Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2104/12.8TBALM.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: RECURSO DE APELAÇÃO
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
NULIDADE POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 01/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: ANULADO O AÓRDÃO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I - Do despacho saneador onde se decidiu “não existir a situação de caso julgado” decorre que foi julgada não verificada a exceção dilatória de caso julgado, mas já não resulta que também tenha sido apreciada a questão da autoridade de caso julgado ligada ao mérito da ação.

II - Na vigência do CPC de 1961, o despacho saneador que considerasse não verificada a exceção dilatória de caso julgado era impugnável, nos termos do n.º 3 do art. 691.º, com o recurso que viesse a ser interposto da sentença final (tal como agora se prevê no n.º 3 do art. 644.º do CPC de 2013); já quando apreciasse a questão da autoridade de caso julgado era imediatamente impugnável, por estar relacionado com o mérito da ação.

III - Tendo a ré suscitado no recurso de apelação a nulidade da sentença por não ter sido apreciada a questão da autoridade de caso julgado, a Relação estava obrigada a apreciar esta questão, uma vez que não fora apreciada pela 1.ª instância nem no despacho saneador nem na sentença final.

IV - A falta de apreciação dessa nulidade implica a nulidade do acórdão da Relação, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC, e determina a devolução do processo à Relação, nos termos do art. 684.º, n.os 2 e 3, do CPC.

Decisão Texto Integral:


I - Petróleos de Portugal - Petrogal, S.A., intentou a presente ação declarativa sob a forma comum, contra Credimo - Soc. de Investimentos Imobiliários, Ldª, pedindo:

a) Que se declare a resolução de um contrato de constituição do direito de superfície e de um contrato de renúncia ao direito de exploração de um posto de combustíveis, ambos celebrados com a R., por incumprimento definitivo desta e por perda de interesse da A.;

b) Que se condene a R. a restituir-lhe a quantia de € 1.246.994,75, acrescida de juros vencidos até à data da propositura da ação, no valor de € 706.550,64, bem como juros vincendos até integral pagamento.

Para tanto alegou que celebrou com a R. um contrato de constituição de direito de superfície sobre um prédio urbano e que tanto nas negociações prévias como na altura da celebração do contrato a R. sempre lhe disse que o prédio acompanhava, do lado Sul, o traçado da …., sendo essa também a descrição que constava da caderneta predial que foi exibida.

A constituição desse direito de superfície visava a instalação um posto de abastecimento de combustíveis e, por acordo autónomo, mas dependente daquele, a R. renunciou ao direito de exploração desse posto de abastecimento.

Pela constituição do direito de superfície a A. pagou à R. a quantia de PTE 120.000.000$00 e como contrapartida pela renúncia à exploração do posto de abastecimento o montante de PTE 130.000.000$00.

Quando a A. se encontrava a impulsionar o processo de licenciamento da construção do posto de abastecimento suscitaram-se dúvidas quanto à legitimidade da A. para proceder ao seu licenciamento, tendo constatado que entre o prédio objeto do direito de superfície e a … existia uma parcela de terreno que a R. havia adquirido em junho de 1999 e que, em razão da existência dessa parcela, o prédio sobre o qual fora constituído o direito de superfície não acompanhava o traçado da …, na sua confrontação a Sul.

A R. sabia que essa confrontação era essencial para a celebração do negócio, mas omitiu intencionalmente tal facto nas negociações, tendo pleno conhecimento das normas que impõem que os postos de abastecimento de combustíveis tenham ligação direta com a via pública.

Decorridos cerca de 9 anos de impossibilidade de construção do posto de abastecimento de combustíveis, que se ficou a dever, em exclusivo, à R., a A. perdeu o interesse em contratar com aquela, devido à alteração das condições económicas dos contratos, o que determina a sua resolução e a obrigação da R. de restituição dos montantes recebidos e respetivos juros.

A R. contestou e alegou que sempre foi do conhecimento da A. que estavam a ser efetuados procedimentos de atualização da área do prédio que foi objeto do direito de superfície e que a parcela de terreno invocada pela demandante era parte integrante do negócio, bastando atualizar a descrição do prédio, o que foi feito.

Para a eventualidade de procedência dos pedidos da A. deduziu reconvenção, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 1.101.766,47, acrescida das rendas vincendas que a R. reconvinte auferiria até à data da entrega do imóvel.

A A. replicou e pugnou pela inadmissibilidade do pedido reconvencional.

Foi proferido despacho no qual se declarou “não existir situação de caso julgado” (sic) na relação entre esta ação e as ações n° …. e nº …..

Oportunamente foi proferida sentença em que foi decidido:

I. Julgar os pedidos formulados pela A. parcialmente procedentes e, nessa mesma medida:

a) Declarar validamente resolvidos os contratos de compra e venda e de renúncia à exploração de posto de abastecimento de combustíveis, celebrados entre a A. e a R., na escritura pública notarial outorgada no dia 8-5-00, junto do 2º Cart. Not. de ….

b) Condenar a R. a restituir à A. a quantia de € 1.246.994,75, acrescida da quantia de e 348.885,22 de juros de mora, calculados à taxa de juros civis, desde a citação até à presente data, bem como os juros de mora que, à mesma taxa, se vençam, desde esta data até integral pagamento.

II. Julgar totalmente improcedente o pedido reconvencional formulado pela R.;

III. Julgar improcedentes os pedidos recíprocos de condenação de A. e da R. como litigantes de má-fé.

A R. apelou e a Relação confirmou a sentença.

A R. veio interpor recurso de revista, ao abrigo do art. 629º, nº 2, al. a), do CPC, na parte em que existe ofensa de caso julgado. Além disso, no pressuposto da existência de dupla conforme, interpôs recurso de revista excecional, ao abrigo do art. 672º, nº 1, al. a), do CPC.

A respeito da alegada violação da autoridade de caso julgado, concluiu, no essencial, que:

- O acórdão recorrido ofende a autoridade de caso julgado, nos termos conjugados dos arts. 619º, nº 1, e 621º do CPC. Com efeito, em interpretação do disposto no art. 629º, nº 2, al. a), in fine, do CPC, a jurisprudência tem admitido que a previsão abrange tanto a ofensa da exceção de caso julgado, como da autoridade de caso julgado.

- Para o julgamento do recurso de apelação a Relação deveria ter conhecido da autoridade de caso julgado expressamente invocada nas conclusões III, VI e VII do recurso de apelação; deveria ainda ter tido em consideração o teor dos fundamentos das duas ações acima mencionadas (ação de nulidade do contrato – nº ….; e ação de nulidade do registo – nº ….).

- Em especial, a Relação não teve em consideração que na sentença proferida na ação nº …. se concluíra que: a) a coisa objeto do contrato tem as qualidades acordadas e que, b) o objeto real do contrato de constituição do direito de superfície corresponde ao objeto contratado, nomeadamente, por confrontar com a …. Também não teve em consideração que já a sentença proferida na ação nº …. concluíra que a área efetiva do prédio era a descrita no registo, depois da anexação, confrontando com a … e que não existia qualquer nulidade no registo.

- Essas desconsiderações constituem uma ofensa direta à autoridade de caso julgado das referidas sentenças.

- A Relação não poderia deixar de se pronunciar sobre tais alegações relativas à violação do efeito positivo ou da autoridade de caso julgado, nos termos dos arts. 619º, 620º e 621º CPC. Como dela não conheceu, o acórdão recorrido ofendeu indiretamente a autoridade de caso julgado (art. 608º, nº 2, do CPC), sendo que, por não ter apreciado a autoridade de caso julgado, padece de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos conjugados dos arts. 615º, nº 1, al. d), 666º, nº 1 e 674º, nº 1, al. c), do CPC. Atente-se que, relativamente à nulidade de pronúncia, a ofensa é uma não aplicação ou não afirmação no caso concreto da autoridade de caso julgado.

- A Relação confundiu a autoridade de caso julgado com a exceção de caso julgado que foi alegada no recurso de apelação e suas conclusões.

- Em consequência, o acórdão recorrido (como também a sentença) ofende a autoridade do caso julgado, e tal como enunciado no art. 619º, nº 1, do CPC, padece de nulidade pois não cumpriu os deveres decorrentes do efeito positivo do caso julgado, a saber: o dever de julgar sempre de modo a respeitar, i.e., a não contradizer, os fundamentos das decisões anterior quanto às questões de apurar a) se a parcela de 76,57 m2, estava ou não integrada no prédio descrito no registo, b) se o prédio tem ou não as qualidades contratual e legalmente exigidas para a construção e exploração de um posto de combustível, e c) se o objeto real do contrato de constituição do direito de superfície corresponde ao objeto contratado, nomeadamente, confrontar com a …


A recorrida apresentou contra-alegações e, no que concerne à questão da autoridade de caso julgado, considerou que não existia nulidade por omissão de pronúncia, uma vez que no despacho saneador fora apreciada a exceção de caso julgado, abarcando também a questão da autoridade de caso julgado. Como a R. não interpôs recurso desse despacho interlocutório, considera a recorrente que a Relação não tinha de apreciar a questão da autoridade de caso julgado suscitada nas alegações do recurso de apelação interposto da sentença de 1ª instância.

Pelo ora relator foi proferido despacho em que se concluiu que, “sem embargo do que oportunamente venha a ser decidido acerca da admissão do recurso de revista, na parte em que existe dupla conformidade, admite-se, por agora, o recurso de revista na parte em que é imputada ao acórdão da Relação a ofensa de autoridade de caso julgado, ao abrigo do art. 629º, nº 2, al. a), in fine, do CPC”.

É, pois, este o objeto do presente acórdão.


II - Decidindo:

1. Na petição inicial a A. alegou, por antecipação, que não se verificava a exceção dilatória de caso julgado associada às sentenças proferidas nas duas anteriores ações que a A. instaurou contra a R.: uma, com o nº …, a pedir a declaração de nulidade do contrato dos autos (e, subsidiariamente, a sua resolução por incumprimento da R.); outra, com o nº …., a pedir a declaração de nulidade do averbamento na descrição predial do imóvel sobre que incide o direito de superfície.

Também por antecipação, alegou que não era admissível a distinção entre a exceção dilatória de caso julgado e a questão da autoridade de caso julgado.

Foi proferido despacho saneador, datado de 16-1-13 (na vigência do CPC de 1961), no qual se consignou que:

A A. intentou uma ação contra a Ré que correu termos na … Vara Cível de …., … Secção, sob o nº de proc. ….

Como consta da p.i. da referida ação de doc. 27 o pedido formulado pela A. era:

«- ser declarada a nulidade dos contratos em causa na presente ação e consequentemente a Ré ser condenada a restituir à A. os € 1.246.994,75 pagos, acrescidos dos juros vencidos desde a data da propositura da ação no montante de € 461.661,37, bem como dos juros vincendos até integral pagamento e

- a título subsidiário: ser julgado o incumprimento dos Contratos pela Ré e esta condenada a restituir à A. os € 1.246.994,75 pagos, acrescidos dos juros acima liquidados e em qualquer caso, a Ré condenada a restituir à A. aquelas quantias que recebeu, atualizadas pelos índices de inflação anuais definidos pelo Instituto Nacional de Estatística, nos termos da Cláus. 5ª do Contrato de doc. 3».

Coloca-se, pois, a questão de saber se estamos perante situação do caso julgado ou litispendência, rejeitamos esta última hipótese, uma vez que a A. juntou aos autos certidão em como a sentença proferida na ação da … Vara Cível já transitou em julgado.

A exceção do caso julgado visa evitar que o tribunal duplique as decisões com idêntico objeto processual, ou seja contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior, ou decida duas vezes de maneira idêntica (art. 497º, nº 2, do CPC).

Sobre os aludidos requisitos legais dispõe o art. 498º do CPC, que:

1 - Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

2 - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

3 - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real.

Na questão dos limites objetivos do caso julgado, segundo alguma doutrina, os limites objetivos do caso julgado confinam-se à parte injuntiva da decisão, não constituindo caso julgado         os fundamentos da mesma (Castro Mendes, D. Proc. Civil, Ed. AAFDL, 1978/1979, vol. III, pp. 282/283, Anselmo de Castro, D. Proc. Civil, 1982, vol. III, p. 404, e Manuel Andrade, Noções Elementares de Proc. Civil, 1976, pp. 334 e 335).

Sufragamos um critério intermédio, mais moderado, que é professado por Prof. Vaz Serra, na RLJ, ano 110º, p. 232, quando afirma reconhecer autoridade de res judicata àquela das questões preliminares que forem antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado – desde que se verifiquem os outros requisitos do caso julgado material.

Igualmente Rodrigues Bastos, in Notas ao CPC, vol. III, p. 253, ensina que “ponderadas as vantagens e os inconvenientes das duas teses em presença, que a economia processual, o prestígio das instituições judiciárias, reportado à coerência das decisões que proferem e o prosseguido fim de estabilidade e certeza das relações jurídicas, são melhor servidos por aquele critério eclético que, sem tornar extensiva a eficácia do caso julgado a todos os motivos objetivos da sentença, reconhece, todavia, essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que forem antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado”.

Neste sentido vai Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Novo Processo Civil, 1997, pp. 578 e 579.

A jurisprudência do STJ vem, maioritariamente, adotando este critério intermédio, moderado, dos limites objetivos do caso julgado, entendendo que a eficácia do caso julgado da sentença não se estende a todos os motivos objetivos da mesma, antes abrangendo as questões preliminares que constituíram as premissas necessárias e indispensáveis à prolação do juízo final, da parte injuntiva, contanto que se verifiquem os outros pressupostos do caso julgado material (cf. Acórdãos do STJ, de 3.5.1990, BMJ, 397, p. 407, de 24.9.1992, BMJ 419, p. 648, de 10.7.1997, CJ/STJ, t. II, p. 165, 27.1.2005, Proc. 04B4286, 5.5.2005, Proc. 05B602, 14.3.2006, Proc. 05B3582, estes in www.dgsi, e 8.3.2007, CJ/STJ, t. I, p. 98).

Entre a presente ação e a ação acima identificada apenas existe coincidência quanto aos sujeitos, mas inexiste identidade de pedido e de causa de pedir.

Enquanto na ação acima identificada se peticiona a nulidade dos contratos e, subsidiariamente, que seja julgado o incumprimento dos contratos pela R. e respetiva indemnização, na presente ação peticiona-se a resolução do contrato de constituição de direito de superfície pela perda do interesse da A. e a restituição do tudo o que foi prestado, ou seja, € 1.246.994,75.

Quanto à causa de pedir, também não ocorre a referida identidade: o que consubstancia o atual pedido de resolução dos contratos por incumprimento definitivo é falta de interesse da A. e não a nulidade dos contratos.

O raciocínio que acabámos de descrever é aplicável à ação …, que segundo a R. correu termos no Tribunal Judicial do … (arts. 6º e 7º da contestação), envolvendo as mesmas partes e onde a aqui autora peticionava a declaração de nulidade de averbamento à descrição quanto á área do prédio nº ….

Pelo exposto, julgo improcedente a exceção de litispendência deduzida pela ré e considero não existir situação de caso julgado.


Foi proferida sentença favorável à A., a qual foi objeto de recurso de apelação interposto pela R.

Entre as múltiplas questões que, por agora, não interessa enunciar, alegou a R. apelante em 24 laudas a inatendibilidade, pela 1ª instância, dos efeitos da autoridade de caso julgado emergente das sentenças proferidas nas duas anteriores ações, pretendendo que a Relação ponderasse, em sede de apreciação do mérito da ação, o que já fora decidido em tais sentenças.

A A. contra-alegou dizendo que a R. não interpôs recurso de apelação do despacho saneador, de modo que deveria considerar-se precludida a possibilidade de apreciação daquela questão quer na sentença final, quer no acórdão da Relação.

No acórdão proferido no recurso de apelação a Relação absteve-se de apreciar a questão da alegada autoridade de caso julgado emergente das duas anteriores sentenças, por considerá-la precludida pelo facto de a R. não ter interposto recurso do despacho saneador.

Perante o teor de tal acórdão, a R. veio defender na presente revista que a exceção dilatória de caso julgado, dependente da tripla identidade objetiva e subjetiva e determinante da absolvição da instância, não se confunde com a questão da autoridade de caso julgado, pelo que o tribunal de 1ª instância e, depois, a Relação, estavam obrigados a apreciar os efeitos do que foi decidido nas duas anteriores ações que correram entre as mesmas partes na presente ação. E uma vez que a Relação não apreciou a questão da autoridade de caso julgado, o acórdão recorrido estaria ferido de nulidade, por omissão de pronúncia.


2. Apreciando a arguida nulidade por omissão de pronúncia relativamente à questão da autoridade de caso julgado:

2.1. A R. alegou no recurso de apelação (e continua a manter no recurso de revista) que das duas sentenças anteriormente proferidas emerge a autoridade de caso julgado.

Para o efeito considera que o despacho saneador onde se concluiu “não existir a situação de caso julgado”, apenas incidiu sobre a exceção dilatória de caso julgado, pelo que não haveria razão alguma para a Relação omitir pronúncia sobre a alegada autoridade de caso julgado.

Sobre este segmento das alegações do recurso de apelação, a Relação concluiu que:

Não obstante, importa considerar desde já a questão da invocabilidade do caso julgado enquanto fundamento do presente recurso.

Sustentou a apelante que nos termos do disposto nos arts. 619º a 621º do CPC o Tribunal a quo se encontrava “impossibilitado de apreciar, num patamar de mérito, sobre as pretensões já anteriormente analisadas, não podendo decidir num sentido contrário ao ali propugnado, com prevalência das decisões anteriores mencionadas, por imposição da autoridade de caso julgado”.

Analisando os articulados, verificamos que na contestação a R. e ora recorrente invocou a exceção de litispendência, mas não a de caso julgado.

Não obstante, no despacho saneador foi proferida decisão julgando improcedente a exceção de litispendência e considerando “não existir situação de caso julgado”.

O despacho saneador não foi objeto de qualquer recurso.

Com efeito, como se afere da leitura do requerimento de interposição de recurso e da parte inicial da respetiva motivação, a presente apelação tem por objeto, exclusivamente, a sentença proferida.

Nesta, a questão do caso julgado não foi apreciada, porquanto o poder jurisdicional se havia esgotado com a prolação do despacho saneador – art. 613º, nºs 1 e 3, do CPC.

Por não ter sido objeto de recurso, o despacho saneador transitou em julgado, adquirindo, quanto a esta matéria, o efeito de caso julgado – arts. 628º, 620º, nº 1, 595º, nº 1, al. a) e 577º, al. i), todos do CPC.

Por isso mesmo, a sentença recorrida nem sequer se pronunciou sobre esta questão.

Nesta conformidade, não se toma conhecimento do recurso no que respeita a este fundamento”.


2.2. Começaremos por afirmar que a exceção dilatória de caso julgado e a autoridade de caso julgado constituem faces da mesma moeda, mas apresentam uma diferente configuração.

A exceção de caso julgado constitui uma exceção dilatória típica cuja verificação impede a apreciação do mérito da causa, pressupondo uma relação de identidade nas ações em confronto, nos termos que se extraem do art. 581º do CPC:

a) Identidade de sujeitos em ambas as ações, requisito que se mantém quando, apesar da diversidade física de sujeitos, exista identidade jurídica revelada pela qualidade em que intervieram em cada uma das ações;

b) Identidade de pedidos, ou seja, quando nas ações em confronto se pretenda obter o mesmo efeito jurídico, ainda que exista uma falta de correspondência formal entre os pedidos formulados em cada uma delas;

c) Identidade de causas de pedir, isto é, quando as pretensões formuladas decorram do mesmo facto jurídico, ou seja, quando seja substancialmente invocada a mesma realidade para alcançar o efeito jurídico procurado pela via judicial, ainda que por via de uma qualificação jurídica distinta.

Basta a falta de algum dos três elementos para se negar a verificação da exceção dilatória de caso julgado, ficando legitimado o prosseguimento da instância com vista à apreciação do mérito da ação.

A razão é clara: a divergência que porventura se revele apenas quanto a algum ou alguns dos mencionados elementos (sujeitos, pedido ou causa de pedir) não importa o risco de repetição ou de contradição de decisões, já que ambas podem coexistir sem o risco da contradição intrínseca ou de repetição que a figura do caso julgado e o seu reflexo negativo – a exceção dilatória de caso julgado – visam precisamente prevenir.

autoridade de caso julgado apresenta uma configuração diversa.

As diferenças emergem, desde logo, do facto de constituir uma figura que na sua essência é resultado de uma construção doutrinária e jurisprudencial, carecendo de sustentação numa norma com o pendor objetivo que apresenta o art. 581º do CPC de 2013 (ou do art. 497º do anterior CPC de 1961), sendo erigida a partir da análise de normas mais difusas como os arts. 619º e 621º (correspondendo aos arts. 671º e 673º do anterior CPC de 1961).

Além disso, o respeito pela autoridade de caso julgado não tem como efeito impedir a apreciação do mérito na segunda ação, antes visa assegurar que nessa apreciação sejam ponderados os efeitos emergentes de uma anterior decisão transitada em julgado que seja vinculativa para ambos os sujeitos. Em determinadas circunstâncias que vêm sendo enunciadas pela doutrina e pela jurisprudência, tem-se revelado premente ponderar o que, com trânsito em julgado, já foi decidido noutra ação, a fim de evitar uma contradição intrínseca de julgados.[1]

Em linhas muito gerais, vem sendo assumido pela doutrina e pela jurisprudência, neste caso refletida em numerosos arestos deste Supremo Tribunal de Justiça, que, pressuposta a aludida identidade de sujeitos, os efeitos de uma determinada decisão proferida numa ação podem projetar-se positiva ou negativamente noutra ação, embora não exista total coincidência entre os respetivos pedidos e/ou causas de pedir.


2.3. No âmbito do presente recurso de revista, na parte em que foi admitido com base na alegada ofensa de caso julgado, cabe apenas analisar se se verifica ou não a invocada nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia relativamente à autoridade de caso julgado.

Para o efeito, importa verificar a amplitude objetiva do despacho saneador e analisar se a questão específica da autoridade de caso julgado está abarcada pelo segmento decisório que se traduziu em declarar “não existir a situação de caso julgado” (sic).


2.4. A resposta é negativa, o que permite afirmar a verificação da nulidade do acórdão da Relação.

Da leitura do despacho saneador decorre que toda a sua motivação assentou na não verificação dos elementos atinentes à identidade objetiva (pedido e causa de pedir) necessários ao preenchimento dos pressupostos da exceção dilatória de caso julgado material.

O objeto dessa decisão revela-se, desde logo, pelo modo como a questão foi introduzida, seguida da indicação dos preceitos que enunciavam, no CPC de 1961, os requisitos da figura do caso julgado, ou seja, do art. 498º e do art. 497º, nº 2 (que correspondem atualmente aos arts. 581º e 580º, nº 2, respetivamente):

“Coloca-se, pois, a questão de saber se estamos perante situação do caso julgado ou litispendência, rejeitamos esta última hipótese, uma vez que a A. juntou aos autos certidão em como a sentença proferida na ação da …. Vara Cível já transitou em julgado.

A exceção do caso julgado visa evitar que o tribunal duplique as decisões com idêntico objeto processual, ou seja contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior, ou decida duas vezes de maneira idêntica (art. 497º, nº 2, do CPC).

Sobre os aludidos requisitos legais dispõe o art. 498º do CPC, que:

1 - Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

2 - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

3 - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real.

Embora também tenha sido feita alusão à “questão dos limites objetivos do caso julgado”, tal não serviu para afirmar ou negar a autoridade de caso julgado mas apenas para, no confronto com os requisitos do caso julgado, concluir que “entre a presente ação e a ação acima identificada apenas existe coincidência quanto aos sujeitos, mas inexiste identidade de pedido e de causa de pedir”.

Motivação que, deste modo, serviu para afastar a verificação da exceção dilatória de caso julgado na ocasião prevista no art. 494º, al. i) (agora no art. 577º, al. i), do CPC de 2013), o que foi expresso, de uma forma tecnicamente incorreta, nos termos seguintes: “pelo exposto, julgo improcedente a exceção de litispendência deduzida pela ré e considero não existir situação de caso julgado”.

Não se descortina na referida motivação qualquer alusão aos preceitos cuja interpretação conjugada tem permitido à doutrina e à jurisprudência atribuir relevo autónomo à questão da autoridade de caso julgado, fundamentalmente a partir dos arts. 671º e 673º do CPC de 1961 (correspondendo aos atuais arts. 619º e 621º). Tão pouco se descobre alguma argumentação em torno desta figura, tudo se resumindo, em linhas muito simples, a negar a exceção dilatória de caso julgado, uma vez que, apesar da identidade subjetiva, se considerou que existia diversidade de pedidos e de causas de pedir.

Por isso, da leitura do despacho saneador apenas é legítimo concluir que foi apreciada e julgada não verificada a exceção dilatória de caso julgado, mas já não que tenha sido apreciados os eventuais efeitos da autoridade de caso julgado porventura emergentes das anteriores sentenças judiciais.


2.5. Diga-se que, no contexto da presente ação, o despacho saneador era essencialmente ajustado a aferir os pressupostos processuais e, em contraponto, a verificar se existia ou não alguma exceção dilatória. O facto de ainda existir matéria de facto controvertida que justificou o prosseguimento da ação para a fase de instrução e de julgamento reforça a ideia de que não esteve em causa, naquela ocasião, a apreciação dos efeitos da autoridade de caso julgado, apesar de a própria A. a ter procurado afastar através de extensa argumentação que expôs nos arts. 188º e ss. da petição inicial.

Até por isso, a atribuição de uma maior amplitude ao que foi apreciado no despacho saneador, de modo a abarcar, também, o afastamento de qualquer eventual efeito emergente da autoridade de caso julgado, não se compadeceria com a conclusão genérica – ainda assim, tecnicamente incorreta - de que não existia a “situação de caso julgado”.

Nas circunstâncias do caso, só a afirmação explícita de que também estava a ser ponderada na apreciação do mérito da presente ação a autoridade de caso julgado (em resultado de considerações jurídicas mais densas) poderia levar a que se estendesse o âmbito da decisão não apenas à declaração de improcedência da exceção dilatória de caso julgado como ainda ao afastamento de qualquer efeito derivado da autoridade de caso julgado.

Ora, nem a motivação nem a conclusão permitem que se possa concluir que a Mª Juíza de 1ª instância estivesse simultaneamente a afastar a exceção dilatória de caso julgado e a interferência na apreciação do mérito da eventual autoridade de caso julgado, resultando claro que o único objetivo foi o de sanear o processo de eventuais exceções dilatórias, in casu, a exceção dilatória de caso julgado.

Foi, aliás, este sentido mais restrito aquele que foi atribuído pela Relação, já que no segmento decisório do acórdão proferido no recurso de apelação limitou-se a sustentar (erradamente) a posição da definitividade do despacho saneador em normas que respeitam exclusivamente à exceção dilatória de caso julgado, mais concretamente nas normas dos “arts. 628º, 620º, nº 1, 595º, nº 1, al. a) e 577º, al. i), todos do CPC de 2013”.[2]


2.6. No que concerne à oportunidade de interposição do recurso de apelação, a matéria era regulada pelo art. 691º do CPC de 1961, cujo nº 1 prescrevia a admissibilidade de interposição de recurso de apelação do despacho saneador que pusesse termo ao processo (por razões de mérito ou de forma).

Deste modo, reportados à figura do caso julgado, admitiria recurso de apelação (imediato) o despacho saneador que julgasse extinta a instância por verificação da exceção dilatória de caso julgado (art. 691º, nº 1, do CPC de 1961, paralelo ao atual art. 644º, nº 1, al. a)).

Também admitia recurso de apelação o despacho saneador em que fosse apreciado o mérito da causa, designadamente aquele que porventura incidisse sobre o pedido ou sobre alguma exceção perentória, como seria a relacionada com a apreciação positiva ou negativa da autoridade de caso julgado. Assim seria por que estaria em causa então a apreciação do mérito da causa, nos termos do art. 691º, nº 2, al. h), do CPC (paralelo ao atual art. 644º, nº 1, al. b)).

Deste modo, apenas nestes dois casos se admitiria a interposição imediata de recurso de apelação, no prazo de 30 dias (art. 685º, nº 1, do CPC de 1961). E, noutra perspetiva, era apenas nestes casos que a falta de interposição imediata de recurso de apelação inviabilizaria que a questão fosse suscitada no recurso de apelação interposto da sentença final.

Já relativamente ao despacho saneador que se limitasse a negar a exceção dilatória de caso julgado ou que pura e simplesmente omitisse qualquer referência à autoridade de caso julgado apenas era impugnável com o recurso de apelação interposto da decisão final, nos termos do nº 3 (tal como agora consta do nº 3 do art. 644º do CPC de 2013).[3]

Ora, uma vez que, como se referiu, o despacho saneador apenas incidiu sobre a exceção dilatória de caso julgado e que não foi objeto de apreciação a questão da autoridade de caso julgado, esta questão podia e deveria ter sido apreciada na sentença.

Não o tendo sido, era legítimo à R. suscitar a mesma questão (no caso, através da arguição da nulidade por omissão de pronúncia) no recurso de apelação que interpôs da sentença final que foi favorável à A., a qual deveria ter sido objeto de pronúncia por parte da Relação no acórdão recorrido.


2.7. Em conclusão, nem por via do atual CPC, nem do anterior, se poderia concluir que o despacho saneador transitou em julgado relativamente a qualquer questão em torno do caso julgado ou da autoridade de caso julgado tendo por referência as duas anteriores sentenças:

a) O despacho saneador que declarou “não existir a situação de caso julgado” era omisso quanto à questão da autoridade de caso julgado;

b) A questão da autoridade de caso julgado emergente das anteriores sentenças não estava abarcada pela enunciação genérica da não verificação da “situação de caso julgado”, devendo ser apreciada na sentença de 1ª instância e, depois, no acórdão da Relação;

c) Ao omitir pronúncia sobre a questão da autoridade de caso julgado, o acórdão recorrido está ferido de nulidade, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº 2, al. d), 1ª parte, do CPC de 2013:


2.8. A declaração de nulidade do acórdão recorrido obsta a que o processo avance para a apreciação do mérito do recurso de revista na parte em que é invocada a ofensa da autoridade de caso julgado e, além disso, prejudica a apreciação das demais questões.

Com efeito, atento o disposto no art. 684º, nº 2, do CPC, em conjugação com o art. 615º, nº 1, al. d), 1ª parte, quando seja detetada alguma nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, o processo deve ser devolvido à Relação, o que ora se impõe.


III – Face ao exposto, acorda-se em declarar a nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia quanto à apreciação da questão da autoridade de caso julgado, determinando-se a remessa à Relação.

Custas da revista a cargo da A.

Notifique.

Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos restantes juízes que compõem este coletivo.

Notifique.


Lisboa, 14-1-21


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo

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[1] É claro que esta situação apenas se verifica quando exista identidade física ou jurídica de sujeitos (assim Acs. do STJ, de 3-11-16, 1628/15, e de 3-3-17, 1568/09, em www.dgsi.pt, deste mesmo coletivo e relator). Havendo diversidade de sujeitos, a autoridade de caso julgado não se impõe na outra ação, salvo em casos excecionais, como o do art. 622º do CPC. Aliás, por regra, o sistema convive com a possibilidade de existirem contradições desde que se trate de decisões proferidas em ações cujos sujeitos não coincidam.

[2] Uma vez que o despacho saneador foi proferido ainda na vigência do CPC de 1961, qualquer decisão sobre a formação do caso julgado deveria ter sido sustentada no regime que então estava em vigor, máxime nos arts. 679º, 672º, 510º, nº 1, al. a) e 494º, al. i).

[3] Cf. neste sentido, o Ac. do STJ 6-6-19, 276/13, www.dgsi.pt (citado, aliás, em Recursos em Processo Civil, 6ª ed., p. 253, do ora relator), em cujo sumário se refere que a decisão proferida no despacho saneador que julgou improcedente a invocada exceção do caso julgado, não transita em julgado, pois dela não há recurso autónomo, nos termos do art. 644º, nºs 1 e 3, do CPC.