Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
592/03.2TCFUN.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO AFONSO
Descritores: CONTRATO DE COLONIA
EXPLORAÇÃO AGRÍCOLA
DIREITO DE PROPRIEDADE
BENFEITORIAS
TRANSMISSÃO DE DIREITO REAL
CONTRATO-PROMESSA
EXTINÇÃO DO CONTRATO
IMPOSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO
Data do Acordão: 06/24/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Sumário :
I - A colonia constitui um regime de aproveitamento agrícola, levado a efeito na Ilha da Madeira, em que o dono de um prédio rústico contratava com outrem o seu cultivo, reservando-se metade das colheitas e sendo a outra metade para o colono.
II - Mediante o contrato de colonia o direito de propriedade sobre um prédio rústico é cindido em dois direitos reais menores: o direito de propriedade do chão que continua na titularidade do primitivo proprietário; e a propriedade das benfeitorias que se realizem após a celebração do contrato, na titularidade do colono, que tem ainda o direito de gozo do chão.
III - A extinção da colonia, decretada pela Lei n.º 77/77 de 29-09, veio inviabilizar a transmissão voluntária e isolada de um dos direitos reais, seja do dono, seja do colono, mediante negócio jurídico celebrado inter vivos.
IV - Celebrado um contrato-promessa, no domínio da vigência do contrato de colonia, e não tendo o contrato-prometido sido celebrado até à data da extinção do contrato de colonia, tornou-se o impossível o cumprimento do contrato-promessa.
Decisão Texto Integral:


Acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça:


A) Relatório:

Pelas Varas de Competência Mista do Tribunal Judicial da comarca do Funchal corre acção declarativa com processo especial em que são AA. AA e BB, identificados nos autos, e RR. CC e DD, já falecidos, e, como tal habilitados, EE, FF, GG, HH, II e JJ, todos identificados nos autos.
Os AA. demandaram os RR. pedindo que:
Os RR. sejam solidariamente condenados a pagar aos AA. a quantia de 74 819,68 €, a título de indemnização pelo incumprimento culposo do contrato-promessa.
Os RR. EE, FF, GG, HH e II, sejam condenados a pagar aos AA. a quantia de 134 475,91 € pelas benfeitorias realizadas, nos termos do art. 1273.º do Código Civil.
Para tanto, alegaram em síntese que:
- Em 24-02-1975, celebraram com os herdeiros de LL e MM um contrato-promessa que tinha por objecto as benfeitorias rústicas e urbanas existentes sobre o prédio misto, sito no Sítio do Bom Sucesso, na freguesia de Santa Maria Maior, inscrito na matriz sob os artigos 1/10.º, da secção “N”, e 476.º, tendo pago àqueles, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de 50 000$00, devendo consequente escritura ser feita após 60 dias do término do processo de inventário que corria termos no Tribunal Judicial do Funchal, sob o n.º 53/80, da 1.ª secção, do 3.º Juízo, por óbito dos pais, avós e bisavós dos promitentes-vendedores;
- No âmbito do referido contrato-promessa, as benfeitorias foram adjudicadas à promitente-vendedora DD e marido, CC;
- O mencionado CC e mulher, DD, não cumpriram o contrato-promessa de compra e venda, tendo doado aquelas benfeitorias a EE;
- Desde o início de 1975, ocupam e habitam naquelas benfeitorias, tendo procedido a diversas melhorias na casa e na parte rústica das mesma, tudo no valor de 1 095 000$00, a preços de 1975, a que corresponde um valor actual de 29 960 000$00.
Os RR. Contestaram, deduzindo incidente do valor da causa, invocando as excepções de falta de personalidade dos 1.ºs réus, nulidade, ineficácia e inexigibilidade do contrato-promessa, abuso de direito e uso anormal do processo, além de impugnarem os factos alegados pelos AA., alegando, em síntese, que os AA. não realizaram as obras que alegam ter efectuado e que as mesmas não têm o valor que lhes foi atribuído.
Os AA. replicaram defendendo a improcedência daquelas excepções.
Os RR. treplicaram mantendo a posição assumida na contestação.
Procedeu-se a julgamento com observância das formalidades legais, conforme da acta consta, tendo a acção sido julgada improcedente por não provada e, consequentemente, os RR absolvidos do pedido formulado pelos AA. Também os AA foram absolvidos do pedido formulado pelos RR. de condenação daqueles como litigantes de má-fé.

Inconformados com esta decisão dela apelaram os AA. para o Tribunal da Relação de Lisboa, pedindo a revogação da sentença recorrida, alterando-se a matéria de facto e, consequentemente a matéria de direito. Os RR. contra-alegaram dizendo que a douta sentença recorrida não violou qualquer norma jurídica, nomeadamente as que os apelantes invocam, devendo ser negado provimento ao recurso.
Em conferência o Tribunal da Relação proferiu acórdão concedendo provimento parcial ao recurso decidindo o seguinte:
Condenar EE, JJ e GG, herdeiros habilitados dos réus CC e DD, a pagarem aos AA. AA e BB o valor que tinham à data de 29-05-1985 as benfeitorias rústicas e urbanas referidas em II – a) do presente acórdão e que se vier a liquidar até ao limite de 74 819,68 €;
Absolver os 2.º a 6.º RR. do pedido.


Deste acórdão recorre agora a R. EE alegando, em conclusão, o seguinte:
No contrato promessa sub judice foram prometidas vender as benfeitorias urbanas identificadas no item 1 da PI,
Benfeitorias essas integradas no prédio identificado no item 11 desta peça, e registado a favor da R. e ora Recorrente e restantes RR., na presente acção, através da inscrição G 0000000000, à descrição 1737/19970627,
O qual foi remido pelos referidos, no item anterior, pois eram colonos rendeiros, tornando-se assim proprietários plenos do mesmo prédio.
Os AA. recorridos, nunca foram colonos rendeiros do referido prédio, antes pelo contrato promessa sub judice tinham prometido comprar parte das benfeitorias rústicas e a urbana.
A abolição do regime da colonia tem a sua primeira manifestação no estatuído no DL 47939 de 15-09-1967 [trata-se de lapso, o n.º correcto é “DL n.º 47937”], trazendo-se à colação, com o devido respeito, para não sermos repetitivos os itens 17 a 20 supra,
Extinção afirmada no art. 101.º da CRP de 1976,
Reafirmada na Lei 77/77, de 20 de Setembro [trata-se de lapso, a data correcta é “29-09”] – maxime art. 55.º/1,
Reconfirmada pelo Dec. Reg 13-M/77, de 18-10 – art. 1.º.
Ficando a remição da terra, ao alcance dos colonos-rendeiros – art. 3.ºnº1 do citado DEc. Reg., não se encontrando sequer os AA. e Recorridos, nas condições previstas no n.º 2 do referido artigo
Aliás, reconhecido no Recurso de Apelação Cível, referido no(s) itens 41 e 42, desta peça, onde no Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão proferido no mesmo processo de Recurso se fixou que,
“Do que se trata é, pois de benfeitorias que, no caso da figura especial de colonia, dão, lugar, quando muito, à remição da propriedade do solo, onde estão implantadas (art. 3.º, 1 do citado Dreg n.º 13/77/M, mas não à sua aquisição através de acessão…”
A celebração da escritura que o contrato prometido poderia ter dado lugar – aliás os AA. e ora Recorridos, nunca interpelaram a R. EE e restantes RR. para tal – antes andaram a divagar com a Ac. Ordinária referida no item 41 supra, agora com a presente acção, onde alegam o incumprimento do contrato,
Não se poderia realizar, pelos motivos também expostos nos itens 17 a 20 supra, para não sermos maçadores, com o devido respeito,
Pelo que, a conclusão mesmo é física e legalmente impossível, por extinção do regime da colonia, como se disse supra – art. 790.º 1 do CC – e, como tal extinta a obrigação, ou,
Quando muito só poderia a R. recorrente estar sujeita à devolução do sinal recebido, em singelo – arts. 280.º/1 e 289.º/1, ambos do CC
Em consequência:
O douto acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, ora posto em crise, violou, entre outros, que V.Exas. doutamente suprirão, o disposto nos arts. 101.º/2 da CRP, 280.º/1, 289.º/1, 790.º/1, 719.º, todos CC, 1.º/1, 8.º/1, 10.º/1, do DL 47937, de 15-09 de 1967, 55.º/1 da Lei 77/77, de 29-09, 1,º e 3.º/1 do Dec.REg. 13-M/77, de 18-10.
Nestes termos (…) deverá ser concedido provimento ao recurso revogando-se o douto acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, e substituindo-se, por outro, em tudo idêntico à douta sentença produzida na 1.ª instância.
Não foram apresentadas contra-alegações.


Tudo visto,
Cumpre decidir:


B) Os Factos:

As instâncias deram por assentes os seguintes factos:

Em documento particular, datado de 24 de Fevereiro de 1975, denominado de "contrato promessa de venda, com transferência de posse", assinado pelos outorgantes ou seus representantes, NN e marido, OO, PP e mulher, QQ, DD e marido, CC, RR e marido, SS, TT e marido, UU, VV e mulher, XX, -YY, foi dito que, conjuntamente, são donos e possuidores dumas benfeitorias rústicas e urbanas, ao Sítio do Bom Sucesso, da freguesia de Santa Maria Maior, que confrontam pelo Norte com herdeiros de AAA e BBB, Sul com CCC e herdeiros de DDD. Leste com herdeiros de DDD e Oeste com CCC, inscritos na matriz rústica sob o artigo 547/14 e na matriz urbana sob o art. 746° estando tais benfeitorias implantadas sobre terra dos herdeiros do General EEE.
Mais declararam que, pelo presente contrato e pelo preço de 120 000$00, prometem vender a AA e mulher, BB, que declararam aceitar, as benfeitorias rústicas e urbanas atrás referidas, livres de quaisquer encargos ou ónus.
Pelo preço ajustado, os promitentes vendedores declararam ter recebido neste acto dos promitentes-compradores, a quantia de 50 000$00, de que prestam a devida quitação, cuja importância funciona com a natureza de sinal passado.
O saldo do preço ajustado, ou sejam 70 000$00, será pago no acto da escritura definitiva, mas somente após sessenta dias do terminus dos inventários a que se vai, imediatamente, proceder, no Tribunal Judicial da comarca do Funchal, por óbito dos pais, avós e bisavós dos vendedores e após o respectivo registo na Conservatória do Registo Predial a favor dos promitentes vendedores, para que os compradores façam, legalmente, o registo a seu favor.
Os promitentes-compradores entram, desde já, na posse das benfeitorias ora prometidas vender. (cfr. doe. a tis. 59 a 62 dos autos - ai. A) dos factos assentes);
As "benfeitorias" rústicas e urbanas desse prédio tinham sido propriedade de LL e MM (ai. B) dos factos assentes);
No âmbito do inventário facultativo n°53/80, da 1ª secção, do 3º juízo do Tribunal Judicial do Funchal, aberto por óbito de LL e mulher, MM, foram relacionadas as benfeitorias rústicas e urbanas, situadas no Bom Sucesso, freguesia de Santa Maria Maior, sobre terra de FFF, que confronta a Norte com JJJ, Sul com CCC, Leste com DDD e Oeste com CCC e caminho, inscritas na matriz, a parte rústica, sob o artigo 547°/14, e parte urbana sob o artigo 746°, não descritas na Conservatória do Registo Predial do Funchal, tendo tais benfeitorias sido adjudicadas a DD, casada com CC (ai. c) dos factos assentes);
For escritura pública, datada de 29 de Maio de 1985, lavrada no Cartório Notarial da Ribeira Brava, DD e CC declararam doar a EE, viúva, sua filha, as benfeitorias referidas em b). (ai. d) dos factos assentes);
CC faleceu no dia 21 de Dezembro de 1990, no estado de casado com Laurinda Quintal. (cfr. fls. 55 e 56 dos autos - ai. E) dos factos assentes);
DD faleceu no dia 8 de Abril de 2001. (cfr. doe. a fls. 58 dos autos - al. F) dos factos assentes);
Por sentença transitada em julgado, proferida na acção ordinária nº59/2000, que correu termos na 1ª secção, deste Tribunal de Vara Mista, foram os aqui Autores condenados a reconhecer os Réus como proprietários do prédio misto, situado no Bom Sucesso, com área coberta de 60 m2 e área descoberta 2 390 m2, inscrito na matriz sob o n°1710, da secção "N" a parte rústica, e sob o artigo 746°, a parte urbana, composto, a parte urbana, de casa térrea com dependências e logradouro, e a parte rústica, de terra de cultura, a confrontar do Norte com JJJ, Sul com CCC, Leste com DDD, Oeste com CCC e caminho, desanexado nº47, a fls. 95, B-l, da Extinta Conservatória do Concelho, inscrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal a favor dos aqui Réus pela inscrição G 00000000000. (cfr. doe. a fls. 87 a 97 dos autos - ai. G) dos factos assentes);
O prédio referido estava sujeito ao regime de colonia, tendo os RR remido as respectivas benfeitorias, no âmbito do processo especial de remissão de colonia, sob o n°104/88, que correu termos na ex 1ª secção do 3°Juizo do Tribunal Judicial da Comarca do Funchal (ai. H) dos factos assentes);
Por sentença transitada em julgado, EE, JJ e marido, III, GG e mulher, III, foram declarados habilitados nos presentes autos por morte de seus pais e sogros CC e DD. (cfr. fls. 20 do apenso - al. I) dos factos assentes);
Os autores habitaram e ocuparam as benfeitorias rústicas e urbanas, sitas no Sítio do Bom Sucesso, freguesia de Santa Maria Maior, com área de 1 125 m2, a confrontar a Norte com a BBB, Sul com CCC, Leste com DDD e Oeste com CCC, a que correspondem as inscrições matriciais sob o artigo 1710, da secção "N", e artigo 746°. (resposta com esclarecimento ao artigo 1º da base instrutória);
Desde o início de 1975 e com acordo dos herdeiros de LL e mulher, LL e mulher, RR e marido, TT e marido, GGG e mulher, YY, e HHH e marido, os AA. passaram a habitar e ocupar 1 125 m2 das benfeitorias urbanas e rústicas referidas. (resposta com esclarecimento ao artigo 3o da base instrutória);
Os AA. passaram a habitar a casa e a cultivar o terreno, com conhecimento dos herdeiros de LL e mulher, MM, RR e marido, TT e marido, GGG e mulher, YY, e HHH e marido. (resposta com esclarecimento ao artigo 4º da base instrutória);
Os Réus, EE e filhos, através da acção de colonia que correu na 1ª Secção, do 3º Juízo do Tribunal da Comarca do Funchal, adquiriram a "nua-terra" referente às 'benfeitorias" atrás descritas. (resposta positiva ao artigo 5º da base instrutória);
Quando, em 1975, os AA. passaram a habitar a casa e a cultivar o terreno, o mesmo estava abandonado e a casa carecia de obras de beneficiação. (resposta positiva ao artigo 6º da base instrutória);
Os AA. repararam o telhado e colocaram portas e janelas, tendo, nesse ano, gasto 230 000$00 nessas reparações. (resposta positiva aos artigos 7º e 8º da base instrutória);
Além disso, os AA. fizeram cavas fundas no terreno. (resposta positiva ao artigo 9º da base instrutória);
Construíram dois novos quartos pré fabricados, uma casa de banho com a respectiva fossa e uma cozinha, tendo, então, gasto nessas obras 700 00$00. (resposta positiva aos artigos 10° e 11º da base instrutória);
Os AA. construíram ainda um tanque para armazenagem de água e reparam levadas (resposta positiva ao artigo 12° da base instrutória);
Os AA. despenderam, a preços de 1975, a quantia de 85 000$00, equivalente a 425, 00 euros (resposta restritiva ao artigo 13° da base instrutória);
Os AA limparam o matagal em que o prédio se tinha transformado, repondo o terreno nas condições de ser cultivado, no que despenderam o montante de 50 000$00. (resposta positiva aos artigos 14° e 15° da base instrutória);
Os AA. reconstruíram um muro de suporte de terras, o que lhes custou 15000$00 (resposta positiva ao artigo 16° da base instrutória);
Presentemente, o prédio conta com algumas árvores de fruto (resposta com esclarecimento ao artigo 17° da base instrutória);
Os AA. habitaram a casa e agricultaram o terreno à vista de todos, sem que tivesse existido oposição por parte dos herdeiros de LL e MM, RR e marido, TT e marido, GGG e mulher, YY, e HHH e marido (respostas com esclarecimento e conjunta aos artigos 20° e 21° da base instrutória).
Na suposição de que a vontade dos promitentes vendedores iria ser cumprida, os AA requereram a remissão da nua terra correspondente às benfeitorias que supunham ter adquirido.
As benfeitorias referidas fazem parte do prédio descrito.


C) O Direito:


Compulsada a matéria de facto, dada como provada pelas instâncias, verifica-se que o nome dos promitentes vendedores, descritos no parágrafo primeiro de tal matéria, não corresponde, na ordem e substancia exacta, ao que vem descrito no contrato-promessa de venda com transferência de propriedade junto aos autos a fls. 59 a 62. A este Tribunal é vedada a alteração da matéria de facto [art.729ºnº2 do CPC (na versão aplicável ao caso em apreço), salvo o caso excepcional previsto no nº2 do art.722º do mesmo código]. Atendendo a que o Tribunal “a quo” teve o cuidado, no entanto, de elencar de forma correcta os nomes dos promitentes vendedores, conforme se pode ver de fls. 487, as eventuais contradições existentes sobre esta matéria não inviabilizam a decisão jurídica do pleito, não havendo, por isso, lugar à aplicação do disposto na 1ª parte do nº3 do art.729º do CPC.
Delimitemos o thema decidendum, ou seja, o objecto do litígio posto à apreciação deste Tribunal “ad quem”, tendo em consideração que objecto do litígio e objecto da demanda são coisas diferentes e que só sobre o objecto do litígio – o resultante da discussão da causa - deve o Tribunal debruçar-se neste acórdão.
Em causa no presente recurso está a questão de se saber se um contrato-promessa com tradição da coisa, celebrado no domínio da vigência do contrato de colonia, após a extinção desta figura contratual e feita a remição por parte do ou dos colonos, mantém para os promitentes vendedores (então colonos) a obrigação do seu cumprimento (e a transferência para os promitentes compradores das benfeitorias prometidas vender ou a obrigação de indemnizar).

Em termos gerais a colonia, que para alguns autores é uma derivação da Lei das Sesmarias de 1375, que para outros a sua origem estaria ligada à instituição vincular e que para outros ainda seria uma forma desvirtuada de enfiteuse, constituiu um regime de aproveitamento agrícola, levado a efeito na ilha da Madeira, em que o dono de um prédio rústico contratava com outrém o seu cultivo, reservando-se metade das colheitas e sendo a outra metade para o colono.
Mediante o contrato de colonia o direito de propriedade sobre um prédio rústico é cindido em dois direitos reais menores: o direito de propriedade do chão que continua na titularidade do primitivo proprietário e a propriedade das benfeitorias que se realizem após a celebração do contrato, na titularidade do colono que tem ainda o direito de gozo do chão.
A duração era quase sempre por tempo indeterminado, mas, se houvesse de findar, pertencia ao senhorio o direito de estabelecer-lhe o prazo. Tanto um como o outro podiam transferir a terceiros a coisa de que são proprietários, aquele a terra e o segundo as benfeitorias, não sofrendo o contrato qualquer alteração em virtude de eventuais transacções realizadas.
Se na terra em questão não existissem casas ao parceiro lavrador chamava-se meeiro e, se existissem, caseiro. A residência quando construída pelo colono, constituía uma das benfeitorias – que, como as outras: muros, poços, latadas, calçadas e mesmo animais, podiam ser objecto de venda ou de hipoteca e ainda avaliadas para ulterior indemnização ao senhorio.
Assim, a celebração do contrato promessa em causa nos presentes autos, ocorrida, em 24 de Fevereiro de 1975, no domínio da vigência do contrato de colonia, foi perfeitamente válida por integrar um direito de disposição dos bens que aos caseiros ou colonos pertencia.

A CRP, na sua versão de 1976, no art.101ºnº2 veio proibir os regimes de aforamento e colonia dizendo que: “São proibidos os regimes de aforamento e colonia e serão criadas condições aos cultivadores para a efectiva abolição do regime de parceria agrícola”.
Por força deste dispositivo constitucional a Lei nº77/77 de 29 de Setembro, no seu art.55ºnº1, extinguiu os contratos de colonia existentes na região autónoma da Madeira e dispôs no sentido de as situações aí decorrentes serem regidas pelas normas do arrendamento rural e pela legislação estabelecida em decreto da Assembleia Regional. A partir da publicação da Lei supra referida tem de entender-se que o legislador quis restringir fortemente a aplicação das normas de direito costumeiro e dos usos na regulamentação dos contratos de colonia que persistiam.
A extinção da colonia, decretada pelo dito diploma, veio, mediante negócio jurídico celebrado “inter vivos” o qual estaria ferido de nulidade (conforme se dispôs já em acórdão deste STJ de 4/7/96), inviabilizar a transmissão voluntária e isolada de um dos direitos reais, do dono ou do colono
O Decreto Regional nº13/77/M de 4 de Outubro de 1977 no seu art.1º declara que são extintos os contratos de colonia que subsistem na Região Autónoma da Madeira. Quer a Lei nº77/77 quer o Decreto Regional nº13/77/M não se limitam a extinguir, sem mais, o contrato de colonia. A filosofia que lhes subjaz é a da consolidação da propriedade dando à parte tida por mais fraca, o colono, sem se descurar, neste último diploma, o caso dos senhorios pobres, a possibilidade de ascensão à propriedade plena da terra (arts.3º e 5º do Dec. Reg. Nº13/77/M). Consolidação da propriedade fundiária e maior justiça social sem perder de vista a necessidade de uma imprescindível rentabilidade da empresa agrícola, como se afirma no preâmbulo do decreto regional referido, implica que decretada a extinção da colonia ficaram cristalizadas as situações pré-existentes, não sendo mesmo lícito ao colono modificar o prédio pela realização de novas benfeitorias ou de contratos que continuassem a implicar o desdobramento do direito de propriedade em direitos reais menores.
A questão que aqui se coloca é que solução dar aos problemas jurídicos que nasceram antes da extinção do contrato de colonia e aos que vieram a lume no intervalo de tempo que medeia entre aquela extinção e a efectiva remição?

Da factologia apurada tem-se que em 24 de Fevereiro de1975 foi celebrado um contrato promessa entre as partes descritas em sede de facto, sendo promitentes-compradores os AA. da presente acção. Nesse contrato promessa dispunha-se, entre outras cláusulas, que os promitentes-compradores entravam, desde logo, na pose das benfeitorias prometidas vender e que o contrato prometido seria celebrado sessenta dias após o terminus dos inventários a que se iria proceder. Daqui decorre que, a partir da data supra referida, os AA. (ora recorridos) entraram na posse das benfeitorias prometidas vender na expectativa da sua aquisição, através da realização do contrato prometido. A situação jurídica criada compaginava-se com o regime da colonia, conforme o descrito supra, já que os promitentes-vendedores não eram os proprietários plenos, mas, apenas, colonos.
À data da extinção do contrato de colonia ainda se não havia concretizado a celebração do contrato prometido uma vez que não se tinha verificado o termo a que a realização daquele contrato estava sujeito Na verdade as partes contratantes haviam subordinado a produção dos efeitos do negócio jurídico a um acontecimento futuro e certo (cfr. arts.278º e 270º do CC). Com a extinção do contrato de colonia tornou-se impossível a realização do negócio jurídico celebrado, ou seja, o cumprimento do contrato promessa.
Não resulta do material probatório a verificação do termo a que o contrato promessa em causa estava sujeito, em data anterior a 1977 (as declarações de cabeça de casal em inventário obrigatório, juntas aos autos a fls.63 a 67, datam de 1979) nem que a sua não verificação, se ficasse a dever a culpa dos promitentes-vendedores. Assim, não pode concluir-se, como se faz no douto acórdão da Relação, que o incumprimento do contrato promessa se ficasse a dever a culpa dos ora recorrentes, na verdade a impossibilidade do seu cumprimento dá-se por força dos normativos que vieram a extinguir o contrato de colonia.
A doação feita, por escritura pública, em 29 de Maio de 1985, no Cartório Notarial da Ribeira Brava, por DD e CC a EE, viúva, sua filha, das benfeitorias em causa, anteriores à remição da nua terra que só ocorreu em 1988, não constituiu, em si mesmo, causa de impossibilidade de incumprimento do contrato promessa, já que a extinção da colonia, veio, inviabilizar qualquer transmissão voluntária e isolada de um dos direitos reais, do dono ou do colono mediante negócio jurídico celebrado “inter vivos”.

Desde a celebração do contrato promessa com a transferência imediata da posse para os promitentes-compradores estes passaram a exercer poderes materiais sobre as benfeitorias pertencentes aos RR. (promitentes-vendedores). A posse inicialmente constituída continuou no tempo com a mesma natureza. O negócio jurídico que deu origem àquela não foi substituído por um novo negócio jurídico, por razões já explanadas supra.
A promessa, só por si, não tendo eficácia translativa, não constitui ela o título de posse do accipiens. Título de posse foi, no caso vertente, a entrega real, operada pelos promitentes-vendedores, por antecipação à celebração do contrato definitivo.
A posse dos AA. foi pacífica (art.1261ºnº1 do CC), pública (art.1262º do CC) e exercida de boa-fé (art.1260º do CC), na verdade os AA. habitaram a casa e agricultaram o terreno à vista de todos, sem que tivesse existido oposição por parte dos herdeiros de LL e MM, RR e marido, TT e marido, GGG e mulher, YY, e HHH e marido e na suposição de que a vontade dos promitentes vendedores iria ser cumprida.
Do que foi dito podemos concluir que os promitentes-compradores que tomaram conta das benfeitorias e nelas praticaram actos correspondentes ao exercício do direito de propriedade correspondente, nos termos do art.1251º do CC, sem que o tivessem feito por mera tolerância dos promitentes vendedores, procederam com a intenção de agir em seu próprio nome, como, aliás, resultava dos termos do contrato promessa. Daí deriva que devem gozar dos benefícios que a lei reconhece a qualquer possuidor, e entre eles, os referentes aos efeitos da posse previstos nos arts.1268º a 1275º do CC.
Nesta ordem de ideias, tendo em atenção o disposto no art.1273ºnº1 do CC, tanto o possuidor de boa-fé como o de má-fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento dela. O nº2 do art.1273º diz: “Quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa.”, aplicando-se, ex vi do nº2 do citado artigo, o disposto no art.479ºnº1 do CC.
Os AA., ora recorridos, em 1975, passaram a habitar a casa e a cultivar o terreno, procederam à reparação do telhado e à colocação de portas e janelas, tendo, nesse ano, gasto 230 000$00 em reparações.
Além disso, os AA. fizeram cavas fundas no terreno e construíram dois novos quartos pré fabricados, uma casa de banho com a respectiva fossa e uma cozinha, tendo, então, gasto nessas obras 700 00$00.
Os AA. construíram ainda um tanque para armazenagem de água e repararam levadas pelo que despenderam, a preços de 1975, a quantia de 85 000$00, equivalente a 425, 00 euros.
Os AA limparam o matagal em que o prédio se tinha transformado, repondo o terreno nas condições de ser cultivado, no que despenderam o montante de 50 000$00 e reconstruíram um muro de suporte de terras, o que lhes custou 15000$00.
As obras realizadas constituem benfeitorias necessárias porque destinadas a evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa, à excepção das referentes aos dois quartos, casa de banho, fossa e cozinha que não sendo indispensáveis à sua conservação, lhe aumentaram, todavia, o seu valor (art.216ºnº3 do CC).
Assim, têm os AA. direito a ser indemnizados pelos herdeiros habilitados dos primitivos RR, do valor das benfeitorias por aqueles realizadas e descritas em sede de facto, as quais ascendem, ao preço de 1975, a 1.080.000$00 a que correspondem 5.387,00€.

Nesta conformidade, por todo o exposto, acordam os Juízes em conceder provimento parcial à revista, condenando-se EE, JJ e GG herdeiros habilitados dos RR, CC e DD a pagarem aos AA. AA e BB a quantia de 5.387,00€ (cinco mil trezentos e oitenta e sete euros) a título de indemnização das benfeitorias por estes realizadas no prédio em causa nos autos.
No mais se absolvem todos os RR do pedido.
Custas por recorrentes e recorridos na proporção dos respectivos decaimentos.


Supremo Tribunal de Justiça, 24 de Junho de 2010

Orlando Afonso (Relator)
Cunha Barbosa
Ferreira de Sousa