Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06S2969
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERNANDES CADILHA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
ÓNUS DE CONCLUIR
Nº do Documento: SJ200701240029694
Data do Acordão: 01/24/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
Limitando-se o recorrente, no recurso em que pretende impugnar a matéria de facto, a efectuar uma apreciação crítica da prova, sem aludir aos pontos de facto que considera incorrectamente decididos, nem identificar as passagens da gravação da prova em que se funda a sua pretensão, juntando apenas em anexo um documento onde se encontram transcritos todos os depoimentos das testemunhas por si apresentadas em audiência, deve entender-se não cumpriu minimamente o ónus que lhe impunha o 690º-A, do Código de Processo Civil, não se justificando, por isso, o convite para completamento ou aperfeiçoamento da alegação.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

1. Relatório.

AA, com os sinais dos autos, intentou a presente acção emergente de contrato individual de trabalho contra Associação Jardins Escola ... , com sede e Lisboa, pedindo que a ré fosse condenada a pagar mensalmente à autora a diferença entre a pensão unificada que lhe seria devida se lhe fossem reconhecidos os 34 anos de serviço que prestou à ré a pensão que lhe é presentemente abonada pela Caixa Geral de Aposentações, bem como o capital em dívida correspondente a essa diferença em relação ao período de tempo decorrido desde a data da aposentação até à propositura da acção.

Tendo sido efectuada a audiência de discussão e julgamento com gravação da prova, foi a acção julgada procedente em primeira instância e a ré condenada a pagar à autora a quantia de € 28432,35 correspondente à diferença entre a pensão que lhe é processada pela Caixa Geral de Aposentações e aquela a que teria direito se lhe fosse reconhecido o tempo de serviço prestado como educadora de infância, por referência ao período de 14 de Novembro de 2000 a 4 de Abril de 2004, e a quantia mensal de € 631,83, correspondente a essa diferença, a partir de 5 de Abril de 2004.

Mediante recurso de apelação, a ré veio impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto.

O Tribunal da Relação de Lisboa rejeitou o recurso por considerar que a recorrente não indicou, nem nas alegações de recurso nem nas respectivas conclusões, quais os concretos pontos da matéria da matéria de facto que entende terem sido incorrectamente julgados, nem identificou os depoimentos gravados por referência ao assinalado na acta, e, nessa medida, não deu cumprimento ao ónus especial de alegação a que se refere o artigo 690º-A, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC).

É desta decisão que vem interposto recurso de agravo, em cuja alegação a ré sustenta, em resumo, que não deixou de cumprir o ónus de alegação relativo à impugnação da matéria de facto e, em alternativa, pede que seja julgada a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide por ter entretanto ocorrido alteração legislativa (Lei n.º 59/2005, de 29 de Dezembro) que permite que sejam contabilizados para efeitos de aposentação o tempo de serviço prestados pela autora. Requer ainda que seja declarado nulo o acórdão por não ter sido feito prévio convite para suprimento das eventuais deficiências da alegação.
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A autora, ora recorrida, contra-alegou, invocando que a recorrente não indicou, nem nas alegações de recurso nem nas suas conclusões, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, e os concretos meios probatórios que impunham uma decisão diversa, tal como não identificou correctamente os depoimentos em que se pudesse fundar a impugnação. Quanto à pretendida extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, a recorrida considera que a Lei n.º 59/2005 não tem eficácia retroactiva e não é aplicável à situação dos autos.

Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Exmo representante do Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos dos Juízes Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

2. Matéria de facto.

Nos termos do artigo 713º, n.º 6, do CPC, dá-se como reproduzida a matéria de facto fixada pelas instâncias, sendo que, embora a decisão de facto da 1ª instância tenha sido impugnada perante a Relação e essa questão se mostre ainda em aberto por efeito do presente recurso de agravo, os aspectos a discutir neste recurso são meramente instrumentais relativamente à pretendida alteração da factualidade assente nessa decisão

3. Fundamentação de direito.

A recorrente vem arguir a nulidade do acórdão recorrido por não ter efectuado o prévio convite para suprimento das deficiências da alegação de recurso de apelação, caso esta não tivesse cumprido o ónus que o artigo 690º-A do Código de Processo Civil lhe impõe para a impugnação da matéria de facto.

Para além de que a nulidade não foi arguida expressa e separadamente no requerimento de interposição do recurso, tal como preconiza o artigo 77º do Código de Processo do Trabalho (que se considera aplicável ao acórdão da Relação por força da norma remissiva do artigo 716º do Código de Processo Civil), a verdade é que não se configura aí um qualquer vício interno da decisão que se torne subsumível a alguma das nulidades de sentença a que se refere o artigo 668º, n.º 1, do Código de Processo Civil, mas e quando muito apenas um erro de julgamento, resultante de ser ter decidido a rejeição por incumprimento do ónus alegatório da parte, quando se poderia justificar o convite para completar ou esclarecer as alegações, questão que, por conseguinte, apenas poderá relevar no âmbito da apreciação do mérito da decisão recorrida.

Por outro lado, a recorrente também invoca, a título subsidiário, e, portanto, para o caso de ser denegado provimento ao recurso, a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, invocando o disposto na Lei n.º 59/2005, de 2 de Dezembro, que, no seu entendimento, permitiria à autora obter o reconhecimento do tempo de serviço prestado como auxiliar de educação para efeitos de aposentação, tornando desnecessário o prosseguimento dos autos.

Embora a recorrente atribua à arguição um carácter de subsidariedade, é óbvio que a inutilidade superveniente da lide, a ocorrer, se perfila como uma questão prévia relativamente ao próprio conhecimento do recurso, visto que se existe algum facto jurídico que torne inútil o prosseguimento da lide, ele deve determinar a extinção da instância, repercutindo-se também na apreciação do recurso, que deixaria de ter qualquer efeito prático.

É patente, no entanto, que a simples publicação de legislação que a ré julga ter efeitos sobre a resolução do caso concreto não é, por si, determinante de uma situação de inutilidade superveniente da lide, que apenas se verifica quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não possa ter qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo ou porque essa pretensão se encontra já salvaguardada por via extraprocessual.

Se as próprias partes estão em desacordo quanto aos efeitos jurídicos que podem derivar da referida Lei n.º 59/2005 para a apreciação do caso concreto, e se não há conhecimento, no processo, de qualquer decisão da entidade administrativa competente que tenha resolvido o conflito que entre elas subsiste, é claro que não é possível decretar a extinção da instância, visto que ficaria ainda por solucionar a questão jurídica que constitui o objecto do litígio.

Há, pois, que tomar posição quanto à questão central do recurso, que se traduz em saber se a recorrente incumpriu o ónus de alegação previsto no 690º-A do Código de Processo Civil, em termos de se justificar a rejeição do recurso que tinha em vista a impugnação de matéria de facto.

O artigo 690º-A do CPC, aditado pelo Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, na sequência da admissibilidade do registo das provas produzidas em audiência de julgamento – medida inovadora que havia sido introduzida por esse diploma em vista a garantir um efectivo segundo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto –, veio impor ao recorrente que pretenda impugnar a decisão de facto um especial ónus de alegação no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à sua fundamentação (cfr. preâmbulo do diploma).

Dispõe esse preceito, na sua primitiva redacção:

“1- Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou da gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda.
3 – (...)
4 – (...)”

Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto, no propósito de implementar algumas medidas simplificadoras ao nível do processo civil declarativo comum que pudessem, de algum modo, favorecer a celeridade processual, veio substituir aquele regime de transcrição das passagens da gravação, por um novo sistema de indicação dos depoimentos por mera remissão para o início e termo da respectiva audição que estiver assinalado na acta.

O artigo 690º-A impõe, portanto, um ónus especial de alegação quando se pretenda impugnar a matéria de facto, que envolve, como explicita o seu n.º 2, a indicação dos concretos pontos de facto que se considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios em que se baseia a impugnação, e que se destina a assegurar que a parte fundamente minimamente a sua discordância em relação ao decidido, identificando os erros de julgamento que ocorreram na apreciação da matéria de facto. Deste modo, pretende-se evitar que o impugnante se limite a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo simplesmente a reapreciação de toda a prova produzida em primeira instância, expediente que ademais poderia ser utilizado pelas partes apenas com intuitos dilatórios (Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, 1999, Coimbra, pág. 465).

É claro que esse ónus, tratando-se de um ónus afirmatório, terá de ser satisfeito no próprio texto das alegações, sendo que o citado artigo 690º-A não faz sequer menção à obrigatoriedade da apresentação de conclusões. E ainda que se entenda, por aplicação do princípio geral ínsito no artigo 690º, que o recorrente, quando impugne a matéria de facto, não está dispensado de formular conclusões, estas apenas poderão ter o efeito de delimitar, de forma precisa e sintética, o objecto do recurso, identificando as questões que nele se pretendem ver discutidas.

Poderá ainda discutir-se se, tendo-se verificado um deficiente cumprimento do ónus de alegação, deve a Relação, antes de rejeitar o recurso, convidar a recorrente ao correspondente suprimento, por aplicação analógica do n.º 4 do artigo 690º do CPC.

Neste ponto, o acórdão do STJ (secção social) de 16 de Outubro de 2002, no processo n.º 2244/02, cuja orientação entretanto foi reafirmada pelo acórdão de 26 de Novembro de 2003, no processo n.º 2430/03, veio definir como a solução mais equilibrada aquela que passa pela distinção entre a falta total de menção das especificações exigidas e da transcrição das passagens relevantes e o mero cumprimento defeituoso desses ónus.

E escreveu-se a esse propósito o seguinte:

“Na primeira hipótese, o recorrente desprezou completamente os encargos que a lei lhe atribuiu como requisito para poder beneficiar de um verdadeiro segundo grau de jurisdição em matéria de facto; na segunda hipótese, tentou cumprir esse ónus, mas fê-lo de forma incorrecta ou incompleta. As sanções a essas falhas devem ser proporcionais à sua gravidade: na primeira hipótese, parece claro que o legislador cominou a "rejeição" imediata do recurso da decisão da matéria de facto, à semelhança da imediata declaração de deserção do recurso no caso de falta (absoluta) de alegação (n.º 3 do artigo 690.º); na segunda hipótese, justificar-se-á a prévia formulação de convite para completamento ou correcção da alegação ou da transcrição, à semelhança do que ocorre quando a alegação apresente irregularidades (n.º 4 do artigo 690.º).

Ora, analisando a alegação da apelação (fls. 455-471), constata-se que a recorrente se limita a efectuar uma apreciação crítica da prova relativamente a quatro aspectos de relevância jurídica para a apreciação da causa (autorizações provisórias; cálculo da pensão de aposentação; declaração do tempo de serviço; tipo de funções exercidas), juntando em anexo à alegação a transcrição dos depoimentos das testemunhas da recorrida e o respectivo suporte digital.

Em nenhum momento da sua alegação, a recorrente aludiu aos pontos de facto que considera incorrectamente decididos – e que necessariamente pressupunha uma referência à matéria que constava da decisão de facto -, do mesmo modo que também não identificou as passagens da gravação da prova em que se funda a sua pretensão de ver alterada a matéria de facto, tendo-se limitado, neste ponto, a juntar um documento onde se encontram transcritos todos os depoimentos das testemunhas por si apresentadas em audiência.

Ou seja, a recorrente, não só não indicou os concretos pontos de facto que pretendia ver alterados, remetendo antes genericamente para meros aspectos jurídicos, como também não indicou os concretos meios probatórios que justificariam a alteração, limitando-se, neste caso, a juntar o registo dactilografado e fonográfico da prova apresentada em julgamento.

A recorrente não cumpriu, portanto, minimamente o ónus que lhe impunha o 690º-A, n.º 1, do Código de Processo Civil, e, na linha da orientação jurisprudencial há pouco exposta, não poderá haver lugar ao convite para completamento ou aperfeiçoamento da alegação, justificando-se antes a rejeição do recurso à semelhança do que sucede, na correspondente disposição do artigo 690º do CPC, com a falta de alegações.

Sendo assim, a decisão recorrida, ao rejeitar o recurso, com base no não cumprimento do ónus alegatório não merece qualquer censura.

4. Decisão

Em face do exposto, acordam em negar provimento ao agravo e confirmar a decisão recorrida.


Custas pelo recorrido.

Lisboa, 24 de Janeiro de 20076


Carlos Alberto Fernandes Cadilha (Relator)
Mário Pereira
Maria Laura Leonardo