Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4009/07.5TBGMR.G1.S2
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
RECURSO DE REVISTA
MATÉRIA DE FACTO
SOCIEDADE
DESTITUIÇÃO DE GERENTE
Data do Acordão: 01/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

1 . Na apreciação das revistas interpostas em processo de jurisdição voluntária – quando admissíveis – inexiste qualquer particularidade no que respeita aos limites de conhecimento do STJ relativamente à matéria de facto.

2 . Mesmo a elasticidade aberta pelo n.º1 do artigo 1411.º do Código de Processo Civil, não permite que aqui se leve a cabo alteração factual.

 3 . Não vindo a ser realizada qualquer assembleia geral, existindo vendas efectuadas sem qualquer registo e não facturadas a clientes, inexistindo relatório de gestão e prestação de contas referentes aos anos de 2005, 2006 e até à data da decisão de 1.ª instância, existindo activos e/ou custos não revelados na contabilidade provocando distorções materialmente relevantes, tendo-se verificado falsas declarações no envio ao I.E.S. e não tendo sido encontradas quaisquer facturas correspondentes ao serviço prestado pelo gabinete de contabilidade, existe justa causa de destituição do gerente duma sociedade.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I –

AA requereu a realização de inquérito judicial à sociedade:

BB Lda, contra esta e CC.

Alegou, em síntese, que:

É sócia da referida sociedade;

O requerido, sócio-gerente da mesma, não lhe presta qualquer informação sobre a actividade societária, não obstante as diferentes tentativas efectuadas para o efeito.

Contestaram a sociedade e o requerido, negando que alguma vez lhes tenha sido solicitada, pela requerente, a prestação de informações sobre a vida da sociedade.

Convidada a requerente a concretizar os pontos de facto que pretendia ver averiguados, respondeu a mesma nos termos explicitados a folhas 64 a 67.

Efectuada a inquirição das testemunhas indicadas pelas partes, veio a ser proferida decisão onde se determinou a realização de inquérito judicial à requerida, com a finalidade de averiguar os estes pontos de facto.

Levado a cabo o inquérito por perito nomeado pelo Tribunal, apresentou o mesmo o seu relatório pericial a folhas 187 e seguintes, a respeito do qual foram solicitados esclarecimentos, devidamente prestados.

Peticionou, então, a requerente a destituição do cargo de gerente do requerido CC e a nomeação, em sua substituição, de um administrador judicial.

Pronunciaram-se os requeridos no sentido do indeferimento da pretensão deduzida.

De seguida, foi proferida decisão que indeferiu a requerida destituição.

II -

Desta decisão apelou a requerente e o Tribunal da Relação de Guimarães concedeu provimento à apelação, revogou a decisão recorrida, decretou a destituição do requerido, CC, das funções de gerente da Requerida, ”BB Lda” e determinou a nomeação, a efectuar pelo tribunal de 1ª instância, de um gerente judicial, com as funções previstas no Código das Sociedades Comerciais.

III –

Pediram revista os requeridos e este Supremo Tribunal anulou a decisão, ordenando que outra fosse proferida que indicasse, para além dos factos que, como tal, haviam já sido considerados pela 1ª instância descritos no aresto anulado, outros que a Relação considerou provados e fundamentaram a sua decisão.

IV –

Proferiu, então, a Relação segundo acórdão, no qual decidiu nos mesmos termos, referidos em II.

V –

Pedem novamente revista os requeridos, concluindo as respectivas alegações do seguinte modo:

1. Rec.te e Rec.da separam-se de facto em Outubro de 2005, e divorciaram-se em 08/10/2009.

2. O Tribunal de que se recorre não fez correcta aplicação da matéria de facto, ao dar como provado que: "existem activos e/ou custos não revelados na contabilidade (em valor estimado de, pelo menos, euros 22.703,55)".

3. Ora, o único quadro de demonstração de resultado obtido - do balanço de 31/12/2008 -, relativo a activos ou custos não revelados na contabilidade, que pode ser considerado pelo Tribunal como facto provado, é o que consta de fls. 264 e 287 dos autos, e não do relatório inicial do Sr. Perito, anulado como foi, no que a estes factos diz respeito, pelos esclarecimentos por aquele prestados, adiante.

4. De resto, foi este segundo quadro o único tomado em consideração pela Primeira Instância, em sede de decisão - e não podia ser de outra forma -, e não foi impugnado por quem quer que fosse, em sede de recurso, pelo que, insiste-se, não se percebe a persistência no erro por parte do Tribunal a quo.

5. Assim, o diferencial relativo a activos ou custos não revelados na contabilidade é de € 1 204,91 e não de € 22 703,55, o que tem, forçosamente, de ser valorado de forma diferente no contexto da prova produzida.

6. Também se dá como provado que desde a constituição da sociedade "BB, Lda", nunca foi convocada qualquer assembleia geral.

7. Como a Rec.da sabe, nunca foi convocada qualquer assembleia ou produzidas presencialmente quaisquer das deliberações constantes das actas, pois sempre foi o Gabinete de Contabilidade que elaborou as actas necessárias à actividade da pequena empresa familiar, tendo sido esse gabinete que, igualmente, processou relatórios de contas e de gestão, balanços, balancetes da firma, e outros actos respeitantes à sociedade.

8. Tais práticas, como é do conhecimento geral, inclusive da Rec.da, constituem o normal funcionamento de uma esmagadora maioria, senão quase a totalidade das pequenas e médias empresas, sobretudo as de cariz familiar, como é o caso, não sendo, por isso, fundamento de classificação da conduta do Rec.te como violação grave dos deveres de gerência.

9. A Rec.da sempre agiu assim e nunca, até ao ano de 2007, portanto, mais de dois anos após separação de facto, foi de outro modo, sendo certo que, nos termos da lei, sempre lhe assistiu o direito de convocar a assembleia, o que nunca fez.

10. Também se deu como provado que o Rec.te nunca informou a Rec.da da actividade da sociedade, apesar de tal lhe ter sido solicitado, ainda que não tenha solicitado por escrito.

11. Ora, em momento algum da petição esclarece a Rec.da o modo, data, local, ou número de vezes em que diz ter manifestado ao Rec.te pretender informações sobre a vida societária da Req.da, à excepção da única vez em que disse ter tentado entrar nas instalações da empresa e ter sido colocada fora das mesmas, pelo que tais alegações não são susceptíveis de serem dadas como provadas.

12. Trata-se de alegações vagas e desprovidas do necessário circunstancialismo, capaz de prever, sequer, uma repetida omissão ou recusa do dever de informação, o que se impõe, aliás, como se retira da leitura do texto integral do Acórdão da Relação do Porto, de 22/5/2001, em http://www.dgsi.pUjtrp.nsf/c3fb530030eac61802568d9005cd5bb/7786fba15f87dafc80256acd0035faba?OpenDocument&Highlight=0,dever,de,informa%C3%A7%C3%A30,gerente, citado no douto Acórdão recorrido.

13. O que a douta sentença de 1.ª Instância dá como provado é que o Rec.te não prestou informações à Rec.da e que esta lhas solicitou, mas, em lado algum, se enumera a quantidade de vezes em que tal haja sucedido, podendo mesmo ter acontecido uma só vez, pelo que não é possível daí retirar que tal pedido de informação e tal omissão na sua prestação constituam uma prática reiterada, como faz o Tribunal a quo.

14. Assim, salvo o devido respeito, o Venerando Tribunal a quo retirou da sentença de 1.ª Instância conclusões sobre matéria de facto que, pelas razões supra expendidas, não podia retirar, com a agravante de tais conclusões constituírem o estribo da sua decisão.

15. Nessa medida, o douto Acórdão recorrido, altera a decisão do Tribunal de 1.ª Instância sobre matéria de facto, sem que, no entanto, in casu, se verifique qualquer dos pressupostos das alíneas a), b) e c) do artigo 712.º do Código de Processo Civil, violando, pois, as normas aí contidas.

16. Ademais, dá-se como provado a existência de dívidas ao fisco e à segurança social em vários períodos, sendo que, aquando da perícia em causa, com referência ao período de 31/12/2008, a sociedade" Pastelaria-BB, Lda", apresentava:

- dívida à Fazenda Nacional de €16.840,58, reportada a I. R.S. retido aos respectivos funcionários e não pagos (€119), rendimentos prediais (€2.160), coimas (€855,20) e falta de pagamento do IVA de 2008;

- dívida ao ISS de €16, 115,99.

17. Porém, convém dizer que estas dívidas, apesar de existirem na altura em questão, encontravam-se a ser liquidadas através de prestações, ao abrigo de acordos celebrados com as entidades credoras.

18. Na realidade, a dívida à Fazenda Nacional, encontra-se, actualmente, integralmente liquidada, o que, por se tratar de facto superveniente, justifica que o Rec.te, nos termos do disposto do artigo 727.º do Código Processo Civil, junte os respectivos comprovativos - doc. n.º 1 e 2 -, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, para todos os efeitos.

19. De igual modo, a dívida relativa à ISS, encontra-se diminuída consideravelmente, prova de que o referido acordo de pagamento está a ser cumprido, o que, igualmente se comprova, nos termos da norma supra identificada, através da junção dos respectivos documentos comprovativos - doc. n.º 3 e 4 - O Rec.te protesta juntar em 15 dias o documento n.º 4.

20. Acresce que as três letras de câmbio também dadas como provadas, ou seja, as letras de câmbio sacadas pela empresa DD, Lda, sobre a sociedade referida, que na altura da perícia se encontravam a ser liquidadas através de prestações ( por acordo celebrado com a entidade credora), encontram-se, igualmente, todas saldadas, para prova do que, uma vez mais, por constituir facto superveniente, se junta documento comprovativo - doc. n.º 5.

21. Assim, deverá o Venerando Supremo Tribunal de Justiça ter em conta os documentos supervenientes juntos ao recurso, nos termos do artigo 722.° do C. P. Civ., aplicando o disposto no artigo 1411.° do C. P. Civ., nos termos do qual se deve proceder à alteração das decisões, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem.

22.  Ora, por tudo o que vai dito, inexistem as alegadas violações graves dos deveres de gerente, susceptíveis de fundamentar a destituição do Rec.te das respectivas funções com justa causa.

23. Acresce, em prol da continuidade da gestão do Rec.te, que a empresa apresenta, desde então, balanços, respeitantes aos anos de 2009, 2010 e segundo trimestre de 2011, os quais reflectem a gestão empenhada e diligente do Rec.te, pelo quadro favorável que apresentam - apesar da actual conjuntura económica -, documentos que, por identidade de razões, se juntam, atenta a superveniência dos factos de que resultam - doc.s n.ºs 6, 7 e 8.

24. Como refere o Cons. Pinto Furtado, in "Curso de Direito das Sociedades", 48 ed., pág 367, “Deverá ( ... ) entender-se como justa causa de destituição a violação grave dos deveres de gerente e a sua incapacidade para o exercício normal das respectivas funções (artigo 257.° n.º 6, C.S.C.).

25. É um princípio que terá de aferir-se pelo dever de diligência definido no artigo 64.° do C.S.C., isto é, como a diligência de gestor criterioso e ordenado dos interesses da sociedade, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores, e reconduzir-se, deste modo, a um comportamento revelador de incompetência, negligência grave e continuada falta de critério e de ordenação no exercício das funções que se insiram no quadro da sua competência.”

26. A actuação do Rec.te, não denota um comportamento revelador de incompetência, negligência grave e/ou continuada falta de ordenação no exercício das funções que se inserem no quadro da sua competência, capazes de levar à destituição de gerente por violação gravosa dos seus deveres, mas, quando muito, e como se disse, um normal e generalizado no meio - sociedades de cariz familiar -, menor cuidado na observância de determinados formalismos e burocracias usando de um maior facilitismo nos procedimentos, sem que, no entanto, daí resultem minimamente beliscados, quer o interesse da sociedade, quer o dos demais sócios.

27. Em todo este comportamento avulta, igualmente, o facto de o Rec.te ser detentor de uma quota de 80% do capital social, constituindo a sociedade o seu emprego, sendo o único dos dois sócios que contribuiu quer com trabalho, quer com dinheiro para a sua constituição e funcionamento.

28. Ora o conceito de justa causa apresenta-se como indeterminado, não facultando uma ideia precisa quanto ao seu conteúdo.

29. Como ensina Menezes Cordeiro, “os conceitos indeterminados põem em crise o método de subsunção: a sua aplicação nunca pode ser automática, antes requerendo decisões dinâmicas e criativas que facultem o seu preenchimento com valorações.” (Manual de Direito do Trabalho, 1991, pág.819)

30. Ainda assim, de acordo com o ACSTJ de 19.05.05, Jurisprudência do STJ (boletim interno) pgdlisboa.pt "11. Ainda que os factos imputados ao gerente possam integrar objectivas violações dos seus deveres ( ... ) as circunstâncias do caso concreto, apreciadas à luz de critérios de exigibilidade e boa fé, podem levar a concluir que não há razões suficientemente fortes para a resolução da relação entre gerente e sociedade.

31. Assim, da análise dos factos dados como provados, complementada com a dos factos supervenientes, e a correcta interpretação daqueles que foram erroneamente avaliados, é forçoso concluir que não existe fundamento para que o Rec.te seja destituído das suas funções de gerência.

32. Além disso, sempre se dirá que o Tribunal recorrido não faz uma correcta aplicação do artigo 653.° do C. P. Civ., por apenas elencar os meios de prova que teve em conta para dar como provados factos e formar a sua convicção.

33. Na verdade, quer quanto aos factos provados, quer quanto aos factos não provados, deve o Tribunal justificar os meios da sua decisão, o que compreende não só os meios concretos de prova, mas também as razões ou motivos por que eles relevaram ou obtiveram credibilidade no espírito do julgador.

34. Como se diz no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15-01-2008 (in http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8feOe606d8f56b22802576c0005637 dc/2491b21034688440802573ee00538fd2 ?OpenDocument): “Ao Tribunal não basta indicar as provas a partir das quais formou a sua convicção, tendo também de fundamentar a decisão de facto que entenda dever proferir, para o que deverá expor os motivos que o levaram a considerar aquelas provas como idóneas e relevantes, eventualmente em detrimento de outras, bem como indicar os critérios utilizados na apreciação daquelas provas e o substrato racional que conduziu à convicção concretamente formada. ( ... ) A obrigatoriedade da indicação na decisão sobre a matéria de facto das provas e respectiva análise crítica que serviram para formar a convicção do Tribunal, estabelecida no artigo 653.°, n.º 2, do Código de Processo Civil, destina-se a permitir aos sujeitos processuais e ao Tribunal de Recurso a verificação de que na sentença se seguiu um critério lógico e racional na apreciação das provas. ( ... )”

35. Ora, o Tribunal a quo apenas se limitou a referir ou elencar os factos que considerou provados, e, em boa parte dos mesmos, limitou-se a dá-los como reproduzidos, por referência ao relatório pericial - mas esquecendo ou omitindo os esclarecimentos adiante prestados pelo Sr. Perito, que anulam algumas das conclusões a que havia chegado inicialmente - e aos autos em geral, sem que fundamente a sua escolha de uns em detrimento de outros, tornando imperceptível a decisão.

36. Na verdade, a fundamentação é um conceito relativo, que varia em função do tipo concreto de cada acto e das circunstâncias concretas em que é praticado, cabendo ao Tribunal, em cada caso, ajuizar da sua suficiência, mediante a adopção de um critério prático, que consiste na indagação sobre se um destinatário normal, face ao itinerário cognoscitivo e valorativo do acto em causa, fica em condições de saber o motivo pelo qual se decidiu num sentido e não noutro, o que se revela, no mínimo extremamente difícil, perante o teor do douto Acórdão em análise.

37. Ademais, a douta sentença da 1.ª Instância, andou bem ao decidir pronunciar-se apenas quanto aos dois factos enunciados na sua questão prévia, por entender que, de acordo com o requerimento de fls. 64 a 67, só quanto a estes factos foi suscitada em concreto, pela Rec.da, a sua pretensão de esclarecimento.

38. Na verdade, tudo o mais constante no requerimento referido, é pura enumeração de documentos a que a Rec,da, alegadamente não tem acesso, sem que, a propósitos dos mesmos ou do respectivo teor se vislumbre qualquer dúvida, questão ou conclusão, nem o que deles pretende em concreto.

39. Na verdade, e apesar de nos processos de jurisdição voluntária, o Tribunal poder decidir com maior grau de liberdade na análise da prova coligida, sempre a decisão que venha a produzir deve ater-se à resposta às concretas questões que lhe são submetidas, sob pena de, em última análise, poder inclusive, produzir uma decisão sobre questões que não foram levantadas por qualquer das partes, julgando para além do que lhe foi pedido e do que é relevante, correndo, mesmo, o risco de, a final, a sua deliberação não fazer qualquer sentido, por nem responder ao que lhe foi perguntado, mas a outra questão qualquer.

40. De facto, o maior grau de discricionariedade de que se encontra investido o julgador, nos processos de jurisdição voluntária, não os transforma em lugares de mera informalidade, em que se deva ignorar por completo o princípio do dispositivo.

41. Aqui o juiz não está obrigado a preocupar-se com tudo o que lhe é trazido pelas partes, mas sempre terá de examinar de forma rigorosa todas as questões realmente relevantes para a boa decisão da causa.

42. E, para o fazer, tem de, previamente, decidir quais são essas questões. Ou seja, determinar que questões, efectivamente, lhe foram colocadas pelas partes, sendo que só a essas tem de responder efectivamente, por serem as relevantes e, em última instância, serem essas e não quaisquer outras, as respostas que se pretendem.

43. Mas, mesmo que assim se não entenda, da análise de todos os pontos constantes no requerimento de fls. 64 a 67, da Rec.da, se dêem como provados, tal não bastaria, ainda, para invocar a procedência do inquérito, por, em face de tudo o que vai sendo alegado, não se encontrar, aí, em concreto, atento o circunstancialismo própria da vida da sociedade em causa, já exposto, qualquer violação grave dos deveres de gerente, ou incapacidade para o normal exercício das funções de gerente, capaz de fundamentar a sua destituição com justa causa.

44. Ao decidir de forma diferente, o douto Acórdão recorrido aplicou erradamente o comando do artigo 1479.° e segs. do Código Processo Civil.

TERMOS EM QUE, pelo exposto, pelo mérito dos autos e pelo que doutamente será suprido deve ao recurso ser dado provimento, revogando-se o douto Acórdão recorrido, com as legais consequências, nomeadamente reiterando a douta sentença de 1.ª Instância.

Contra-alegou a recorrida, pugnando detalhadamente pela manutenção da decisão.

VI –

Ante as conclusões das alegações, as questões que se nos deparam consistem em saber se:

A Relação, ao alterar, por aditamento, a matéria de facto foi para além do que lhe permitiam as alíneas a), b) e c) do artigo 712.º;

Não observou o artigo 653.º, não tendo justificado por que procedia a tal aditamento;

Decidiu incorrectamente quanto às dívidas à Fazenda Nacional e ao Instituto da Segurança Social;

Deve ser tido em conta o pagamento que foi ou vem sendo feito a estas entidades e, bem assim, das letras de câmbio referidas no elenco factual;

Inexistem razões para a destituição do requerido.

VII –

Vem provada a seguinte matéria de facto:

A – Matéria provada em 1.ª instância:

a) A “BB Lda.” é uma sociedade comercial por quotas matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Guimarães sob o n.º 000000000, com sede social na R. Arqueólogo DD, n.º 00000, F..........., Guimarães e cujo objecto social é a actividade de fabricação de pasteis e bolos;

b) São sócios da sociedade referida em a) a requerente, com uma quota de euros 1.000,00 e o requerido CC, com uma quota de euros 4.000,00, tendo ao requerido CC sido atribuída a gerência da sociedade;

c) Requerente e Requerido CC são casados, mas encontram-se separados desde Outubro de 2005;

d) Desde a separação do casal o Requerido nunca informou a requerente da actividade da sociedade, apesar de tal lhe ter sido solicitado;

e) A requerente nunca solicitou por escrito ao gerente informação sobre a vida da sociedade;

f) Desde a constituição da sociedade nunca foi convocada qualquer assembleia geral;

g) Em 15.06.2009 e com referência ao período até 31.12.2008, a sociedade referida em a) tinha uma dívida à Fazenda Nacional de euros 16.840,58, reportada a IRS retido aos respectivos funcionários e não pagos (euros 119,00) rendimentos prediais (euros 2.160,00) coimas (euros 855,20) e falta de pagamento do IVA de 2008;

h) Em 15.06.2009 e com referência ao período até 31.12.2008, a sociedade referida em a) tinha uma dívida ao ISS de euros 16.115,99;

i) Foi sacada pela DD, Lda., com sede no Lugar de F..........., lote 00, Urgeses, Guimarães, sobre a sociedade referida em a) a letra de câmbio n.º 0000000000, com data de vencimento em 31.10.2007 e no montante de € 2.376,07;

j) Foi sacada pela DD Lda., com sede no Lugar de F..........., lote --, Urgeses, Guimarães, sobre a sociedade referida em a) a letra de câmbio n.º 0000000000, com data de vencimento em 30.09.2007 e no montante de € 2.380;

k) Foi sacada pela DD Lda., com sede no Lugar de F..........., lote--, Urgeses, Guimarães, sobre a sociedade referida em a) a letra de câmbio n.º 00000000000, com data de vencimento em 31.08.2007 e no montante de € 2.380,00;

l) A sociedade referida em a) apresenta uma situação económico-financeira muito débil, com um passivo, reportado essencialmente a dívidas a fornecedores e contabilizado em 31.12.2008 em euros 103.938,35, superior ao activo, contabilizado, em 31.12.2008 em euros 75.514,05.

B – Matéria que a Relação considerou ainda provada (folhas 463):

m) Existem vendas efectuadas pela sociedade em questão sem qualquer registo e não facturadas a clientes;

n) Não existe relatório de gestão e prestação de contas referentes aos anos de 2005, 2006 e até à presente data;

o) Existem dívidas ao fisco e à segurança social em vários períodos;

p) Existem activos e/ou custos não relevados na contabilidade (em valor estimado de, pelo menos, euros 22.703,55);

q) Existem documentos que não constam da contabilidade e deveriam constar, provocando assim distorções materialmente relevantes;

r) Verificou-se o envio das I.E.S. com indicação de que as contas estariam aprovadas em assembleia-geral de sócios, quando isso não aconteceu;

s) Não foram encontradas quaisquer facturas correspondente ao serviço prestado pelo gabinete de contabilidade.

VIII –

O presente processo iniciou-se como inquérito judicial à sociedade, nos termos do n.º1 do artigo 1479.º do Código de Processo Civil (Redacção anterior ao DL n.º303/2007, de 24.8, a que pertencem também os artigos que se vão referir sem menção de inserção).

Levado a cabo este, veio a requerente, a folhas 291, requerer, com base nos artigos 1482.º e 292.º do Código das Sociedades Comerciais:

Que se ordene a destituição do cargo de gerente do requerido CC;

Que se nomeie, em substituição, um administrador judicial.

  Estas pretensões correspondem à previsão do n.º2 do artigo 1482.º, estando excluída, por isso, a tramitação fora do âmbito da jurisdição voluntária, prevista n.º3 deste mesmo artigo.

É no domínio da jurisdição voluntária que temos que nos situar.

IX -

A primeira das consequências consiste em as providências a tomar não estarem sujeitas a critérios de legalidade estrita, devendo antes ser adoptada, em cada caso, a solução que o juiz  julgue mais conveniente e oportuna – artigo 1410.º, n.º1.

Das resoluções proferidas segundo critérios de conveniência ou oportunidade não é admissível recurso para este Supremo Tribunal – artigo 1411.º, n.º2.

No presente caso, contudo, vê-se do aresto em crise que os Senhores Desembargadores se situaram em terreno de pura legalidade, pelo que nada impede a apreciação do recurso interposto para aqui.

Mas esta apreciação não vai nem pode ir para além das limitações próprias do recurso de revista, quanto à matéria de facto, fixadas pelos artigos 26.º da LOFTJ, 721.º, n.ºs 1 e 2, 722.º, n.ºs 2 e 3 e 729.º.

 X –

Por outro lado, é regra de ouro dos recursos que estes visam a reapreciação de questões já apreciadas no tribunal recorrido e não a apreciação de questões novas (Cfr-se, ainda com actualidade, Castro Mendes, Recursos, 27).

Esta regra não é absoluta, pois a ela escapam as questões de conhecimento oficioso decididas já, mas estas aqui não estão em causa.

Nesta regra de ouro insere-se o regime do artigo 663.º, n.º1 de fixação factual com referência à data do encerramento da discussão em primeira instância.

Assim, é totalmente inócuo que o recorrente venha pretender demonstrar, com os documentos juntos com as alegações de revista, que, em Janeiro de 2011, as situações perante as Finanças e perante a Segurança Social estavam regularizadas. A fase correspondente ao encerramento da discussão em primeira instância já ia longe.

E contra isto não se argumente com a elasticidade aberta pelo n.º1 do artigo 1411.º. Ali se alude a alteração de decisões já transitadas e não a modificação de decisões que estão a ser impugnadas pela via do recurso. É certo que aqui poderia ponderar-se o argumento da maioria de razão, mas, no caso de recurso para este STJ, a alteração das circunstâncias a que alude a lei implica um julgamento de facto alheio aos poderes deste Tribunal.

De qualquer modo, “in casu”, como vamos ver, a factualidade posta em causa com os documentos ora juntos não afecta a decisão a tomar.

XI –

Em jurisdição voluntária o juiz de facto pode ir mais além do que a lei relativa ao processo comum lhe permite. É o que resulta do n.º2 do artigo 1409.º. “Na jurisdição voluntária, o princípio da actividade inquisitória do juiz prevalece sobre o princípio da actividade dispositiva das partes”, já afirmava A. dos Reis, em Processos Especiais, II, 399.

Assim, o caminho aberto à Relação pelo artigo 712.º, n.º 1, é, por aqui, ampliado.

No presente caso, logo no requerimento de folhas 291, que se seguiu à notificação do relatório pericial, a parte invocou as “detectadas irregularidades na gestão protagonizada pelo R.” que ressaltam do mesmo relatório, precisando-as de seguida.

Depois, no recurso de apelação levantou a questão da fixação factual relativa a tais irregularidades e a Relação tinha o caminho totalmente aberto para proceder à alteração factual a que procedeu. Tal conhecimento era-lhe imposto pela alínea a) do n.º1 do artigo 712.º e, mesmo que, por hipótese de raciocínio, assim se não entendesse, sempre haveria que ter em conta o mencionado n.º2 do artigo 1409.º.

Por outro lado, justificou, até de modo detalhado, tal alteração, como se pode ver de folhas 462 verso e 463.

Nada há, pois, a censurar, não colhendo a argumentação do recorrente que levou à elaboração das duas primeiras questões elencadas em VI. 

XII –

Os limites de conhecimento factual por parte deste Tribunal, referidos em IX, limitam o alcance da alegação de que o conteúdo da decisão factual está incorrecto no que respeita às dívidas à Fazenda Nacional e ao Instituto de Segurança Social.

Nos termos do artigo 722.º n.º2, parte final, só se existissem nos autos documentos cuja força probatória esteja fixada por lei e cujo conteúdo não seja conforme à matéria provada, poderia este Tribunal proceder à almejada correcção.

Ora, o que se deu como provado foi que “existem dívidas ao fisco e à segurança social” o que não é posto em causa por quaisquer documentos, tendo em conta o já mencionado momento processual consignado no artigo 663.º.

Não procedem também as questões enumeradas em 3.º e 4.º lugar do ponto VI.

XIII –

Assente que temos de nos mover no âmbito da factualidade considerada provada pela Relação, vejamos agora se se verificam os pressupostos da destituição de gerente e nomeação de um gerente judicial.

Já este Supremo Tribunal, no Acórdão de folhas 443 e seguintes, referido em III, ainda que não tivesse definido o direito, nos termos do artigo 731.º, n.º1, referiu serem os factos que a Relação aditara decisivos no julgamento da justa causa para a destituição do gerente.

E assim é também a nosso ver.

A lei que nos interessa fundamentalmente aqui é o artigo 257.º, n.ºs 4 e 6 do Código das Sociedades Comerciais:

Havendo justa causa pode, nos termos ali precisados, ser requerida a destituição do gerente. Constituem designadamente justa causa de destituição – refere ainda a lei - a violação grave dos deveres do gerente e a sua incapacidade para o exercício normal das respectivas funções.

Sendo a enumeração exemplificativa, há que procurar encontrar uma conceptualização, socorrendo-se Coutinho de Abreu ( Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXXXIII, 80) do entendimento pacífico da doutrina alemã, reportado à ideia central de inexigibilidade na manutenção do vínculo que se pretende extinguir.

A própria lei alemã alude a “grosseira violação dos deveres, incapacidade de condução regular das negócios ou privação da confiança…”, ou seja, quando “ a confiança por manifestos e improcedentes fundamentos foi destruída”- § 84, n.º3 da Aktiengesetz.

Assim para aquele Autor a justa causa corresponde à “situação que, atendendo aos interesses da sociedade e do administrador [a questão é versada a propósito da sociedade anónima], torna inexigível àquela manter a relação orgânica com este, designadamente porque o administrador violou gravemente os seus deveres, ou revelou incapacidade ou ficou incapacitado para o exercício normal das suas funções.”

Por sua vez Raul Ventura (Sociedades por Quotas, III, 91 e seguintes) transcreve, a par do projecto de Ferrer Correia, os dele próprio e de Vaz Serra, ambos precisando que, entre outras, integram a justa causa de destituição, “a falta de apresentação do balanço e contas no tempo e forma legais…”

O facto de esta alusão específica não ter passado para a lei não significa a sua exclusão, mas tão só que o legislador optou por uma restrição exemplificativa, preferindo a expressão genérica “violação grave dos deveres do gerente”.

XIV –

No presente caso, não vem a sendo realizada qualquer assembleia geral, existem vendas efectuadas pela sociedade sem qualquer registo e não facturadas a clientes, não existe relatório de gestão e prestação de contas referentes aos anos de 2005, 2006 e até à data da decisão de 1.ª instância, existem activos e/ou custos não revelados na contabilidade, provocando distorções materialmente relevantes, verificaram-se falsas declarações no envio ao I.E.S. e não foram encontradas quaisquer facturas correspondentes ao serviço prestado pelo gabinete de contabilidade.

Tudo levaria a que um sócio com normal reacção e diligência tivesse perdido, claramente, a confiança no gerente. Há dinheiros que correm “por fora” das relações societárias e tanto basta para que qualquer sócio se sinta atingido nos seus direitos relativamente à sociedade e desconfie da gestão desta.

Não se ignora, é certo, que muita da actividade das “pequenas” sociedades evolui em termos bem afastados do que a lei determina, repousando quase tudo na relação informal e de confiança que existe entre os sócios. Mas a tais “usos” ou “costumes de facto” não confere a lei qualquer relevância, antes os repudiando, pelo que não vale aqui o atendimento a que alude o artigo 3.º, n.º1 do Código Civil.

XV –

Face a todo o exposto, nega-se a revista.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 26 de Janeiro de 2012

João Bernardo (Relator)

Oliveira Vasconcelos

Álvaro Rodrigues