Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
99B084
Nº Convencional: JSTJ00036365
Relator: SOUSA DINIS
Descritores: CASO JULGADO
HIPOTECA
DIREITO DE RETENÇÃO
TERCEIRO
Nº do Documento: SJ199903160000842
Data do Acordão: 03/16/1999
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 7517/97
Data: 07/02/1998
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR PROC CIV.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 759 N2.
CPC95 ARTIGO 866 ARTIGO 869 N2.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1992/03/24 IN BMJ N415 PAG622.
ACÓRDÃO STJ DE 1993/01/12 IN BMJ N423 PAG463.
ACÓRDÃO STJ DE 1995/11/11 IN CJSTJ ANO 1995 T2 PAG82.
ACÓRDÃO STJ DE 1998/02/17 IN CJSTJ ANO 1998 T1 PAG74.
Sumário : I - Se a sentença não causa ao terceiro prejuízo jurídico, este tem de a acatar tal como foi proferida entre as partes, com a correspondente definição judicial da relação litigada.
II - Não há prejuízo jurídico se a sentença deixa íntegra a consistência jurídica do direito do terceiro, embora possa causar-lhe um prejuízo de facto ou económico.

III - A sentença que reconhece ao promitente-comprador um direito de crédito sobre o promitente-vendedor e consequente direito de retenção sobre a fracção prometida pode ser invocada contra o credor hipotecário.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Por apenso à execução de sentença que A. requereu contra B. ,após cumprimento do art. 864 do CPC, apresentaram-se a reclamar créditos o MP, por créditos da FN e a Caixa Geral de Depósitos SA, apoiada em hipoteca constituída para garantir um contrato de mútuo celebrado entre a reclamante e a executada, cujas obrigações esta deixou de cumprir.
O M.mo juiz julgou os créditos verificados e graduou-os, em 1 lugar o crédito reclamado pelo MP, em 2 lugar o crédito reclamado pela CGD e por último o crédito do exequente.
Inconformado com a graduação, apelou o exequente com êxito, já que a Relação, julgando procedente a apelação, graduou o crédito, dotado de direito de retenção, em 2 lugar passando para 3 o crédito hipotecário.
Desta vez quem se não conformou foi a CGD que pede revista, tendo produzido alegações que conclui pela forma seguinte:
1 - A sentença condenatória que reconheceu o direito de crédito e de retenção ao promitente comprador não produz efeito de caso julgado contra o credor hipotecário, quando este não foi parte na acção, por ser terceiro judicialmente interessado.
2 - A inoponibilidade da sentença ao credor hipotecário resulta não só de ele ser terceiro judicialmente interessado, mas também de não ter sido observada a disciplina contida no n. 2 do art. 869 do CPC (norma de carácter geral) que impõe o litisconsórcio necessário, sempre que o promitente comprador queira ver reconhecido judicialmente o seu crédito sobre imóvel hipotecado, na medida em que o direito de retenção será incompatível com o direito do credor hipotecário por gozar de preferência sobre este.
3 -Os prejuízos sofridos pelo credor hipotecário não chamado à acção situam-se no domínio da preferencialidade que lhe assegura o art. 686 do CC.
4 - Tal prejuízo é de natureza jurídica e não de mero facto, já que os seus efeitos operam no domínio do direito puro, mesmo fora do concurso de credores, já que a preferencialidade do direito de retenção sobre o hipotecário afecta este de forma genérica e abstracta, com manifestações fora da fase concursal, como seja, por ex., no contrato de cedência do crédito hipotecário, ou no pagamento por sub-rogação.
5 - A inoponibilidade de tal sentença nem sequer foi alegada pelo ora recorrido no requerimento de execução de sentença, onde também não invoca qualquer preferencialidade sobre o crédito da aqui recorrente.
6 - A inoponibilidade à ora recorrente da sentença condenatória determina que o seu crédito hipotecário deverá ser graduado à frente do crédito exequente, como o fez o tribunal de 1 instância.
7 - O acórdão interpretou incorrectamente os art.s 866, 812 e 813 do CPC, e violou os art.s 671 e 659 do mesmo Cód. e 686 n. 1 do CC.
Contra-alegando, o recorrido pugna pela manutenção do acórdão.
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir, para o que importa considerar os seguintes factos que as instâncias deram como provados:
1- Para garantia do capital mutuado foi constituída, em 31-10-89, hipoteca a favor da CGD sobre um prédio composto de lote de terreno destinado à construção urbana sito no Porto Alto, lote F, f de Samora Correia, Benavente, descrito na Conservatória do Reg. Predial daquele concelho sob o n. 01071.
2- Por sentença de 26-12-94 foi declarado definitivamente não cumprido o contrato promessa de compra e venda outorgado entre o exequente (ora recorrido) e a executada B., tendo esta sido condenada a pagar-lhe a quantia de 12120000 escudos, acrescida de juros, sendo-lhe ainda reconhecido o direito de retenção sobre a fracção "C" do aludido prédio.
Questões a decidir: 1- a sentença que reconheceu o direito de crédito e o de retenção ao exequente faz ou não caso julgado em relação ao credor hipotecário (CGD)? 2- se não faz caso julgado, o efeito jurídico traduz-se na graduação do crédito hipotecário à frente do crédito do retentor, ao arrepio do art. 759 n. 2 do CC?
Na apreciação da 1 questão, há que abordar os seguintes aspectos: a) O credor hipotecário é terceiro juridicamente interessado?; b) Não foi observada, e devia tê-lo sido, a disciplina prevista no art. 869 n. 2 do CPC?; c) a inoponibilidades da sentença não foi alegada, e devia tê-lo sido, pelo exequente no requerimento de execução?
a) posição da recorrente: é um terceiro juridicamente interessado, porque o direito de retenção do exequente se traduz para ela num prejuízo de natureza jurídica, pelo que a sentença não faz caso julgado em relação a ela; sendo assim, não pode ser-lhe oposta com êxito, pelo que o seu crédito deve ser graduado antes do exequente, apesar do art. 759 n. 2 do CC; por outro lado, o promitente comprador devia ter provocado a intervenção principal do exequente e credores com garantia real, nos termos do art. 869 n. 2 do CPC.
b) posição da Relação: o direito de retenção é uma garantia real que decorre directamente da própria lei, não precisando sequer de ser judicialmente reconhecida; nos termos do art. 759 n. 2 do CC prevalece sobre a hipoteca; a CGD não foi prejudicada juridicamente, sendo o seu prejuízo de mero facto.
1 questão:
a) Comecemos por acentuar que o princípio fundamental é o da eficácia relativa do caso julgado, isto é, a sentença só tem força de caso julgado entre as partes. Quanto aos não intervenientes na acção, ou seja, quanto à extensão do caso julgado a terceiros, relembremos o ensino de Manuel de Andrade (Noções elementares de Processo Civil, ed. 1963, p. 288-289). Se a sentença não trouxer aos terceiros prejuízo jurídico, eles têm de a acatar tal como ela foi proferida entre as partes, bem como a correspondente definição judicial da relação litigada. E a sentença não causa prejuízo jurídico sempre que deixar íntegra a consistência jurídica do direito desses terceiros, não afectando nem a sua existência nem a sua validade, embora lhes cause um prejuízo de facto ou económico. A estes terceiros chamava aquele Mestre terceiros juridicamente indiferentes, dando, precisamente, como exemplo destes "os credores relativamente às sentenças proferidas nos pleitos em que seja parte o seu devedor" (p. 288).
Ao lado destes, há os terceiros juridicamente interessados, em relação aos quais a sentença, a valer, lhes poderia causar um prejuízo jurídico, invadindo a própria existência ou reduzindo o conteúdo do seu direito, e não apenas destruindo ou abalando a sua consistência prática.
Desta distinção que, na esteira de Chiovenda, o Prof. A. Varela também perfilha (Manual de Processo Civil, 2 ed. p. 726 e ss.), partiu a jurisprudência deste Supremo (Acs. de 10-10-89 e de 11-11-95, in BMJ 390, p. 365 e CJ-S, 1995, T2 p. 82) para o seguinte conjunto de situações:
1.- Em princípio, os terceiros não têm que acatar a sentença proferida entre as partes e a correspondente definição judicial da relação litigada, sempre que sejam sujeitos de uma posição jurídica incompatível com a das partes;
2.- A definição da relação jurídica por sentença já se estende a eles, quando esta definição se projecte apenas na destruição ou perturbação da consistência prática do seu interesse.
Reconhecendo, embora, que a solução não é líquida, como se acentua nos Acs. deste Supremo de 24-03-92 e de 12-01-93 (in BMJ 415, p. 622 e 423 p. 463 respectivamente), enveredamos decididamente pela tese neles adoptada: a sentença que reconheceu ao exequente o direito de crédito e de retenção sobre a coisa hipotecada não afecta juridicamente o crédito da CGD e a respectiva garantia, a hipoteca, deixando íntegra a respectiva consistência jurídica. Como nos citados arestos se escreveu, "o direito continua o mesmo, com o mesmo conteúdo e a mesma garantia hipotecária, sendo apenas afectado na graduação", já que vai situar-se em patamar inferior ao crédito do exequente. No entanto, "esta descida não representa um prejuízo de natureza jurídica, mas tão só, bem no fundo, um prejuízo de ordem económica, na medida em que o património do devedor pode não chegar para se pagar" (contra, no sentido de que o direito de retenção afecta a consistência jurídica do crédito hipotecário, o cit. Ac. deste Supremo de 10-10-89).
Podemos, pois, concluir que, em relação à sentença que reconheceu ao exequente o direito de retenção, a recorrente CGD é terceiro juridicamente indiferente, sendo-lhe, consequentemente, tal sentença oponível.
b) Esgrime a recorrente com a inobservância do art. 869 n. 2 do CPC. Sobre este aspecto diremos, muito sumariamente, que o campo de aplicação desta norma é outro que não o dos autos. Ela foi prevista para os casos em que um credor com garantia real sobre o bem penhorado, não dispõe ainda de título no termo do prazo para a reclamação. E neste ponto os autores estão de acordo (cfr. Castro Mendes, Direito Processual Civil, Acção Executiva, ed. de 1971 da AAFDL, p. 161, Dr. Lebre de Freitas, A acção executiva, p. 257 e Cons. Gama Prazeres, Do concurso de credores e da verificação e graduação dos créditos nos actuais CC e CPC. ed. 1967, p. 65, sendo certo que este autor até restringe o campo de aplicação da norma apenas aos casos em que o crédito é privilegiado ou tiver sido assegurado por aresto).
Aliás, como se escreveu no Ac. deste Supremo de 17-02-98 (CJ.S, 1998, T1, p. 74) "o que se pretende com tal preceito é dar protecção ao credor que tenha garantia real sobre os bens penhorados e, todavia, ainda não tenha título, podendo embora vir a obtê-lo em acção já proposta ou a propor. Em tal hipótese, a lei possibilita-lhe reclamar o seu crédito mais tarde, depois de obter sentença exequível, traçando-lhe a tramitação adequada a se atingir esse desiderato".
No caso sub judicio não se trata de situação em que o credor com garantia real (o exequente) não disponha ainda de título no termo do prazo para a reclamação.
Conclusão: o art. 869 n. 2 do CPC foi impertinentemente invocado, para além de que a sua doutrina não pode alargar-se a outras hipóteses que nada têm a ver com o seu campo de aplicação.
c) a oponibilidade da sentença faz precludir a apreciação deste aspecto, que deixou de ter interesse.
2 questão:
Também a apreciação desta questão pressupunha que se tivesse decidido pela inoponibilidade da sentença à CGD. No entanto, sempre se adiantará que, o que se impunha à ora recorrente, na sequência da jurisprudência que este Supremo vem traçando uniformemente (cfr. os arestos acima citados), era ter impugnado o crédito do exequente e bem assim o seu direito de retenção, nos termos do art. 866 ns. 3 e 4 do CPC.
Com efeito, o n. 3 do referido art. 866 estabelece que os restantes credores podem, impugnar os créditos garantidos por bens sobre os quais tenham invocado também qualquer direito real de garantia. E o n. 4 preceitua que a impugnação pode ter por fundamento qualquer das causas que extinguem ou modificam a obrigação ou que impedem a sua existência; mas se o crédito estiver reconhecido por sentença, a impugnação só pode basear-se nalgum dos fundamentos mencionados nos arts. 813 ou 814, na parte em que forem aplicáveis.
Esta limitação fixada na parte final da norma opera em relação aos impugnantes, dada a eficácia do caso julgado em relação a eles, prevenindo hipóteses como a dos autos.
Recordando o que se escreveu no citado Ac. de 11-11-95, "a possibilidade de contraditar a existência do direito de retenção invocado pelo exequente tem a sua oportunidade no âmbito da fase da convocação de credores e verificação de créditos, como está reconhecido pelo n. 3 do art. 866 do CPC".
Ora, a recorrente não o fez. É claro que é compreensível a relutância da recorrente que, detendo uma garantia real com a força da hipoteca, para mais com registo anterior, acaba por ver o seu passo cedido pelo "direito de prioridade" de quem se lhe atravessa à frente munido de um direito de retenção. Mas essa "prioridade" está legalmente consagrada, conhecendo-se as críticas que, de vários lados, foram atiradas a esta deliberada opção legislativa, sem esquecer, todavia, que, em contraponto, também há quem não fique insensível à subjacente política de defesa do consumidor (Prof. A. Costa, Contrato Promessa, Uma síntese do regime actual, 5 ed. p. 68, nota 107).
Termos em que se nega a revista.

Custas pela recorrente.
Lisboa, 16 de Março de 1999.
Sousa Dias,
Miranda Gusmão,
Sousa Inês.