Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A3608
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: RIBEIRO DE ALMEIDA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
DOAÇÃO
VALIDADE
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
DONATÁRIO
NOMEAÇÃO
TERCEIRO
NULIDADE
Nº do Documento: SJ20061121036081
Data do Acordão: 11/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I - É válida a promessa de doação. Mas uma coisa é a validade da doação e outra é a de saber se a mesma é passível de execução específica, como determina o art. 830.º do CC.
II - A natureza da obrigação assumida pelo promitente opõe-se pela sua natureza à execução específica.
III - Nos termos do n.º 2 do art. 452.º do CC, a lei proíbe a reserva de nomeação, entre outros, nos casos em que é indispensável a identificação dos contraentes.
IV - Na doação, quer a pessoa do doador quer a pessoa do donatário têm que estar determinadas.
V - No caso em apreço, da promessa de doação não consta o nome do donatário, atribuindo-se a uma terceira pessoa a possibilidade de o vir a indicar, pelo que, a promessa de doação tem que se considerar nula e de nenhum efeito.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

A) No tribunal de Família e Menores de ..., AA, intentou acção com processo ordinário contra BB, pedindo que fosse proferida sentença equivalente ao negócio de doação.

Alega que o Réu prometeu a CC doar a quem esta indicasse metade de um prédio urbano, tendo CC indicado a Autora como a beneficiária dessa doação. Como o Réu se recusa agora a efectuar a doação prometida, a Autora pede que o tribunal profira sentença equivalente ao respectivo negócio de doação.

B) Contestou o Ré afirmando que ião é admissível a execução específica do negócio prometido e que não teve conhecimento da indicação da Autora como beneficiária da promessa, nem da marcação da respectiva escritura e conclui pedindo a improcedência da acção.

A acção veio a ser julgada improcedente.

C) Inconformada com tal decisão dela apelou a Autora, mas sem êxito.

Recorre agora de Revista, concluindo assim:

a) O art. 949° nº 1 do Código Civil, invocado pelo douto aresto recorrido no sentido de não considerar válida a promessa de doação assumida pelo Réu, tão somente proíbe que alguém atribua, por mandato, a faculdade de designar a pessoa do donatário;

b) Sendo o mandato o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta de outrem (art. 1157° do Código Civil) e não intervindo no documento da alínea B) dos factos assentes, a pessoa a quem o Réu conferiu a possibilidade de indicar a pessoa do donatário, a hipótese dos autos não cai na previsão do art. 949° nº 1 do Código Civil;

c) O referido documento apenas consiste numa promessa unilateral de doação através da qual o Réu confere a outrem a possibilidade de nomear o respectivo beneficiário, o que tem acolhimento nos art°s 452° e seguintes do Código Civil;

d) E nada obsta à exequibilidade específica de promessa de doação em que o próprio autor da promessa declarou e aceitou expressamente tal possibilidade, como sucedeu in casu;

e) Deverá, pois, ter-se como válida a obrigação assumida pelo R, no documento da alínea B) dos FA e a possibilidade da respectiva execução específica, imputando-se, consequentemente, ao douto acórdão recorrido, a violação, por erro de interpretação e de aplicação do disposto nos art°s 280°, 411°, 452°, 830°, 940° nº 1, 949° e 1157° do ÇC, que se espera sejam interpretados e aplicados nos termos aqui propugnados.

Nas suas contra – alegações o Réu defende que a Revista deve ser negada.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

D) Os Factos:

- Encontra-se inscrita na 1ª Conservatória do Registo Predial de Cascais, mediante apresentação nº. 112, datada de 9 de Setembro de 2002 a aquisição a favor de DD, ora Réu, por partilha em consequência de divórcio, do prédio urbano sito no lote 40 da Rua .... (antiga Rua ... em ..., freguesia de São Domingos de Rana, descrito naquela Conservatória sob o nº 02724/021288 e inscrita na matriz predial urbana da referida freguesia sob o arC 7840 (alínea S dos factos assentes).

II – Por documento escrito denominado "Promessa unilateral de doação" e datado de 6 de Setembro de 2002, o Réu declarou prometer doar a quem for indicado por CC um meio do prédio identificado em I (alínea B dos factos assentes).

Ill – No documento aludido em II consta:

"Esta promessa só se torna eficaz decorridos que sejam 12 meses sobe a presente data.
Indicado que seja o beneficiário da prometida doação ser-lhe-á licito, em caso de não outorga da respectiva escritura, recorrer á execução específica da presente promessa" (alínea C dos factos assentes).

IV - CC enviou ao Réu em 5-9-2003 uma carta registada com aviso de recepção que este recebeu em data posterior, com o seguinte conteúdo:
"Nos termos e para os efeitos da promessa unilateral de doação por si subscrita em 6 de Setembro de 2002, indico-lhe que a doação de --12da moradia sita no lote 40 da Rua ... (antes Rua...), em ..., S. Domingos de Rana, descrito na 1 ° Conservatória do Registo Predial de Cascais, sob o nº 02724/021288, deverá ser feita a AA, residente no .... Santa Cruz das Flores.
Os actos de formalização da doação ficarão a cargo do Advogado Sr. Dr. ..., que oportunamente lhe dará conhecimento do local, dia e hora fixados para a escritura pública" (resposta aos quesitos 1° e 2°).
V – Em 16 de Outubro de 2003, a Autora requereu a notificação judicial avulsa do R. no sentido de lhe dar conhecimento da data, hora e local designados para a escritura (5 de Novembro de 2003, ás 17 horas, no 1 ° Cartório Notarial de Cascais), e por forma a que ele comparecesse no 1 ° Cartório Notarial de Cascais a fim de a outorgar (resposta ao quesito 3°).

VI - Foi tentada a notificação com hora certa referida em V na morada constante do documento referido II) que é a residência dos pais do Réu, a qual não foi efectuada devido ao Réu não se encontrar presente na hora designada apesar da sua mãe o ter avisado dessa marcação (resposta ao quesito 4°).

VII – Em 3-11-2003, o mandatário da Autora enviou ao Réu uma carta registada com aviso de recepção que este recebeu, com o seguinte teor, além do mais:

“... Visando evitar litígios judiciais, entendeu-se marcar nova data para a escritura -20 de Novembro pf, às 17 horas, no referido Cartório –, pelo que pela presente, aviso V.ªExª da referida marcação, devendo no acto declarar que se encontra assegurado o pagamento da dívida hipotecária supra aludida, devendo confirmar-me até ao dia 17 de Novembro p.f. pelas 17 horas, por carta ou telecópia, se comparecerá no dia designado, sem o que o respectivo silêncio será interpretado como recusa de comparência, com as consequências daí decorrentes " (resposta aos quesitos 5° a 8°).
VIII – Em 19-11-2003, o Réu remeteu ao mandatário da Autora um fax com o seguinte conteúdo:

"Recebi a sua carta enviada a 3-11-2003 onde refere as preocupações da sua cliente quanto à feitura de uma escritura de promessa de doação da parte que lhe couber após a venda da moradia sita em ......
Ora como depreendo da sua carta uma ameaça velada de pressão e como na minha boa fé não encontro razões para tal procedimento, é minha opinião não fazer, neste momento, qualquer tipo de escritura ou outros actos, pois que o melhor mesmo será não levantar muitas ondas... " (resposta ao quesito 9°).

IX – Em consequência do Réu e CC terem simulado a partilha do único bem imóvel que integrava o seu património comum resultante do casamento entretanto dissolvido por divórcio, adjudicando-o ao Réu na totalidade sem contrapartida para evitarem a sua penhora por credores de CC, foi lavrado o documento referido em II) como forma de obrigar o Réu a posteriormente restituir a esta ou a pessoa da confiança desta o direito a metade do referido imóvel de que ela era titular (resposta ao quesito 10°).

X – O Réu não compareceu no 1 ° Cartório Notarial de Cascais no dia 5 de Novembro de 2003, às 17 horas (alínea D dos factos assentes).

E) Decidindo:

Das conclusões das alegações de recurso, que delimitam o âmbito da sua apreciação, resultam duas questões a resolver, por um lado a de saber se a promessa unilateral de doação para pessoa a nomear é válida e a segunda é a de saber se sendo a mesma válida é possível a execução específica da mesma. Aliás é este o pedido que a Autora formula.
As decisões das Instâncias são no sentido de que a promessa de doação é nula. Essa nulidade resultaria do facto de a pessoa do donatário vir a ser determinada por outrem que não o doador.
Partem pois do disposto no Artigo 947 do Código Civil que:

1. A doação de coisas imóveis só é válida se for celebrada por escritura pública.

2. A doação de coisas móveis não depende de formalidade alguma externa, quando acompanhada de tradição da coisa doada; não sendo acompanhada de tradição da coisa, só pode ser feita por escrito.

Tem-se discutido na doutrina a admissibilidade do contrato-promessa de doação. Para alguns autores, não seria este um negócio admissível em virtude de, por um lado se pôr em causa o requisito de espontaneidade, que se considera dever presidir à doação e, por outro lado, a ser admissível negócio, ele valeria logo como doação (cf. art. 954. ° c)), não sendo consequentemente, uma verdadeiro contrato-promessa, além de que a promessa de doação poderia pôr em causa a proibição da doação de bens futuro (art. 942).
A Doutrina tem sido no sentido de que é possível e válida a promessa de doação – cf. Eridano de Abreu, “Da doação de direitos obrigacionais” em Dir 84 (1952), pp. 217-235 (226 e ss.), Vaz Serra “Anotação Ac. STJ 18/5/1976” na RLJ 110 (1977), pp. 207-208 e 211-214, e BMJ 76; Antunes Varel, “Anotação Ac. 16/7/1981”, em RLJ 116 (1983), pp. 30-32 e 57-64 (61 e ss,) Das Obrigações em Geral Vol I 4ª Edição pág 275 e Pires de Lima/Antunes Varela Código Civil Anotado em anotação oa art. 940. °, n.° 9, p. 240. Pronuncia-se também, embora com hesitação, em sentido afirmativo, Ana Prata «O contrato-promessa e o seu regime civil», Coimbra, Almedina, 1995, pp. 305 e ss. (315)
Na Jurisprudência pode confrontar-se os Acórdão publicados no BMJ 361/ 515 e
J.R., Ano 13,pág. 537 e C.J., Ano XX, tomo 5, pág. 131.(entre outros)
Pela validade do contrato promessa de doação pronunciaram-se os Acórdãos de 410/01 da 6ª Secção em que foi Relator o Conselheiro Afonso de Melo; e 407/01 da 1ª Secção em que foi Relator o Conselheiro Pinto Monteiro; BMJ 309/283, este comentado por Antunes Varela na RLJ ano 116 página 61 e seguintes onde se afirma:
«Que, sendo uma atribuição solvendi causa “o contrato prometido não representa uma segunda doação, mas não pode deixar de ser considerado uma disposição (ou atribuição) gratuita feita pelo disponente a favor do beneficiário, visto ser efectuado sem nenhum correspectivo ou contraprestação por parte deste”. Mas, “o facto de o contrato prometido (…) não constituir em si mesmo uma doação (por falta do espírito de liberalidade, próprio da disposição donandi causa), não impede que ele integre uma doação, visto que a sua causa (a relação jurídica subjacente) está no contrato-promessa marcada por esse espírito de liberalidade’’.
Podemos assim concluir que é válida a promessa de doação.
Mas uma coisa é a validade da doação e outra é a de saber se a mesma é passível de execução específica, como determina o Artigo 830 do Código Civil.
Efectivamente no sentido da não execução específica da promessa de doação válida é unânime a Doutrina e a Jurisprudência, argumentando-se que « a sua natureza justifica que as partes conservem a possibilidade de desistir do contrato definitivo até à celebração deste, embora incorrendo em responsabilidade pelo incumprimento do contrato promessa» —- M. J. Almeida Costa, Direito das Obrigações, pág. 279; ver também o que escreveu na RLJ, ano 118, págs. 24 e Seg. No mesmo sentido, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, pág. 286. Pode pois também concluir-se que a natureza da obrigação assumida pelo promitente opõe se pela sua á natureza á execução específica.
Se o contrato promessa dos autos fosse válido, nunca o pedido formulado pela Autora poderia proceder, uma vez que se pede que seja proferida sentença que produza os efeitos do contrato prometido ou seja, pede-se a execução específica do contrato.

No caso em apreço a promessa de doação tem uma nuance que tem que ser analisada, da mesma não consta o nome do donatário, atribuindo-se a uma pessoa a possibilidade de a vir a indicar.
Prescreve o Artigo 949 do Código Civil que:

1. Não é permitido atribuir a outrem, por mandato, a faculdade de designar a pessoa do donatário ou determinar o objecto da doação salvo nos casos previstos no n.º 2 do artigo 2182. °

2. Os representantes legais dos incapazes não podem fazer doações em nome destes.

«Repugna á natureza pessoal da doação e ao espírito de liberalidade que a caracteriza, que a determinação do donatário seja confiada a um terceiro, assim como o requisito do animus donandi justifica em princípio a nulidade da cláusula que remeta a um terceiro a determinação do objecto da doação.» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol.II, pág. 271 (3ª ed.).
No caso dos autos essa incumbência foi atribuída a terceiros, pelo que a promessa de doação tem que se considerar nula e de nenhum efeito.
E nem se argumente, como faz a recorrente que face ao disposto no Artigo 452 do Código Civil tal é permitido.
Efectivamente esse preceito afirma:

1. Ao celebrar o contrato, pode uma das partes reservar o direito de nomear um terceiro que adquira os assuma as obrigações provenientes desse contrato.
Mas logo de seguida, o seu n.º 2 refere que:
2, A reserva de nomeação não é possível nos casos era que não é admitida a representação ou é indispensável a determinação dos contraentes.
Anotando este número dois – Código Civil Anotado pág 434 Pires de Lima/ Antunes Varela – ensinam que «Nos termos do n° 2 deste artigo, não é possível a reserva de nomeação, se desde logo se deve conhecer o contraente ou se não é admitida a representação. Não é por exemplo, de admitir a reserva no contrato de doação pelo menos em relação ao donatário. Este há-de ser desde logo conhecido sob pena de não ter sentido a liberalidade».
Ao contrário do que afirma a recorrente, a doação é nula, como bem defenderam as Instâncias, porquanto a pessoa do donatário tem que ser conhecida e por outro lado a lei proíbe a reserva de nomeação, entre outros nos casos em que é indispensável a determinação dos contraentes. Ora na doação que a pessoa do doador quer a pessoa do donatário têm que estar determinadas, com se deixou explicado e dito.

F) Face ao exposto acorda-se em negar a Revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 21 de Novembro 2006

Ribeiro de Almeida (Relator)
Nuno Cameira
Sousa Leite