a procuração, embora com alguma dificuldade pois, dada a sua idade, estava com as mãos pouco firmes.
6. O teor do documento mencionado sob 5 foi elaborado em momento anterior ao da sua outorga, e em tal procuração, a ré BB declarou constituir seus bastantes procuradores os réus CC e DD, a quem conferiu poderes especiais, que podiam ser exercidos conjunta ou separadamente, para em seu nome, entre outros, venderem quando, pelo preço e condições que entenderem, aos seus filhos, EE, GG, JJ e II, em comum e parte iguais, a fracção autónoma descrita sob 1.
7. Após a outorga da referida procuração, os réus CC e DD averiguaram se os registos referentes às diversas propriedades estavam em conformidade e constataram que sim.
8. Em escritura pública outorgada no dia 9 de Agosto de 1995, no Cartório Notarial de Benavente, o réu DD, na qualidade de procurador, com poderes para o acto, da ré BB, por um lado, e os réus EE, GG, JJ e II, por outro, declararam, o primeiro vender em nome da sua representada, e os últimos comprar, pelo preço de 10 000 000$, que declarou ter recebido, a fracção descrita sob 1.
9. Dado que o registo se encontrava no nome da ré BB, nem o réu DD, nem os réus EE, GG, JJ e II tiveram qualquer dúvida em realizar o contrato de compra e venda pelo estipulado preço de 10 000 000$, preço esse que pagaram à primeira, e nem esta, nem qualquer outra pessoa alguma vez disse a qualquer dos réus, antes da realização da referida escritura, que havia sido anteriormente alienada a nua propriedade da referida fracção H ao autor.
10. A ré BB manteve a sua residência na casa referida sob 1 até 30 de Agosto de 1995, data em que os restantes réus a levaram para outra morada.
11. Os réus, salvo a ré BB, só em 30 de Agosto de 1995 tomaram conhecimento de que havia sido celebrada a escritura mencionada sob 2.
12. A aquisição da fracção referida sob 1 foi inscrita no registo sucessivamente a favor da ré BB. pela inscrição G-1, Apresentação 11/060789, e dos réus DD, GG de, JJ e EE pela inscrição G-2, Apresentação nº 25/100895.
13. A ré BB nasceu no dia 13 de Março de 1913, sempre revelou ser esperta, determinada e bem sabedora do que queria, era viúva e não teve filhos, sempre esteve acostumada a uma vida activa, estimando a sua independência e a sua autonomia, pelo que, ao enviuvar, preferiu manter-se em sua casa apenas acompanhada pelas suas empregadas domésticas.
14. A ré BB era dona de um razoável património e nunca lhe faltaram meios materiais, e tinha como vizinha, no 1º andar do prédio referido sob 1, LL, e, a partir de 1984/1985, começaram ambas a relacionar-se, passando esta a ser visita de casa daquela e a acompanhá-la, por vezes, em viagens e passeios.
15. A ré BB abriu, no Banco Bilbao e Viscaya, uma conta conjunta com o autor AA, com o nº ........., e transferiu também para o nome de outro dos filhos de LL, de nome UU, o registo da sua viatura, que está novamente registada em nome da ré BB.
16. A ré BB tinha, na casa referida sob 1, pelo menos, uma empregada doméstica, de nome VV e, ultimamente, era sua companhia na vida quotidiana, incluindo nas deslocações aos médicos, por LL que inclusivamente a vestia.
17. Além disso, a ré BB tinha como empregadas XX, em regime diurno, e ZZ, em regime nocturno, três vezes por semana, que, juntamente com LL, lhe prestavam assistência.
18. A ré BB era observada pelo seu médico de família, AAA, com consultório na Rua de ......., nº ....., ..... Esq., em Lisboa, e posteriormente pela sua médica, BBB, com consultório na Travessa das ......, nº ...., em Lisboa.
19. Não obstante a observação periódica e contínua referida, a ré BB foi consultada por CCC, médico psiquiatra, com consultório na Avenida ........., nº ......, ......., em Lisboa, que lhe prescreveu os medicamentos referidos na receita médica de 7 de Fevereiro de 1995.
20. A idade da ré BB e as debilidades físicas e emocionais próprias dessa idade tornaram-na dependente do auxílio de outras pessoas, e, no ano de 1995, o seu estado de saúde física e mental era o correspondente a uma pessoa da sua idade, com a ansiedade própria das pessoas idosas e que necessitam de acompanhamento e tratamento.
21. A partir de Abril de 1995, LL passou a pernoitar na casa da ré BB duas vezes por semana.
22. No ano de 1994, a ré BB passou um período não concretamente apurado na Praça ......, nº ..., em Lisboa, em casa dos réus CC e DD, seus cunhados, e, em data não concretamente apurada, revelou que havia emprestado dinheiro a LL e que esta não estava a respeitar o prazo de restituição acordado, e revelou ainda que havia transferido o registo da sua viatura para o referido UU, mas que a pretendia de volta.
23. Após o período referido, a ré BB regressou à sua casa na Calçada da Graça, e, em data não apurada, abriu uma conta bancária na agência do Banco Comercial Português SA.
24. Em meados de Agosto de 1995, a empregada doméstica de BB, VV, informou os réus de que iria entrar de férias no dia 31 daquele mês, e por isso, na véspera, o réu DD deslocou-se a casa de sua tia para lhe perguntar o que pretendia fazer dada a necessidade de a VV ir de férias, a qual manifestou vontade de ir para a casa de Salvaterra de Magos e, por isso, ele providenciou o transporte dela para aquela casa.
25. Após a ré BB ter saído, e preparando-se o réu DD para fechar a casa, LL opôs-se ao seu encerramento, alegando que o seu filho, o ora autor, havia comprado a casa e respectivo recheio, e invocando o direito de propriedade do filho, chamou a Polícia de Segurança Pública.
26. No dia 30 de Agosto de 1995, a ré BB foi transportada para Salvaterra de Magos por uma ambulância especialmente requisitada para o efeito.
27. Estão no processo cópias dos assentos de casamento dos réus e das convenções antenupciais pelos mesmos outorgadas.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se deve ou não declarar-se a nulidade do contrato mencionado sob II 8.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação formuladas pelos recorrentes e pelo recorrido, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- lei processual aplicável na acção e nos recursos;
- delimitação negativa do objecto do recurso;
- natureza jurídica e efeitos do contrato mencionados sob II 2 ;
- natureza jurídica e efeitos dos contrato mencionado sob II 8;
- síntese do regime de venda de bens alheios, de excepção ao regime geral da nulidade e do efeito do registo predial em relação a terceiros;
- consequência do referido regime em relação à problemática em litígio;
- síntese da solução para o caso decorrente dos factos provados e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos pela determinação lei processual aplicável na acção e no recurso.
Como a acção foi intentada no dia 9 de Outubro de 1995, à acção são aplicáveis as normas anteriores às do Código de Processo Civil Revisto, que entrou em vigor no 1 de Janeiro de 1997 (artigo 16º do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro).
Como a sentença do tribunal da 1ª instância foi proferida no dia 31 de Março de 2006, aos recursos são aplicáveis as pertinentes normas do Código de Processo Civil Revisto na sua primitiva versão (artigo 26º nº 1, do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro).

2.
Atentemos agora na delimitação negativa do objecto do recurso.
O objecto do recurso é essencialmente delimitado pelo conteúdo das alegações do recorrente (artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Considerando o conteúdo das alegações formuladas pelos recorrentes, o objecto do recurso cinge-se à impugnação do acórdão da Relação por ter considerado que a instauração da acção de nulidade do contrato foi registada menos de três anos antes da sua celebração e ordenou o cancelamento do registo predial da aquisição nele baseada.
Não está, por isso, em causa no recurso a questão subsidiária da redução do objecto do contrato de compra e venda do direito de propriedade sobre a fracção em causa ao direito de usufruto.

3.
Vejamos agora a natureza jurídica e nos efeitos do contrato mencionado sob II 2.
Tendo em conta apenas os factos mencionados sob II 12, estamos perante um contrato de compra e venda do direito de propriedade de raiz sobre a fracção predial em causa celebrado entre BB, como vendedora, por um lado, e o recorrido, por outro, na posição de comprador (artigo 874º do Código Civil).
Decorre do referido contrato, face às declarações negociais que o envolvem, a transmissão do direito de nua propriedade da titularidade da primeira para a titularidade do último e, desde logo, a obrigação deste de pagar àquela o respectivo preço (artigo 879º do Código Civil).

4.
Atentemos agora na natureza jurídica e nos efeitos dos contrato mencionados sob II 5.
Tendo em conta apenas os factos mencionados sob II 5, estamos perante um contrato de compra e venda do direito de propriedade plena sobre a fracção predial em causa celebrado entre BB, como vendedora, por um lado, e os recorrentes DD, GG, JJ e II, por outro, na posição de compradores (artigo 874º do Código Civil).
Decorre do referido contrato, face às declarações negociais que o envolvem, a transmissão do direito de nua propriedade da titularidade da primeira para a titularidade dos últimos.
Assim, os referidos contratos de compra e venda são similares na vertente da vendedora, mas divergentes em relação aos compradores e, no que concerne ao respectivo objecto, o primeiro só diverge do segundo na medida em que naquele se trata da nua propriedade e neste do direito de propriedade plena.

5.
Vejamos agora, em tanto quanto releva no caso vertente, o regime da venda de bens alheios, a excepção ao regime geral da nulidade e o conceito de terceiros para efeitos de registo.
Suscita-se esta problemática porque BB, na posição de vendedora, celebrou dois contratos de compra e venda relativamente ao mesmo prédio, o primeiro com o recorrido, tendo por objecto mediato a nua propriedade, e o segundo com os recorrentes, tendo por objecto mediato o direito de propriedade plena.
Enquanto o recorrido entende que ao caso é aplicável o regime da venda de bens alheios, os recorrentes entendem o contrário, estes contra o que foi decidido nas instâncias.
Expressa a lei ser nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar; mas o vendedor não pode opor a nulidade ao comprador de boa fé, como não pode opô-la ao vendedor de boa fé o comprador doloso (artigo 892º do Código Civil).
Assim, o comprador de má fé pode opor a nulidade ao vendedor de má-fé, tal como o vendedor de má fé a pode opor ao comprador de má fé. Mas o vendedor não pode invocar o vício de nulidade no confronto do comprador de boa fé, ou seja, daquele que ignorava ser alheia a coisa vendida, tal como o comprador doloso o não pode opor ao vendedor de boa fé.
O dolo é, nesta sede, a sugestão ou artifício que alguém empregue com intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou por terceiro, do erro do declarante (artigo 253º, nº 1, do Código Civil).
Assim, age com dolo o comprador que tenha induzido o vendedor em erro, ou que, apercebendo-se do erro daquele, o tenha dissimulado com vista a que continuasse envolvido da sua falsa convicção da realidade.
Apesar de o contrato de compra e venda de coisa alheia ser ineficaz em relação ao respectivo proprietário, este pode pedir a declaração da sua nulidade no confronto do vendedor e do comprador (artigo 286º do Código Civil).
A declaração de nulidade tem efeito retroactivo e implica, em regra, a restituição do que tiver sido prestado (artigo 289º, nº 1, do Código Civil).
Assim, declarada a nulidade de um contrato de compra e venda de imóvel, por exemplo, em simultâneo deve o comprador restituí-lo ao vendedor e este entregar àquele o respectivo preço (artigos 290º, 874º e 879º do Código Civil).
Todavia, excepcionalmente, por um lado, a declaração de nulidade do negócio jurídico respeitante a bens imóveis não prejudica os direitos adquiridos sobre eles a título oneroso por terceiro de boa fé – desconhecedor do vício sem culpa no momento da aquisição - no caso de o registo da aquisição ser anterior ao registo da acção (artigo 291º, nºs 1 e 3, do Código Civil).
E, por outro, em quadro de limitação daquela excepção, os direitos de terceiro não são reconhecidos se a acção for proposta e registada nos três anos posteriores à conclusão do negócio (artigo 291º, nº 2, do Código Civil).
Este último artigo reporta-se, por exemplo, aos casos em que uma pessoa, por contrato afectado de nulidade, vendeu a outra um prédio, e esta última o vendeu invalidamente a outrem.
Visa o referido normativo, verificados os pressupostos a que alude, proteger, por exemplo, o referido comprador do efeito da declaração da nulidade do primeiro contrato de compra e venda.
O terceiro a que este artigo se reporta é, pois, o sub-adquirente posterior à celebração do primeiro contrato afectado de nulidade por ilegitimidade substantiva, portanto no quadro de aquisição a non domino.
É protegido na medida em que lhe não pode ser oposta a nulidade do primitivo contrato de compra e venda se tiver adquirido o direito sobre imóveis a título oneroso, de boa fé, inscrito no registo predial a sua aquisição e haja decorrido um triénio sobre a data do primeiro contrato sem haver sido instaurada a acção de nulidade.
O conceito de terceiro a que se refere este artigo, sob motivação de estabilidade de situações jurídicas, pressupõe, pois, a sequência de nulidades e o conflito entre o primeiro transmitente e o último subadquirente, pelo que é diverso do conceito de terceiros para efeito de registo predial.
A regra é no sentido de que a transferência de direitos reais sobre coisas determinadas se dá por mero efeito do contrato, sem prejuízo do regime relativo ao registo predial no que concerne a imóveis e a móveis sujeitos a registo (artigos 408º, nº 1 e 879º, alínea a), do Código Civil).
O registo predial tem essencialmente por fim dar publicidade aos direitos inerentes às coisas imóveis (artigo 1º do Código do Registo Predial).
Tem, pois, essencialmente, uma função declarativa e não constitutiva, conserva direitos mas não os cria, e não pode suprir a falta do direito nem sanar os vícios que envolvam os direitos transmitidos.
A aquisição do direito de propriedade sobre imóveis está sujeita a registo (artigo 2º, nº 1, alínea a), do Código do Registo Predial).
Prevalece o direito primeiramente inscrito, dessa inscrição emerge a tutela da fé pública por via das presunção – ilidível por via de prova do contrário - que consagra, designadamente a de que o direito existe tal como o registo o revela e que pertence a quem estiver inscrito como seu titular (artigos 6º e 7º do Código do Registo Predial e 350º do Código Civil).
Acresce, com particular relevância no que concerne ao princípio da transferência dos direitos sobre coisas determinadas por mero efeito do contrato, a que se reporta o artigo 408º, nº 1, do Código Civil, que os factos sujeitos a registo só produzem efeitos em relação a terceiros depois de registados (artigo 5º, nº 1, do Código do Registo Predial).
O conceito de terceiro para efeito de registo predial tem sido objecto de controvérsia jurisprudencial, até que o legislador o consignou no nº 4 do artigo 5º do Código do Registo Predial.
Numa primeira análise desta problemática, o plenário do Supremo Tribunal de Justiça expressou serem terceiros para efeito de registo predial todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, vissem esse direito arredado por facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente (Acórdão nº 15/97, de 20 de Maio, Diário da República, I Série, de 4 de Julho de 1997).
Em subsequente análise da mesma problemática, o plenário do Supremo Tribunal de Justiça interpretou a lei no sentido de que terceiros para efeitos do disposto no artigo 5º do Código do Registo Predial são os adquirentes de boa fé de um mesmo transmitente comum de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa (Acórdão nº 3/99, de 18 de Maio, Diário da República, I Série, de 10 de Julho de 1999).
Mais tarde, por via do Decreto-Lei nº 533/99, de 11 de Dezembro, estabeleceu-se que terceiros para aquele efeito são os adquirentes de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa de um mesmo transmitente comum de (artigo 5º, nº 4, do Código do Registo Predial).
Trata-se de um normativo de natureza interpretativa, que, por isso, rege para casos anteriores ao início da vigência daquele diploma e que devam ser apreciadas posteriormente (artigo 13º, nº 1, do Código Civil).
São situações em que ocorre uma relação triangular consubstanciada em dupla transmissão pelo mesmo alienante de um bem imóvel ou de um bem móvel sujeito a registo a um primeiro transmissário, que não inscreve no registo a aquisição, e depois a um segundo, que opera a respectiva inscrição registal.
São situações de conflito entre dois adquirentes, é válido o primeiro negócio de transmissão e não o segundo, mas o primeiro adquirente não pode opor ao segundo a sua aquisição, porque ela não constava no registo, e o último não podia, dada a fé pública derivada do registo, conhecer que o alienante já não era o titular do direito em causa.
Mas este conceito de terceiro para efeito do registo, tal como acima se referiu, não coincide com o conceito de terceiro a que se reporta o artigo 291º do Código Civil, porque na primeira situação o conflito é entre dois adquirentes e, na segunda, o conflito ocorre entre o primeiro transmitente e o último sub-adquirente.
Na primeira situação é pressuposta a validade do primeiro negócio de transmissão e na segunda a sua invalidade, ali é protegida a confiança do adquirente nos dados constantes no registo, e aqui é protegida a estabilidade dos negócios jurídicos em termos de excepção ao disposto no artigo 289º, nº 1, do Código Civil.

6.
Atentemos agora na consequência do regime legal enunciado sob 5 em relação à problemática em litígio.
O recorrido adquiriu validamente o direito de propriedade de raiz sobre o prédio em causa por virtude do contrato de compra e venda que celebrou com BB (artigos 408º, nº 1 e 879º, alínea a), do Código Civil).
Como o recorrido passou a ser titular do direito de nua propriedade sobre a mencionada fracção predial por virtude da celebração do referido contrato de compra e venda, a alienação do direito de propriedade sobre a mesma fracção predial por BB a favor dos recorrentes por contrato de compra e venda celebrado no dia 9 de Agosto de 1995 configura-se como venda de bens alheios.
É, por isso, um contrato de compra e venda nulo no confronto de BB e dos recorrentes e afectado de ineficácia em relação ao recorrido (artigos 408º, nº 1, e 892º do Código Civil).
Mas a referida nulidade em relação a quem o celebrou e a concernente ineficácia face ao recorrido não pode, porém, implicar o deferimento da sua pretensão do último consubstanciada nos pedidos que formulou, porque em relação aos recorrentes é como não tivesse havido venda de bens alheios.
É que não é aplicável ao caso em análise – duplo contrato de compra e venda da mesma coisa celebrado pelo mesmo vendedor com compradores diversos – o disposto no nº 2 do artigo 291º do Código Civil, certo que este normativo só é aplicável às situações em que o comprador da coisa invalidamente alienada a alienar a outrem, a quem a lei concede a protecção.
Por isso, como já se referiu, o disposto no nº 2 do artigo 291º do Código Civil, não pode sustentar a pretensão formulada pelo recorrido no confronto dos recorrentes.
Com efeito, como o recorrido não fez inscrever no registo predial a sua aquisição do direito de nua propriedade sobre o prédio em causa, e os recorrentes, que adquiriram depois o direito de propriedade sobre o mesmo prédio, da mesma alienante, procederam à respectiva inscrição registal, subsiste a favor deles a presunção derivada do registo, por virtude de o primeiro não lhe poder opor a sua aquisição.
Assim, por virtude das regras do registo predial, o contrato de compra e venda celebrado entre o recorrido, por um lado, e BB, por outro, porque não foi levado ao registo predial, não produz efeitos em relação aos recorrentes.
Não releva no sentido pretendido pelo recorrido o motivo pelo qual ele só diligenciou pelo registo predial da sua aquisição depois de os recorrentes haverem procedido ao registo predial da sua, designadamente a circunstância de a vendedora, a usufrutuária, continuar a habitar a referida fracção predial, nem a circunstância de ele haver pago a sisa ou diligenciado pela comunicação ao município da sua aquisição para efeitos de exercício do direito de preferência.
Com efeito, a prioridade a favor dos recorrentes do registo predial da aquisição do direito de propriedade sobre a fracção predial em causa confere-lhe como que uma presunção jure et de jure da titularidade desse direito tal como o registo o define.
Tem, por isso, que improceder a pretensão formulada pelo recorrido no confronto dos recorrentes.

7.
Vejamos, finalmente, a síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.
O contrato de compra e venda celebrado entre BB e o recorrido, sem qualquer vício, produziu os efeitos que lhe são próprios.
O contrato de compra celebrado entre BB e os recorrentes está afectado de nulidade por falta de legitimidade substantiva da primeira como vendedora, mas tal vício cede perante as regras do registo predial.
É que decorre das referidas regras que a transmissão do direito de propriedade sobre imóveis não registada não produz efeitos em relação a terceiros que tenham inscrito a aquisição subsequente do mesmo vendedor.
Os conceitos de terceiro constantes dos artigos 5º, nº 4, do Código do Registo Predial e 291º do Código Civil não assumem idêntico conteúdo, porque ali o conflito é entre dois adquirentes e aqui o conflito ocorre entre o primeiro transmitente e o último subadquirente.
A aquisição do direito da nua propriedade relativa à fracção predial em causa e a reserva de usufruto a favor da vendedora são inoponíveis aos recorrentes, que, em virtude das regras do registo, são tidos como os verdadeiros titulares do direito de propriedade sobre aquela fracção.
O decesso de BB no plano da consolidação do direito de propriedade plena na esfera jurídica do recorrido não implica o funcionamento na espécie do disposto no artigo 1476º, nº 1, alínea a), do Código Civil.

Procede, por isso, o recurso, com a consequência da revogação do acórdão recorrido e a absolvição dos recorrentes do pedido.
Vencido no recurso, é o recorrido responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).


IV
Pelo exposto, dá-se provimento ao recurso, revogam-se o acórdão recorrido e a sentença proferida no tribunal da primeira instância, absolvem-se os recorrentes do pedido e condena-se o recorrido no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 21 de Junho 2007

Relator : Salvador da Costa
Adjuntos : Ferreira de Sousa
Armindo Luís