Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1ª SECÇÃO | ||
Relator: | JORGE LEAL | ||
Descritores: | ADMISSIBILIDADE DE RECURSO RECURSO DE REVISTA CONTRADIÇÃO DE JULGADOS ÓNUS DE ALEGAÇÃO ACORDÃO FUNDAMENTO TRÂNSITO EM JULGADO DESERÇÃO DA INSTÂNCIA EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA DECISÃO INTERLOCUTÓRIA DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ | ||
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Data do Acordão: | 02/25/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | INDEFERIDA | ||
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Sumário : | I - Verificados que estejam os pressupostos gerais de recorribilidade atinentes à alçada e sucumbência, é admissível revista excecionalíssima de acórdão da Relação que tenha mantido o despacho do juiz de execução que indeferira a declaração de extinção da instância por deserção das exequentes, fundada (a revista) na existência de contradição entre o acórdão recorrido e um outro acórdão da Relação (cfr. arts. 854.º, parte inicial, 852.º, 671.º, n.os 1 e 2, al. a), 629.º, n.º 2, al. d), todos do CPC). II - Porém, a revista deve ser liminarmente rejeitada se a recorrente, além de citar mais do que um acórdão-fundamento e de não juntar cópia de nenhum deles, com certificação do seu trânsito em julgado, se limita a transcrever o respetivo sumário, alegadamente constante na base de dados www.dgsi.pt, sem evidenciar ou concretizar as circunstâncias do caso que fundariam a existência de contradição entre o acórdão recorrido e outro acórdão das Relações. | ||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 32041/16.0T8LSB-C.L1.S1 Acordam, em conferência, os juízes no Supremo Tribunal de Justiça I. RELATÓRIO 1. Em 28.12.2026 AA e BB instauraram ação de execução, para pagamento de quantia certa, na forma ordinária, contra Garagem Veneza, Lda, tendo em vista a efetivação de um crédito que liquidaram em € 55 204,11. 2. Em 19.01.2022 e, bem assim, em requerimentos posteriores a esse, a executada requereu, no processo de execução, que a instância fosse declarada extinta por deserção, nos termos dos artigos 277.º, alínea c) e 281.º n.º 5, do CPC, em virtude de, por negligência das partes, o processo aguardar impulso processual havia mais de seis meses. 3. As exequentes pronunciaram-se contra o requerido em 2. 4. Em 06.02.2023 foi proferido o seguinte despacho: Incidente da executada invocando a extinção da instância por deserção: A executada Garagem Veneza, Ldª. vem alegar que, desde 18 de Fevereiro de 2021, a instância ficou deserta, independentemente de decisão judicial. * Os exequentes AA e BB, exercendo o contraditório, vieram dizer que o processo não se encontra parado por falta de impulso das partes. ** Apreciando e decidindo: A extinção da instância por deserção, prevista pelo art. 281 nº. 1 e nº. 5 do C. P. Civil quanto à execução, sanciona a negligência da parte em promover o seu andamento: “A deserção da instância radica no princípio da auto-responsabilidade das partes, encontrando a sua razão de ser no facto de não ser desejável, numa justiça que se pretende célere e cooperada, que os processos se eternizem em tribunal, quando a parte se desinteressa da lide ou negligencia a sua atuação, não promovendo o andamento do processo quando lhe compete fazê-lo” (ac. STJ de 14.05.2019, proc. 3422715.9T8LSB.L1.S2, relatado pelo Conselheiro Pedro de Lisma Gonçalves, disponível em dgsi.pt). Esse “ato omitido pode respeitar ao próprio processo ou a um incidente de que dependa o seu andamento (…). Exemplo do segundo é o requerimento de habilitação dos herdeiros da parte falecida na pendência da causa” (Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol 1º., Coimbra editora, 1999, p. 509). Ora, não resulta do processo – e nem a executada o invoca - que ato teriam os exequentes que praticar e não praticaram. Os exequentes intentaram a execução e as diligências a ser praticadas são-no pelo agente de execução. Como tal, inexiste qualquer impulso processual que competisse aos exequentes, ou seja, inexiste qualquer fundamento para a deserção da execução. Por outro lado, para que se possa considerar o decurso do prazo de deserção, sempre terá a parte que ser notificada de que os autos aguardam o seu impulso processual, de modo que a deserção não constitua uma decisão-surpresa: “o prazo de seis meses conta-se, pois, não a partir do dia em que a parte deixou de praticar ato que condicionava o andamento do processo, isto é , a partir do dia em que se lhe tornou possível praticá-lo ou, se para o efeito tinha um prazo ( não perentório , a partir do dia em que ele terminou , mas a partir do dia em que lhe é notificado o despacho que alerte a parte para a necessidade do seu impulso processual” (ac. TRL de 28.04.2016, processo nº. 473/07.0TTBRR-M, relatado pelo Desembargador Leopoldo Soares, disponível em dgsi.pt, realçado agora). Ora, os exequentes não foram notificados pelo Senhor A E. de qualquer ato que devessem praticar e de que a instância aguardaria a extinção por deserção caso não o praticassem. Portanto, nunca poderiam ser os exequentes sancionados com qualquer extinção da instância por deserção. Tudo visto, não se verifica qualquer extinção da instância executiva, indeferindo-se o requerido pela executada. Custas do incidente pela executada”. 5. A executada apelou desse despacho. 6. Por acórdão proferido em 06.6.2024 a Relação de Lisboa julgou a apelação improcedente e confirmou a decisão recorrida. 7. Deste acórdão foi interposta revista pela executada, que formulou as seguintes conclusões: “A-O acórdão proferido é nulo, pois apresenta contradição na sua fundamentação, apresentando-a de forma ambígua e não conheceu questão que deveria conhecer- artigo 615º, nº 1, alíneas c) e d). B- No ponto 2 , 3 e 4 da fundamentação de facto está escrito: “2. No requerimento executivo as exequentes indicam como agente de execução CC. 3. No período compreendido entre 26 de Novembro de 2019 e 31 de Janeiro de 2022 o Sr. Agente de execução não praticou qualquer ato no processo. 4. O tribunal recorrido não notificou as exequentes da ausência de intervenção do Sr. Agente de Execução no autos,” C- Em relação aos pontos 2 e 3, e no tocante ao papel exercido pelo Senhor Agente 4 de execução, se por um lado o Meritíssimo Juiz considera que quem indicou, foram as exequentes, mais adiante na fundamentação da decisão, considera que o Senhor AE, não representa o exequente, nem é por si contratado. D- O senhor Agente de Execução é nomeado e pago pelo exequente, nas suas despesas tendentes a desenvolver a execução. Acabando por salvaguardar acima de tudo os interesses daquele. E-Todos sabiam da inércia do Senhor AE, e os exequentes sempre foram notificados, do facto, naturalmente, para o exercício do contraditório. F-. O artigo 281º, nº 5 do CPC, na acção executiva não permite o chamado despacho alerta, pois tal não resulta da letra da lei. G-. Nem o dever de gestão e cooperação processuais podem simplesmente afastar a letra da lei e a regra do artigo 9º do CC. H- Na acção executiva, a deserção opera automaticamente, não carecendo de ser declarada, basta a inércia da parte em impulsionar. I- E no caso dos autos não haveria decisão surpresa, na medida em que as partes, sempre puderam exercer o contraditório do artigo 3º do CPC. J. Com o acórdão ora em crise, estamos perante uma manifesta contradição com a interpretação dada pelo douto acórdão da Relação de Évora, de 26/03/2020, processo 2095/16.6T8SLV.E1, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito. L- O acórdão ora em crise, também está em manifesta contradição com a interpretação dada pelo douto acórdão da Relação de Coimbra, de 22/06/2021, processo 21170/13.3TBPBL.C1, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito. Nestes termos e nos melhores de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso, anulando-se, em consequência, o acórdão recorrido, devendo ainda ser apreciada a questão da contradição de acórdãos nos termos do artigo 629º, nº 2 e 672º, nº 1,alínea c), ambos do CPC. Com o que se fará a costumada Justiça!” 8. As exequentes contra-alegaram, pugnando pela inadmissibilidade do recurso, pela sua improcedência e pela condenação da recorrente como litigante de má-fé. 9. A Relação pronunciou-se acerca das nulidades que a recorrente imputara ao acórdão recorrido, concluindo pela sua inexistência. 10. Recebidos os autos neste Supremo Tribunal de Justiça, o Exm.º relator determinou que as partes fossem ouvidas, nos termos do art.º 655.º do CPC, uma vez que se lhe afigurava, pelas razões que indicou, que a revista não era legalmente admissível. 11. A recorrente pronunciou-se pela admissibilidade da revista. 12. Em 22.11.2024 o Exm.º relator proferiu despacho, em que decidiu não conhecer o objeto do recurso, por o mesmo não ser legalmente admissível. 13. A recorrente reclamou para a conferência, nos termos do requerimento que aqui se transcreve: “GARAGEM VENEZA, LDA., recorrente nos autos em tópico, notificado da decisão singular proferida, e sentindo-se prejudicada, vem requerer a V. Exas. se dignem ordenar a prolação de douto acórdão. Entende a recorrente que em o recurso da decisão impugnada foi admitido em 7/10/2024 e, efectivamente, porque, além do mais, existe manifesta e insanável contradição entre os acórdãos mencionados e transcritos no seu essencial. Essa questão não poderá deixar de ser conhecida, sob pena de não se conhecer questão essencial e invocada e, assim, denegar justiça à recorrente. ED” 14. As recorridas exerceram o contraditório, manifestando-se no sentido da improcedência da reclamação e pugnando pela condenação da recorrente nos termos do art.º 542.º e seguintes do CPC. 15. Em virtude da jubilação do primitivo relator, procedeu-se à redistribuição do processo. 16. Foram colhidos vistos. II. FUNDAMENTAÇÃO 1. São aplicáveis ao recurso de revista as disposições relativas ao julgamento da apelação, com exceção do ressalvado nos termos do art.º 679.º do CPC. Assim, a parte que puder ser considerada prejudicada por decisão singular proferida pelo relator pode reagir requerendo que sobre a matéria da decisão recaia um acórdão; nessa sequência o caso é submetido à conferência, depois de ouvida a parte contrária (n.º 3 do art.º 652.º do CPC). In casu, a questão a apreciar é se a revista é admissível, atendendo ao seu objeto. 2. O factualismo relevante a levar em consideração está exposto no Relatório supra. 3. O Direito 3.1. A decisão reclamada assentou na seguinte fundamentação, que aqui se transcreve: “O recurso de revista não é legalmente admissível pelas seguintes razões: A primeira porque não tem aqui aplicação o art.629 nº2 d) CPC; A segunda porque, mesmo a entender-se a sua aplicação, não se verifica o requisito da contradição de acórdãos. A terceira, por não se verificam os pressupostos da revista excepcional. A primeira razão: Na execução o recurso de revista tem um espectro mais restritivo do que no processo declarativo, em face da regra específica do art.854 CPC, ao limitar a sua admissibilidade aos acórdãos da Relação proferidos em determinados procedimentos – liquidação não dependente de simples cálculo aritmético, verificação e graduação de créditos e oposição deduzida contra a execução -, o que significa, a contrario, que não é admissível revista de quaisquer acórdãos da Relação proferidos no procedimento executivo e nos apensos declarativos que não sejam os especialmente contemplados na norma, respeitem estes a decisões interlocutórias ou finais, estando esta interpretação consolidada na jurisprudência do Supremo. Porque o acórdão da Relação não foi proferido em recurso nos procedimentos de liquidação não dependente de simples cálculo aritmético, verificação e graduação de créditos e de oposição deduzida contra a execução, e só estes admitem revista, desde que verificados os pressupostos gerais. Daqui resulta que não tem aplicação o art.854 (2ª parte) do CPC. No entanto, o art.854 (1ª parte) CPC ressalva as situações em que é sempre admissível recurso para o STJ (“Sem prejuízo dos casos em que é sempre admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (…)”), o que convoca as hipóteses do art.629 nº2 a), b), c), e d), e as do art.671 nº2 b) CPC. Não se verificando quaisquer das alíneas a), b), C do nº2 do art.629, nem a alínea b) do nº2 do art.671 CPC, resta apurar se o recurso tem apoio no art.629 nº2 alínea d) CPC. O art.629 nº2 d) deve ser interpretado restritivamente no sentido de que que o recurso de revista a coberto desta norma só tem aplicação aos recursos de revista que ponham termo ao processo ou apreciem o mérito da causa, nos termos do art. 671 nº1 CPC, o que não é o caso. Por isso, a norma do art.629 nº2 d) CPC não é aplicável a decisões interlocutórias de natureza adjectiva, mas antes a regra do art. 671 nº2 b) CPC. Além disso, para a sua aplicação não basta a contradição de acórdãos, pois a norma estabelece uma recorribilidade para acórdãos que são recorríveis nos termos gerais, e irrecorríveis por exclusão legal. Como se expôs no Ac STJ de 26-11-2019 ( poc nº 320/17), em www dgsi ), correspondendo à orientação jurisprudencial deste tribunal, “O recurso prescrito na alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC tem como justificação o objetivo de garantir que não fiquem sem possibilidade de resolução conflitos de jurisprudência verificados entre acórdãos das Relações, em matérias que, por motivos de ordem legal que não dizem respeito à alçada do tribunal, nunca poderiam vir a ser apreciadas pelo Supremo Tribunal de Justiça – como por exemplo, em sede de insolvência (artigo 14.º, n.º 1, do CIRE), expropriações (artigo 66.º, n.º 5, do Código das Expropriações) ou providências cautelares (artigo 370.º, n.º 2, do CPC).Se todos os acórdãos da Relação em contradição com outros acórdãos da Relação admitissem a revista "ordinária" nos termos do artigo 629.º, n.º 2, al. d), CPC, deixaria necessariamente de haver qualquer justificação para construir um regime de revista excecional para a contradição entre acórdãos das Relações tal como se encontra no artigo 672.º, n.º 1, al. c), CPC. Sempre que se verificasse uma contradição entre acórdãos das Relações seria admissível uma revista "ordinária", não havendo nenhuma necessidade de prever para a mesma situação uma revista excecional”. A segunda razão: A contradição jurisprudencial deve ser apurada segundo os critérios semelhantes aos do art.629 nº2 c), do art.672 nº2 c) ou do art. 688 nº1 (recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência ) CPC, tal implica , além do mais, o requisito da identidade, não sendo suficiente, para tanto, que em ambos os acórdãos se aborde o mesmo instituto ou regime jurídico, sendo indispensável que a subsunção jurídica em ambas as decisões radique no mesmo “núcleo factual”, ou seja, uma “identidade substancial”. Verifica-se que a recorrente nem sequer deu cumprimento ao ónus de especificação, pois não indicou o acórdão fundamento, e muito menos cópia do mesmo, o que implica a imediata rejeição (art.637 nº2 CPC), e não satisfaz tal ónus a indicação de dois acórdãos da Relação, sem justificar a existência de contradição. A terceira razão: Porque a revista excepcional não é um recurso autónomo, só é admissível se o for a revista normal. Para além disso, recorrente limitou-se a referir, sem mais, o art.672 nº1 a) e c) CPC, omitindo totalmente o ónus de especificação, o que implica a imediata rejeição (art.672 nº2 CPC)”. Vejamos. Dúvidas não se verificam quanto à admissibilidade do recurso à luz das regras gerais da alçada e da sucumbência previstas no art.º 629.º n.º 1 do CPC. Porém, haverá que atentar que a revista incide sobre acórdão que foi proferido no âmbito de um processo de execução. Assim, rege o disposto no art.º 854.º do CPC: “Revista Sem prejuízo dos casos em que é sempre admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apenas cabe revista, nos termos gerais, dos acórdãos da Relação proferidos em recurso nos procedimentos de liquidação não dependente de simples cálculo aritmético, de verificação e graduação de créditos e de oposição deduzida contra a execução”. O acórdão recorrido não foi proferido em recurso em procedimento de liquidação não dependente de simples cálculo aritmético, em procedimento de verificação e graduação de créditos ou em oposição deduzida contra a execução. Assim, o acórdão recorrido não é suscetível de revista ordinária. E, não sendo suscetível de revista ordinária, arredada fica a possibilidade da revista excecional, prevista no art.º 671.º n.º 2 do CPC. Porém, a lei ressalva os casos “em que é sempre admissível recurso para o STJ”. Remete-se, aqui, para o disposto no n.º 2 do art.º 629.º do CPC, que tem a seguinte redação: “2 - Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso: a) Com fundamento na violação das regras de competência internacional, das regras de competência em razão da matéria ou da hierarquia, ou na ofensa de caso julgado; b) Das decisões respeitantes ao valor da causa ou dos incidentes, com o fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre; c) Das decisões proferidas, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça; d) Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme”. Na alínea d), única que releva para o efeito que ora nos ocupa, admite-se excecionalmente recurso de acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal. É sabido que com esta norma se pretende permitir que o STJ possa dirimir controvérsias jurisprudenciais que, de outra forma, não sairiam do âmbito das Relações por força de impedimentos estruturais de acesso ao STJ decorrentes de limitações legais à revista que se encontram disseminadas no nosso ordenamento jurídico. É o que se passa com os procedimentos cautelares (art.º 370.º n.º 2), os processos de expropriação por utilidade pública (art.º 66.º n.º 5 do CE), os processos de insolvência (art.º 14.º n.º 1 do CPEREF). A decisão ora reclamada faz-se eco da designada “tese restritiva”, que considera que “[o] art. 629 n.º 2 d) deve ser interpretado restritivamente no sentido de que o recurso de revista a coberto desta norma só tem aplicação aos recursos de revista que ponham termo ao processo ou apreciem do mérito da causa, nos termos do art.º 671.º n.º 1 do CPC” (citámos o despacho reclamado). Esta polémica está associada à interpretação do n.º 2 do art.º 671.º do CPC. Reputamos ser necessário trazer à liça os contornos do problema, na medida em que, cremos, por força do disposto no art.º 852.º do CPC, a admissibilidade da apelação e da revista no processo de execução rege-se, no que não estiver especialmente regulado no regime das execuções, pelas disposições reguladoras do processo de declaração. Isto exposto, cabe concluir que a presente revista não seria admissível à luz do disposto no art.º 671.º n.º 1 do CPC. Com efeito, nos termos deste preceito, “[c]abe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos”. O acórdão da Relação ora recorrido não conheceu do mérito da causa nem pôs termo, total ou parcialmente, ao processo. Pelo contrário, o acórdão da Relação confirmou uma decisão que rejeitou um requerimento de declaração da extinção da instância, e determinou o prosseguimento do processo. Nos termos do n.º 2 do art.º 671.º do CPC, os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual (como é o caso sub judice) “só podem ser objeto de revista: “a) Nos casos em que o recurso é sempre admissível; b) Quando estejam em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme”. Tal como a parte inicial do art.º 854.º do CPC, a alínea a) do n.º 2 do art.º 671.º remete para o disposto no n.º 2 do art.º 629.º do CPC. E, neste número 2, releva a alínea d), cujo teor se transcreve de novo: “2 - Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso: (…) d) Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme”. A respeito da aplicação desta alínea d) à limitação ao recurso prevista no n.º 2 do art.º 671.º do CPC, a doutrina e a jurisprudência estão divididas: a) Para uns (tese restritiva), a alínea d) do n.º 2 do art.º 629.º do CPC não abarca a revista de acórdãos da Relação que recaiam sobre decisões que incidam exclusivamente sobre matéria adjetiva, na medida em que o respetivo regime não proclama uma geral irrecorribilidade para o STJ. Pelo contrário, segundo os defensores desta interpretação da lei, a alínea b) do n.º 2 do art.º 671.º indica as situações em que, além das já decorrentes das alíneas a) a c) do n.º 2 do art.º 629.º, será admitido o acesso ao STJ: precisamente nos casos de contraditoriedade do acórdão da Relação com acórdão proferido pelo STJ. Para os defensores desta tese, a alínea d) do n.º 2 do art.º 629.º apenas tem em vista os acórdãos da Relação previstos no n.º 1 do art.º 671.º, isto é, acórdãos que conheçam do mérito da causa ou que ponham termo ao processo, “absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos”. Por outro lado, a tese restritiva harmonizar-se-ia com o intuito legislativo de racionalização do acesso ao STJ. Assim, na doutrina, Miguel Teixeira de Sousa, post no Blog do IPPC, 02/10/2019, Jurisprudência 2019 (88), em anotação ao acórdão do STJ, de 12.9.2019, processo n.º 587/17.9T8CHV-A.G1-A.S1, e também José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 3.º, 3.ª edição, Almedina, 2022, pp. 34 a 36. Na jurisprudência, cfr., v.g., acórdão do STJ de 10.12.2019 (processo 704/18.1T8AGH-A.L1.S2); acórdão do STJ de 12.11.2020 (processo 6333/15.4T8OER-A.L1.S1); acórdão do STJ de 07.7.2021 (processo 3448/10.9TBVCD-E.P1.S1); acórdão do STJ de 11.10.2022 (processo 3450/20.2T8STS-A.P1.S1); acórdão do STJ de 17.01.2023 (processo 8988/19.1T8VNG-D.P1.S1) – todos consultáveis, assim como os infra citados, em www.dgsi.pt. b) Para outros (tese ampla), tanto a letra da lei como a teleologia da norma determinam a aplicabilidade da alínea d) do n.º 2 do art.º 629.º do CPC aos acórdãos da Relação referidos no n.º 2 do art.º 671.º: este último preceito impede o acesso ao STJ de uma categoria de decisões da Relação, independentemente da alçada, inserindo-se, pois, na letra da referida alínea d); a inaplicabilidade da recorribilidade excecionalíssima prevista na alínea d) do n.º 2 do art.º 629.º impediria que o STJ exercesse a sua função uniformizadora numa vasta área de litígios cuja relevância não pode ser menorizada, nomeadamente tendo em consideração que se manifestam numa via essencial da litigância cível, a do processo comum. Neste sentido, na doutrina, cfr. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª edição, 2022, Almedina, páginas 62 a 70, e Carlos Lopes do Rego, no artigo “Problemas suscitados pelo modelo de revista acolhido no CPC: o regime de acesso ao STJ quanto à impugnação de decisões interlocutórias”, in Estudos em homenagem à Professora Doutora Maria Helena Brito, Gestlegal, dezembro 2022, páginas 494 a 496. Alinhando pela tese ampla, na jurisprudência, cfr., v.g., o acórdão do STJ de 23.01.2020, processo 1303/17.0T8AGD.B.P1.S1, o acórdão do STJ de 01.3.2018, processo n.º 3580/14.0T8VIS-A.C1.S1.; acórdão do STJ de 12.9.2019, processo n.º 587/17.9T8CHV-A.G1-A.S1; acórdão do STJ de 08.9.2021, processo n.º 122900/17.2YIPRT-C.E1.S1; acórdão do STJ de 18.01.2022, processo n.º 9317/18.7T8PRT.P1.S1. Expostas as linhas de argumentação das teses em presença, haverá que tomar posição. Crê-se que é de sufragar a designada tese ampla. A tese ampla está conforme com a letra da lei (art.º 9.º n.º 2 do Código Civil): - a alínea a) do n.º 2 do art.º 671.º do CPC, ao remeter para os casos em que o recurso é sempre admissível, não determina (na sua letra) a exclusão da situação prevista na alínea d) do n.º 2 do art.º 629.º; - a alínea b) do n.º 2 do art.º 671.º, na sua literalidade, complementa a alínea d) do n.º 2 do art.º 629.º; - A alínea d) do n.º 2 do art.º 629.º não restringe a espécie dos acórdãos a que é aplicável. Isto é, na sua letra, comporta decisões finais e decisões interlocutórias, decisões sobre matéria de direito adjetivo e decisões sobre questões de direito substantivo. A tese ampla é a única que se coaduna com a teleologia dos preceitos (art.º 9.º n.º 1 do Código Civil): - a admissibilidade excecional de acesso ao STJ prevista na alínea d) do n.º 2 do art.º 629.º do CPC visa permitir que o STJ possa dirimir controvérsias jurisprudenciais que, de outra forma, face às limitações estruturais à revista disseminadas no nosso ordenamento jurídico, permaneceriam vivas na comunidade jurídica, gerando desigualdade e insegurança, incompatíveis com a finalidade última da intervenção dos tribunais; - a relevância de tais controvérsias manifesta-se, também, em matérias de natureza adjetiva, ainda que suscitadas em momentos intercalares do processo. O processo, instrumento da realização do direito, a este não deve erigir-se como obstáculo. E na garantia de que assim será, avulta o Supremo Tribunal de Justiça, que não deve ser arredado da tarefa cimeira de uniformizar, nos tribunais judiciais, a interpretação da lei, substantiva ou adjetiva. A tese ampla está, também, em conformidade com o elemento sistemático na interpretação das leis (art.º 9.º n.º 1 do Código Civil): A alínea b) do n.º 2 do art.º 671.º, longe de se erigir em obstáculo à tese ampla, por supostamente ter por efeito afastar a aplicabilidade da alínea d) do n.º 2 do art.º 629.º, antes confirma a aplicabilidade desta. É que, face ao arredamento, previsto no proémio do n.º 2 do art.º 671.º, da subida ao STJ das controvérsias respeitantes a decisões de natureza adjetiva e interlocutória proferidas em processo comum, não haveria lugar à prolação de acórdão do STJ sobre essas matérias, não fora a via que para tal é aberta pela alínea d) do n.º 2 do art.º 629.º. Note-se que esse afastamento da atuação uniformizadora do STJ, decorrente da tese restritiva, teria que ser estendido também às decisões adjetivas intercalares proferidas em procedimentos especiais como processos de insolvência, procedimentos cautelares, processos de expropriação litigiosa, processos de jurisdição voluntária, sob pena de inexplicável instalação de duplicidade de regimes, face ao processo comum. A tese ampla coaduna-se com o elemento histórico da interpretação das leis (art.º 9.º n.º 1 do Código Civil). Em parte alguma, na evolução do regime legislativo e, nomeadamente, nos textos preambulares dos diplomas legislativos, se encontra menção do intuito, por parte do legislador do atual Código de Processo Civil, de vedar a intervenção do STJ na resolução de contradições entre tribunais superiores manifestadas em processos que, por razões alheias à alçada, não sejam suscetíveis de revista, e que se verifiquem em decisões intercalares incidentes sobre questões de natureza adjetiva. Pelo contrário, a função uniformizadora do STJ, enquanto órgão cimeiro da jurisdição judicial, é sempre salientada nesses textos. A tese ampla é também aquela que melhor se coaduna com a presunção contida na parte final do n.º 3 do art.º 9.º do Código Civil (“Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”: - o legislador, ao remeter, na alínea a) do n.º 2 do art.º 671.º do CPC, para o regime geral da admissibilidade excecional de revista, sem explicitar a exclusão da situação prevista na alínea d) do n.º 2 do art.º 629.º, exprimiu o seu pensamento em termos adequados; - é que, efetivamente, o legislador não pretendia excluir a referida alínea d) do âmbito de aplicação da remissão contida na alínea a) do n.º 2 do art.º 671.º. Retornando ao caso específico destes autos, cremos ser manifesto que a irrecorribilidade decorre de impedimento estrutural, que nada tem a ver com questões de alçada do tribunal, pelo que, em tese geral, será admissível a revista ao abrigo do disposto na alínea d) do n.º 2 do art.º 629.º do CPC, conjugado com a ressalva inicial à irrecorribilidade prevista no art.º 854.º do CPC. Haverá, então, que verificar se ocorre o outro pressuposto da revista excecionalíssima prevista na alínea d) do n.º 2 do art.º 629.º do CPC: que o acórdão alvo da revista “esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito”. O apuramento da contradição jurisprudencial relevante obedecerá a critérios semelhantes aos que se verificam quanto à admissibilidade do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência (cfr., v.g., Abrantes Geraldes, Recursos…, obra citada, páginas 75 e 76; acórdão do STJ, de 29.10.2020, processo n.º 13585/19.9T8SNT-A.L1.S1). Isto é: - Deverá ocorrer uma verdadeira contradição entre os acórdãos. Tal significa que a questão essencial, que constituiu a razão de ser e objeto da decisão, foi resolvida de forma frontalmente oposta nas decisões em confronto. Não basta oposição respeitante a questões laterais ou a fundamentos de ordem secundária, nem oposição meramente implícita; – Deve verificar-se uma relação de identidade entre a questão de direito apreciada no acórdão que é objeto de recurso e a apreciada no acórdão-fundamento, não bastando que nos dois acórdãos se tenha abordado o mesmo instituto jurídico. Tal pressupõe que os elementos de facto relevantes para a ratio da regra jurídica sejam coincidentes, isto é, que a subsunção jurídica feita em qualquer das decisões tenha operado sobre núcleo factual essencialmente idêntico, sem se atribuir relevo a elementos de natureza acessória; - Por último, a divergência deve verificar-se num quadro normativo substancialmente idêntico. O art.º 637.º do CPC regula o “modo de interposição do recurso”. Nos termos do n.º 2 deste artigo, “O requerimento de interposição do recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade; quando este se traduza na invocação de um conflito jurisprudencial que se pretende ver resolvido, o recorrente junta obrigatoriamente, sob pena de imediata rejeição, cópia, ainda que não certificada, do acórdão fundamento”. A documentação do recurso carece de cópia do acórdão-fundamento, acórdão esse que deve ter transitado em julgado. É o que decorre do disposto nos artigos 671.º n.º 2, al. b), 672.º n.º 1, alínea c) e 637.º n.º 2 do CPC (cfr. Abrantes Geraldes, Recursos…, citado, pp. 73 e 74). Por sua vez, o art.º 641.º do CPC, que rege o despacho a ser proferido sobre o requerimento de interposição do recurso, estipula, no n.º 2, que o requerimento é indeferido quando: “a) Se entenda que a decisão não admite recurso, que este foi interposto fora de prazo ou que o requerente não tem as condições necessárias para recorrer; b) Não contenha ou junte a alegação do recorrente ou quando esta não tenha conclusões”. Sendo certo que, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 639.º do CPC, “[q]uando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada”. No que concerne à norma, contida no n.º 2 do art.º 637.º do CPC, que comina com a imediata rejeição do recurso a não apresentação, com o requerimento do recurso, de cópia do acórdão-fundamento (quando o recurso se funda na contraditoriedade do acórdão recorrido com um outro acórdão - acórdão-fundamento), a jurisprudência constitucional reputa-a de inconstitucional, na interpretação que não admite a possibilidade de o tribunal, previamente à rejeição, convidar o recorrente a suprir a falta do aludido documento. Com efeito, entende-se que a aludida interpretação (que tem manifesto acolhimento na letra da lei) viola, por desproporcionalidade, o direito à tutela jurisdicional e ao processo equitativo, tal como está consagrado no art.º 20.º n.ºs 1 e 4 da CRP (cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional, TC 642/2016 e TC 259/2002). Neste contexto, o STJ tem admitido o saneamento da falta atempada de junção de cópia-fundamento e, bem assim, a prolação de despacho de aperfeiçoamento para concretização do acórdão-fundamento, quando a contraditoriedade do acórdão recorrido é imputada a mais do que um acórdão. Veja-se, exemplificativamente, os acórdãos do STJ de 07.6.2022, processo n.º 753/20.0T8VNF-I.G1-A.S1 e de 30.4.2019, processo n.º 2822/18.7T8VNF.G1.S1. Contudo, essas situações têm como pressuposto que o específico fundamento do recurso, a situação que justifica a recorribilidade excecional, esteja evidenciada na revista ou, como diz Abrantes Geraldes, o conjunto do requerimento do recurso e da alegação revele o fundamento específico da recorribilidade quando este seja autónomo em relação ao valor da causa ou da sucumbência, ou constitua desvio a outro impedimento legal (cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos …, citado, pág. 161). Com efeito, como se sumariou no acórdão do STJ de 11.5.2023, processo n.º 835/21.0T8VFR.P1-A.S1: “I. Não pode considerar-se que o recurso foi interposto ao abrigo do fundamento específico da contradição de julgados quando o recorrente se limita a referir jurisprudência em que, alegadamente, se adoptou posição distinta da do Acórdão recorrido. II. O momento em que o recorrente define os termos da interposição do recurso é o momento das alegações de recurso, não valendo para esse efeito nem as correcções nem os acrescentos posteriores, designadamente na reclamação da decisão de inadmissibilidade do recurso”. É que, como há muito frisa o Tribunal Constitucional, “no domínio não penal (ou contra-ordenacional), o Tribunal Constitucional tem entendido que do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição não decorre um genérico direito à obtenção de um despacho de aperfeiçoamento” (cfr. TC 259/2002, ponto 11.6). Podendo, a esse respeito, transcrever-se, de forma mais desenvolvida, o exarado em TC 462/2016: “O Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado na sua jurisprudência que o direito ao processo, conjugado com o direito à tutela jurisdicional efetiva, impõe que se atribua prevalência à justiça material sobre a justiça formal, evitando-se soluções que, devido à exigência de cumprimento de «requisitos processuais», conduzam a uma decisão que, bem vistas as coisas, se poderá traduzir numa verdadeira denegação de justiça. Concretamente, no que respeita a esta matéria, o Tribunal tem entendido que não existe um genérico direito à obtenção de um despacho de aperfeiçoamento (cfr., neste sentido o Acórdão n.º 259/02) e que o convite ao aperfeiçoamento de peças processuais deficientes não significa que beneficie de tutela constitucional um genérico, irrestrito e ilimitado “direito” das partes à obtenção de um sistemático convite ao aperfeiçoamento de todas e quaisquer deficiências dos atos por elas praticados em juízo. Acresce que, como decorre também da jurisprudência do Tribunal (concretamente, dos acórdãos n.ºs 259/02 e 374/00), o convite ao aperfeiçoamento tem sentido e justificação quando as deficiências em causa forem de natureza estritamente formal ou secundária, dizendo respeito à “apresentação” ou “formulação”, mas não ao conteúdo, concludência ou inteligibilidade da própria alegação ou motivação produzida. Assim, o convite ao aperfeiçoamento de deficiências formais não pode ser instrumentalizado pelo respetivo destinatário, de forma a permitir-lhe, de modo enviesado, obter um novo prazo para, reformulando substancialmente a pretensão ou impugnação que optou por deduzir, obter um prazo processual adicional para alterar o objeto do pedido ou impugnação deduzida, só então cumprindo os ónus que a lei de processo justificadamente coloca a seu cargo. Por outro lado, o Tribunal também já entendeu que o convite ao aperfeiçoamento não será constitucionalmente exigível nos casos em que a deficiência formal se deva a um “erro manifestamente indesculpável do recorrente” (cfr. Acórdão n.º 184/04).” (sublinhado nosso). Ora, conforme se apontou no despacho reclamado, a recorrente, embora invoque, como fundamento para a admissibilidade da revista, a disposição da alínea d) do n.º 2 do art.º 629.º do CPC, não concretiza, na revista, a suposta contradição. Na verdade, a recorrente limitou-se a citar, na revista, o sumário de dois acórdãos das Relações, de que não juntou cópia nem certificação do respetivo trânsito em julgado. E, para além da citação dos aludidos sumários, que contêm proposições jurídicas genéricas, a recorrente nada aduziu, no que concerne à individualização dos casos concretos, que permita descortinar, entre os juízos formulados nesses acórdãos e no acórdão recorrido, qualquer contradição. Tal implica que, conforme se concluiu no despacho do relator, a revista deva ser rejeitada. 3.2. Resta apreciar se a interposição da revista (e da subsequente reclamação) consubstancia, como defendem as recorridas, litigância de má-fé. Nos termos do disposto no art.º 542.º n.º 2 do Código de Processo Civil, diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão. A atual redação do preceito, introduzida no anterior CPC pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12.12 (onde era o art.º 456.º), visou, conforme resulta do seu texto e se explicita no preâmbulo daquele diploma, “como reflexo e corolário do princípio da cooperação”, consagrar “expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos”. Como se recorda no acórdão do STJ de 16.5.2019 (processo n.º 6646/04.0TBCSC.L1.S2), a litigância de má-fé é um instituto que visa sancionar e, portanto, combater a “má conduta processual”. A conduta sancionada consubstancia-se na dedução de pretensão ou oposição cuja falta ou fundamento não podia ser ignorada, na alteração ou omissão da verdade dos factos relevantes para a decisão da causa, na omissão grave do dever de cooperação (cfr. artigos 7.º e 8.º do CPC) ou no uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão. Os fins aí perseguidos são a boa administração da justiça, o respeito pelo tribunal, a credibilidade da atividade jurisdicional (cfr. Paula Costa e Silva, A Litigância de Má Fé, Coimbra Editora, 2008, páginas 452-454). Com relevo para um caso como o deste recurso, lembramos o que se ponderou no acórdão do STJ, de 09.3.2021, processo n.º 528/16.0T8VNG.S1.P1.S1: “os instrumentos processuais utilizados pela recorrente (o recurso de revista e a reclamação para a conferência) estão previstos na lei e a circunstância de o recurso de revista não ser admissível e de a reclamação ser indeferida, por falta de fundamentos, não dá lugar automaticamente a uma condenação por litigância de má fé. A litigância de má-fé exige que quem pleiteia tenha a consciência de não ter razão, embora não se exija o conhecimento efetivo, mas apenas que seja exigível o conhecimento da falta de fundamentação da sua pretensão. A defesa convicta de uma perspetiva jurídica dos factos, diversa daquela que a decisão judicial acolhe, não implica, por si só, litigância censurável a despoletar a aplicação do artigo 542.º do CPC, admitindo a lei uma vasta amplitude ao direito de ação ou de defesa”. Face a tudo o que consta supra, não lobrigamos que a recorrente/reclamante tenha ultrapassado os limites do justo exercício do direito de recurso aos tribunais constitucionalmente garantido no art.º 20.º n.º 1 da CRP. É certo que a recorrente não logrou a admissão do recurso. Mas tal decorreu de uma não verificação de requisitos que, cremos, não padece, ainda assim, de ostensibilidade tal que permita formular, a respeito da recorrente, o grave juízo reprovador pressuposto pela aplicação da cominação prevista no art.º 542.º do CPC. Pelo que não se imputa à recorrente a aventada litigância de má-fé. III. DECISÃO Pelo exposto, não se admite a revista, confirmando-se o despacho do relator. As custas da revista, na vertente de custas de parte, são a cargo da recorrente (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 533.º do CPC). Também são a cargo da recorrente as custas da reclamação, fixando-se em 1 UC a taxa de justiça (tabela II do RCP). Lx, 25.02.2025 Jorge Leal (Relator) António Pires Robalo Anabela Luna de Carvalho |