Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
111/15.8JBLSB.L1.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: MANUEL BRAZ
Descritores: HOMICÍDIO
MOTIVO FÚTIL
MEDIDA CONCRETA DA PENA
CÚMULO JURÍDICO
PENA ÚNICA
Data do Acordão: 04/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / TRAMITAÇÃO / REJEIÇÃO DO RECURSO.
Doutrina:
- Figueiredo Dias e Nuno Brandão, Comentário, Tomo I, 2012, comentários ao artigo 132º, § 13;
- Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, 1999, Tomo I, p. 25, 29 e 29 ; Colectânea de Jurisprudência, 1987, IV, p. 52 ; Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2007, p. 79 a 82 ; Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Reimpressão, 2005, p. 291 e 292;
- Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1998, p. 63 e 64.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 400.º, N.º 1, ALÍNEA F) E 420.º, N.º 1, ALÍNEA B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 07/05/2009, IN CJSTJ, ANO XVII, TOMO II, P. 193;
- DE 12/11/2009, PROCESSO N.º 200/06.0JAPTM, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 16/12/2010, PROCESSO N.º 893/05.5GASXL, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 19/01/2011, PROCESSO N.º 421/07.8PCAMD, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 04/05/2011, PROCESSO N.º 626/08.4GAILH, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 26/10/2011, IN CJSTJ, ANO XIX, TOMO III, P. 198;
- DE 11/01/2012, PROCESSO N.º 158/08.0SVLSB, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 21/03/2012, PROCESSO N.º 303/09.9JDLSB, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 27/02/2014, PROCESSO N.º 798/12.3GCBNV.L1.S1;
- DE 20/03/2014, PROCESSO N.º 43/11.9JDLSB.L1.S1.

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

- ACÓRDÃO N.º 186/2013.
Sumário :
"1. No caso de concurso de crimes, sendo pena aplicada tanto a pena singularmente imposta por cada crime como a pena única, a irrecorribilidade prevista na alínea f) do nº 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal afere-se separadamente, por referência às penas singulares e à pena aplicada em cúmulo.
2. A inadmissibilidade do recurso, sendo causa da sua rejeição quando se refira à totalidade do seu objecto, nos termos do artº 420º, nº 1, alínea b), do CPP, determina, quando respeite a alguma ou algumas das questões suscitadas, o não conhecimento dessa parte.
3. Desconhecendo-se o motivo que determinou o arguido a matar a vítima, fica afastada a possibilidade de o classificar, designadamente como fútil ou torpe".
Decisão Texto Integral:

                       Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

            O tribunal de 1ª instância proferiu acórdão decidindo, além do mais que aqui não importa, condenar o arguido/demandado AA:

-a 18 anos de prisão, pela prática de um crime homicídio qualificado, previsto e punido pelos artºs 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea e), do Código Penal;  

-a 1 ano e 8 meses de prisão, pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artºs 203º, nº 1, e 204º, nº 1, alínea a), do CP;

-a 2 anos de prisão, pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artº 256º, nºs 1, alíneas a) e e), 3, do CP;

-a 1 ano de prisão, pela prática de um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artº 254º, nº 1, alínea a), do CP;

-em cúmulo jurídico, na pena única de 19 anos e 6 meses de prisão;

-a pagar, a título de indemnização:

-a quantia de 30 000,00 €, acrescida de juros de mora, a cada um dos requerentes civis BB e CC;

-a quantia de 30 000,00 € a DD; e

-a quantia de 25 000,00 € a EE.

O condenado interpôs recurso para a Relação de Lisboa, que, por acórdão de 30/10/2017, o julgou parcialmente procedente relativamente à condenação pelo crime de homicídio qualificado, com fixação da respectiva pena em 14 anos de prisão, e à pena única, que fixou em 15 anos e 6 meses de prisão, mantendo no mais a decisão de 1ª instância.

Ainda inconformado, o condenado interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo e pedindo nos termos que se transcrevem:

«1. Uma vez fixada a matéria de facto provada, em termos definitivos, o presente recurso, obviamente limitado a matéria de direito, pretende obter provimento apenas quanto à qualificação jurídica desses mesmos factos.

2. Nomeadamente e com mais precisão à consideração da agravação pela alínea e) do nº 2 e 1 do artº 131º do Código Penal - motivo fútil - bem como ao cumulo jurídico das penas parcelares finais.

3. Na verdade, a alteração efectuada pelo douto Tribunal da Relação quanto ao local aonde terão ocorrido ferimentos em ambos os contendores - ponto 11 e 11 c da alteração à matéria de facto - revela uma diferença essencial face à primeira instância, no que diz respeito às circunstâncias e causa da morte.

4. Isto é, no exterior do veículo do ofendido ninguém viu qualquer faca ou qualquer movimentação da sua utilização.

Ao invés, todas as testemunhas concordam que a discussão e distúrbios ocorreram no interior da viatura.

Os vestígios hemáticos encontram-se tanto no exterior como no interior da viatura.

5. O esfaqueamento que causou a morte foi efectuado transversalmente da esquerda para a direita o que, de acordo com o próprio relatório da PJ de fls. 751 e 479 a 481, se considera tal "elemento objectivo como compatível com a defesa de uma agressão por faca, num espaço fechado, no interior da viatura".

6. No douto Acórdão recorrido realça-se que "os ferimentos pericialmente constatados nos membros superiores do arguido somente obtêm explicação no âmbito de uma disputa pela posse daquela (faca) ainda no interior da viatura" - fls. 43 do Acórdão recorrido.

7. Daí que, e prosseguindo no douto Acórdão - não ter "resultado dúvida nenhuma de que a disputa pela posse da faca, cujos golpes acabaram por vitimar o Alcino ocorreram no interior da viatura deste (daí os toques de buzina e os pedidos de socorro da vitima, bem como os ferimentos nas mãos do arguido" fls. A3 do Acórdão recorrido.

8. Mais à frente - fls. 44 verso - vem exarado no douto Acórdão recorrido, que "outrossim não se logrou apurar a quem pertencia a faca que comprovadamente serviu de arma agressora (tanto poderia ter sido transportada de casa para o carro da vítima, como poderia ter sido utilizada por esta como arma de defesa no seu trânsito nocturno como condutor de táxi) nem quem sacou da mesma com intuitos ofensivos".

9. Assim sendo, parece adquirido que, pelo menos, houve disputa pela posse da faca, dentro do espaço fechado da viatura (ferimentos nos membros superiores - mãos - do recorrente).

10. Em consequência, discorda novamente o recorrente da conclusão efectuada nas duas instâncias anteriores de que o homicídio resultou de um motivo fútil e da agravação inerente.

Com efeito, importa nestes casos separar devidamente os factos que motivaram a discussão, dos factos que originaram a morte.

11. Isto é, no que à discussão se refere, concede-se que o motivo era fútil - divergência de € 70,00 num negócio de droga (que não era droga) entre os dois (o recorrente e também o ofendido).

Trata-se, pois, de divergências entre dois candidatos a traficantes (o ofendido era o comprador mas para fornecer, por sua vez, um seu cliente), pelo que o tal MOTIVO da discussão envergonha ambos.

12. Todavia, quando se acaba na disputa pela posse da faca, o motivo atrás mencionado perde a relevância, na medida em que o que releva é a própria SOBREVIVÊNCIA.

No espaço fechado de uma viatura, a superioridade atlética de qualquer dos contendores deixa de ser relevante, uma vez que a posse da faca equilibra a acção de ambos.

13. Admitindo-se que a faca possa ter sido usada inicialmente pelo ofendido - como se fez no Acórdão recorrido - será da mais elementar justiça e a prudência impõe que, pelo menos, não se considere uma eventual defesa perante uma faca como MOTIVO FÚTIL.

14. Isto é, se é certo que a Defesa não pode provar a legitima defesa nem o excesso de legitima defesa (porquanto a única prova que pode oferecer são as declarações do recorrente) parece da MAIS ELEMENTAR PRUDÊNCIA que - tal como refere o Acórdão recorrido a fls. 61 - "em face do desconhecimento de qual o sujeito que transportou a faca para o local do crime e se houve ou não luta pela posse da mesma, designadamente, se a vítima tentou primeiramente agredir o arguido e se este posteriormente logrou retirar aquela arma à vítima, ferindo-se em consequência nos membros superiores" - se não deve, pelo menos, condenar pela agravação da alínea e) do nº 2 do arte 132º do Cód. Penal.

15. Na medida em que, desconhecendo-se os factos acima descritos também se terá que desconhecer se houve ou não legítima defesa ou excesso de legítima defesa, valendo aqui o princípio "in dúbio pro reo".

16. Acresce que os actos do recorrente que se seguiram à verificação da morte permitem, isso sim, concluir que o mesmo ficou perturbado psiquicamente, próximo mesmo do estado de choque.

17. Na verdade, um assassino frio e implacável nunca teria reagido com um passeio de 300 Km para o norte do país com um cadáver nauseabundo na bagageira.

As regras da experiencia comum indicam; isso sim, que o tal assassino frio e implacável, se veria livre do cadáver na primeira oportunidade.

18. E a primeira oportunidade estaria logo à saída de Lisboa num qualquer ermo, numa qualquer floresta dos subúrbios, enterrado ou debaixo do matagal.

19. E um assassino frio e implacável não usaria o veículo do ofendido sujo de sangue por todo o lado, fazendo-o seu e com intenção de o continuar a usar como se de seu se tratasse.

Pois não é verdade que foi graças a continuar com o veículo do ofendido que o recorrente foi descoberto?     

E descoberto de uma forma, se não infantil, pelo menos de demente.

20. Sendo ainda o recorrente de nacionalidade venezuelana e portuguesa aquilo que o assassino frio e implacável faria seria dirigir-se para Espanha (e não para norte) e ali meter-se num avião para a Venezuela, onde se acha a sua família.

21. Para além de tudo isto, a caracterização de personalidade e caracter do recorrente que se retira do relatório social e matéria de facto provada nos pontos 44 a 64 do Acórdão e primeira instância, não inculca a ideia de um assassino frio e implacável que mata por motivo fútil.

22. Matéria essa de factos provados que não inculcam a ideia de um assassino frio e implacável.

23. Tal como os antecedentes criminais referidos nos pontos 65 e 66 do Acórdão de primeira instância, permitem verificar a pequeníssima gravidade dos crimes ali mencionados - desobediência e tráfico para consumo, ambos extintos com o pagamento de multa e o trabalho a favor da comunidade.

24. Antecedentes criminais e características de personalidade, carácter e vivência exterior que permitem indicar o presente crime de homicídio como um mero caso pontual e que não se repetirá.

25. Ainda quanto à questão do furto do veículo, continua a não ser tão simples assim a condenação por "furtum rei".

26. Na verdade, o facto de o recorrente ter substituído as placas de matrícula não permite, por si só, a conclusão pela existência de intenção apropriativa.

Na medida em que tal substituição de placas visaria tão-somente servir uma utilização mais duradoura - concretamente, uma ocultação de cadáver até à sua entrega às autoridades, juntamente com a restituição do veículo.

27. Sendo certo que nem o tempo (menos de 24 horas) nem a distância percorrida (300 Km) relevam para afastar a intenção de mera utilização, achando-nos "ainda em pleno "furtum usus".

Note-se que seria de todo em todo enorme estupidez o simples pensamento de apropriação definitiva do veículo, intrinsecamente ligado a um homicídio.

28. Aliás, as regras da experiência comum e a mera lógica conduzem, isso sim, a conferir credibilidade às declarações do recorrente, segundo os quais o mesmo pretendia tão-somente ganhar algum tempo (e encontrar-se com a namorada a residir no norte de Portugal) antes de se entregar, COM VEÍCULO E CADÁVER ÀS AUTORIDADES.

29. Porquanto, repete-se, se a sua intenção fosse a de se eximir à acção da Justiça seria mais lógico, obviamente, desfazer-se do cadáver e veículo. (o que não fez durante 24 horas).

30. Assim sendo, a Defesa, com o devido respeito por orientação diferente, conclui e pretende que o recorrente seja condenado por "furtum usus" e não "furtum rei".

31. O recorrente pretende pois que seja condenado por homicídio simples, p.p.p. artº 131º do Cód. Penal, em pena próxima do seu limite mínimo, não superior a 10 anos de prisão.

32. O recorrente pretende ainda que seja condenado pelo crime de furto de uso de veículo p.p.p. artº 208º do Cód Penal em pena não superior a 6 meses.

33. Em qualquer dos casos o recorrente pretende ser condenado, em cúmulo jurídico de todas as penas parcelares, em pena única não superior a 11 anos de prisão.

Violaram-se as disposições

- art° 131° e 132° nº 1 e 2 alínea e) do Cód. Penal, porquanto o motivo do homicídio reconduz-se a uma luta pela sobrevivência que degenera em ferimentos mortais não se equacionando, pois, qualquer motivo torpe, logo, crime não qualificado.

- art° 203° nº 1 e 204° nº 1 al. a) e nº 2 al. f) do Cód. Penal, porquanto os factos preenchem, apenas o furto de uso de veiculo p.p.p. art° 208° do Cód. Penal.

- art° 71 ° do Cód. Penal, na medida em que se trata de homicídio na sua forma simples e não qualificada para o qual se mostra adequada uma pena não superior a 10 anos de prisão.

Sendo certo que as penas fixadas no douto Acórdão excedem em muito o grau de culpa.

Nestes termos deve o presente recurso obter provimento, condenando-se o recorrente pela prática de homicídio simples na pena de 10 anos de prisão, e pela prática de furto de uso de veículo na pena de 6 meses.

Em cúmulo jurídico, solicita-se a sua condenação em pena não superior a 11 anos de prisão».

O recurso foi admitido.

Respondendo, o MP na instância recorrida defendeu a sua improcedência.

No Supremo Tribunal de Justiça, o MP pronunciou-se no mesmo sentido.

Foi cumprido o artº 417º, nº 2, do CPP.

Não foi requerida a realização de audiência.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação:

Em 1ª instância considerararam-se provados os seguintes factos (transcrição):

1. Em data não concretamente apurada, mas situada no mês de Setembro de 2015, o arguido AA travou conhecimento com FF, na sequência de lhe ter solicitado e de este ter aceitado prestar-lhe um serviço de transporte no respectivo táxi.

2. Desde essa data, o arguido passou a recorrer com frequência não apurada, sobretudo durante a noite, nas deslocações entre a sua casa e estabelecimentos de diversão nocturna, aos serviços de transporte em táxi prestados por FF.

3. Na execução desses serviços, ... usava habitualmente o táxi de que era proprietário, da marca SKODA, modelo Octávia, matrícula ...-ML-..., com o alvará nº 954, emitido pelo IMTT e, bem assim, a sua viatura particular da marca Mercedes, modelo E 220 cdi, com a matrícula ...-DF-... e o número de quadro ....

4. Em data não concretamente apurada do mês de Novembro e anterior ao dia 07.11.2015, em local não concretamente apurado, o arguido encontrou-se com FF, que lhe havia solicitado cocaína para consumo de um cliente, e entregou-lhe farinha, em vez do estupefaciente combinado, recebendo em contrapartida pelo menos 70 (setenta) euros em numerário.

5. Posteriormente, FF contactou telefonicamente o arguido AA, dizendo-lhe que este o tinha enganado na venda do produto e que queria o dinheiro de volta.

6. No dia 7 de Novembro de 2015, cerca das 4 horas, o arguido AA encontrava-se no interior da viatura automóvel de marca Mercedes, modelo E 220 cdi, matrícula ...-DF-..., pertença de FF, juntamente com este último.

7. A viatura estava imobilizada sobre a passadeira de peões existente na Rua ..., entre a estação da CP de Massamá-Tercena e o café denominado "...", virada para poente, encontrando-se o arguido e FF nos lugares da frente.

8. A dada altura, no interior da viatura, FF e o arguido iniciaram uma discussão relacionada com o facto de o arguido ter vendido àquele farinha em vez de cocaína e FF pretender que o arguido lhe devolvesse o dinheiro que tinha pago por tal produto.

9. No decurso daquela discussão o arguido AA puxou FF para o exterior da viatura automóvel, do lado do condutor e encostou-o à porta traseira desse mesmo lado, agarrando-o com a mão esquerda e desferiu-lhe vários socos, de punho fechado, com a mão direita, na respectiva face.

10. A determinada altura, no exterior da viatura, o arguido agarrou e empunhou uma faca de cozinha com cabo em madeira, com o comprimento total de 23,5 cm, sendo 12 cm de lâmina e 11,5 cm de cabo, que ali se encontrava e, fazendo uso da mesma, direccionou-a a AA atingindo-o com a faca que empunhava, no tórax, nos braços e nas mãos, causando-lhe cortes profundos nos referidos membros superiores.

11. Com o mesmo instrumento, e ainda no exterior da viatura, o arguido AA espetou a aludida faca, por três vezes, no pescoço de FF, arrastando a respectiva lâmina por forma a cortá-lo nessa zona do corpo.

12. A determinada altura, e no decurso das agressões, FF caiu ao chão.

13. Quando FF já se encontrava inanimado, o arguido abriu a porta traseira do lado esquerdo da viatura, agarrou naquele e atirou-o para o banco traseiro.

14. Após alguns momentos, o arguido abandonou o local conduzindo a viatura automóvel de matrícula ...-DF-..., que tinha um valor não inferior a €11839 (onze mil oitocentos e trinta e nove euros), em direcção à sua residência, sendo que os pés de FF ficaram fora do carro e a porta traseira parcialmente aberta.

15. Em consequência da conduta do arguido AA, FF sofreu as seguintes lesões:

-ao nível do pescoço (hábito externo): Três soluções de continuidade, localizadas na face anterior do pescoço ao nível da cartilagem tiroideia, de bordos regulares, infiltrados de sangue. A mais superior apresenta 10.5 cm de comprimento e a sua extremidade direita apresenta-se em ângulo agudo, com uma cauda de 0.4 cm, sendo também mais profunda na sua metade direita, apresentando orientação oblíqua da esquerda para a direita e de cima para baixo. A mediana, separada da superior por uma ponte de tecido constituída de pele e tecido celular subcutâneo com 0.3 cm de altura na sua extremidade direita e 1,5 cm na sua extremidade esquerda, apresenta 11 cm de comprimento e ambas as suas extremidades se apresentam em ângulo agudo, com uma cauda de 2.5 cm à esquerda e 1.5 cm à direita, sendo esta mesma cauda mais profunda à direita, de orientação oblíqua da esquerda para a direita e ligeiramente de baixo para cima. A mais inferior, localizada à direita da linha média, apresenta 2.5 cm de comprimento e a sua extremidade externa apresenta-se em ângulo agudo, com uma cauda de 0,5 cm, sendo mais profunda na sua metade medial e apresenta orientação oblíqua da esquerda para a direita e ligeiramente de cima para baixo, encontrando-se unida pela sua extremidade medial ao terço médio da solução de continuidade mediana por uma escoriação linear com 2 cm de comprimento;

-ao nível do pescoço [hábito interno): Tecido celular subcutâneo: Soluções de continuidade, de topografia e características concordantes com aquelas descritas no hábito externo, com infiltração sanguínea adjacente; músculos: Secção das fibras musculares do platisma, de topografia concordante com as lesões do hábito externo. Secção completa bilateral dos músculos esterno-hioideu e parcial dos músculos esternotiroideus e esternocleidomastoideus, com infiltração sanguínea adjacente; vasos e nervos: Secção completa bilateral da veia jugular anterior e secção parcial da veia jugular interna direita; estruturas cartilagíneas: Solução de continuidade de bordos regulares, localizada na extremidade superior da cartilagem tiroideia, aproximadamente arciforme, de concavidade supero-interna; laringe e traqueia: solução de continuidade localizada ao nível da extremidade superior da cartilagem tiroideia e membrana tiro-hioideia, de bordos regulares, infiltrados de sangue;

-ao nível do tórax: múltiplas escoriações avermelhadas, com infiltração sanguínea dos seus bordos localizadas fia parede anterior do tórax, irregulares, excepto uma, que se apresenta linear, de bordos regulares, com 2 cm de comprimento;

-ao nível do membro superior direito: escoriação linear, avermelhada, de bordos regulares, infiltrados de sangue, aproximadamente horizontal, com 2 cm de comprimento, localizada no terço médio da face antero-lateral do braço; três escoriações lineares, avermelhadas, de bordos regulares, infiltrados de sangue, localizadas no terço distai da face interna do antebraço, de orientação vertical e 1 cm de comprimento, no bordo interno do dorso da mão, oblíqua, de orientação infero-lateral, com 3 cm de comprimento e no dorso da mão, com 0,6 cm de maior eixo; escoriações puntiformes avermelhadas localizadas na face dorsal da Ia falange do 2° dedo;

-ao nível do membro superior esquerdo: duas escoriações, avermelhadas, de forma arredondada localizadas na face anterior do braço, uma localizada no terço superior, com 0,3 cm de maior eixo e uma localizada no terço inferior com 0,5 cm de maior eixo; solução de continuidade, linear, de bordos regulares, infiltrados de sangue, localizada na face póstero-externa do terço superior do antebraço esquerdo, com 7 cm de comprimento, de orientação oblíqua ligeiramente da direita para a esquerda e de cima para baixo, visualizando-se tecido celular subcutâneo e tecido muscular; solução de continuidade linear, de bordos regulares e infiltrados de sangue, localizada na posterior do terço médio do antebraço, com 7,2 cm de comprimento, de orientação oblíqua ligeiramente da esquerda para a direita e de cima para baixo, visualizando-se tecido celular subcutâneo e tecido muscular; solução de continuidade tangencial avermelhada, localizada no terço médio da face posterior do antebraço, com 3 cm por 1 cm de maiores dimensões, de orientação oblíqua da esquerda para a direita e de cima para baixo; escoriação avermelhada irregular, com infiltração sanguínea dos seus bordos, localizada na face dorsal da 1ª articulação interfalângica do 3º dedo, com 1,5 cm de maior eixo; solução de continuidade linear, de bordos regulares, infiltrados de sangue, com 2 cm de comprimento, localizada na face interna da falange distal do 1º dedo.

16. As lesões traumáticas cervicais descritas acima (na zona do pescoço) foram causa da morte de FF, ocorrida poucos instantes após a produção dessas lesões.

17. No decurso do envolvimento físico que se gerou entre o arguido AA e FF, por forma não concretamente apurada, o arguido sofreu lesões, designadamente:

-ao nível do membro superior direito: Na mão, na face medial e palmar do polegar, 4 feridas: a mais próxima junto da articulação metacarpo-falângica, arciforme de concavidade superior, com ligeira perda de substância e com sinais inflamatórios, medindo 2 cm de comprimento e de bordos e pontas afiladas; outra ferida na falange proximal, linear, horizontal, com 1 cm de comprimento e de bordos e pontas afiladas; outras duas feridas na falange distal, lineares, horizontais, cada uma com 0,5 cm de comprimento e de bordos e pontas afiladas;

-ao nível do membro superior esquerdo: Na mão, sobre a região metacarpofalângica do 3º dedo, ferida com sinais inflamatórios, irregular, com alguma diastáse dos bordos, material de granulação e sinais inflamatórios, de maior eixo horizontal, com 1,5 x 0,5 cm de maiores dimensões; na face dorsal da la falange do 3º dedo, área de ferida com crosta acastanhada, de bordos e pontas afiladas, horizontal, com 1 cm de comprimento; na face dorsal da 2ª falange do 4º dedo, ferida com crosta acastanhada, de bordos e pontas afiladas, de maior eixo oblíquo para baixo e para dentro, com 0,5 cm de comprimento; Na face medial da 3ª falange do 5º dedo, com discreta diastáse dos bordos, maior profundidade de cerca de 0,3 cm, linear, vertical, com 1,5 cm de comprimento.

18. Em momento posterior e em local não concretamente apurados, o arguido passou o corpo de FF, já cadáver, para o porta-bagagens do veículo de matrícula ...-DF-....

19. Seguidamente, o arguido deslocou-se para a sua residência, sita no Largo ..., onde se manteve pelo menos até às 12 horas e 50 minutos desse mesmo dia, período em que aproveitou para se limpar e mudar de roupa.

20. Pelas 0 horas e 41 minutos do dia 8 de Novembro de 2015, fazendo uso da viatura Mercedes, de matrícula ...-DF-... o arguido AA deslocou-se até à Praça da Alegria, em Lisboa e, já nesse local, abeirou-se da viatura de marca Fiat, modelo Punto, matrícula ...-0N-... que ali se encontrava parqueada e com o auxílio de uma chave de fendas, retirou da mesma as respectivas placas de matrícula, levando-as consigo.

21. Neste seguimento o arguido retirou ao veículo Mercedes as respectivas placas de matrícula ...-DF-... das quais se desfez e colocou no seu lugar as placas de que se apropriara, com os dizeres "...-ON-...".

22. Subsequentemente, ao volante desse veículo e com as referidas placas de matrícula nele apostas, o arguido iniciou viagem em direcção ao Norte do País, mantendo o cadáver de FF na bagageira do carro.

23. Pelas 8 horas e 45 minutos do dia 8 de Novembro de 2015, o arguido chegou à localidade de Valongo e dirigiu-se ao estabelecimento comercial denominado "Intermarché", sito na Travessa António Augusto Castro Paupério, onde estacionou a viatura Mercedes no respectivo parque de estacionamento exterior.

24. Em seguida, entrou nas instalações do "Intermarché" e dirigiu-se à loja de venda de flores denominada "..." e aproveitando o facto de não estar ali nenhum funcionário, retirou de cima do respectivo balcão uma vela em forma de rosa e base em pedra com a inscrição "Com Amor" que levou consigo, sem a pagar, para o interior da viatura.

25. Após, o arguido regressou ao interior das instalações do "Intermarché", dirigindo-se à área do supermercado.

26. Nesse local, retirou dos expositores uma embalagem de salada russa com atum, um gel lubrificante, um kinder surpresa, uma embalagem de tintura de iodo e uma embalagem de mortadela, tudo no valor total de € 15,54 (quinze euros e cinquenta e quatro cêntimos) e dirigiu-se, em seguida, para o exterior da área do supermercado, levando-os consigo e passando pelas caixas registadoras sem os mostrar e pagar.

27. Nesse seguimento o arguido foi abordado por agentes da Polícia de Segurança Pública que o acompanharam até junto da viatura Mercedes a fim de recuperarem a vela que momentos antes aquele subtraíra da loja "...".

28. Por se aperceberam da existência de manchas de sangue no interior da viatura Mercedes e de um odor desagradável proveniente do seu interior, os agentes da Polícia de Segurança Pública abriram a bagageira da mesma, aí encontrando o cadáver de FF, dando de imediato ordem de detenção a AA.

29. Ao actuar conforme descrito, o arguido AA agiu com o propósito concretizado de provocar a morte a FF, bem sabendo que se lhe espetasse a lâmina da faca que empunhava na zona do pescoço, como efectivamente fez, poderia atingir estruturas orgânicas e vasos sanguíneos essenciais à vida deste e assim provocar-lhe a morte, como sucedeu.

30. Quis ainda o arguido AA fazer seu o veículo automóvel de marca Mercedes, modelo E 220 cdi, com a matrícula ...-DF-... e o número de quadro ..., de que se apoderou, bem sabendo que o mesmo não lhe pertencia e que tinha um valor comercial superior a € 5100 (cinco mil e cem euros).

31. Sabia o arguido que ao agir da forma descrita o fazia contra a vontade e em prejuízo do legítimo proprietário e possuidor do referido veículo, neste caso FF.

32. Ao substituir as placas de matrícula com os dizeres "...-DF-..." que estavam atribuídas ao referido veículo da marca Mercedes, pelas placas de matrícula com os dizeres "...-ON-..." atribuídas a outra viatura, e ao circular nele com estas últimas, conforme descrito, o arguido agiu com o propósito de criar a aparência de que a matrícula "...-ON-..." pertencia à viatura que conduzia, o que sabia não corresponder à verdade.

33. Agiu dessa forma com o propósito de evitar ser localizado pelas forças policiais, bem sabendo que ao apor na viatura um elemento identificativo que não correspondia à verdade, punha em causa a fé e credibilidade públicas de que são merecedoras as matrículas enquanto sinais identificativos dos veículos e que, por causa disso, causava prejuízo a terceiros e ao Estado e, mesmo assim, decidiu fazê-lo.

34. Nas condutas descritas, quis também o arguido esconder o cadáver de ..., transportando-o pelos locais por onde circulou, e desfazer-se do mesmo em local distante daquele onde lhe provocara a morte, sabendo que o fazia sem autorização de quem de direito.

35. Agiu de tal forma a fim de, uma vez mais, ocultar o crime que cometera e furtar-se à acção da justiça.

36. O arguido AA agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, conhecendo o carácter proibido e punido por lei de todas as suas condutas.

37. BB e CC são filhos de FF.

38. A morte de FF nas circunstâncias supra descritas e a privação repentina da presença do pai, causou a BB e CC angústia, perturbação, tristeza e saudade.

39. BB e CC eram apegados ao pai, beneficiando da sua presença e conselhos.

40. FF era uma pessoa querida na comunidade em que vivia e na congregação religiosa que frequentava, sendo visto como uma pessoa prestável.

41. DD, nascido a ....2005 e EE, nascido a ....1999, são filhos de FF, que assumia a respectiva guarda à data da sua morte e de quem dependiam, em exclusivo, financeiramente.

42. Na sequência da morte de FF, DD e EE ficaram sem meios de subsistência, sendo as suas despesas asseguradas, com dificuldade por uma tia, GG, reformada, que assumiu a respectiva guarda e por um dos irmãos.

43. A mãe de DD e de EE, não lhes presta alimentos e mantém contacto com os mesmos aos fins-de-semana.

44. AA é natural da Venezuela, filho de emigrantes portugueses, sendo o mais velho de uma fratria de três.

45. A dinâmica familiar era pautada por um relacionamento afectivo e harmonioso entre os descendentes e a progenitora e mais distanciado com o progenitor, que adoptava uma postura austera e mais distante emocionalmente.

46. O progenitor desenvolvia a profissão de engenheiro e a mãe estava encarregue da gestão doméstica, recaindo ainda sobre si um papel de maior relevo na educação dos descendentes.

47. A nível económico, apesar do progenitor ser o único sustento do agregado, não existiam preocupações económicas.

48. Ao nível escolar, concluiu o equivalente ao 11º ano de escolaridade na Venezuela, num percurso regular e sem incidências de relevo.

49. Frequentou o ensino superior, contudo não deu continuidade aos estudos em virtude de ter dado preferência ao início de uma actividade profissional como motorista com o progenitor, na empresa de que este era proprietário, ali permanecendo cerca de dois anos.

50. Aos vinte anos de idade veio para Portugal, tendo retomado os estudos com o objectivo de reingressar no ensino superior; matriculou-se novamente na escola, tendo completado o ensino secundário, mas não deu continuidade ao projecto, privilegiando a actividade profissional.

51. A par dos estudos, AA trabalhou no restaurante Mac Donalds durante um ano.

52. Posteriormente veio a desenvolver outras actividades profissionais de forma regular, tais como monitor de ginásio e empregado de bar.

53. A última profissão que detinha seria a de "stripper" em bares nocturnos.

54. Ocasionalmente desempenhava funções de segurança.

55. No domínio afectivo manteve um relacionamento mais significativo com uma cidadã brasileira, sua colega na actividade de "stripper", acabando por se separar da companheira passados oitos anos de vivência em comum.

56. Manteve ainda dois outros relacionamentos de relevo, que duraram alguns meses, tendo mantido a amizade com as duas ex-namoradas que de quem recebe apoio.

57. A nível da saúde deu início ao consumo de substâncias aditivas há cerca de oito anos, nomeadamente cocaína, MDA (metifenodíoxianfetamina) e esteróides em contexto texto de convívio nocturno.

58. Esteve internado numa clínica na Venezuela com a finalidade de se desintoxicar, contudo o referido internamento não teve os efeitos desejados, tendo vindo a recair novamente em consumos aditivos.

59. No que respeita à ocupação dos seus tempos livres, convivia com amigos e frequentava um ginásio visando a manutenção da boa forma física e imagem.

60. À data da sua prisão o arguido residia sozinho em zona ordeira nos subúrbios de Lisboa, mantendo contactos telefónicos com a progenitora e um dos irmãos, com os quais mantém uma relação afectuosa e próxima.

61. Ao nível das características pessoais, o arguido evidencia uma postura adequada e colaborante, alguma capacidade de reconhecer e identificar emoções positivas e negativas em si e nos outros, denotando ainda boa capacidade de comunicação.

62. AA encontra-se preso no Estabelecimento Prisional de Lisboa à ordem dos presentes autos, apresentando um comportamento adequado e uma postura adaptada ao meio institucional, tendo usufruído de visitas de duas ex-namoradas e de amigos.

63. Ao nível dos consumos aditivos aparenta encontrar-se abstinente, encontrando-se a ser acompanhado nas consultas de psicologia no estabelecimento prisional.

64. A família nuclear do arguido reside, à data do julgamento, na Venezuela, projectando, pelo menos a progenitora, voltar a viver em Portugal num futuro próximo.

65. O arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 18.02.2008, pela prática em 30.10.2007, de um crime de desobediência, numa pena de 90 dias de multa à razão diária de € 45. A pena foi declarada extinta pelo cumprimento. [P. Abreviado 418/07.8 GGLSB do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa].

66. O arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 05.05.2009, pela prática em 19.02.2008, de um crime de tráfico para consumo, numa pena de 80 dias de multa à razão diária de € 7. A pena foi substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade e declarada extinta pelo cumprimento. [PCC 109/08.2PQLSB da 1ª Secção Criminal da Instância Central de Lisboa].

E como não provado que (transcrição):

a) o arguido tenha conhecido FF, concretamente, nas últimas semanas do mês de Setembro de 2015 e que o arguido exercesse esporadicamente as funções de segurança em estabelecimentos de diversão nocturna;

b) os factos referidos em 4 tenham ocorrido, concretamente, nos 4 primeiros dias do mês de Novembro de 2015;

c) na ocasião referida em 4, FF se fizesse acompanhar de um cliente de nacionalidade polaca, de nome HH e que era a este indivíduo que se destinava a cocaína referida;

d) a discussão referida em 9 estivesse relacionada com a recusa de FF em solver uma dívida de valor não superior a 100 (cem) euros que o arguido entendia que aquele tinha para consigo, relacionada com a aquisição e consumo de produto estupefaciente;

e) no interior da viatura o arguido tenha agredido FF, desferindo-lhe diversos socos, de punho fechado, no corpo e na face;

f) a determinada altura FF se tenha conseguido introduzir novamente no interior da viatura pela porta do condutor, sendo seguido pelo arguido;

g) o referido em 11 tenha ocorrido no interior da viatura e que após tais eventos o arguido tenha puxado novamente FF para fora do carro;

h) quando FF caiu ao chão, o arguido lhe tenha ainda desferido diversos pontapés pelo corpo;

i) o arguido se desfez do telemóvel de FF;

j) a vela referida 25 fosse uma vela aromática e que o arguido pretendesse dissimular o odor do cadáver de FF que já se começava a sentir com a mesma;

k) o arguido agiu movido por sentimentos de vingança, com o objectivo de castigar FF pelo facto de o mesmo não aceitar pagar-lhe a quantia não superior a 100 (cem) euros, que o arguido entendia que por ele lhe era devida.

A Relação alterou esta decisão de 1ª instância afirmando:

-«Na redacção da matéria de facto constante dos artigos 10º e 11º da matéria de facto dada como provada passa a constar que “os factos ali descritos ocorreram no interior da viatura da vítima”.

-As alíneas e) (parcialmente), f) e g) dos factos não provados, passam a considerar-se provados com a seguinte redacção:

11º-A – No interior da viatura, o arguido e a vítima envolveram-se em confronto físico.

11º -B – A determinada altura o FF conseguiu introduzir-se novamente no interior da viatura pela porta do condutor, sendo seguido pelo arguido.

11º-C – O referido em 11 ocorreu no interior da viatura, após o que o arguido puxou o FF para fora do carro.

Mantem-se como não provado o facto expresso na alínea e) agora com o seguinte teor: “o referido em 11º-A tenha consistido em desferimento pelo arguido de diversos socos no corpo e na face do FF».

Conhecendo:

1. A Relação alterou a decisão de facto proferida em 1ª instância, na parte relativa ao crime de homicídio, e, em sede de direito, manteve a sua qualificação, pela via da alínea e) do nº 2 do artº 132º do CP, considerando ter existido motivo fútil. Relativamente aos outros crimes confirmou a decisão de 1ª instância, nos seus precisos termos.

O recorrente pretende que: a) o homicídio não é qualificado, designadamente pela referida circunstância, devendo ser punido com pena de 10 anos de prisão; b) a subtracção do automóvel integra, não um crime de furto qualificado do artº 204º, nº 1, alínea a), mas um crime de furto do uso, p. e p. pelo artº 208º, nº 1, do CP, pelo qual deve aplicar-se a pena de 6 meses de prisão; c) em cúmulo jurídico, deve fixar-se pena única não superior a 11 anos de prisão.

Nos termos do artº 400º, nº 1, alínea f), do CPP, «não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos».

No caso de concurso de crimes, sendo pena aplicada tanto a pena singularmente imposta por cada crime como a pena única, a irrecorribilidade prevista naquela norma afere-se separadamente, por referência às penas singulares e à pena aplicada em cúmulo. É neste sentido que o Supremo Tribunal de Justiça vem decidindo uniformemente. (cf., por exemplo, acórdãos de 07/05/2009, CJ, Acórdãos do STJ, Ano XVII, Tomo II, pág. 193; de 12/11/2009, proc. 200/06.0JAPTM; de 16/12/2010, proc. 893/05.5GASXL; de 19/01/2011, proc. 421/07.8PCAMD; de 04/05/2011, proc. 626/08.4GAILH; de 11/01/2012, proc. 158/08.0SVLSB; de 21/03/2012, proc. 303/09.9JDLSB, disponíveis em www.dgsi.pt; de 26/10/2011, CJ, Acórdãos do STJ, Ano XIX, Tomo III, pág. 198; de 27/02/2014, proc. 798/12.3GCBNV.L1.S1; e de 20/03/2014, proc. 43/11.9JDLSB.L1.S1, ambos da 5ª secção).

Outro entendimento nestes casos levaria a que, quando os vários crimes em concurso fossem apreciados na mesma decisão, poderiam ser reexaminadas em recurso as questões relativas aos ilícitos punidos singularmente com pena de prisão não superior a 8 anos, com confirmação da Relação, o que estaria vedado num caso idêntico de concurso de conhecimento superveniente em que cada crime houvesse sido julgado num diferente processo, sendo de questionar se aí não haveria violação do princípio da igualdade.

E o Tribunal Constitucional, no acórdão nº 186/2013, do plenário, não viu nesta interpretação da norma desconformidade com preceitos constitucionais.

Sendo, como se viu, confirmatório da decisão de 1ª instância relativamente à condenação pelo crime de furto qualificado, o acórdão da Relação, nessa parte, que ficou inalterada, não admite recurso.

A inadmissibilidade do recurso, sendo causa da sua rejeição quando se refira à totalidade do seu objecto, nos termos do artº 420º, nº 1, alínea b), do CPP, determina, quando respeite a alguma ou algumas das questões suscitadas, o não conhecimento dessa parte.

Ainda que assim não fosse, em relação à pretensão de condenação, não por furto qualificado, mas por furto do uso, sempre o recurso seria de rejeitar, por manifesta improcedência, uma vez que assenta na alegação de que, ao contrário do decidido pelas instâncias, não se provou a intenção de apropriação, matéria que, dizendo respeito à decisão de facto, está subtraída ao conhecimento do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artº 434º do CPP.

Só se conhecerá, pois, das questões relativas ao crime de homicídio e à determinação da pena única.

2. Nos termos do nº 1 do artº 132º, o crime de homicídio é qualificado se «a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade», enumerando-se, exemplificativamente, no nº 2 circunstâncias susceptíveis de revelar essa especial censurabilidade ou perversidade. Como ensina Figueiredo Dias, o método seguido pelo legislador em matéria de qualificação do homicídio consiste na “combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica chamada dos exemplos-padrão” (Comentário Conimbricense do Código Penal, 1999, Tomo I, página 25). Ainda nas palavras do mesmo autor, a qualificação tem “a ver com a maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta e querida pela ordem jurídica, em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática de um homicídio simples” (Colectânea de Jurisprudência, 1987, IV, página 52).”

Para Teresa Serra, haverá especial censurabilidade quando “as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores”, podendo afirmar-se que a especial censurabilidade se refere às “componentes da culpa relativas ao facto”, fundando-se, pois, “naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude”. E existirá especial perversidade quando se esteja perante “uma atitude profundamente rejeitável”, no sentido de “constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade”, estando aqui em causa as “componentes da culpa relativas ao agente” (Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1998, páginas 63 e 64).

Na mesma linha de pensamento, Figueiredo Dias entende que se pretenderá “imputar à ‘especial censurabilidade’ aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à ‘especial perversidade’ aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas” (Comentário, 1999, Tomo I, página 29)

Do que se trata é, pois, de uma censurabilidade ou perversidade acrescida em relação à perversidade ou censurabilidade que já tem de estar presente no homicídio simples. É nessa diferença de grau, nessa especial maior culpa, que encontra fundamento a qualificação do homicídio.

A verificação de qualquer das circunstâncias exemplificadas no nº 2 constitui só um indício da existência da especial censurabilidade ou perversidade, podendo negar-se este maior grau de culpa, apesar da presença de uma das referidas circunstâncias, e concluir-se pela especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, pela qualificação do homicídio, apesar de se negar a presença de qualquer dessas circunstâncias, se ocorrer outra valorativamente análoga, como também refere Figueiredo Dias:

“(…) a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a ‘especial censurabilidade ou perversidade’ do agente referida no nº 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos, uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no nº 2. Elementos estes sim, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; e cuja não verificação, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos (…) aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador” (Comentário, Tomo I, 1999, página 26).

Por outro lado, entende-se que “a existência do tipo de culpa em que assenta a qualificação do homicídio deve supor uma avaliação conjunta dos factos integrantes do exemplo-padrão e das características relevantes do agente, só dessa avaliação conjunta – dessa ‘imagem global do facto’ – podendo resultar fundamentada a conclusão sobre a verificação ou não da especial censurabilidade ou perversidade” (cf. Figueiredo Dias/Nuno Brandão, Comentário, Tomo I, 2012, comentários ao artigo 132º, § 13).

O tribunal de 1ª instância considerou o homicídio qualificado, nos termos do artº 132º, nºs 1 e 2, alínea e) [«… a circunstância de o agente ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por motivo torpe ou fútil»], na vertente do motivo que terá determinado a conduta do arguido, não se percebendo se teve em vista o motivo torpe ou fútil, como se vê da passagem da decisão que se refere a este ponto:

“No que interessa à economia da presente decisão [já que não estamos manifestamente perante uma actuação determinada por avidez, prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou satisfação do instinto sexual], o motivo torpe ou fútil significa que o motivo da actuação, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, de tal modo que surge como produto de um profundo desprezo pela vida humana [Jorge de Figueiredo Dias, obra citada, pág. 32].

Revertendo ao caso em análise, considera-se que se mostra preenchida a aludida agravante.

Com efeito, a motivação do arguido para causar a morte a FF – o facto de este pretender que o arguido lhe devolvesse o dinheiro – cerca de 70 euros – que havia pago no âmbito de um negócio de estupefaciente em que o arguido o enganara – revela uma especial censurabilidade por parte do arguido, na acepção supra referida”.

Por sua vez, a Relação relativamente a esta questão considerou:

“(…) na al. e) do nº 2 do cit. art. 132º elege-se como circunstância agravativa o motivo fútil, ou seja, aquele que não tem  relevo, sem importância, que não chega a ser motivo, que não pode sequer razoavelmente explicar, e muito menos justificar a conduta. Trata-se de um motivo notoriamente desproporcionado para ser sequer um começo de explicação da conduta. Trata-se de um motivo que, avaliadas as concepções ética e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana (…).

Acontece que o arguido actuou destemperadamente da forma descrita, quando já não necessitava de actuar letalmente, tendo o opositor desarmado e sem outras possibilidades de defesa. De resto, as testemunhas são unânimes ao afirmarem que a vítima apenas procurava fugir do arguido ao mesmo tempo que gritava por socorro. Acresce que, como também já referimos, o número de golpes desferidos com a faca, a sua intensidade e regiões atingidas, mormente o pescoço, acentuam a especial censurabilidade do comportamento do recorrente, devendo manter-se a qualificação do crime de homicídio pelo art. 132º, 2, e), C. Pen.”.

Assim, a 1ª instância teve como certa a qualificação do homicídio, pela via do motivo da actuação do arguido, o qual seria torpe ou fútil e estaria em ele ter matado a vítima por esta lhe exigir a devolução do valor monetário – 70 € – que lhe entregara no âmbito de um negócio de droga em que fora enganada.

E a Relação confirmou a qualificação, também pela via do motivo, que considerou fútil, ainda que colando-lhe a característica de pesada repugnância, mais adequada a motivo torpe. Para esse tribunal, a futilidade do motivo concretizou-se na circunstância de o arguido ter actuado letalmente quando já não tinha necessidade de o fazer, em virtude de a vítima estar desarmada e sem possibilidade de se defender. Serve-se também do conteúdo de um meio de prova, não reflectido na matéria de facto dada como provada: “as testemunhas são unânimes ao afirmarem que a vítima apenas procurava fugir”. E fala ainda a este propósito no número de golpes desferidos com a faca e nas regiões atingidas.

Provou-se que:

O arguido e a vítima encontravam-se no interior do automóvel desta. A dada altura, iniciaram uma discussão relacionada com o facto de o arguido ter vendido à vítima farinha em vez de cocaína e a vítima pretender que o arguido lhe devolvesse o dinheiro que tinha pago por tal produto. Envolveram-se aí em confronto físico.

O arguido puxou a vítima para o exterior da viatura, onde lhe desferiu vários socos, atingindo-a na face.

A vítima conseguiu introduzir-se de novo no automóvel, sendo seguida pelo arguido. No interior do automóvel, o arguido agarrou e empunhou uma faca de cozinha, que ali se encontrava, e com ela desferiu vários golpes sobre a vítima, atingindo-a no tórax, nos braços e nas mãos, causando-lhe cortes profundos nos membros superiores. Na mesma altura, o arguido espetou a aludida faca, por três vezes, no pescoço da vítima, arrastando a respectiva lâmina por forma a cortá-la nessa zona do corpo.

Foram as lesões provocadas por estes golpes a causa da morte.

A matéria de facto não afirma nem permite inferir que o arguido matou a vítima por esta lhe exigir a referida importância. O que se afirma é que esse foi o motivo da discussão que se gerou entre eles quando se encontravam no interior do veículo automóvel. Depois da discussão houve confronto físico entre ambos dentro da viatura, no âmbito do qual o arguido puxou a vítima para o exterior, onde lhe desferiu vários murros na cara. A vítima consegiu voltar a introduzir-se no automóvel, no que foi seguida pelo arguido, que só então teve um comportamento orientado à morte da vítima, golpeando-a, com essa intenção, pela forma descrita, com uma faca que se encontrava no automóvel, desconhecendo-se quem a havia ali colocado. Entre aquela discussão e este comportamento houve outros acontecimentos podendo a conduta homicida ter sido motivada por qualquer aspecto desconhecido desses acontecimentos. A faca só surgiu na parte final da luta, sabendo-se dela apenas que se encontrava dentro do automóvel da vítima, não estando excluída a possibilidade de lhe pertencer e de por ela haver sido empunhada para atingir o arguido e de este, que como os factos provados sugerem seria mais forte, lha haver tirado, usando-a então, no calor da luta, contra aquela, nos termos que se conhecem. A luta pela posse da faca pode explicar a natureza dos ferimentos sofridos pelo arguido, designadamente nas mãos, conforme descrição constante do nº 17 dos factos provados.

Desconhecendo-se o motivo que determinou o arguido a matar a vítima, fica afastada a possibilidade de o classificar, designadamente como fútil ou torpe. O facto de a vítima estar desarmada, o número de golpes desferidos e as zonas atingidas não adiantam o que quer que seja sobre o motivo da conduta homicida, ainda que eventualmente possam relevar a outro nível, designadamente para, em sede de determinação da pena concreta, aferir do grau de culpa. A referência a um meio de prova, e não a qualquer facto que daí pudesse resultar provado, é inócua e despropositada.

Não se verificando a circunstância que a Relação teve como qualificadora do homicídio, e não se vislumbrando outra, o crime não é qualificado. É um normal crime de homicídio, praticado à facada, no âmbito de um desentendimento entre entre arguido e vítima, que começou com uma discussão verbal, passou a agressão a murro e culminou no uso da faca, agora, só agora, com propósito homicida. Esta conduta do arguido integra, pois, o crime p. e p. pelo artº 131º do CP.

3. Vejamos agora a determinação da pena que lhe cabe.

A pena aplicável é de 8 a 16 anos de prisão.

A determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita, de acordo com o disposto no artº 71º, em função da culpa e das exigências de prevenção, devendo atender-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, circunstâncias essas de que ali se faz uma enumeração exemplificativa e podem relevar pela via da culpa ou da prevenção.

À questão de saber de que modo e em que termos actuam a culpa e a prevenção responde o artº 40º, ao estabelecer, no nº 1, que «a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» e, no nº 2, que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa».

Assim, a finalidade primária da pena é a de tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, de reinserção do agente na comunidade. À culpa cabe a função de estabelecer um limite que não pode ser ultrapassado.

Na lição de Figueiredo Dias, a aplicação de uma pena visa acima de tudo o “restabelecimento da paz jurídica abalada pelo crime”. Uma tal finalidade identifica-se com a ideia da “prevenção geral positiva ou de integração” e dá “conteúdo ao princípio da necessidade da pena que o art. 18º, nº 2, da CRP consagra de forma paradigmática”.

Há uma “medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar”, mas que não fornece ao juiz um quantum exacto de pena, pois “abaixo desse ponto óptimo ideal outros existirão em que aquela tutela é ainda efectiva e consistente e onde portanto a pena concreta aplicada se pode ainda situar sem perda da sua função primordial”.

Dentro desta moldura de prevenção geral, ou seja, “entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos (ou de defesa do ordenamento jurídico)” actuam considerações de prevenção especial, que, em última instância, determinam a medida da pena. A medida da “necessidade de socialização do agente é, em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial”, mas, se o agente não se «revelar carente de socialização», tudo se resumirá, em termos de prevenção especial, em «conferir à pena uma função de suficiente advertência» (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2007, páginas 79 a 82).

O número de golpes desferidos pelo arguido sobre a vítima e o modo como foram desferidos, “arrastando a lâmina da faca”, são reveladores de uma vontade de matar muito firme, ou seja, de dolo intenso.

A ilicitude do facto é a normal neste tipo de crime, visto não se saber quem era o possuidor da faca que acabou por ser usada pelo arguido para matar a vítima. Sabe-se que se encontrava dentro do automóvel, que era pertença da vítima, mas desconhece-se quem a colocou ali, sugerindo a natureza dos ferimentos sofridos pelo arguido na luta com a vítima, descritos no nº 17 dos factos provados, que esta última a teve em seu poder e a usou para ferir aquele.

Não obstante se desconhecer o motivo que determinou o arguido a esfaquear a vítima, com intuito de a matar, sabe-se que a discussão que levou ao confronto físico que veio a culminar na morte foi causada por anterior comportamento fraudulento e, logo, censurável do arguido em relação à vítima.  

Estes factores situam a culpa em patamar um pouco superior à média, a permitir que a pena se fixe acima do ponto intermédio da moldura penal.

Em sede de prevenção geral, deve ter-se em conta a frequência com que vêm ocorrendo crimes de homicídio de algum modo conotados com o comércio ilegal de drogas, como continuamente se vê e ouve ser noticiado pelos meios de comunicação social, originando sentimentos de insegurança e intranquilidade nas pessoas. Daí que o mínimo de pena exigido pela tutela dos bens jurídicos e estabilização das expectativas comunitárias se situe bem acima do mínimo da moldura penal, já na sua zona intermédia.

Por outro lado, o arguido sofreu já duas condenações, ainda que por crimes de pouca gravidade, mas, em contraponto, vinha trabalhando, até ao momento em que ficou na situação de prisão preventiva à ordem deste processo, tem apoio familiar, vem assumindo uma postura “adequada e colaborante” e aparenta não consumir drogas. As reduzidas exigências de prevenção especial que persistem não impõem que a pena se fixe muito além do mínimo pedido pela prevenção geral.

Ponderando estes elementos, tem-se como permitida pela culpa, necessária e suficiente para satisfazer as finalidades da punição a pena de 13 anos de prisão.

4. Resta realizar o cúmulo jurídico dessa pena com as que foram aplicadas ao recorrente pelos crimes de furto qualificado (1 ano e 8 meses de prisão), de falsificação (2 anos de prisão) e de profanação de cadáver (1 ano de prisão).

A pena aplicável, nos termos do nº 2 do artº 77º do CP, tem como limite máximo 16 anos e 8 meses de prisão, a soma das várias penas singulares, e como limite mínimo 12 anos de prisão, a medida da mais elevada dessas penas.

Na fixação da sua medida, como ensina Figueiredo Dias, devem ser tidos em conta os critérios gerais da medida da pena contidos no artº 71º – exigências gerais de culpa e prevenção – e o critério especial dado pelo nº 1 do artº 77º: «Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».

Sobre o modo de levar à prática estes critérios, diz este autor: “Tudo deve passar-se (…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”.

Considera ainda que à questão de saber se “factores de medida das penas parcelares podem ou não, perante o princípio da proibição da dupla valoração, ser de novo considerados na medida da pena conjunta” se impõe, “em princípio”, uma resposta negativa. Mas faz notar que “aquilo que à primeira vista poderá parecer o mesmo factor concreto, verdadeiramente não o será consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles: nesta medida não haverá fundamento para invocar a proibição da dupla valoração” (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Reimpressão, 2005, páginas 291 e 292).

O arguido praticou um crime de homicídio, um crime de furto qualificado, um crime de falsificação de documento e um crime de profanação de cadáver, sendo punido com as penas de, respectivamente, 13 anos, 1 ano e 8 meses, 2 anos e 1 ano de prisão. É pois elevada a dimensão da primeira pena e baixa a das demais.

A gravidade global dos factos, que no caso se afere em função da medida das penas aplicadas, do seu número e da relação de grandeza em que se encontram entre si e cada uma delas com o máximo aplicável, é dada em grande parte pela pena do homicídio, crime que se destaca dos restantes, sendo secundário o peso de cada uma das outras penas.

Daí que a culpa pelo conjunto dos factos, ou o grau de censura a dirigir ao arguido por esse conjunto, e a medida das exigências de prevenção geral, no contexto da moldura penal conjunta, se situem aquém da mediania, permitindo aquela e impondo esta que a pena única se situe acima do limite mínimo dessa moldura, mas aquém do seu ponto intermédio.

Por outro lado, não revelando o comportamento global do recorrente uma tendência criminosa, uma vez que todos os crimes ocorreram no mesmo contexto espácio-temporal, não se verificam exigências de prevenção especial a imporem que a pena se fixe além do mínimo pedido pela prevenção geral.

Considerando estes dados, tem-se como permitida pela culpa, necessária e suficiente para satisfazer as exigências preventivas a pena única de 14 anos de prisão.

Decisão:

Em face do exposto, os juízes do Supremo Tribunal de Justiça, no provimento parcial do recurso, alteram a decisão recorrida nos termos seguintes:

-O crime de homicídio cometido pelo recorrente é o p. e p. pelo artº 131º do CP;

-Como autor desse crime, o arguido é condenado na pena de 13 (treze) anos de prisão;

-Em cúmulo jurídico dessa pena com as penas que lhe foram aplicadas na decisão recorrida pelos crimes de furto qualificado, falsificação de documento e profanação de cadáver, é o arguido condenado na pena única de 14 (catorze) anos de prisão.

Não há lugar ao pagamento de custas.

                                   Lisboa, 19/04/2018

  Manuel Braz (Relator)

 Isabel São Marcos