Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1ª SECÇÃO | ||
Relator: | HELDER ROQUE | ||
Descritores: | ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO DIREITO DE PREFERÊNCIA EFICÁCIA REAL ABUSO DO DIREITO | ||
Data do Acordão: | 01/21/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS. DIREITO DOS REGISTOS E NOTARIADO - REGISTO PREDIAL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL - ACÇÃO - PARTES - PROCESSO / ACTOS PROCESSUAIS - ACÇÃO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / RECURSOS. | ||
Doutrina: | - Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 621 e 622; RLJ, Ano100º, 237 e 238; RLJ, Ano 103º, 476. - Castanheira Neves, Questão de Facto e Questão de Direito, 526 e nota (46). - Manuel de Andrade, Scientia Iuridica, Ano II, 146. - Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, T1, 2ª edição, 2000, 241 e 248, 265. - Mota Pinto, Direitos Reais, 1971, 135 a 138 e nota (24) de folhas 143 a 145. - Pessoa Jorge, Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, 1968, nota (166). - Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil”, Anotado, III, 2ª edição, revista e actualizada, com a colaboração de Henrique Mesquita, 1987, 383; “Código Civil”, Anotado, I, 4ª edição revista e atualizada, com a colaboração de Henrique Mesquita, 1987, 558. - Vaz Serra, Abuso do Direito (Em matéria de responsabilidade civil), BMJ, nº 85, 253; RLJ, Ano 101º, 329; RLJ, Ano 103º, 471 e nota (1); RLJ, Ano 111º, 102 e 296; RLJ, Ano 113º, 113 e ss.; RT, Ano 87º, 360. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 270.º, 276.º, 289.º, 290.º, 334.º, 369.º, N.º 1, 371.º, N.º 1, 416.º, N.ºS1 E 2, 421.º, N.º1, 1091.º, N.ºS 1 E 4, 1410.º CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 4.º, N.ºS 1 E 2, C), 32.º, N.º3, 201.º, N.º1, 202.º, 264.º, N.º3, 664.º, 659.º, N.º3, 671.º, 673.º, 713.º, N.º2, 722.º, N.º 2, 726.º, 729.º, N.º 2. CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL (CRPRED): - ARTIGOS 3.º, N.º 1, A), 2.º, N.º 1, A). LEI Nº 6/2006, DE 27 DE FEVEREIRO, QUE APROVOU O NOVO REGIME DO ARRENDAMENTO URBANO (NRAU): - ARTIGO 60.º, N.º1. LEI Nº 63/77, DE 25 DE AGOSTO: - ARTIGOS 1.º, N.º1, 3.º, 26.º, 27.º, 28.º, 59.º, N.ºS1 E 2, | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 5-5-1987, BMJ Nº 376, 493. | ||
Sumário : | I - O regime instituído pelo NRAU aplica-se às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, nomeadamente, aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU, e ao exercício do direito de preferência, por parte de arrendatário, que dele seja titular aquando da entrada em vigor daquela lei. II - A eficácia real do direito de preferência atribuído ao arrendatário habitacional, caracterizando o direito real de preferência como um verdadeiro direito real de aquisição, confere aquele o direito de adquirir o locado, atribuindo-lhe, como preferente, o direito de exigir a coisa das mãos de qualquer terceiro adquirente, em razão da sua eficácia absoluta e da sua inerência a certo objecto. III - Aquele que compra uma coisa, sujeita ao direito de preferência de outrem, não pode considerar-se como seu verdadeiro proprietário, enquanto não decorrer o prazo para o exercício daquele direito ou enquanto este não é definido, judicialmente, ficando numa situação semelhante aquele que contrata sob condição resolutiva ou que é sujeito de um negócio jurídico inválido. IV - O direito real de preferência atribuído ao arrendatário habitacional não carece de ser registado para produzir os seus efeitos, em relação a terceiros, a quem é oponível, podendo respetivo titular exercer o seu direito, não apenas contra o primitivo adquirente da coisa sujeita à preferência, mas, também, contra qualquer terceiro sub-adquirente que sobre a mesma venha a adquirir, posteriormente, um direito real de gozo conflituante. V - O direito real de preferência legal assegura a sua publicidade, por se dever poder presumir conhecido de toda a gente, ou por se tornar público, mediante o registo, ou, então, facilmente, cognoscível de terceiros, pela própria natureza das coisas. VI - Tendo a acção sido registada, o direito legal de preferência torna-se, reforçadamente, oponível a terceiros que tenham adquirido direitos sobre a coisa litigiosa, no período da mora litis, obtendo, então, a sentença favorável do preferente preterido uma eficácia superior à que, normalmente, resulta do caso julgado. VII - Pretende-se impedir com o abuso de direito que a norma seja desvirtuada do seu real sentido e alcance, porquanto na base da tutela conferida por esse instituto encontra-se a reacção contra o propósito exclusivo de criar à outra parte uma situação lesiva, através do funcionamento da lei. VIII - A circunstância de ter decorrido um prazo superior a vinte anos, desde a data do ato determinante da preferência, isto é, a compra e venda realizada, em 1981, entre os réus, e a data da proposição da ação, em 2004, não representa, no contexto fático considerado, um exercício, desequilibradamente, desproporcional, em relação à posição jurídica de que a autora preferente era titular, sendo o arrastamento no tempo da clarificação da situação de imputar, em exclusivo, ao obrigado à preferência, que vendeu, ilicitamente, o locado a terceiro. IX - Para o princípio nominalista, o que interessa é que o pagamento se faça em moeda com curso legal no país, atendendo, para o cálculo do objeto da prestação, ao valor facial da moeda, na data do cumprimento, independentemente das respetivas desvalorizações ou valorizações, nomeadamente, das alterações ao seu valor de troca ou aquisitivo X - O desequilíbrio das prestações será, porém, meramente, retórico, pois que, desfeita a segunda venda, a ré sub-adquirente abrirá mão do prédio, a favor da ré adquirente, de quem receberá € 99 759,57, que, por seu turno, abrindo mão do prédio, a favor da ré vendedora, será restituída por esta da contraprestação recebida de € 1496,39, ingressando a preferente na titularidade do imóvel, que esta sociedade perderá, a troco do recebimento do depósito do preço efetuado pela preferente. | ||
Decisão Texto Integral: |
Por outro lado, o negócio celebrado entre a ré DD e a ré “EE - Investimentos Mobiliários, S.A.”, por meio de escritura de compra e venda, outorgada no dia 10 de outubro de 1994, foi simulado, tendo sido realizado com o intuito de prejudicar a autora e outros, pois que nem a ré DD quis vender à ré “EE - Investimentos Mobiliários, S.A.”, nem esta quis comprar o prédio em causa. Invocou ainda a caducidade do prazo para o depósito do preço, alegando que a autora não o realizou, nos quinze dias seguintes à propositura da ação. Impugnou, igualmente, parte dos factos alegados pela autora, concluindo pela absolvição das rés da instância ou do pedido e requereu, também, a condenação da autora como litigante de má fé, em indemnização a liquidar em execução de sentença. Por outro lado, impugnou parte dos factos alegados pela autora, acrescentando que nunca existiu qualquer contrato de arrendamento, mas, tão- só, mera tolerância na ocupação, pelo ex-cônjuge da autora e pela própria autora, enquanto foi proprietária do imóvel “BB & Companhia, Lda.”. Concluiu pela absolvição das rés da instância ou do pedido e requereu a condenação da autora como litigante de má fé, em indemnização a liquidar em execução de sentença. Na réplica, a autora sustenta a improcedência das excepções deduzidas pelas rés e pede a condenação destas como litigantes de má-fé, em indemnização, não inferior a €2.500.00, cada uma. No saneador, foram julgadas improcedentes as arguidas nulidades e excepções dilatórias e relegado, para final, o conhecimento da excepção peremtória da caducidade. A sentença julgou a ação, parcialmente, procedente, declarando a autora legítima arrendatária do primeiro prédio (casa para caseiros), identificado no ponto 1) dos factos provados, e absolveu as rés de todos os demais pedidos contra elas formulados. Interposto recurso desta sentença, por acórdão da Relação, foi decidido anular, parcialmente, o julgamento e determinar a ampliação da base instrutória. a) Declarou que a autora é legítima arrendatária do prédio urbano formado por uma casa para caseiros, inscrito na matriz sob o art. 2540; b) Reconheceu o direito de preferência da autora na venda à 2a ré DD, por escritura de 3 de junho de 1981, no Cartório Notarial de Amarante daquele imóvel, referido em a); c) Condenou as rés a reconhecerem o direito da autora haver para si o dito prédio, prédio urbano formado por uma casa para caseiros, inscrito na matriz sob o art. 2540, operando-se a substituição daquela ré DD pela preferente, ora autora, no direito de propriedade do mesmo, mediante o pagamento do montante que venha a ser fixado em acção de arbitramento (ou por acordo das partes), com vista à determinação pericial do preço proporcional da coisa, mantendo-se até àquela o depósito do preço nestes autos realizado, acrescendo as despesas da escritura e o pagamento de obrigações fiscais; d) Ordenou o cancelamento de quaisquer registos prediais efectuados sobre o prédio em causa e posteriores a 3 de junho de 1981, ou seja, efectuados na data, ou, posteriormente, à data da escritura de compra e venda. e) Absolveu-se as rés dos demais pedidos. f) Absolveu a autora, a ré DD e a ré “EE, SA”, do pedido de condenação como litigantes de má-fé. Desta sentença, a autora e as rés DD e “EE, SA”, interpuseram recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado improcedente a apelação da autora, mas procedente a apelação das rés e, consequentemente, revogou a decisão impugnada, mantendo-se, apenas, a declaração de que a autora é legítima arrendatária do prédio urbano, formado por uma casa para caseiros, inscrito na matriz, sob o artigo 2540º, e absolvendo-se as rés dos demais pedidos. Do acórdão da Relação do Porto, a autora interpôs agora recurso de revista, terminando as alegações com o pedido da sua revogação e, em consequência, com a manutenção, nos seus exactos termos, da douta sentença da primeira instância, por, assim, ser de inteira Justiça, apresentando as seguintes conclusões, que se transcrevem, na totalidade: 1ª – O que está em causa no abuso de direito, seja em que modalidade for, não é a intenção de prejudicar terceiros, mas sim a discrepância entre o modo formal do direito que se reclama e a intencionalidade normativa desse mesmo direito. 2ª - A invocação da figura do abuso de direito, sem mais, como parece ter sido o caso, jamais poderá converter-se num meio de converter em ilegal aquilo que a lei tutela e prevê como legal. 3ª - No direito de preferência do arrendatário o objectivo é assegurar-lhe a aquisição da propriedade do locado, ou seja, é facultar ao arrendatário a possibilidade de preferir na venda do imóvel onde reside, observando-se, assim, o preceituado pelo artigo 62º da Constituição da República Portuguesa. 4ª - A lei quis, por conseguinte, delimitar a liberdade contratual do senhorio, obrigando-o a que este dê preferência ao arrendatário na venda do locado. 5ª - Tal delimitação revela-se, desde logo, pela obrigação de comunicação, pelo senhorio ao arrendatário, do negócio que pretende realizar - artigo 416º, nº 1, do Código Civil. 6ª - Tendo em conta que o direito de preferência é um direito real que confere ao titular o direito de prevalência e sequela sobre o objecto preferido, tudo se passa como se o contrato de compra e venda houvesse sido outorgado com a preferente/recorrente, a qual se substitui à compradora/recorrida na escritura de compra e venda correspondente. 7ª - Portanto, a aquisição do prédio pela recorrente retroage a 3 de Junho de 1981, tudo se passando como se o negócio houvesse sido celebrado com esta ab initio. 8ª - Qualquer responsabilidade advinda da tardia (?) interposição da presente acção jamais poderá ser assacada, seja a que título for, à recorrente. 9ª - Não é possível extrair da factualidade carreada para os autos, que foi objecto de impugnação e, posteriormente dada como provada ou não provada, de outra que não seja a de que com a presente acção de preferência a recorrente pretende outra finalidade que não a satisfação do direito de haver para si o prédio que foi objecto de compra e venda. 10ª - A circunstância de após a alienação e antes desta acção a compradora/recorrida ter alienado o prédio a terceiro, não acarreta a extinção do direito de preferência da recorrente, porque a ser assim seria a negação dos direitos de sequela e de prevalência que são característicos dos direitos reais. 11ª - Afigura-se, assim, por ausência de factos alegados, inadmissível o entendimento seguido pelo Acórdão recorrido. 12ª – Também quanto ao abuso de direito, os factos consubstanciadores do mesmo têm de ser alegados e provados pela parte que os invoca e/ou aproveita. 13ª - Não existe nos autos qualquer facto assente que demonstre que a recorrente tenha agido com abuso de direito, na modalidade apontada no Acórdão recorrido, ou noutra. 14ª - Nem existe nos autos qualquer factualidade que permita deduzir que a casa/moradia que a recorrente pretende adquirir através da presente acção, tenha valor tão alto que permita afirmar que a recorrente "aufira um lucro fabuloso". 15ª - O valor de uma casa não é algo que seja facilmente calculável, varia, além de outros, consoante a aérea da habitação, o número de quartos, a localização, os acessos, a qualidade dos materiais e, sobretudo, a vetustez da mesma. 16ª - A dita casa apresenta elevado grau de degradação, com iminência de derrocada, o que ainda não sucedeu devido às frequentes intervenções feitas pela recorrente. 17ª – Não é lícito ao Tribunal usar documentos, ou outros meios de prova, como o auto de inspecção ao local, e com a sua leitura transformá-los em factos determinadores para a decisão da causa. 18ª - Os documentos, assim como todos os outros meios de prova, visam apenas fazer prova dos factos alegados e, portanto, não constituem eles próprios alegação de factos. 19ª - O Tribunal não pode substituir-se às partes introduzindo na causa factos novos, estranhos ao processo, factos que não tenham sido articulados ou alegados pelas partes, consequentemente, não pode basear as suas decisões em factos que as partes não tenham invocado - artigo 664º do cpc. 20ª - Para que esses factos, eventualmente observáveis em documentos, possam ser considerados é necessário que a parte interessada manifeste a vontade de deles se aproveitar e que seja facultado o exercício do contraditório à outra parte - artigo 264º, nº 3, do CPC. 21ª - Não é permitido decidir sobre questões de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciarem - artigo 32º, nº 3 do cpc. 22ª - A omissão de acto processual destinado a viabilizar o exercício do contraditório constitui nulidade que é de conhecimento oficioso - artigos 201º nº 1 e 202º, do CPC. 23ª - Os interesses da sociedade com a procedência da acção, nesta parte, que se espera e augura, estão, por lei, acautelados. 24ª - Na verdade, analisada a factualidade provada, não se descortina abuso de qualquer direito. 25ª - O Acórdão recorrido faz, assim, uma deficiente interpretação do artigo 334º do CC. Nas suas contra-alegações, as rés DD e “EE, SA”, concluem no sentido de que deve ser negada procedência ao recurso, subsistindo, incólume e louvado, na ordem jurídica, o douto aresto recorrido, por ser da mais paradigmática Justiça, no caso concreto, porquanto, sendo o objecto do mesmo delimitado pelas conclusões, lidas aquelas com que a autora encerra as suas alegações, nada mais se depara senão com uma chusma de generalidades inconsequentes, postergando a recorrente aquilo que lhe competia: a construção de uma interpretação do conceito legal de abuso de direito - que seja, obviamente, sustentável - e a que consiga, na senda do seu objectivo de exercer o direito de retenção, fazer eximir os factos assentes nos autos. A única questão a decidir, na presente revista, em função da qual se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3, 690º e 726º, todos do CPC, consiste em saber se a autora incorre em abuso de direito ao pretender exercer o direito de preferência, com vista a adquirir um prédio urbano e ainda nove décimos de um prédio rústico, pelo preço declarado de €1496,94, vindo os mesmos a ser vendidos, treze anos depois, pelo preço declarado de € 99759,58. DO ABUSO DE DIREITO 1. O acórdão recorrido considerou, a este propósito, que “…no caso a A pretende exercer o direito de preferência visando adquirir um prédio urbano e ainda nove décimos de um prédio rústico pelo preço declarado em 03.06.1981, de 300 000$00, ou seja, €1 496,94, que, vieram cerca de 13 anos, em 10.10. 94, a ser vendidos pelo preço declarado 20 000 000$00 (cf. escritura junta a fls. 54 a 56 dos autos pela A), ou seja, €99 759,58. Note-se que apesar da A ter alegado que esse preço era superior ao real, não adiantou qualquer valor e essa alegação é manifestamente contrária às mais elementares regras da experiência sendo certo que se trata da venda de uma moradia e ainda um terreno com a área de 2500 m 2. Mesmo estando o direito de preferência limitado ao prédio urbano cujo valor seria fixado em ação de arbitramento, atento o valor declarado de €1496, 94, a A iria adquirir por menos de €1000 uma casa que tem um valor de mercado seguramente 30 vezes superior. Ora, permitir que a A aufira um lucro fabuloso, com prejuízo para uma sociedade que é terceiro e sobre quem não recaia qualquer obrigação de comunicação e já tinha adquirido e registado o prédio a seu favor há mais de 9 anos (cf. factos provados sob os n°s 2 e 3), quando foi intentada a ação, era dar cobertura a um exercício do direito de preferência, em termos clamorosamente ofensivos do sentimento jurídico dominante”. Dispõe o artigo 334º, do CC, que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. Pretende-se impedir com o abuso de direito que a norma seja desvirtuada do seu real sentido e alcance, aplicando-a, mas com autêntica fidelidade ao seu espírito[2]. Impõe-se, por isso, para que haja abuso de direito, que o excesso do titular ultrapasse esses limites, de forma manifesta, com o fim de prejudicar outrem[3], que se verifique uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico, socialmente, dominante[4], sendo certo que o abuso de direito é um limite normativo, interno ou imanente dos direitos subjectivos, razão pela qual no comportamento abusivo são os próprios limites normativo-jurídicos do direito particular invocado que são ultrapassados[5]. É que, na base da tutela conferida pelo instituto do abuso de direito, encontra-se a reacção contra o propósito exclusivo de criar à outra parte uma situação lesiva, através do funcionamento da lei. Ora, representando o instituto do abuso de direito a fórmula mais geral de concretização do princípio da boa fé, constituindo uma excelente terapêutica para garantir a supremacia do sistema jurídico e da Ciência do Direito sobre os infortúnios do legislador e as habilidades das partes, encontra-se, porém, dotado de aplicação subsidiária, ou seja, a sua cobertura depende de inexistir solução adequada de Direito estrito que se imponha ao intérprete aplicar[6]. 2. Dispunha o artigo 1º, nº 1, da Lei nº 63/77, de 25 de agosto[7], que “o locatário habitacional de imóvel urbano tem o direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento do mesmo”, aplicando-se, com as necessárias adaptações, nos termos do preceituado pelo artigo 3º, do mesmo diploma legal, o disposto nos artigos 416º a 418º e 1410º, todos do Código Civil (CC). Entretanto, o artigo 60º, nº 1, da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), revogou “…o RAU, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, com todas as alterações subsequentes, salvo nas matérias a que se referem os artigos 26º e 28º da presente lei”. Por sua vez, a propósito da aplicação intertemporal da lei, preceitua o artigo 59º, nº 1, da Lei nº 63/77, de 25 de Agosto, que “o NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias”. E, em matéria de normas transitórias pertinentes, o artigo 27º, da mesma Lei nº 63/77, de 25 de agosto, estipula que “as normas do presente capítulo aplicam-se aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, bem como aos contratos para fins não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de Setembro”, enquanto que o respetivo artigo 28º diz que “aos contratos a que se refere o presente capítulo [Contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU e contratos não habitacionais celebrados antes do Decreto-Lei nº 257/95, de 30 de Setembro] aplica-se, com as devidas adaptações, o previsto no artigo 26.º”, ou seja, segundo o prescrito por este último normativo, no seu nº 1, “os contratos celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades dos números seguintes”. A isto acresce que o artigo 1091º, nº 1, do CC, resultante da reposição operada pelo NRAU, estabelece que “o arrendatário tem direito de preferência: a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos;”, sendo “aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º”, atento o preceituado pelo respetivo nº 4. Assim sendo, por força do regime instituído pelo NRAU, este diploma aplica-se às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, nomeadamente, aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU, sendo certo, outrossim, que “a aplicação da alínea a) do n.º 1 do artigo 1091.º do Código Civil não determina a perda do direito de preferência por parte de arrendatário que dele seja titular aquando da entrada em vigor da presente lei”, em conformidade com o disposto pelo artigo 59º, nº 2, da Lei nº 63/77, de 25 de agosto. 3. Ora, sendo aplicável ao contrato em apreço o estipulado pelo NRAU, importa considerar que este diploma legal mantém a eficácia real do direito de preferência atribuído ao arrendatário habitacional, facto este que caracteriza o direito real de preferência como um verdadeiro direito real de aquisição, porquanto confere aquele, por se tratar de inquilino de prédio urbano, no quadro dos requisitos exigidos pelo normativo legal em presença, o direito de adquirir o locado[8], atribuindo-lhe, como preferente, o direito de exigir a coisa das mãos de qualquer terceiro adquirente, em razão da sua eficácia absoluta e da sua inerência a certo objecto[9]. Este desequilíbrio no exercício de posições jurídicas pode fazer apelo ao princípio da primazia da materialidade subjacente quando se reporta a exercícios de puro desequilíbrio objectivo[15]. 5. Revertendo à matéria de facto que ficou demonstrada, importa reter que, por escritura celebrada, no dia 28 de Fevereiro de 1973, II declarou vender a "BB & Companhia, Lda", que, por seu turno, declarou comprar, pelo preço de trezentos mil escudos, o prédio urbano, formado por uma casa para caseiros, e nove décimos de um prédio rústico. Por acordo verbal realizado, em dia e mês que não foi possível apurar em concreto, do ano de 1973, a sociedade "BB & Companhia, Lda" declarou dar de arrendamento para habitação, a FF, ex-cônjuge da autora, que, por seu turno, declarou tomar de arrendamento, mediante a contrapartida mensal de 400$00, o aludido prédio urbano, formado por uma casa para caseiros, passando ambos, a partir de então, a ocupar e fruir o prédio, pagando a correspondente contrapartida. Entretanto, no dia 3 de junho de 1981, a sociedade "BB & Companhia, Lda" declarou vender à ré DD, que, por seu turno, declarou comprar, pelo preço de trezentos mil escudos, o prédio urbano em análise, a qual, no dia 10 de outubro de 1994, declarou vender à ré "EE - Investimentos Imobiliários, S.A.", que declarou comprar, pelo preço de vinte mil contos, o mesmo prédio, que se encontra registado, a favor desta, desde 27 de Dezembro de 1994, e que se mostrou registado, a favor daquela ré DD, desde 18 de Junho de 1986, como, de igual modo, desde esta última data, e, simultaneamente, a favor da sociedade "BB & Companhia, Lda", que o havia vendido à ré DD. Efetivamente, em 10 de outubro de 2003, a autora tomou conhecimento de que a titularidade do prédio arrendado havia sido transmitida, já não pertencendo à senhoria “BB & Companhia. Lda.”, mas antes à ré “EE-Investimentos Imobiliários SA.”. E, quando, em 13 de Fevereiro de 2004, a autora propôs a presente ação, já haviam decorrido mais de vinte anos sobre a data de 3 de junho de 1981, em que a proprietária que arrendara o prédio ao ex-marido da autora, a sociedade “BB & Companhia, Lda.”, o havia vendido à ré DD, sem que se tivesse demonstrado que a autora teve conhecimento deste fato. Aliás, registe-se, a este propósito, que foi julgada improcedente pelo acórdão impugnado e, portanto, com formação de caso julgado, nos termos do preceituado pelos artigos 671º, nº 1 e 673º, ambos do CPC, a exceção perentória da caducidade da propositura da presente ação, deduzida pelas rés, porquanto estas não fizeram prova “designadamente da realização da comunicação para preferir e do não exercício tempestivo da respetiva pretensão de preferência”. 6. Preceitua o artigo 416º, nº 1, do CC, que “querendo vender a coisa que é objecto do pacto, o obrigado deve comunicar ao titular do direito o projecto de venda e as cláusulas do respectivo contrato”, a fim de que este, continua o seu nº 2, “recebida a comunicação, dev[a] exercer o seu direito dentro do prazo de oito dias, sob pena de caducidade…”, uma vez que, sendo-lhe dado conhecimento do projeto da venda, prossegue o artigo 1410º, nº 1, também, do CC, “tem o direito de haver para si a quota alienada, contanto que o requeira dentro do prazo de seis meses, a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação, e deposite o preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da acção”. Ora, a autora propôs a presente ação de preferência, com observância do prazo de caducidade, contido no artigo 1410º, nº 1, do CC, impedindo, assim, a procedência da respetiva exceção perentória. A circunstância de ter decorrido um prazo superior a vinte anos, desde a data do ato determinante da preferência, isto é, a compra e venda realizada, em 3 de Junho de 1981, entre a sociedade “BB & Companhia. Lda.” e a ré DD, e a data da proposição da ação, em 13 de Fevereiro de 2004, não representa, no contexto fático considerado, um exercício, desequilibradamente, desproporcional, em relação à posição jurídica de que a autora era titular. Se o projeto da venda tivesse chegado ao conhecimento do titular do arrendamento, ou seja, o ex-marido da autora, algures, nos inícios de 1981, por certo, a situação ter-se-ia clarificado, então, quer com o exercício do direito de preferência, quer com a sua eventual omissão. Deste modo, o arrastamento no tempo da clarificação da situação é de imputar, em exclusivo, ao obrigado à preferência, ou seja, a sociedade “BB & Companhia. Lda.”, que vendeu o prédio locado a terceiro, a ré DD, a qual, por seu turno, o vendeu à ré “EE-Investimentos Imobiliários SA.”. Se a autora não tivesse proposto a acção de preferência, em 13 de Fevereiro de 2004, ver-se-ia agora despojada do locado, onde já vivia, desde 1973, isto é, há mais de trinta anos. Certo é que este arrastamento temporal permite à autora ver transferida para a sua titularidade a propriedade de um prédio que, em 3 de junho de 1981, data do ilícito cível que deu lugar à presente ação de preferência, se declarou ter sido vendido pelo equivalente atual a €1496,94, quando é certo que, na sua venda subsequente, efetuada treze anos depois, se declarou que o mesmo foi vendido por €99759,58, ou seja, com uma majoração, cerca de sessenta e sete vezes superior. Porém, para esta aparente valorização acrescida do prédio, contribuiu, causalmente, a sociedade “BB & Companhia. Lda.”, obrigada à preferência, independentemente das vicissitudes do mercado imobiliário, durante uma série de anos de continuada especulação no setor, da desenfreada inflação galopante que percorreu o final da década de setenta e a década de oitenta do século passado, com a inerente desvalorização monetária e a alteração da relação de troca entre os bens, o que, de todo o modo, não deve permitir o enriquecimento suplementar da autora, à custa das rés “EE-Investimentos Imobiliários SA.” e DD, se estas tiverem de abrir mão do prédio, em resultado do exercício do direito de preferência. 7. A parte mais significativa das obrigações pecuniárias, que são aquelas que têm por objeto uma prestação em dinheiro, constituída pelas obrigações de soma ou de quantidade, está sujeita ao princípio do nominalismo monetário ou da não atualização das prestações, ou seja, o seu pagamento deve fazer-se de acordo com o valor nominal da moeda na data do cumprimento, ficando o devedor desonerado, desde que entregue a moeda com curso legal necessária para, atento o seu valor facial, nominal ou extrínseco, perfazer o montante da quantia em dívida[16]. E, ocorrendo uma modificação do sistema monetário, o princípio nominalista significa que o devedor há-de pagar em unidades monetárias do novo sistema, calculadas segundo a norma de equivalência que se tiver estabelecido na lei entre a nova e a antiga moeda. Para o princípio nominalista, o que interessa é que o pagamento se faça em moeda com curso legal no país, atendendo, para o cálculo do objeto da prestação, ao valor nominal da moeda, na data do cumprimento, independentemente das suas desvalorizações ou valorizações, nomeadamente, das alterações ao seu valor de troca ou aquisitivo[17]. Não constituindo esta a solução ideal, o nominalismo confere maior certeza ao direito, segurança nas transações e até justiça comutativa, com larga aceitação no comum das legislações[18], representando o critério mais cómodo e mais seguro na resolução do problema, porquanto a atualização das prestações pecuniárias conduziria, frequentes vezes, a resultados injustos[19]. 8. O desequilíbrio das prestações será, porém, meramente, retórico, face a todo o exposto, pois que, desfeita a segunda venda, a ré “EE-Investimentos Imobiliários SA.”, abrirá mão do prédio, a favor da ré DD, de quem receberá €99759,57, que, por seu turno, abrindo mão do prédio, a favor da sociedade “BB & Companhia. Lda.”, será restituída por esta da contraprestação recebida de €1496,39, ingressando a autora na titularidade do imóvel que esta sociedade perderá, a troco do recebimento do depósito do preço efetuado pela autora. Não se provou, pois, que o exercício do direito de preferência prosseguido pela autora com a presente ação esteja maculado com o abuso de direito. E se o acórdão recorrido reconheceu à autora, como já o havia feito a sentença, que esta é “legítima arrendatária do prédio urbano formado por uma casa para caseiros, inscrito na matriz sob o art. 2540”, importará agora, na procedência da revista, que lhe seja reconhecido o direito de preferência na venda do referido prédio, celebrada entre as rés “BB & Companhia, Ldª”, e DD, por escritura de 3 de junho de 1981, condenando-se ainda as rés a reconhecerem o direito da autora a haver para si o aludido prédio urbano, formado por uma casa para caseiros, inscrito na matriz sob o artigo 2540º, operando-se a substituição daquelas rés DD e “EE - Investimentos Mobiliários, S.A.”, pela preferente, ora autora, no direito de propriedade do prédio, ordenando-se, também, o cancelamento de quaisquer registos prediais efectuados sobre o prédio em causa e posteriores a 3 de junho de 1981, ou seja, efectuados na data, ou, posteriormente, à data dessa escritura de compra e venda. CONCLUSÕES: I – O regime instituído pelo NRAU aplica-se às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, nomeadamente, aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU, e ao exercício do direito de preferência, por parte de arrendatário, que dele seja titular aquando da entrada em vigor daquela lei. II - A eficácia real do direito de preferência atribuído ao arrendatário habitacional, caracterizando o direito real de preferência como um verdadeiro direito real de aquisição, confere aquele o direito de adquirir o locado, atribuindo-lhe, como preferente, o direito de exigir a coisa das mãos de qualquer terceiro adquirente, em razão da sua eficácia absoluta e da sua inerência a certo objecto. III - Aquele que compra uma coisa, sujeita ao direito de preferência de outrem, não pode considerar-se como seu verdadeiro proprietário, enquanto não decorrer o prazo para o exercício daquele direito ou enquanto este não é definido, judicialmente, ficando numa situação semelhante aquele que contrata sob condição resolutiva ou que é sujeito de um negócio jurídico inválido. X - O desequilíbrio das prestações será, porém, meramente, retórico, pois que, desfeita a segunda venda, a ré sub-adquirente abrirá mão do prédio, a favor da ré adquirente, de quem receberá €99759,57, que, por seu turno, abrindo mão do prédio, a favor da ré vendedora, será restituída por esta da contraprestação recebida de €1496,39, ingressando a preferente na titularidade do imóvel, que esta sociedade perderá, a troco do recebimento do depósito do preço efetuado pela preferente.
DECISÃO[20]:
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Custas da revista, a cargo das rés Massa Falida da sociedade comercial “BB & Companhia, Ldª”, DD e “EE - Investimentos Mobiliários, S.A.”, solidariamente * Notifique. Helder Roque (Relator) * -----------------------
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