Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
190/22.1T8CBR.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
SOCIEDADE
GERENTE
LEGITIMIDADE ATIVA
LEGITIMIDADE ADJETIVA
SÓCIO
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
RECURSO PER SALTUM
PRESSUPOSTOS
RECURSO DA MATÉRIA DE DIREITO
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
RESPONSABILIDADE DO GERENTE
DANOS PATRIMONIAIS
NOVOS MEIOS DE PROVA
Data do Acordão: 11/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :
I - Decretada a insolvência de uma sociedade, o sócio deixa de ter legitimidade ativa para propor a ação prevista no art. 77.º, n.º 1, do CSC, contra outro sócio, dado que, nos termos do art. 82.º, n.º 3, al. a), do CIRE, o administrador da insolvência passa a ter exclusiva legitimidade para propor as ações que tutelam o interesse dessa sociedade.
II - Tendo o recorrente optado por interpor um recurso de revista per saltum (art. 678.º do CPC), não pode requerer ao STJ que determine a continuação da produção de diligências probatórias na primeira instância para prova de danos diretos que alega ter sofrido (tendo em vista a hipótese de responsabilização prevista no art. 79.º do CSC), porque o art. 662.º, n.º 2, do CPC não se aplica ao recurso de revista (ex vi do art. 679.º do CPC). Quem interpõe recurso de revista per saltum conforma-se com a matéria de facto dada como provada pela primeira instância.
Decisão Texto Integral:

Processo n.190/22.1T8CBR.S1


Recorrente: AA


(Per Saltum)


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO


1. AA propôs ação declarativa de condenação contra BB. Alegou, em síntese, o seguinte:


- o autor é sócio da sociedade “A..., Ldª”;


- o réu é gerente da referida sociedade;


- o autor, na qualidade de sócio, requereu ao réu a convocação de uma assembleia geral de sócios, cumprindo todas as formalidades;


- não obstante o referido no ponto anterior, o réu, enquanto gerente da aludida sociedade, não procedeu à convocação de uma assembleia geral de sócios;


- o réu não convocou a assembleia geral de sócios requerida pelo autor porque a mesma visava destitui-lo da gerência e deliberar uma ação de responsabilidade civil nos termos do artigo 75.º do Código das Sociedades Comerciais contra o primeiro;


- o réu, na qualidade de gerente da mesma, apresentou a sociedade “A..., Ldª” à insolvência;


- a sociedade em questão foi declarada insolvente;


- contudo, a sociedade não se encontrava insolvente;


- o réu sabia que a sociedade em questão tinha ativos valiosos, possíveis de movimentar para fazer face à generalidade das obrigações no momento do seu vencimento, mais do que suficiente para liquidar todo o passivo e ainda obter uma mais valia de milhões de euros;


- em consequência da atuação do réu (concretamente, a não convocação da assembleia geral de sócios e a apresentação da sociedade à insolvência), a sociedade referida foi declarada insolvente;


- a declaração da insolvência teve por consequência a diminuição do valor da quota social do autor na referida sociedade, em montante ainda por apurar;


- acresce que o autor, em consequência da atuação do réu, sofreu e continua a sofrer um enorme desgosto moral, vexame, tristeza, perda de prestígio/reputação, angústia e ansiedade;


- desde a data em que soube do pedido de apresentação da sociedade à insolvência, o Autor entrou em desespero, chorou e tremeu de tristeza e, desde então, não dorme tranquilamente e chora praticamente todos os dias, o que afetou a sua produtividade laboral e o seu bem-estar social;


- o réu violou os deveres de cuidado e lealdado a que estava obrigado.


O autor peticionou a condenação do réu a pagar-lhe os montantes relativos aos prejuízos (patrimoniais e não patrimoniais) que sofreu, ou venha a sofrer, como consequência da atuação do segundo, a apurar em sede de execução de sentença, mas nunca inferior a € 200.000,00 (duzentos mil euros); sendo que, quanto aos danos não patrimoniais, os mesmos deveriam ser fixados mediante um juízo de equidade, em quantia nunca inferior a € 10.000, 00 (dez mil euros).


2. O réu contestou, apresentando defesa por exceção – invocando a ilegitimidade do autor – e por impugnação.


3. A exceção dilatória de ilegitimidade ativa foi julgada procedente, tendo o réu sido absolvido parcialmente da instância, no que respeita ao pedido de condenação no pagamento à sociedade “A..., Ldª” (à sua massa insolvente) dos montantes relativos a prejuízos que esta pessoa coletiva tivesse sofrido, como consequência da atuação do réu (descrita na petição inicial aperfeiçoada).


4. A primeira instância entendeu que o estado do processo permitia, sem necessidade de mais prova, apreciar o pedido de condenação no pagamento de uma indemnização pelos danos que o autor tivesse sofrido diretamente em decorrência dos atos que o réu tivesse praticado no exercício da gerência, pelo que, ao abrigo do artigo 595.º, n.º 1, alínea b), do Código Processo Civil, passou, imediatamente, a conhecer do mérito da causa.


Nesses termos, julgou a ação totalmente improcedente e absolveu o réu do pedido formulado no quadro do artigo 79.º do Código das Sociedades Comerciais, quanto a danos patrimoniais e não patrimoniais alegados pelo autor.


5. Contra essa sentença, o autor interpôs recurso de revista per saltum. Nas suas alegações de recurso formulou as seguintes conclusões:


«1. O autor interpõe o presente recurso da douta sentença proferida pelo tribunal a quo, que ponderada toda a matéria de facto e de direito, decidiu que a presente ação é totalmente improcedente e, em consequência, decidiu absolver o réu do pedido contra si deduzido.


2. O presente recurso vem na modalidade da revista per saltum, por recair apenas sobre a matéria de direito, o que é feito nos termos e ao abrigo nos artigos 627, 629 (1), 631, 637, 639, 672, 675, 678 (1), aplicável ex vi artigo 644 (1, a) e 678 (3), todos do CPC.


3. O recorrente tem legitimidade para interpor o presente recurso acompanhado das respetivas alegações sob a matéria de direito (cf. artigo 631 do CPC) e está em tempo de o fazer (cf. artigo 638 do CPC).


4. Começa-se por dizer que o tribunal a quo julgou procedente a exceção dilatória da ilegitimidade ativa, de surpresa, sem permitir o mais elementar exercício do contraditório (cf. artigo 3 do CPC) e do que isso assegura de equidade audi alterm partes (cf recente acórdão do Tribunal Constitucional, de 14.03.2023 processo 77/2023), sem prejuízo decorre-se de tal decisão.


5. O tribunal a quo entende que o autor, ora recorrente, apesar da inequívoca qualidade de sócio e credor da sociedade A..., Ldª, não tem legitimidade ativa para intentar a presente ação de responsabilidade civil da gerência pelos danos que foram causados à aludida sociedade durante a gerência do réu, ora recorrido, porquanto tendo sido a aludida sociedade declarada insolvente, opera o artigo 82 (3, a), do CIRE.


6. Para além disso, relativamente aos danos que o autor, ora recorrente, sofreu com o comportamento do réu, ora recorrido, enquanto gerente da sociedade supra referida, entendeu o tribunal a quo, que tais danos não conseguem ser sustentados na égide do artigo 79 (1), do CSC, por entender que, nem mesmo aos danos não patrimoniais (morais) sofridos pelo autor, ora recorrente, são danos diretos – tudo isto, independentemente do resultado probatório a que se chegasse caso a presente ação prosseguisse a fim de apurar a factualidade alegada pelo autor, ora recorrente.


7. Os factos assentes da sentença são os que resultaram dos documentos juntos e não impugnados e de aceite por acordo das partes, pois não houve lugar a produção da restante prova requerida pelo autor, ora recorrente, uma vez que a sentença foi proferida junto com o despacho saneador, portanto sem que fosse recolhida mais prova, nomeadamente testemunhal em sede de julgamento.


8. Os aludidos factos assentes são os que consta em §3 supra, para onde se remete e aqui se dão como reproduzidos, mas que resumidamente sustentam que o autor é sócio da sociedade A..., Ldª, detendo uma quota representativa de 1/3 do seu capital social e que essa sociedade foi declarada insolvente, processo que ainda não se encontra findo.


9. Relativamente à falta de legitimidade ativa do autor, ora recorrente, para promover a presenta ação na égide do artigo 77, do CSC, o tribunal a quo sustenta tal entendimento no artigo 82 (3, a), do CIRE, que interpreta no sentido de tal poder estar apenas adstrito ao administrador de insolvência.


10. Salvo o devido respeito, a interpretação do artigo 82 (3, a), do CIRE, não tem o alcance e nem sentido extraído pelo tribunal a quo, pelas razões de facto e de direito sustentadas no §6.1 supra, para onde se remete por questões de proficiência e aqui se dão como reproduzidas.


11. Mas que, em síntese, se defende que a substituição processual da sociedade insolvente pelo administrador de insolvência, só tem aplicação às ações sociais previstas no aludido artigo 82 (3) e (4) e todas as outras em que sejam apreciadas questões de natureza patrimonial relacionadas com os bens da massa insolvente, cujo resultado possa influenciar o valor da massa [cf. artigo 85 (1) e 3), do CSC].


12. Defende-se que o ora recorrente, ao fazer uso das previsões do artigo 77, do CSC, não está a atuar como representante legal da sociedade, mas sim na sua qualidade de sócio, o pelo que tal direito não pode ser paralisado pelo artigo 82 (3), do CIRE.


13. Ou seja, o direito social consagrado no artigo 77 (1), do CSC, é exercido, pelo recorrente na qualidade de sócio e não em representação da sociedade, sem prejuízo do titulo subsidiário do mesmo, quando a sociedade não propôs a ação indemnização contra os gerentes.


14. Na verdade, apenas os sócios podem responsabilizar os gerentes pela sua conduta, nomeadamente promovendo (ações sociais ut singuli, (cf. artigo 77, do CSC)


15. O artigo 82 (3), do CIRE, revoga (tacitamente) os direitos contidos no artigo 78 (4), do CSC, mas não o artigo 77, do mesmo Código.


16. Embora não se desconheça uma corrente que defende que, na pendência do processo de insolvência, o artigo 82 (3), do CIRE, afasta as regras jurídico-societárias relativas à legitimidade ativa (de terceiros) para a propositura ou seguimento da ação social de responsabilidade.


17. Mas tal interpretação sempre seria contrária ao interesse da justiça do caso concreto, porquanto o administrador de insolvência (destituído, entretanto) não o fez – não porque não tivesse razões para o fazer, mas porque na realidade é um criminoso (que se apropriou de todas as verbas pertencentes à massa insolvente) que compactou com o ora recorrido ao longo de todo o processo de insolvência.


18. Assim, não podem os sócios, como é o caso do aqui recorrente, ficar refém da falta de inação do administrador de insolvência a propor a ação prevista no artigo 72 (1), do CSC.


19. Devendo, perante essa omissão, poder operar o artigo 77 (1), do CSC, sem os entraves do artigo 82 (3), do CIRE.


20. Diga-se, por fim, que o aqui mandatário foi também mandatário em, pelo menos um processo, que correu nesse mesmo Colendo Supremo Tribunal de Justiça, relacionado com a responsabilidade civil da gerência, relativamente a uma sociedade declarada insolvente e cujo processo ainda não se encontrava terminado na altura da propositura da ação.


21. Relativamente à paralisação do direito conferido pelo artigo 79, do CSC, por ter entendido o tribunal a quo não estarmos perante danos diretos, remete-se para o desacordo com tal posição vertida no §6.2 supra.


22. No entanto, importa sublinhar que o tribunal a quo não permitiu ao autor, ora recorrente, fazer prova dos danos diretos por intermédio da restante prova requerida, nomeadamente testemunhal, porquanto decidiu por um saneador sentença.


23. O autor, ora recorrente, alegou ter sofrido danos não patrimoniais, enquanto sócio e credor da sociedade ora insolvente, nomeadamente porque sofreu e continua a sofrer com todo o comportamento do réu, nomeadamente devido à situação de incerteza, angústia, ansiedade, frustração, indignação, sentido de falta de justiça, diminuição significativa do seu património e aborrecimentos derivados da não convocação da assembleia geral de sócios supra referida e que permitiria recuperar absolutamente a sociedade herdada dos seus pais e rentabilizar da melhor forma os valiosos ativos que detinha e da insolvência culposa da sociedade, cujo impacto é enorme na sua vida.


24. Tendo acrescentado que sentiu e sente, com todo o processo, designadamente com o processo de insolvência que destrui um património construído pela sua família durante um exato século, um enorme desgosto moral vexame, perda de prestígio ou de reputação, complexos, angustia e ansiedade para além dos sentimos e dores já supra referidos.


25. Tendo, inclusivamente, detalhado que tem dificuldade em exercer a sua atividade profissional, pois sofre uma grande angústia e terror devido ao comportamento do réu, seu irmão, já supra descrito, o que obviamente tem impacto no seu rendimento e podendo vir a ter mais consequências futuras.


26. Perante isto, tendo em conta os factos narrados na petição inicial, e a forma e as condições em que foi declarada a insolvência da sociedade e não foi convocada a assembleia geral extraordinária de sócios que o autor, ora recorrente, legitimamente requereu que o recorrido, enquanto gerente da sociedade, convocasse, resultou num comportamento ilícito, doloso, que teve como fim último beneficiar o próprio réu, ora recorrido, – em clara violação de normas de proteção a que o recorrido estava vinculado.


27. Se o réu tivesse informado o recorrido dessas circunstâncias, ponderado, seria e diligentemente, os aludidos riscos, e convocado a assembleia de sócios, no cumprimento dos deveres procedimentais instrumentais aos deveres de cuidado e de lealdade, o dano não se teria verificado, incluindo os danos causados diretamente na esfera do autor, porquanto este teria: 1) dotado a sociedade com mais de 300 mil euros para fazer fase a uma eventual dificuldade de tesouraria, tal como propostos no pedido de convocatória da assembleia geral extraordinária de sócios; 2) nunca teria sofrido os danos (morais) supra referidos, pois, independentemente do que acontecesse com a sociedade insolvente, tudo teria sido realizado com total respeito pelos seus direitos enquanto sócio (e também credor) e de acordo com os deveres procedimentais e instrumentais aos deveres de cuidado e de lealdade.


28. Destarte, estamos perante uma violação causal desses deveres (incluindo deveres emergentes de normas de proteção para com o aqui autor) que determinou o aumento do perigo de ocorrência do dano para os sócios, credores e demais stakeholders (incluindo o aqui autora), tanto diretos, como indiretos, assim como patrimoniais e não patrimoniais (estes últimos que nunca entrariam na esteira da sociedade, mas apenas do autor).


29. Julga-se que a sentença decorrida confunde os danos causados por intermédio da sociedade, ou seja, os danos em que existe uma interferência direta na sociedade, com os danos em que não existe essa interferência, mas são causados, obviamente, no âmbito dessa relação societária, como é, por exemplo, a falta de convocação da assembleia extraordinária de sócios requerida pelo recorrente no uso do seus legítimos direitos enquanto sócio e que deviam ter sido atendidos pelo réu, ora recorrido – e não foram.


30. Tanto a não convocatória da assembleia geral de sócios, quando legitimamente requerida pelo recorrente, como o pedido de declaração de insolvência em violação com os avisos e ignorando os deveres de cuidado e lealdade por parte do recorrido, resultaram em danos diretos na esfera do recorrente. Tal responsabilidade do recorrido é direta para com o recorrente, porquanto os danos resultaram desses factos ilícitos e sem intervenção de quaisquer outros eventos – sem a interferência da sociedade. Não se trata de má gestão, mas sim das práticas dolosas do recorrido, dirigidas, direta e especificamente ao recorrente, e que levou ao prejuízo verificado, onde se inclui os danos morais (que nunca poderia ser a sociedade a sofrer ou, de alguma forma, produzidos por sua interferência.


31. Foi a conduta do réu, como melhor se identificou na petição inicial, causa direta e necessária dos danos sofridos pelo autor, ora recorrente.


32. Diga-se, por fim, que ao verificarem-se danos diretos na esfera económico e jurídica do autor, ora recorrente, provocados pela atuação direta do réu, ora recorrido estes nunca poderiam ser reclamados pela sociedade, nos termos do artigo 72, do CSC.


33. Tais danos diretos, foram causados diretamente na esfera jurídica e económica do autor, diretamente pelo réu, não decorrendo de prejuízos por intermédio da sociedade - sem afetar o património da sociedade.


34. Ora, um desses danos (patrimoniais e não patrimoniais) diretos com repercussão apenas na esfera das autoras é o que derivou da falta de convocatória da assembleia extraordinária de sócios, legitimamente requerida pelo recorrente.


35. Por fim e a talhe de foice, a demonstrar que tais danos são diretos e não indiretos, é o facto de que os mesmos apenas se repercutiram na esfera do autor, aqui recorrente, e não, na esfera dos restantes sócios – mesmo que em posições jus societárias idênticas – tal como mais depuradamente se demonstrou no § 6.2. supra.


§7. Pedido


Termos em que deve o presente recurso de revista ser julgado procedente e em consequência ser revogada a douta sentença recorrida, devendo ser ordenado a baixa dos autos à primeira instância para aí prosseguirem os seus demais termos.»


Cabe apreciar.


*


II. FUNDAMENTOS


1. Admissibilidade e objeto do recurso


O presente recurso de revista foi interposto per saltum, nos termos do art.678º do CPC, tendo o recorrente indicado expressamente que o recurso se restringe ao conhecimento de questões de direito. O valor da ação e da sucumbência não obstam à admissibilidade do recurso (art.629º, n.1 do CPC), e o recorrente tem legitimidade (enquanto parte vencida) para a respetiva interposição (art.631º do CPC).


O objeto da presente revista (delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente) consiste em saber se a decisão recorrida fez a correta aplicação do direito quando considerou o autor parte ilegítima para propor a ação prevista no artigo 77º, n.1 do Código das Sociedades Comerciais, absolvendo o réu da instância quanto a essa parte; e se fez a correta aplicação do direito quando julgou a ação improcedente e absolveu o réu do pedido formulado no quadro do artigo 79.º do Código das Sociedades Comerciais, quanto a danos patrimoniais e não patrimoniais alegados pelo autor.


*


2. Os factos provados


A primeira instância deu como provados os seguintes factos:


a) A sociedade A..., Ldª, é uma sociedade comercial de quotas, com o número de identificação fiscal n.º ...22, com um capital integralmente subscrito de € 150.000,00, detida em partes iguais por três sócios.


b) O Autor é sócio da sociedade A..., Ldª, detendo uma quota no valor nominal de € 50.000,00, representativa de 1/3 do capital da sociedade.


c) O Réu é sócio da sociedade A..., Ldª, detendo uma quota no valor nominal de € 50.000,00, representativa de 1/3 do capital da sociedade.


d) No dia 6 de Dezembro de 2021, a sociedade A..., Ldª, representada pelo seu gerente, apresentou-se à insolvência.


e) Aquando da apresentação à insolvência referida no ponto anterior, o exercício da gerência da sociedade A..., Ldª cabia exclusivamente ao Réu.


f) Por sentença proferida a 20/12/2021, transitada em julgado em 10/01/2022, no âmbito dos autos de processo de insolvência n.º 5373/21.9..., cujos termos correm no Juízo de Comércio de ... – J..., do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, foi declarada a insolvência da sociedade A..., Ldª


*


3. O direito aplicável


3.1. Quanto à questão da ilegitimidade ativa do autor para propor a ação prevista no artigo 77º, n.1 do Código das Sociedades Comerciais, o recorrente afirma, no ponto n.4 das conclusões das alegações, que o tribunal recorrido não lhe permitiu o exercício do contraditório (art.3º do CPC) ao decidir pela exceção da ilegitimidade ativa para reclamar danos sofridos pela sociedade insolvente.


Ora, tal afirmação não corresponde à verdade, pois como consta dos autos, as partes tiveram oportunidade para se pronunciarem sobre essa matéria. A exceção foi invocada pelo réu na contestação e o autor teve, obviamente, a oportunidade de sobre ela se pronunciar, como aliás se afirma expressamente na sentença recorrida.


No que respeita aos fundamentos da decisão sobre a referida questão da ilegitimidade do autor, concluiu-se que a sentença fez a correta aplicação do direito ao caso concreto, encontrando-se, aliás, sustentada com elevado rigor técnico.


Colhem-se na decisão recorrida as afirmações que sucintamente se extratam:


«O problema que se nos impõe resolver situa-se no âmbito de delimitação do pressuposto processual de legitimidade, previsto no artigo 30.º do Código de Processo Civil.


Considerando que a presente excepção foi devidamente debatida, pelas partes, nos articulados, importa, desde já, proferir decisão a respeito.


(…)


Com a presente acção, pretende o Autor efectivar a responsabilidade civil do Réu, na qualidade de gerente da sociedade A..., Ldª, pelos danos causados quer à sociedade (cfr. artigo 77.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais), quer ao próprio Autor enquanto sócio da sociedade (cfr. artigo 79.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais).»


Sobre a ação prevista no artigo 77º, n.1 do CSC, afirma-se na sentença recorrida:


«O interesse nuclear desta acção é o da sociedade, sendo disso demonstrativo o disposto no artigo 77.º, n.º 4, do Código das Sociedades Comerciais, que exige a intervenção da própria sociedade na acção.


Sucede, porém, que perante um quadro insolvencial judicialmente declarado, o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, consagra um regime especial quanto à legitimidade para propositura de acções sociais de responsabilidade, isto é, aquelas que visam salvaguardar o interesse social no plano do exercício das funções de gerência/administração.


Assim, ao abrigo do disposto no artigo 81.º, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que “[o] administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência”, acrescentando-se no artigo 82.º, n.º 3, alínea a), do mesmo diploma que, “[d]urante a pendência do processo de insolvência, o administrador da insolvência tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir: a) As acções de responsabilidade que legalmente couberem, em favor do próprio devedor, contra os fundadores, administradores de direito e de facto, membros do órgão de fiscalização do devedor e sócios, associados ou membros, independentemente do acordo do devedor ou dos seus órgãos sociais, sócios, associados ou membros” (…).


Significa, portanto, que, durante a pendência do processo de insolvência, são afastadas as regras jurídico-societárias relativas à legitimidade activa da sociedade, dos sócios e dos credores daquela para propor (ou fazer seguir) qualquer tipo de acção social de responsabilidade.» (…)


E concluiu-se:


«Compulsados os autos, constata-se que o Autor, invocando a sua qualidade de sócio na sociedade A..., Ldª – declarada insolvente –, peticiona a condenação do Réu no pagamento de uma indemnização, a favor daquela pessoa colectiva, pelos danos causados à mesma em consequência do exercício dos actos praticados no exercício das funções de gerente.


Considerando o supra referido artigo 82.º, n.º 3, alínea a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e tendo presente a situação insolvencial em que se encontra a sociedade em questão, o aqui Autor não poderia peticionar a condenação do Réu no pagamento de uma indemnização a favor da sociedade insolvente, pois que a legitimidade processual para a formulação de tal pedido pertence exclusivamente ao respectivo administrador da insolvência.


Impõe-se, portanto, concluir que o Autor se encontra numa situação de ilegitimidade quanto ao pedido de condenação do Réu no pagamento à sociedade A..., Ldª (à sua massa insolvente) dos montantes relativos aos prejuízos que a pessoa colectiva está (ou vier) a sofrer em consequência da sua actuação.»


3.1.1. Efetivamente, entre os efeitos da declaração de insolvência sobre o devedor, regulados entre o artigo 81º e o artigo 84º do CIRE, encontra-se a perda dos poderes de administração dos bens do devedor, os quais passam para o administrador da insolvência, como resulta da interpretação conjugada dos números 1 e 4 do artigo 81º.


No que respeita especificamente aos efeitos sobre os administradores da sociedade insolvente, determina o artigo 82º, n.3, alínea a) do CIRE:


«3 - Durante a pendência do processo de insolvência, o administrador da insolvência tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir:


a) As acções de responsabilidade que legalmente couberem, em favor do próprio devedor, contra os fundadores, administradores de direito e de facto, membros do órgão de fiscalização do devedor e sócios, associados ou membros, independentemente do acordo do devedor ou dos seus órgãos sociais, sócios, associados ou membros.»


O teor literal da norma não suscita dúvidas quanto à exclusividade da legitimidade ativa do administrador de insolvência para propor ações no interesse da sociedade insolvente. Assim, tratando-se de uma norma de natureza especial (porque prevista num diploma de natureza especial – o CIRE), é inequivocamente este regime o aplicável, afastando-se, consequentemente, o regime comum previsto no art.77.º do CSC, porquanto a lei transfere para o administrador judicial a competência para avaliar os atos que melhor servem os interesses da sociedade declarada insolvente.


Alega o recorrente [nos pontos n.17 a n.19 das conclusões das alegações] que o administrador judicial omitiu o dever de propor a competente ação em tribunal para defesa dos interesses da sociedade e, por isso, o autor, enquanto sócio, estaria a suprir essa omissão. Mas não é assim. Se algum sócio de uma sociedade insolvente entende que o administrador judicial não cumpre os deveres a que legalmente está vinculado, tem, naturalmente, ao seu dispor os mecanismos de responsabilização do administrador.


O artigo 82º do CIRE não prevê qualquer exceção à regra da exclusividade da legitimidade do administrador da insolvência para propor ações de indemnização no interesse da sociedade. O administrador da insolvência será, na perspetiva do legislador, o sujeito em melhor posição para avaliar se, em cada caso concreto, deverá ser proposta uma ação de responsabilização em favor da sociedade ou se, pelo contrário, a melhor opção (nomeadamente por evitar custos) é a de não propor ações provavelmente inviáveis. Se a decisão do administrador, no sentido de agir judicialmente, ou de não agir, não é uma decisão criteriosa, podem os interessados, obviamente, ativar os competentes mecanismos de aferição da sua responsabilidade.


3.2. Quanto à questão respeitante à alegada responsabilidade do réu para com o autor (enquanto sócio da sociedade insolvente), nos termos do art.79º do CSC, entende o recorrente que este tribunal deve revogar a sentença e determinar a continuação do julgamento na primeira instância para que se produza prova dos danos (morais e patrimoniais) que diz ter sofrido.


Afirma o autor [nomeadamente no ponto n.22 das conclusões das alegações] que o tribunal recorrido não lhe permitiu fazer prova dos danos diretos, através da restante prova requerida, nomeadamente testemunhal, porque decidiu no saneador sentença.


3.2.1. Determina o art. 79º do CSC


«1 - Os gerentes ou administradores respondem também, nos termos gerais, para com os sócios e terceiros pelos danos que directamente lhes causarem no exercício das suas funções.


2 - Aos direitos de indemnização previstos neste artigo é aplicável o disposto nos n.os 2 a 6 do artigo 72.º, no artigo 73.º e no n.º 1 do artigo 74.º»


Entendeu-se na sentença recorrida, tal como entende a generalidade da doutrina1, que esta hipótese normativa respeita apenas a indemnização por danos diretamente sofridos pelo sócio (e já não a danos indiretos). Tendo o autor alegado que sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais em consequência, essencialmente, da apresentação da sociedade à insolvência por decisão do réu (com a consequente desvalorização da quota do autor), a decisão recorrida entendeu que, a existirem danos, eles teriam sido produzidos, nesses termos, de forma indireta.


E concluiu, em síntese, que:


«(…) o Autor encontra-se impedido, em abstracto, de reclamar do Réu os valores referidos, não tendo a sua pretensão sustento à luz do artigo 79.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais.


Independentemente do resultado probatório a que se chegasse caso a presente acção prosseguisse a fim de apurar a factualidade alegada pelo Autor, o pedido indemnizatório por si formulado no âmbito da tutela da acção de responsabilidade prevista e regulada no do artigo 79.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais seria forçosamente improcedente pelas razões expostas.


Resulta, portanto, claro e inócuo que o conjunto de factos alegados pelo Autor – nomeadamente, os factos constitutivos do direito invocado – não preenche, de forma alguma, as condições de procedência da presente acção, razão pela qual se mostra irrelevante a sua prova


3.2.2. Entende o recorrente que a ação devia continuar para se produzir prova de que sofreu danos diretos.


Ora, o recurso per saltum, como decorre expressamente da lei (art.678º do CPC) destina-se, exclusivamente, a conhecer de questões de direito. Tal pressupõe, naturalmente, que a parte que interpõe um recurso de revista per saltum se conforma com a matéria de facto que a primeira instância deu como provada.


O recorrente, apesar de ter optado por interpor um recurso per saltum, no qual não se podem discutir questões respeitantes ao julgamento da matéria de facto, tece a sua pretensão recursória alegando, repetidamente [sobretudo nas conclusões n.23 e n.35], ter sofrido danos tanto morais como patrimoniais, bem sabendo que nenhuma prova existe nos autos quanto à eventualidade de tais danos.


Ora, não cabe a este tribunal pronunciar-se quanto ao modo como a matéria de facto foi julgada pela primeira instância. Se o recorrente entendia que a matéria apurada era insuficiente, podia, obviamente, ter feito outras opções recursórias, pois o art.662º, n.2 do CPC não se aplica ao julgamento de revista, como determina o art.679º do CPC.


A este tribunal cabe, apenas, julgar questões de direito, com base na matéria de facto que se encontra estabilizada.


Ora, a existência, ou não, de danos é matéria de natureza factual. A primeira instância entendeu que os meios de prova requerido, particularmente a prova testemunhal, não era relevante para a decisão sobre os danos alegados pelo autor; e, por isso, decidiu no saneador.


Independentemente das particularidades de regime, decorrentes do direito societário, a hipótese de responsabilização de um sócio nos termos do art. 79º do CSC não deixa de ser aferível nos termos gerais. Tal pressupõe, necessariamente, que se encontrem demonstrados os requisitos de verificação cumulativa exigidos pelo art. 483º do CC. Ora, no caso concreto, falha, desde logo, o pressuposto básico da construção de qualquer hipótese de responsabilização civil, ou seja, a prova da existência de danos.


Deste modo, deixa de ter interesse a discussão sobre a questão de saber que tipo de danos cabem no âmbito de responsabilização do art.79º do CSC, pela simples razão de que não há prova de quaisquer danos; e não cabe na natureza do presente recurso determinar a produção de prova sobre a eventual verificação desses danos, como já se explicitou.


Em resumo, concluiu-se que as pretensões do recorrente são improcedentes, não existindo fundamento para alterar a decisão recorrida, a qual fez a correta aplicação do direito ao caso concreto.


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DECISÃO: Pelo exposto, julga-se a revista improcedente e confirma-se a decisão recorrida.


Custas pelo recorrente.


Lisboa, 30.11.2023


Maria Olinda Garcia (Relatora)


Luís Espírito Santo


Graça Amaral





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1. Veja-se neste sentido, por exemplo, Coutinho de Abreu e Maria Elizabete Ramos em anotação ao artigo 79º do CSC, in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Volume I, 2ª ed., páginas 970 e seguintes.↩︎