Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A2235
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
DIREITO DE RETENÇÃO
CONTRATO-PROMESSA
HIPOTECA VOLUNTÁRIA
GRADUAÇÃO.
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: SJ20070918022356
Data do Acordão: 09/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I) A não registabilidade do direito de retenção de que beneficia o promitente- comprador de um imóvel, por ter havido “traditio”, não exprime a existência de “ónus oculto”, em contraponto com o regime da hipoteca voluntária que tem necessariamente de ser levada ao registo.
II) Na justa ponderação de interesses, que demanda o regime urgente do processo de insolvência, a estatuição do prazo de 10 dias - art. 130º, nº1, do CIRE - para impugnação da lista de credores, e a não notificação pessoal dessas listas, a que alude o seu art. 129º, nº1, não se mostram desnecessários, desadequados, irrazoáveis ou arbitrários, nem contendem com a extensão e o alcance do conteúdo do direito fundamental de acesso aos tribunais que se encontra consagrado no artigo 20° da Constituição, pelo que não são inconstitucionais.
III) O crédito garantido pelo direito de retenção de que beneficia o promitente-comprador de um imóvel de que obteve a “traditio”, deve ser graduado prioritariamente, em relação ao crédito hipotecário sobre o mesmo bem – art. 755º, nº1, f) do Código Civil.
IV) O normativo citado e o art. 442º, nº2, do Código Civil não enfermam de inconstitucionalidade orgânica.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


Por sentença proferida em 6 de Julho de 2005, do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca do Montijo, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de AA, BB e CC, tendo-se fixado em 30 dias o prazo para a reclamação de créditos.

Findo o prazo para a apresentação das reclamações, o Sr. Administrador da Insolvência juntou a lista de credores reconhecidos e não reconhecidos, nos termos do disposto no artigo 129º, nº1, do CIRE.


Foram reclamados os seguintes créditos:

1 –DD – Materiais de Construção, Lda., no montante de 77.246,81 (setenta e sete mil duzentos e quarenta e seis euros e oitenta e um cêntimos), invocando o direito de retenção sobre a fracção autónoma designada pela letra “Z”, descrita sob o nº 01431 da Conservatória do Registo Predial de Alcochete.

2 – CAIXA DE CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO DE ENTRE O TEJO E SADO, no montante de 413.101,56 € (quatrocentos e treze mil cento e um euros e cinquenta e seis cêntimos) proveniente de financiamento e outras transacções bancárias, garantido por hipoteca voluntária até ao montante de 309.878,19 €, sobre o prédio urbano sito na Lagoa da Pedra, descrito sob o nº 00115/970618.

3 – CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL, no montante de 200.345,26 € (duzentos mil, trezentos e quarenta e cinco euros e vinte e seis cêntimos), proveniente de financiamento e outras transacções bancárias, garantido por hipoteca voluntária até ao montante de 222.483,28, sobre o lote de terreno sito na Lagoa da Pedra, fls. 5 v do livro B 56/19347 e o lote de terreno sito em S. Francisco, descrito sob o nº 1150.

4 – CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL, no montante de 90.122,68 € (noventa mil, cento e vinte e dois euros e sessenta e oito cêntimos), proveniente de financiamento e outras transacções bancárias, garantido por hipoteca voluntária até ao montante de 957.691,96 €, sobre as fracções autónomas designadas pelas letras “B”, “F”, “G”, “Q”, “R”, “Z”, “AA” e “AC”, descrito no 01431.

5 - CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A., no montante de 200.671,60 (duzentos mil, seiscentos e setenta e um euros e sessenta cêntimos), proveniente de financiamento e outras transacções bancárias, garantido por hipotecas voluntárias até ao montante global de 414.675,63 €, sobre as fracções autónomas designadas pelas letras “A”, “B” e “C”, do prédio descrito sob o nº 339/19870807.

6 – DAIMLERCHYSLER SERVICES PORTUGAL – ALUGUER DE AUTOMÓVEIS, LDA., no montante de 52.014,84 (cinquenta e dois mil catorze euros e oitenta e cinco cêntimos), proveniente de um contrato de aluguer de longa duração, garantido por aval prestado pelos insolventes numa livrança, de € 42.446,38.

7 – INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL I.P. – CENTRO DISTRITAL DE SETÚBAL, no montante de 6.787,10 (seis mil setecentos e oitenta e sete euros e dez cêntimos), proveniente de contribuições não pagas.

8 –EE, no montante de 58.893,67 (cinquenta e oito mil, oitocentos e noventa e três euros e sessenta e sete cêntimos), proveniente de um contrato de mútuo, garantido por penhora sobre as fracções autónomas designadas pelas letras “A” e “B” do prédio descrito sob o nº 00115/970618.

Nenhum crédito reclamado foi impugnado.

Para a massa insolvente foram apreendidos os seguintes bens (cfr. apenso B):

[…]

3– Bens Imóveis

- Fracção autónoma designada pela letra “Z”, correspondente ao rés-do-chão do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua Constantino Rodrigues, em Alcochete, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete sob o nº 01431.

[…].

***


Foi proferida sentença que graduou os créditos, pela seguinte ordem: .

Bens Imóveis:

I) Para serem pagos pelo produto da venda da fracção autónoma designada pela letra “Z” correspondente ao rés-do-chão do prédio em regime de propriedade horizontal, sito na Rua Constantino Rodrigues, em Alcochete, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete sob o nº 01431 (verba nº 4 do auto de fls. 3 do apenso B):

- Em 1º lugar o crédito reconhecido ao credorDD Materiais de Construção, Lda (até ao montante máximo garantido de 77.246,81 € - cfr. fls. 11).

- Em 2º lugar o crédito reconhecido ao credor Caixa Económica Montepio Geral (até ao montante máximo garantido de Esc. 257.225.000$00 – 1.283.032,89 € - cfr. certidão da CRP de Alcochete de fls. 434).

- Em 3º lugar os restantes créditos rateadamente.

[…].
***

De tal graduação apelou a Caixa económica do Montepio Geral para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por Acórdão de 639 a 646, julgou o recurso improcedente e confirmou a decisão recorrida.
***


De novo inconformado recorreu para este Supremo Tribunal e nas alegações apresentadas formulou as seguintes conclusões:

1°. A recorrente, na sua qualidade de credora hipotecária reclamou seus créditos, no âmbito do processo de insolvência a que referem os presentes autos, invocando garantia hipotecária sobre várias fracções autónomas entre as quais, a designada pela letra “Z” que faz parte do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete sob o n°1431.

2º Sobre a aludida fracção a recorrida reclamou um crédito de € 77.240,80, invocando ser titular de direito de retenção sobre o aludido imóvel, não alegando, contudo, quaisquer factos constitutivos que de “per si” permitam concluir que detém tal direito de garantia limitando-se tão somente a remeter para a acção declarativa a razão pela qual no seu entendimento goza de direito de retenção sobre a fracção autónoma designada pela letra “Z”.

3° Do teor da sua reclamação de créditos, não se pode retirar nenhuma conclusão de facto ou de direito que permita concluir que a recorrida detém direito de retenção sobre a já referida fracção autónoma.

4° Ora, o tribunal “a quo” não poderia ter conhecido do que não é invocado na petição inicial de reclamação de créditos.

5° Ao ter reconhecido ao reclamante, ora recorrido o direito de retenção sobre a já identificada fracção autónoma, sem que tal tivesse por ele sido invocado, o tribunal “a quo” conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, o que configura, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 668°, n° 2 alínea d) do Código de Processo Civil, excesso de pronúncia, que importa na nulidade da sentença.

6° Não articulando quaisquer factos tendentes a provar o seu direito, nem juntando qualquer documento onde tal direito lhe tivesse sido reconhecido, a petição inicial de reclamação de créditos é inepta por falta de causa de pedir. A ineptidão da petição inicial acarreta a nulidade de todo o processo, excepção dilatória essa, que o tribunal “a quo” deveria ter conhecido oficiosamente (artigo 495º do Código de Processo Civil).

8° A recorrida não invocou qualquer facto constitutivo seja do crédito seja do direito de retenção.

9° Competiria ao M.mo. Juiz “a quo”, de forma oficiosa, sindicar ou não da existência do invocado direito de retenção, sendo certo que, pelo constante na p.i. dúvidas não poderiam existir do improcedimento de tal pedido.

10º Ao elaborar a sentença, da forma como o fez, na parte ora controvertida, o Mmo. Juiz “a quo” não fez uma correcta interpretação do disposto no artigo 47°, n° 4, alínea a) do CIRE, pois não tendo sido alegados factos constitutivos de direito de retenção sobre a fracção “Z”, o crédito da recorrida não poderia ter sido reconhecido como garantido, nem graduado à frente do crédito da recorrente credora hipotecária.

11º Estamos, pois, perante erro manifesto, que importa a não homologação da lista de credores reconhecidos e a não graduação dos respectivos créditos, delimitada “in casu” à parte da sentença posta em crise e objecto do presente recurso. (artigo 131°, n° 3 “a contrario sensu” do CIRE)

12° A reclamação de créditos formulada pela recorrida, padece da falta de requisitos formais “ad substantiam”, pelo que, não poderia o M.mo Juiz “a quo” abster-se de verificar a conformidade substancial e formal do crédito reclamado pela Apelada, como o fez.

13° Interpretando o conceito de “erro manifesto” em termos amplos, a sentença de verificação e graduação de créditos na parte ora recorrida, padece de evidente erro devido à qualidade em que foi reconhecido e graduado o crédito reclamado pela recorrida.

14° O artigo 755.°, n.° 1, alínea f) do Código Civil confere ao promitente-comprador, que obteve a tradição da coisa, um direito de retenção sobre o bem imóvel;

15° O direito de crédito do promitente-comprador, resultante do incumprimento pelo promitente vendedor, do respectivo contrato-promessa, prevalece sobre o crédito hipotecário, ainda que a hipoteca apresente registo anterior.

16° Tal direito de retenção não é objecto de registo, logo, é um direito que não é publicitado.

17° No caso dos autos, vê-se a recorrente confrontada com um direito real de garantia, não sujeito a registo, com o qual não contava;

18° Esse direito de retenção sobrepõe-se à hipoteca constituída e registada em momento anterior, relegando-a para um segundo plano;

19° O legislador ao querer proteger e defender os interesses de uma das partes na relação jurídica emergente do contrato-promessa, não poderia ter criado normas que sacrificam, efectivamente, da forma injusta e ilegítima, os interesses patrimoniais de terceiros não intervenientes e completamente alheios, por causa que não lhes é imputável, ao contrato-promessa.

20º Proteger-se, por esta forma, um direito que não é publicitado é permitir que “ónus ocultos” afectem a posição jurídica do sujeito que levou o seu acto a registo.

21° Está, assim, posto em causa o próprio princípio da segurança do comércio jurídico imobiliário.

22° O regime jurídico do direito de retenção concedido ao promitente-comprador por força das citadas normas, tudo isto ignora, dado que frustra a legítima confiança que o credor hipotecário deposita no Estado enquanto garante dos seus direitos fundamentais
23° Por força da sentença de graduação de créditos vai ser pago o crédito da promitente compradora com preferência sobre o crédito da recorrente.

24° Na sentença dos presentes autos, graduando o crédito da promitente compradora com preferência sobre o crédito da Recorrente, verifica-se a existência da violação do princípio da confiança do comércio jurídico, princípio constitucional ínsito no artigo 2.° da CRP;

25° A norma contida no artigo 130°, n° 1 do CIRE, interpretada e aplicada no sentido de que de que se esgota no prazo de 10 dias, a possibilidade de qualquer interessado “atacar” o reconhecimento de eventual crédito reclamado em sede de processo de insolvência é materialmente inconstitucional por violadora dos princípios da proporcionalidade, da protecção jurídica e das garantias processuais, do acesso ao direito e aos tribunais e ainda ao princípio da precisão ou determinabilidade das normas jurídicas, ínsitos na Constituição da República Portuguesa.

26° Ao restringir, a 10 dias, o prazo para impugnar créditos em sede de processo de insolvência, quando para isso não se é notificado, a norma supra mencionada ofende o princípio constitucional da proporcionalidade, atenta a justa adequação da medida coactiva que visa alcançar o determinado fim, “in casu”, o da impugnação de créditos.

27° Além de violadora do princípio da protecção jurídica e das garantias processuais, a norma transcrita no artigo 130º, nº1, do CIRE não traduz o princípio do estado de direito que exige um procedimento justo e adequado de acesso à justiça e de realização do direito.

28° Sendo inconstitucional tal norma não pode ser invocada e aplicada em qualquer procedimento judicial.

29° - Pelas razões atrás deduzidas, o Tribunal “a quo” não deveria ter reconhecido nem graduado o crédito reclamado

30º - Assim não tendo acontecido, a douta sentença recorrida, fez uma errada interpretação e aplicação das disposições legais, nomeadamente, das contidas nos artigos 442°, 755° e 759º do Código Civil, artigos 193°, 494° e 495° do Código de Processo Civil, artigos 47° e 130º do CIRE e ainda dos artigos 2°,18° e 20º, da Constituição da República Portuguesa.

31º - Pelo que é ilegal a douta decisão recorrida.

Assim decidindo farão a costumada Justiça.

***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que releva, factualmente, o que consta do Relatório.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso, importa saber:

1. - se o crédito da reclamante “DD”, invocando o direito de retenção sobre a fracção Z, com base num contrato-promessa em que interveio como promitente-compradora aos insolventes (promitentes-vendedores) deveria ter sido reconhecido – [como sub-questão – a da ineptidão do requerimento daquele credor, por falta de causa de pedir, o que dispensaria a recorrente de o impugnar, porque o Juiz devendo conhecer oficiosamente da excepção teria de julgar a petição inepta];

2. - se tal crédito goza do direito de retenção, sendo que o Tribunal não podia ter conhecido da pretensão do reclamante por não terem sido invocados factos que permitissem concluir pela existência desse direito;

3. - indevida homologação da lista de credores reconhecidos sendo de considerar que houve “erro manifesto” – art. 131º, nº3, do CIRE;

4. - inconstitucionalidade do art. 130º, nº1, do CIRE por o prazo de 10 dias para a impugnação dos créditos ser escasso e a não previsão da notificação aos credores coarctar direito de defesa, afectando os princípios da proporcionalidade e do acesso ao direito e aos tribunais.

5. - inconstitucionalidade dos arts. 442º, nº2, e 775º, nº1, f) do Código Civil – reconhecimento da prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca – por aquele direito se tratar de “ónus oculto”, quando em contraponto com a hipoteca voluntária, facto registável;

6. - violação do princípio constitucional da protecção da confiança, sendo ainda organicamente inconstitucionais os DL. 236/80, de 18.7 e 397/86, de 11.11. por violarem o princípio da competência exclusiva da Assembleia da República – art. 165º, nº1, b) da CR.


Vejamos:

A recorrente não impugnou a lista apresentada pelo Administrador da insolvência que foi homologada pelo Juiz que, assim, considerou existir direito de retenção da reclamante “DD”, graduando o crédito por esta reclamado preferentemente ao do recorrente, relativamente à fracção Z, sobre a qual este tinha garantia hipotecária para garantia do crédito mutuado aos insolventes/recorridos.

Este é o nó górdio da questão. A recorrente, não aceita a graduação do seu crédito – [não tendo impugnado o da “DD”] – em segundo lugar, sobre aquela fracção predial quando dispunha de hipoteca voluntária registada.

Assim, em 1º lugar, foi graduado o crédito reconhecido ao credor “DD-Materiais de Construção, Ldª” (até ao montante máximo garantido de € 77.246,81); em 2º lugar foi graduado o crédito reconhecido ao credor Caixa Económica Montepio Geral (até ao montante máximo garantido de 257.225.000$00 – € 1.283.032,89).

Analisando as três primeiras questões – a forma e o fundo da reclamação da “DD”.

No 1º volume do apenso de reclamação de créditos – fls. 5 a 11 – a “DD-Materiais de Construção, Ldª”, reclamou o crédito de 11.046.289$00 – € 55.098,56 – alegando a pendência de uma acção, distribuída em 10.12.2004, não contestada, e a aguardar sentença, no 2º Juízo Cível do Tribunal da Comarca de Vila Franca de Xira – Proc. 1071/02 – sendo que aquele valor pedido pela sociedade (Autora) correspondia ao dobro do sinal que a reclamante entregou, enquanto promitente-compradora, aos promitentes-vendedores BB e mulher CC, ora insolventes, fracção objecto de traditio, sendo que os promitentes-vendedores, que receberam sinal, não cumpriram o contrato-promessa de compra e venda da fracção Z que ali melhor identificam.

Pedem ainda juros vencidos e vincendos.

Nesse requerimento a reclamante alude, expressamente, ao direito de retenção fundado nos arts. 755º, nº1, f) e 759º, nº1, do Código Civil.

Mostram os autos que tal requerimento foi instruído com cópia da petição inicial da acção judicial e cópia de um exemplar do “Contrato de promessa de compra e venda e recibo de sinal”, datado de 13.5.1999.

Analisando a petição inicial é manifesto que, ao longo do articulado, a Autora invoca de forma clara a causa de pedir e o pedido, articulando factos de onde sem esforço, se conclui que os RR. entraram em mora não tendo comparecido por três vezes para outorgar a escritura de compra e venda, pelo que a Autora lhes comunicou e os RR. receberam a comunicação, que perdia interesse na prestação deles RR. – art. 808º, nº1, do Código Civil, ou seja, que não estava interessada na celebração do contrato; articulou, ainda, factos de onde se conclui, indubitavelmente, ter obtido a traditio da fracção Z, culminando com o pedido de declaração de incumprimento definitivo do contrato-promessa por motivo imputável aos RR., ou que se declare a sua resolução; a condenação no pagamento de 11.042.298$00, correspondente ao dobro do sinal prestado, e respectivos juros de mora, remata pedindo que se lhe reconheça o direito de retenção sobre a fracção em causa para garantia daquele seu crédito.

Sustenta a recorrente que existe ineptidão por falta de causa de pedir, e que o Senhor Juiz da 1ª Instância deveria ter declarado o requerimento ferido de ineptidão – art. 193º, nºs 1 e 2 a), do Código de Processo Civil.

Com o devido respeito de modo algum se pode assim considerar.

Desde logo porque, no requerimento de reclamação de crédito o reclamante deu cabal cumprimento ao disposto no art. 128º do CIRE que estatui:

“1. Dentro do prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, devem os credores da insolvência, incluindo o Ministério Público na defesa dos interesses das entidades que represente, reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, acompanhado de todos os documentos probatórios de que disponham, no qual indiquem:

a) A sua proveniência, data de vencimento, montante de capital e de juros;
b) As condições a que estejam subordinados, tanto suspensivas como resolutivas;
c) A sua natureza comum, subordinada, privilegiada ou garantida, e, neste último caso, os bens ou direitos objecto da garantia e respectivos dados de identificação registral, se aplicável;
d) A existência de eventuais garantias pessoais, com identificação dos garantes;

2 — O requerimento é endereçado ao administrador da insolvência, e apresentado no seu domicílio profissional ou para aí remetido por via postal registada, devendo o administrador, respectivamente, assinar no acto de entrega, ou enviar ao credor no prazo de três dias, comprovativo do recebimento.

3 — A verificação tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento.”

Por outro lado, tal requerimento foi acompanhado de documentos que se têm de considerar integrados na alegação, senão, por expressa, ao menos por implícita remissão, que permitiam um inequívoco conhecimento da pretensão da requerente o que logo afasta a possibilidade de ineptidão por falta de causa de pedir.

Este normativo do inovador CIRE – DL. 53/2004, de 18.3 – consagra um dos pontos essenciais da reforma do direito falimentar, desjudicalizando o processo, visando a sua simplificação e desburocratização, ademais correspondendo ao anseio sobretudo do empresariado e da economia no sentido de que os Tribunais e a legislação deveriam ser mais expeditos em ordem a afastar da vida comercial as empresas em estado de insolvência, de modo a que sejam obtidos ganhos de competitividade e a economia não funcione com empresas sem quaisquer condições para competirem de maneira sã no mundo negocial.

O ponto 37 do preâmbulo do diploma é elucidativo:

“É na fase da reclamação de créditos que avulta de forma particular um dos objectivos do presente diploma, que é o da simplificação dos procedimentos administrativos inerentes ao processo.
O Código dispõe, a este respeito, que as reclamações de créditos são endereçadas ao administrador da insolvência e entregues no ou remetidas para o seu domicílio profissional.
Do apenso respeitante à reclamação e verificação de créditos constam assim apenas a lista de credores reconhecidos e não reconhecidos, as impugnações e as respectivas respostas.
Para além da simplificação de carácter administrativo, esta fase permite dar um passo mais na desjudicialização anteriormente comentada, ao estabelecer-se que a sentença de verificação e administrador da insolvência e a graduar os créditos em atenção ao que conste dessa lista, quando não tenham sido apresentadas quaisquer impugnações das reclamações de créditos.
Ressalva-se expressamente a necessidade de correcções que resultem da existência de erro manifesto”. (destaque nosso).

Essencial é que no requerimento de reclamação o credor mencione a proveniência do seu crédito, a sua natureza, a existência de garantias e a taxa de juros.

A reclamante “DD” satisfez tais requisitos, além de que fez acompanhar esse requerimento “de todos os documentos probatórios” de que dispunha.

É infundada, assim, a alegação de ineptidão de tal requerimento, pelo que sendo ele apresentado ao administrador, mas tendo ulteriormente o juiz de homologar a lista de credores a que alude o art. 130º, nº1, do CIRE, no caso de não haver impugnações sempre lhe competiria analisar se por aquele havia sido cumprido o preceituado no art. 129º.

Ora, o Juiz do processo, ante a não existência de impugnação de qualquer dos créditos reclamados e constantes da lista apresentada pelo administrador homologou tal lista nos termos do art. 130º, nº3, que estatui:

“Se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação dos créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista”.

De notar que só se houvesse impugnação é que o processo seria apresentado ao Juiz; não havendo impugnação o juiz homologa a lista dos credores reconhecidos tal como foi apresentada pelo administrador da insolvência, graduando os créditos em função dessa lista.

A homologação só não é imediata se o juiz verificar a existência de erro manifesto nessa listagem elaborada pelo administrador.

Esse controle para evitar que “erros manifestos” inquinem a homologação, permite ao Juiz latos poderes de controle dos requisitos dos requerimentos dos credores reclamantes, de modo a verificar se haviam sido alegados os requisitos a que se aludiu, pois só ante eles o julgador, atenta a natureza do crédito, as suas garantias e demais elementos que a lei impõe que sejam mencionados, poderá proceder a uma correcta graduação.

Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado” – volume I – em comentário ao art. 130º, pág.460 escrevem.

“…Se não houver impugnações, rege o nº3 do art. 130.
Segundo este preceito, verificada esta hipótese, o juiz profere de imediato sentença de verificação e graduação dos créditos constantes da lista de créditos reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência, nos termos que desta constam.
Por outras palavras, que de resto, traduzem a letra da lei, a sentença limita-se, então, a homologar essa lista, atribuindo-se efeito cominatório à falta de impugnações.
Só assim não acontece se, na lista, houver erro manifesto.
Suscita-nos as maiores dúvidas este regime, quanto à sua adequação numa matéria de tanto relevo e complexidade técnico-jurídica.
Desde logo, por limitar tão significativamente a função do juiz que quase a reduz a uma mera formalidade, com escasso sentido substantivo.
Para além disso, a inexistência de impugnações não constitui garantia significativa da correcção das listas elaboradas pelo administrador da insolvência.
Este reparo deve ser entendido em função dos curtos prazos concedidos pela lei, quer ao administrador da insolvência, para elaborar as listas, quer aos interessados, para as impugnar.
Nota tanto mais relevante quanto é certo serem, na grande maioria dos casos, em número significativo os créditos reclamados e volumosos os documentos que instruem as reclamações.
Por outro lado, impressiona, no que respeita às garantias, que a sua constituição esteja normalmente dependente do preenchimento de requisitos formais ad substantiam, cuja falta seja, afinal de contas, puramente ignorada ou desconsiderada por mero efeito da falta de impugnação.
Por isso, defendemos que deve interpretar-se em termos amplos o conceito de erro manifesto, não podendo o juiz abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes da lista que vai homologar para o que pode solicitar ao administrador os elementos de que necessite (cfr. João Labareda, O Novo Código da Insolvência, loc. cit., págs. 46 e 47; vd, também, Fátima Reis Silva, Algumas Questões Processuais no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, ibidem, págs. 76-77).
Reitera-se, finalmente, que este erro pode respeitar à indevida inclusão do crédito nessa lista, ao seu montante ou às suas qualidades. (destaque e sublinhados nossos),

Concordamos com a perspectiva dos tratadistas citados, reiterando que na hipótese em análise, a lista do administrador não enfermava de qualquer erro manifesto ao considerar que o crédito da reclamante estava validamente reclamado e que gozava do direito de retenção, pelo que a homologação foi feita sem motivo de censura.

No caso em apreço, porque não existia qualquer erro manifesto, o Tribunal da insolvência considerou, e bem, que o credor “DD” tinha reclamado correctamente, quer formal, quer substancialmente, o seu crédito e considerou que beneficiava de direito de retenção o que logo se poderia concluir do teor do requerimento e da petição da acção declarativa com ele junto.

Com o devido respeito, se a recorrente entendia que o requerimento enfermava do vício que lhe assaca, porque não impugnou a reclamação como lhe consentia o art. 130º, nº1, do CIRE?

Dizer quer o não fez porque era inepto e o Juiz devia tê-lo assim considerado oficiosamente é, com o devido respeito, [e sem embargo da correcção da afirmação que faz de que a ineptidão é de conhecimento oficioso], esquecer o princípio da auto-responsabilidade das partes, já que o ora recorrente tinha ao seu alcance o mecanismo de impugnação que levaria o Juiz a ter que apreciar os fundamentos da reclamação – havendo impugnações, abre-se um incidente no processo de insolvência, regulado nos arts. 13.° a 140º.

Das 4ª a 6ª questões – inconstitucionalidades.

Sustenta a recorrente a inconstitucionalidade material das normas constantes dos arts. 442º, nº2, e 755º, nº1, f) do Código Civil e a inconstitucionalidade orgânica dos Decretos-Lei nº236/80, de 18 de Julho e nº379/86, de 11 de Novembro, que introduziram o quadro legal vigente.

Relacionam-se os normativos do Código Civil com o regime jurídico de que goza o promitente-comprador de imóveis que obteve a traditio.

Essencialmente, o que o recorrente põe em causa é que, não sendo o direito de retenção sujeito a registo, logo não advindo a esse direito pela via da publicidade registral o conhecimento da sua existência, possa prevalecer sobre a hipoteca voluntária sendo que esta garantia só é válida e eficaz se constar do registo – art. 687º do Código Civil.

O direito de retenção, nos termos do art. 755º, nº1, f) do Código Civil é atribuído ao:

- beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º.

A actual redacção deste artigo foi introduzida pelo artigo único do DL nº379/86, de 11.11, o qual aditou à anterior formulação do preceito a al.) f) do nº l.

A questão da inconstitucionalidade das normas dos DL. 236/80, de 18.7 e do DL 397/86 que alteraram a redacção do art. 442º do Código Civil já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional que nos Acórdãos nºs. 374/2003, 594/2003, 22/2004 e 446/2004 entenderam que as intervenções legislativas das quais decorreu a norma da 2ª parte do nº2 deste art. 442.° “não podem ser consideradas como atingindo o núcleo essencial do direito de propriedade privada, na dimensão que o torna análogo aos direitos, liberdades e garantias, em termos tais que justifique a extensão do regime orgânico típico destes”, ferindo de inconstitucionalidade orgânica do DL nº379/86, de 11-11, que a editou. No sentido da constitucionalidade material da mesma norma, o Acórdão n.°359/2005 daquele Tribunal.

O Acórdão nº594/03 do Tribunal Constitucional de 3.12.2003 (Acs. TC, 51°-1039), não julgou organicamente inconstitucionais as normas dos Decs.-Leis nºs 236/80, de 18.7, e 379/86, de 11.11, respeitantes ao direito de retenção e não julgou materialmente inconstitucionais as normas constantes do art. 410°, nº3, e 755.°, nºl, alínea f), do Código Civil (na redacção que resulta daqueles diplomas).

O Acórdão nº356/2004 do Tribunal Constitucional, de 19.5.2004 (DR, II, de 28.6.2004, pp. 9641 e ss.), não julgou inconstitucional a norma do artigo 755°, nºl, alínea/), do Código Civil (necessariamente articulada com o disposto no artigo 759°, nº2, do mesmo diploma), nos termos da qual o direito de retenção do beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa prevalece sobre a garantia hipotecária registada em data anterior à referida tradição. – cfr. “Código Civil Anotado”, de Abílio Neto – 15ª edição – em nota aos citados normativos.

Também este Supremo Tribunal já, repetidamente, se pronunciou pela não inconstitucionalidade material das normas do art. 442º, nº2, e al. f) do nº1 do art. 755º do Código Civil, considerando que não violam os princípios da proporcionalidade, da protecção da confiança e segurança do comércio jurídico imobiliário e do direito de propriedade privada, ínsitos nos arts. 2º, 18º, nº1 e 62º, da Lei Fundamental.

“Os acórdãos deste Supremo Tribunal de 30.03.2000 e de 29.01.2003, respectivamente, proferidos nas revistas nº 174/00 da 2ª secção e nº 4480/02 da 2ª secção, de que foi Relator o Conselheiro Ferreira de Almeida; de 30.01.2003, proferido na revista nº4471/02 da 7ª secção e relatado pelo Conselheiro Nascimento Costa; de 18.02.2003, proferido na revista nº 4437/02 e relatado pelo Conselheiro Fernandes Magalhães; de 20.11.2003, proferido na revista nº 3455/03 da 2ª secção e relatado pelo Conselheiro Moitinho de Almeida de 11.10.2005, proferido na revista nº 2379/05 da 6ª secção e de que foi relator o Conselheiro Ponce de Leão foram unânimes em considerar não haver qualquer violação de preceito constitucional naquelas disposições legais” – cfr. Ac. de 14.2.2006 deste Tribunal, in www.dgsi.pt.

Os falados normativos, não são organicamente inconstitucionais porque os Direitos, Liberdades e Garantias, cuja competência para legislar pertence exclusivamente à Assembleia da República não têm a ver com garantias patrimoniais, mas com garantias, liberdades e direitos pessoais.

O recorrente afirma que a não registabilidade do direito de retenção constitui um “ónus oculto”, isto em contraponto com o regime da hipoteca voluntária.

Citamos a propósito do Acórdão deste Tribunal de 30.1.2003 – Proc. 02B4471 – número convencional JSTJ000, de que foi relator o Ex.mo Conselheiro Nascimento Costa:

“ […] Como escreve Galvão Teles (…), os credores não podem queixar-se pelo facto de o direito de retenção não estar sujeito a registo.
Em primeiro lugar porque o registo não é aplicável a todas as coisas.
Inclusive a todos os imóveis (pense-se nos privilégios creditórios).
Depois, e esta é uma ideia relevante: o direito de retenção envolve por si publicidade de facto.
Os credores hipotecários só têm que averiguar quem na realidade habita ou tem a posse do prédio.
Não se diga que estão em causa direitos fundamentais, que não é o caso.
Nem se pode falar de direitos análogos a direitos, liberdades e garantias.
Está em causa apenas a organização económica dos bens.
Não se vê que a concessão do direito de retenção ao promitente-comprador viole qualquer desses direitos dos credores hipotecários.
Tão pouco os DL. em apreço fazem parte da competência exclusiva da Assembleia da República – art. 164º e 165º da CR (na época art. 168º, nº1, b).
Não necessitava o Governo de autorização legislativa para legislar sobre essa matéria.
Este Tribunal pronunciou-se noutras ocasiões pela conformidade à CR dos DL 236/80 (…) e DL 379/86 (…)”.

A Constituição da República, para lá de outros princípios de invocação não tão pertinente, consagra os aqui convocáveis, da indispensabilidade, ou dos meios menos restritivos, o da proibição do excesso e da proporcionalidade.

Como ensina “Jorge Reis Novais, in “Os Princípios Estruturantes da República Portuguesa”, pág. 171:

“Ainda que, por vezes, venham confundidos, há que distinguir entre o princípio da proibição do excesso e o princípio da necessidade ou da indispensabilidade.
Enquanto que o primeiro, mais lato, proíbe que a restrição vá mais além do que o estritamente necessário ou adequado para atingir um fim constitucionalmente legítimo — o que envolve as diferentes exigências que estamos a considerar — o princípio da necessidade, enquanto sub princípio ou elemento constitutivo daquele, impõe que se recorra, para atingir esse fim, ao meio necessário, exigível ou indispensável, no sentido do meio mais suave ou menos restritivo que precise de ser utilizado para atingir o fim em vista” – sublinhámos.

E acerca do princípio da proporcionalidade:

“…Por sua vez, a observância ou a violação do princípio da proporcionalidade dependerão da verificação da medida em que essa relação é avaliada como sendo justa, adequada, razoável, proporcionada ou, noutra perspectiva, e dependendo da intensidade e sentido atribuídos ao controlo, da medida em que ela não é excessiva, desproporcionada, desrazoável.

Nesta aproximação de definição podem intuir-se, em primeiro lugar, a relativa imprecisão e fungibilidade dos critérios de avaliação; em segundo lugar, o permanente apelo que eles fazem a uma referência axiológica que funcione como terceiro termo na relação e onde está sempre presente um sentido de justa medida, de adequação material ou de razoabilidade, por último, a importância que nesta avaliação assumem as questões competenciais, mormente o problema da margem de livre decisão ou os limites funcionais que vinculam legislador, Administração e juiz.” (pág. 178) [sublinhámos].

Nenhum destes princípios é violado pela protecção legal prioritária dispensada ao direito de retenção conferido ao promitente-comprador que obteve a traditio diante do credor hipotecário.

Finalmente, a questão da inconstitucionalidade do art. 130º, nº1, do CIRE – impugnação da lista de credores reconhecidos.

Tal normativo consigna:

“Nos 10 dias seguintes ao termo do prazo fixado no nºl do artigo anterior, pode qualquer interessado impugnar a lista de credores reconhecidos através de requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos”. (o art. 129º refere-se aos procedimentos que competem ao administrador no que respeita à apresentação na secretaria de listas de todos os credores por si reconhecidos e não reconhecidos).

Como resulta das conclusões adrede formuladas, o recorrente sustenta que a norma contida no artigo 130°, nº1 do CIRE, interpretada e aplicada no sentido de que se esgota no prazo de 10 dias, a possibilidade de qualquer interessado “atacar” o reconhecimento de eventual crédito reclamado em sede de processo de insolvência é materialmente inconstitucional, por violadora dos princípios da proporcionalidade, da protecção jurídica e das garantias processuais, do acesso ao direito e aos tribunais e ainda ao principio da precisão ou determinabilidade das normas jurídicas, ínsitos na Constituição da República Portuguesa.
Ao restringir, a 10 dias, o prazo para impugnar créditos em sede de processo de insolvência, quando para isso não se é notificado, a norma supra mencionada ofende o principio constitucional da proporcionalidade, atenta a justa adequação da medida coactiva que visa alcançar o determinado fim, “in casu” o da impugnação de créditos
Além de violadora do principio da protecção jurídica e das garantias processuais, a norma transcrita no artigo 130º, nº1, do CIRE não traduz o principio do estado de direito que exige um procedimento justo e adequado de acesso à justiça e de realização do direito.

Importa atentar na natureza urgente do processo de insolvência que, sem margem para dúvidas, se estende agora a todos os seus incidentes, apensos e recursos – art. 9º, nº1, do CIRE.

O prazo de impugnação dos créditos é de 10 dias, não havendo notificação das listas apresentadas pelo administrador que ficam patentes na secretaria.

Pode questionar-se a opção do legislador ao adoptar este regime mas entre a economia de tempo que advém de assim se ter estatuído e a tradicional notificação de todos os trâmites processuais, o legislador, dado o carácter urgente do processo, fixou em 10 dias o prazo de impugnação e dispensou a notificação pessoal.

Não nos parece que daí decorra infracção dos princípios da proporcionalidade (na definição citada) e do acesso ao direito.

Recentemente o T.C. pronunciou-se – Ac. de 8.3.2007 – publicado no Diário da República, 2ª Série — n°84 — 2 de Maio de 2007, sobre a questão da não citação do credor hipotecário tabularmente inscrito, para a reclamação de créditos em processo de falência.

Foi a seguinte a decisão do Tribunal:

“Não julgar inconstitucional a norma extraída por interpretação conjugada dos artigos 20°, nº3, 188º, nºl, e 205.°, todos do CPEREF, na redacção vigente ao tempo do Decreto-Lei nº38/2003, de 8 de Março, segundo a qual “no caso específico do credor hipotecário, tabularmente inscrito em relação a um imóvel constante do activo da massa falida, é dispensada a sua citação pessoal, contando-se o prazo para a reclamação de créditos ou propositura da acção a partir dos anúncios publicados, mesmo que o credor deles não tenha conhecimento”.

Aí lê-se:

“Sustenta ainda a recorrente que a norma constitucionalmente impugnada viola ainda os princípios da proporcionalidade ou da proibição do excesso.

Subjacente a esta argumentação está o seu entendimento de que a opção legislativa por tal modo de comunicação da sentença declaratória de falência e de abertura do prazo de reclamação de créditos constitui uma constrição intolerável ao direito de acesso aos tribunais para realização dos direitos patrimoniais do credor hipotecário.

Vejamos. O direito de acesso aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos e obtenção de uma sua tutela jurisdicional, plena e efectiva, constitui um direito ou garantia fundamental que se encontra consagrada no art. 20.º da Constituição.

Mas daí não decorre que seja um direito absoluto, de uso incondicionado.

Desde logo, ele consente as restrições que caibam nos parâmetros estabelecidos nos n.ºs 2 e 3 do art. 18.º da CRP.

Por outro lado, decorre da própria previsão constitucional que a tutela jurisdicional dos direitos e interesses legalmente protegidos seja efectuada “mediante um processo equitativo” e cujos procedimentos possibilitem uma decisão em prazo razoável e sejam “caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos” que esse direito, além do mais, está sujeito a regras ou condicionamentos procedimentais e a prazos razoáveis de acção ou de recurso.

Ponto é que esses condicionamentos, pressupostos e prazos não se revelem desnecessários, desadequados, irrazoáveis ou arbitrários, e que não diminuam a extensão e o alcance do conteúdo desse direito fundamental de acesso aos tribunais.

Impõe-se, pois, que essas medidas respeitem o princípio da proporcionalidade.

Como diz o recente Acórdão n.º40/07, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt citando o Acórdão n.º 187/2001, publicado no Diário da República II Série, de 26 de Junho de 2001, “o princípio da proporcionalidade, em sentido lato, pode (...) desdobrar-se analiticamente em três exigências da relação entre as medidas e os fins prosseguidos: a adequação das medidas aos fins; a necessidade ou exigibilidade das medidas e a proporcionalidade em sentido estrito, ou “justa medida”.

Como se escreveu no (...) Acórdão n.º 634/93, invocando a doutrina:

“o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos)”.

“ […] o controlo judicial baseado no princípio da proporcionalidade não tem extensão e intensidade semelhantes consoante se trate de actos legislativos, de actos da administração ou de actos de jurisdição.
Ao legislador (e, eventualmente, a certas entidades com competência regulamentar) é reconhecido um considerável espaço de conformação (liberdade de conformação) na ponderação dos bens quando edita uma nova regulação.
Esta liberdade de conformação tem especial relevância ao discutir-se os requisitos da adequação dos meios e da proporcionalidade em sentido restrito. Isto justifica que perante o espaço de conformação do legislador, os tribunais se limitem a examinar se a regulação legislativa é manifestamente inadequada." (assim, Gomes Canotilho Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 1998, p. 264)».

A questão colocada no Acórdão do T.C. de que citamos excertos tem alguma afinidade com a questão sub judice do ponto em que o que está em causa é a estatuição de um regime jurídico que em ordem à salvaguarda da celeridade se afasta do tradicional regime de formalismo garantístico.

Na justa ponderação de interesses, que demanda o regime urgente do processo de insolvência, a estatuição do prazo de 10 dias do art. 130º, nº1, do CIRE e a não notificação pessoal das listas a que alude o art. 129º, nº1, do CIRE (não está em causa o seu nº4 que esse contempla a notificação nos casos aí definidos) não se mostram desnecessários, desadequados, irrazoáveis ou arbitrários, nem contendem com a extensão e o alcance do conteúdo do direito fundamental de acesso aos tribunais que se encontra consagrado no artigo 20° da Constituição, pelo que não são inconstitucionais.

Decisão.

Nestes termos acorda-se em negar a revista.
Custas pelo recorrente.


Supremo Tribunal de Justiça, 18 de Setembro de 2007

Fonseca Ramos (relator)
Azevedo Ramos
Silva Salazar