Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B3354
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: PROTECÇÃO DOS ANIMAIS
DESPORTO
VIOLÊNCIA
TRATAMENTO DEGRADANTE
LEGALIDADE
Nº do Documento: SJ200410190033547
Data do Acordão: 10/19/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 1247/04
Data: 03/11/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. O fim da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, não assente na ideia da titularidade de direitos por parte dos animais, é o de os proteger contra violências cruéis ou desumanas ou gratuitas, para as quais não exista justificação ou tradição cultural bastante, isto é, no confronto de meios e de fins ao serviço do Homem num quadro de razoabilidade e de proporcionalidade.
2. Os conceitos de violência injustificada, de morte, de lesão grave, de sofrimento cruel e prolongado e de necessidade a que se reporta o artigo 1º, n.º 1, da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, significam essencial e respectivamente, o acto gratuito de força ou de brutalidade, a eliminação da estrutura vital, o golpe profundo ou extenso ou a dor intensa, a dor física assaz intensa e por tempo considerável, e a não justificabilidade razoável ou utilidade no confronto com o Homem e o seu desenvolvimento equilibrado.
3. A prática desportiva de tiro com chumbo aos pombos em voo, embora lhes implique prévio arrancamento de penas da cauda, a morte e a lesão física desta instrumental, tal não envolve sofrimento cruel nem prolongado.
4. A referida modalidade desportiva, já com longa tradição cultural em Portugal, disciplinada por uma federação com o estatuto de utilidade pública desportiva, é legalmente justificada ou não desnecessária no confronto com o Homem e o seu desenvolvimento equilibrado, pelo que não é proibida pelo artigo 1º, n.ºs 1 e 3, alínea e), da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, nem por qualquer outra disposição legal.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I
A Sociedade A intentou, no dia 16 de Abril de 1999, contra a B e o C de Vila Verde, acção declarativa e de condenação, com processo ordinário, pedindo a declaração da ilicitude da actividade dos réus de tiro aos pombos e a sua condenação a absterem-se de realizar identificado concurso de tiro aos pombos ou outro com a utilização de alvos vivos, nomeadamente pombos, e de matar, ferir ou deixar morrer, mormente à fome ou à sede os animais que se encontrem em seu poder, e a fixação de sanção pecuniária compulsória para a hipótese de não cumprirem a decisão que lhes seja desfavorável.
Os réus apresentaram contestação, excepcionando a incompetência do tribunal em razão da matéria e afirmando a licitude da actividade de tiro ao voo, e o C de Vila Verde pediu, em reconvenção, a condenação da autora na indemnização no montante de 2 560 000$, e juros à taxa legal pelos prejuízos decorrentes de não ter podido realizar o torneio agendado para o dia 3 de Abril de 1999 em razão de providência cautelar conexa com a acção.
Julgada, em recurso, improcedente a excepção da incompetência em razão da matéria do tribunal judicial, foi proferida sentença na fase da condensação do processo, no dia 29 de Agosto de 2003, que absolveu os réus quanto à acção e a autora quanto à reconvenção.
Apelou a autora e a Relação, por acórdão proferido no dia 11 de Março de 2004, negou provimento ao recurso.

Interpôs a apelante recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- a Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, derrogou parcialmente o despacho de 4 de Abril de 1994 no âmbito do tiro a alvos vivos;
- a regra é a do respeito pelo direito dos animais, conforme decorre das excepções relativas à tourada e a caça;
- são proibidas todas as violências injustificadas contra animais, ou seja, os actos consistentes em, sem necessidade, infligir-lhes a morte ou o sofrimento cruel e concursos, torneios, exibições ou provas similares que lhes provoquem dor ou sofrimento consideráveis;
- ao admitir-se que os animais podem servir como alvo, por isso trazer para o atirador um acréscimo de dificuldade e de divertimento pessoal, recusa-se-lhes qualquer espécie de protecção ou valor próprio;
- a prática de tiro aos pombos não tem subjacente qualquer tradição nem implica qualquer valor cultural, pelo que não há fundamento legal para fundamentar a excepção da sua permissão;
- a única utilidade real na morte dos animais é o gozo pessoal dos atiradores, e a proibição do tiro com alvos vivos está prevista no artigo 1º, n.º 1, da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro;
- a substituição de animais vivos por alvos artificiais não deturpa o desporto nem lhe retira eficácia nem realização de objectivos;
- aceitar que a competição e a aferição da destreza e o acréscimo de gozo ou divertimento de alguns ou a tradição são suficientes para afastar a proibição da morte ou sofrimento de animais sem necessidade consagrada na Lei 92/95, de 12 de Setembro, é negar a sua existência;
- a atribuição da utilidade pública à recorrida B, em despacho omisso quanto ao tiro aos pombos, não afecta a referida proibição da lei;
- a interpretação da lei pelo acórdão recorrido no sentido da não proibição viola o texto e o seu espírito, pelo que deve ser revogado.

Responderam os recorridas, em síntese de conclusão:
- a protecção dos animais não está prevista na Constituição e o artigo 1º da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, não contém enumeração taxativa das excepções a considerar;
- nos termos dos artigos 202º, n.º 1, 205º, n.º 1 e 212º, n.º 3, do Código Civil, os animais são coisas móveis, sem direito à integridade pessoal ou física, pelo que podem ser apropriados;
- a protecção dos animais não ocorre por via de lhes atribuir direitos, mas pelo dever das pessoas em relação a eles, e a atribuição àqueles do direito à vida e à integridade física só poderia operar por via de alteração da Constituição;
- no plano teleológico, a expressão necessidade constante da lei não pode ser interpretada no plano puramente económico, antes se impondo-se a ponderação de valores jurídicos tutelados, em termos de a protecção dos animais ceder a valores hierarquicamente superiores, sem recurso a analogia;
- a lei relativa à arte equestre, às touradas, à caça e à investigação científica não contém normas excepcionais insusceptíveis de aplicação analógica;
- existe total semelhança entre a actividade do tiro ao voo aos pombos e as largadas nos campos de treino de caça - artigos 2º, alínea l), da Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro, e 2º, alínea s), e 51º do Decreto-Lei n.º 227-B/2000, de 15 de Setembro;
- no tiro ao voo aos pombos a sua morte ocorre imediatamente ou muito rapidamente, sem sofrimento prolongado e cruel, e não morrem pelo meio indicado pelos recorrentes;
- o tiro aos pombos não é substituível pelo tiro aos pratos ou a hélices, existe há muito em Portugal, consta desde o século passado em programas de inúmeras festas populares de centenas de freguesias do País, é parte integrante do património cultural português;
- a defesa do património cultural português, prevista na Constituição, e das tradições justificam as excepções da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, pelo que importa operar a extensão analógica do conceito de necessidade;
- a vontade do legislador foi no sentido de manter a licitude da actividade de tiro aos pombos, tal como a pesca desportiva, apesar de nesta os peixes terem sofrimento cruel e prolongado.
II
É a seguinte a factualidade declarada provada nas instâncias:
1. A autora, Sociedade A, é uma associação zoófila, com estatutos aprovados pelo Alvará n.º 23/949, de 13 de Junho de 1949, cujos fins, entre outros, são os de impedir e reprimir tudo quanto represente crueldade contra os animais e assegurar o respeito pelos seus direitos.
2. A ré B foi declarada pessoa colectiva de utilidade pública por despacho do Primeiro Ministro de 15 de Junho de 1978, e foi-lhe concedido o estatuto de utilidade pública desportiva pelo despacho do Primeiro Ministro de 18 de Março de 1994.
3. A autora tem conhecimento de que as rés organizaram um concurso de tiro com chumbo, com utilização de pombos, e pretendem realizá-lo no dia 3 de Abril de 1999, nas instalações do segundo réu, prova integrada no calendário oficial de 1999 de tiro com alvos vivos.
4. A entidade responsável pela organização dessas provas é a primeira ré, nos termos do seu regulamento, e a realização em concreto da prova caberia ao segundo réu, e seria o contributo material, humano e financeiro do último que poria de pé o referido torneio, e seria da competência da primeira a coordenação, orientação e supervisão da dita prova.
5. Uma das actividades dos réus é a prática de tiro com chumbo, com utilização de alvos vivos – pombos, aos quais são arrancadas penas da cauda antes de serem libertos, e, no âmbito dessas provas, são mortos.
III
A questão essencial decidenda é a de saber da legalidade ou ilegalidade em Portugal da modalidade de tiro aos pombos, isto é, com alvos vivos.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação da recorrente e dos recorridos, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- núcleo fáctico provado relevante para a decisão:
- núcleo normativo essencialmente aplicável no caso espécie;
- sentido literal das normas do artigo 1º, n.º 1, Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, no confronto com o caso espécie;
- abrange a proibição do n.º 1 do artigo 1º da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, actividade desportiva de tiro ao voo de pombos?
- solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos por mencionar o núcleo fáctico relevante para a decisão do caso espécie.
A B era, desde 15 de Abril de 1978, pessoa colectiva de utilidade pública, e é, desde 18 de Março de 1994, uma pessoa colectiva de utilidade pública desportiva.
Uma das actividades dos réus é a prática de tiro com chumbo com utilização de alvos vivos – pombos, e organizaram, no âmbito do calendário oficial de 1999, um concurso de tiro com chumbo aos pombos e pretendiam realizar o torneio, nas instalações do segundo réu, no dia 3 de Abril de 1999.
A B é a responsável pela organização dessas provas, orientando-as e supervisionando-as nos termos do seu regulamento, e ao C de Vila Verde cabia, no caso, a sua realização por via de contributo humano, financeiro e material.
Antes de serem libertos para as provas de tiro ao voo são-lhes arrancadas penas da cauda e, no seu âmbito, são mortos.
Os factos em análise não revelam, por um lado, o processo de libertação dos pombos, nem o modo como se confrontam com os atiradores, nem o que acontece aos que não são atingidos, nem ao seu tempo de vida quando os tiros os não matam imediatamente.
Nem, por outro, revelam se os pombos abatidos são utilizados na alimentação humana ou se o não são por serem mortos sem condições de salubridade.
Em razão da notoriedade geral, pela constatação das pessoas em várias zonas do nosso País, deve também considerar-se assente que a actividade desportiva de tiro aos pombos em Portugal é antiga de mais de um século e meio (artigo 514º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

2.
Seleccionemos agora o núcleo normativo essencialmente aplicável no caso espécie.
A propósito das tarefas fundamentais do Estado, resulta da Constituição da República Portuguesa que entre elas se contam a protecção e valorização do património cultural do povo português e a defesa da natureza e do ambiente (artigo 9º, proémio, e alínea e), primeira parte).
A Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto, que regia sobre o exercício da caça aquando da publicação da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, estabelecia, além do mais que aqui não releva, por um lado, no n.º 1 do seu artigo 30º, que as associações e os clubes de caçadores e de cunicultores podiam ser autorizados a instalar e manter campos de treino destinados à prática, durante todo o ano, de actividades de carácter venatório, nomeadamente a de exercício de tiro e de treino de cães de caça nos termos em que viesse a ser regulamentado.
E, por outro, estabelecia no n.º 2 daquele artigo que nos campos de treino de caça somente eram autorizadas as largadas e o abate de espécies cinegéticas criadas em cativeiro.
O Decreto-Lei n.º 311/87, de 10 de Agosto, primeiro diploma que regulamentou a Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto, estabeleceu, por um lado, ser permitida a caça em cativeiro, designadamente para utilização em campos de treino de caça, mediante autorização da Direcção-Geral das Florestas, ouvida a Direcção-Geral da Pecuária sobre os aspectos sanitários (artigo 79º, n.ºs 1 e 2).
E, por outro, que a Direcção-Geral das Florestas podia constituir ou autorizar a instalação de campos de treino de caça destinados à prática de actividades de carácter venatório, durante todo o ano, nomeadamente o exercício de tiro com arma de fogo, arco ou besta, cetraria e treino de cães de caça, em termos a regulamentar por portaria do Ministro da Agricultura, Pescas e Alimentação (artigo 80º).
Por seu turno, a Portaria n.º 816-B/87, de 30 de Setembro, estabelecia ser autorizável pela Direcção-Geral das Florestas às associações, sociedades ou clubes de caçadores e de canicultores legalmente existentes, a requerimento deles, a instalação de campos de caça destinados à prática de actividades de carácter venatório, nomeadamente o exercício de tiro com armas de fogo durante todo o ano e em todos os dias da semana (artigos 1º e 2º, n.º 1).
O mesmo regime de criação de caça e aves de presa em cativeiro foi mantido pelo novo regulamento da mencionada lei, o Decreto-Lei n.º 274-A/88, de 3 de Agosto, que substituiu o Decreto-Lei n.º 311/87, de 10 de Agosto, salvo o acrescentamento da finalidade de realização de corridas de lebres).
O referido regulamento foi, entretanto, substituído pelo Decreto-Lei n.º 251/92, de 12 de Novembro, que manteve essencialmente o regime anterior relativo aos campos de treino de caça (artigos 87º e 88º).
No regulamento da lei da caça que se seguiu ao Decreto-Lei n.º 251/92, de 12 de Novembro, ou seja, no Decreto-Lei n.º 136/96, de 14 de Agosto, continuou a constar o mesmo regime concernente à criação de caça em cativeiro e aos campos de treino de caça (artigos 87º e 88º).
E a Lei n.º 179/99, de 21 de Setembro, que estabelece as actuais bases de gestão sustentada dos recursos cinegéticos, substitutiva da Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto, manteve a vigência dos diplomas que a regulamentaram, incluindo o preceito que admite a reprodução, criação e detenção de espécies cinegéticas em cativeiro para utilização, além do mais, em campos de treino de caça, definidos como áreas destinadas à prática, durante todo o ano, de actividades de carácter venatório, nomeadamente o exercício de tiro e de treino de cães de caça e as provas de Santo Huberto quanto a essas espécies (artigos 2º, alínea l) e 27º, n.º 1).
As bases do sistema desportivo constam da Lei n.º 1/90, de 13 de Janeiro. Por via dela, as federações desportivas, sendo embora entidades de direito privado, podiam assumir, por via da atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva, na sua área específica, poderes de regulamentação, de disciplina e outros de natureza pública (artigo 22º, n.º 1).
A referida lei foi regulamentada por via do Decreto-Lei n.º 144/93, de 26 de Abril, que contém o regime jurídico das federações desportivas.
Decorre deste último diploma, por um lado, que o estatuto de utilidade pública desportiva atribui a uma federação desportiva, em exclusivo, a competência para o exercício, dentro do respectivo âmbito, de poderes de natureza pública, bem como a titularidade de direitos especialmente previstos na lei (artigo 7º).
E, por outro, terem natureza pública os poderes das federações exercidos no âmbito da regulamentação e disciplina das competições desportivas, quer sejam conferidos pela lei para a realização obrigatória de finalidades compreendidas nas atribuições do Estado e envolvam, perante terceiros, prerrogativas de autoridade, quer se traduzam na prestação de apoios ou serviços legalmente determinados (artigo 8º, n.º 1).
Na sequência dos mencionados diplomas e, naturalmente, dos estatutos da B, foi a esta atribuída pelo Governo o estatuto de utilidade pública desportiva (Diário da República, II Série, n.º 78, de 4 de Abril de 1994).
Pouco mais de um ano depois, foi publicada a Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, proibindo o uso da violência injustificada sobre os animais, disciplinando o comércio e os espectáculos com recurso a eles e estabelecendo normas reguladoras da sua reprodução, identificação, transporte e eliminação pelas câmaras municipais e sobre a legitimidade das associações zoófilas para agir em juízo em sua defesa.
Estabelece o seu artigo 1º, n.º 1, daquela Lei o seguinte: "São proibidas todas as violências injustificadas contra animais, considerando-se como tais os actos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões a um animal".
Expressa, por seu turno, o seu n.º 3, proémio, alínea e): "São também proibidos os actos consistentes em utilizar animais para fins didácticos, de treino, filmagens, exibições, publicidade ou actividades semelhantes, na medida em que daí resultem para eles dor ou sofrimento consideráveis, salvo experiência científica de comprovada necessidade".
Na determinação do sentido prevalente das referidas normas partir-se-á da sua letra e confrontar-se-á o que dela pareça resultar com a sua história, inserção sistemática e escopo finalístico, tendo presente que se deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (artigo 9º do Código Civil).
Nessa tarefa interpretativa importa atentar em que o facto de a lei proibir, em regra, a morte desnecessária dos animais não significa que eles sejam titulares de direitos subjectivos à vida e à integridade física, certo que, segundo a nossa ordem jurídica, trata-se de coisas móveis (artigos 202º, n.º 1, 205º, n.º 1 e 212º, n.º 3, do Código Civil).

Trata-se, com efeito, são coisas móveis, outrora designadas por coisas semoventes, apropriáveis, pelo que, pelo menos na ordem jurídica portuguesa, não faz qualquer sentido a afirmação no sentido de que a morte de pombos por via de tiro ao voo ofende o seu direito à vida ou à integridade física.

Na realidade, aquilo que se vem afirmando sobre a designação de direitos dos animais são, afinal, os deveres que as pessoas tem para com eles, além do mais porque se trata de seres que com elas partilham a natureza e sem os quais a consecução dos seus fins não seria viável.
As normas jurídicas tendentes à protecção dos animais ou, noutra perspectiva, atinentes à defesa da comunidade de pessoas face ao desconforto de terem de percepcionar a desumanidade de algumas, visam essencialmente fins sociais, sendo que as vantagens que delas resultam para eles são mero reflexo dessa normatividade de fim social.

É nesse sentido que devem ser entendidos os textos internacionais sobre a protecção dos animais quando se referem ao seu direito à vida, à integridade física, à liberdade e ao respeito (Declaração Universal dos Direitos do Animal, Unesco).

3.
Atentemos agora, confrontando-o com o caso espécie, no sentido das normas do artigo 1º, n.º 1, da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, que resulta da sua letra.
A previsão desta parte do artigo reporta-se a violências injustificadas contra animais por via de dois conceitos indeterminados, e a sua estatuição é a da respectiva proibição.
A referida previsão normativa relativa a violências injustificadas é de algum modo densificada por via dos conceitos morte, sofrimento cruel e prolongado, graves lesões e desnecessidade.
Vê-se, pois, que também a mencionada densificação do conceito violências injustificadas ocorre por via de conceitos indeterminados, como é o caso dos que envolvem as expressões sem necessidade, sofrimento cruel e prolongado e de graves lesões.
A violência injustificada no contexto da lei é o desnecessário acto de força ou de brutalidade contra os animais.
O conceito normativo de necessidade revela-se essencial na determinação âmbito de aplicação do preceito em análise, pelo que importa determinar-lhe o sentido, naturalmente por via do seu preenchimento de tipo valorativo, no confronto com o caso espécie.
O conceito de necessidade é polissémico, porque é susceptível de significar, além do mais, indispensabilidade, justificabilidade, utilidade, e estado de privação, envolvendo as primeiras significações um sentido essencialmente jurídico e a última um sentido económico.
Tendo em conta os termos da lei e a realidade das coisas animais, o conceito jurídico sem necessidade aponta no sentido de significar, no confronto com o Homem e o seu desenvolvimento integral, sem justificação razoável ou sem utilidade.
A morte dos animais traduz-se na eliminação da sua estrutura vital, enquanto a sua lesão grave se consubstancia no resultado de uma acção ou omissão, ou seja, no ferimento, golpe profundo ou extenso ou dor intensa.
O sofrimento cruel e prolongado dos animais é, por seu turno, a sua dor física assaz intensa e por tempo considerável face ao circunstancialismo envolvente.
Aproximando os referidos conceitos normativos dos factos provados, não se vislumbra que no âmbito da actividade desportiva em causa os pombos sejam afectados de sofrimento cruel e prolongado.
Com efeito, a circunstância de antes da libertação dos pombos lhe serem arrancadas algumas penas da cauda, ao que parece com vista a imprimir-lhes a irregularidade do voo, não pode ser considerada nem lesão nem geradora de sofrimento cruel.
Acresce que o necessário enquadramento dos factos disponíveis na previsão e na estatuição legal cinge-se à morte dos pombos por via dos tiros dos concorrentes envolvidos na indicada prova desportiva em e ao sofrimento que isso necessariamente lhes provoca.

4.
Tendo presente o caso espécie, confrontemos agora o sentido literal das normas do artigo 1º, n.º 1, Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, com o que resulta dos pertinentes elementos extraliterais de interpretação.
Na história da lei, relativamente aos seus trabalhos preparatórios, assume particular relevância o projecto de lei n.º 107/VI, da autoria do deputado António Maria Pereira, que inseria na alínea j) do n.º 1 do artigo 3º a expressão de que eram também proibidos os actos consistentes em organizar provas de tiro a animais vivos (Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 33, de 6 de Abril de 1995, pág. 462).
O referido projecto foi substituído pelo Projecto n.º 530/VI, cuja alínea j) do n.º 1 do artigo 3º ainda expressava serem também proibidos actos consistentes em organizar provas de tiro a animais vivos.
No debate parlamentar da lei na generalidade, o deputado António Maria Pereira afirmou que no artigo 1º se enumeravam os princípios gerais, nos quais se proibia, em termos genéricos, a crueldade para com os animais, incluindo o seu abandono e se concretizavam depois algumas actuações particularmente cruéis.
E no que concerne à justificação do texto da alínea j) do n.º 1 do artigo 3º, afirmou proibir-se o tiro aos pombos, modalidade também proibida em numerosos países da União Europeia, designadamente na Inglaterra, França e no Grão-Ducado do Luxemburgo, nos quais o pombo vivo era substituído por um alvo lançado de um aparelho, solução com que se obtinha o mesmo resultado de pôr à prova a perícia dos atiradores sem o aspecto cruel que reveste o pombo acabado de ser liberto (Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 88, de 17 de Junho de 1995, pág. 2955).
Todavia, a referida proibição não passou para a Lei em análise, e não resulta da discussão parlamentar a motivação dessa supressão.
Perante esse circunstancialismo, é razoável que o intérprete conclua no sentido de que o legislador pretendeu manter a licitude da prática desportiva de tiro ao voo de pombos.
Mas também não é absolutamente descabido o entendimento da recorrente no sentido de que tal supressão foi pensada em razão da consideração da sua desnecessidade por virtude de a proibição já constar do proémio e do n.º 1 do artigo 1º da referida Lei.
Daí que o elemento histórico da Lei em causa não seja decisivo para a determinação sobre se o seu artigo 1º, n.º 1 inclui ou não a proibição da prática desportiva de tiro ao voo de pombos.
Dir-se-á também, por antecipação, não assumir qualquer relevo, neste ponto, o facto de oito deputados, cerca de quatro anos depois da publicação desta Lei, haverem apresentado um projecto de lei sobre a protecção dos animais com vista a tornarlícita a prática de tiro com alvos vivos desde que sob a égide de uma federação desportiva, tal como não releva a circunstância de os deputados de um dos grupos parlamentares haverem apresentado, cerca de dois anos depois da publicação da Lei, um projecto para a sua alteração no sentido da proibição de forma expressa das provas de tiro com animais vivos.

No que concerne ao elemento sistemático de interpretação da lei, ou seja, no quadro da unidade do sistema jurídico envolvente, importa ter em conta o contexto normativo concernente, os respectivos lugares paralelos e a envolvência sistemática.

No que concerne ao contexto do próprio normativo em apreciação, em sede de elenco complementar de proibições de violência contra os animais, logo se ressalva a violência na arte equestre e nas touradas autorizadas por lei, em casos de experiência científica de comprovada necessidade e na prática da caça (artigo 1º, n.º 3 alíneas b), e) e f), desta Lei).

Quanto ao paralelismo normativo, tendo em conta prática desportiva de tiro ao voo de pombos, a anterior lei da caça e respectivos regulamentos, que vigoravam aquando da publicação da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, permitiam a existência de campos de treino da prática de actividades de carácter venatório com largadas e abate de espécies cinegéticas criadas em cativeiro, incluindo aves de presa em que se incluem, como é natural, os pombos bravos.
Assim, estamos perante normas que se reportam a uma prática de tiro a alvos vivos, que não diverge na sua estrutura essencial da que ocorre no caso espécie, e que a lei admite.
Face aos ao artigo 2º, alínea a), dos Estatutos da recorrida B, datados de 29 de Outubro de 1984, o seu objecto envolve a competência para orientar e dirigir superiormente o tiro ao voo e aos pratos (Diário da República, III Série, de 9 de Janeiro de 1985).
Foi-lhe inicialmente atribuída pelo Governo a posição jurídica de pessoa colectiva de utilidade pública e, posteriormente, a posição jurídica de pessoa colectiva de utilidade pública desportiva (Diário da República, II Série, de 20 de Junho de 1978, e de 4 de Abril de 1994).
Por virtude de lhe ter sido atribuído o estatuto de pessoa colectiva de utilidade pública desportiva, passou a exercer poderes regulamentares e disciplinares e outros de natureza pública no âmbito, além do mais, do tiro ao voo e aos pratos (artigos 22º, n.º 1, da Lei n.º 1/90, de 13 de Janeiro, e 7º do Decreto-Lei n.º 144/93, de 26 de Abril).
O referido circunstancialismo não releva essencialmente, como é natural, para a interpretação do proémio e do n.º 1 do artigo 1º da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, no sentido de a respectiva proibição não abranger a prática desportiva de tiro ao voo com pombos, mas não pode deixar de ser considerado no quadro dessa interpretação, porque se não compreenderia que o Governo mantivesse à recorrida Federação de Tiro Com Armas de Caça o estatuto de pessoa colectiva de utilidade pública desportiva, exercendo por via dele, no âmbito da organização e disciplina da actividade desportiva de tiro ao voo de pombos, além do mais, poderes de ordem administrativa, não obstante a lei proibir essa prática.
A propósito do fim da lei em análise, resulta da respectiva discussão parlamentar a ideia de os homens, que não podem prescindir da existência dos animais, os não devem torturar gratuitamente e devem reduzir, até onde for possível, o seu sofrimento, mas tendo em atenção a realidade cultural portuguesa (Deputados António Maria Pereira e João Amaral, no debate parlamentar relativo à Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, Diário da Assembleia da República, I Série, n.º 88, 1995, págs. 2957 e 2959)
Na realidade, o escopo finalístico desta Lei foi o de proporcionar o chamado bem estar dos animais, prevenindo que lhe sejam infligidos maus tratos por acção ou omissão das pessoas, e proibindo as suas práticas de crueldade e violência física e ou psicológica.
Tendo em linha de conta o pressuposto da proibição constante do proémio e do n.º 1 do artigo 1º da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, consubstanciado no conceito sem necessidade, a lei equaciona a proibição com outros interesses considerados relevantes no nosso ordenamento jurídico.
Dir-se-á, assim, numa breve síntese, que o fim da lei é proteger os animais de violências cruéis ou desumanas e gratuitas, para as quais não exista justificação ou tradição cultural bastante, isto é, no confronto de meios e de fins envolvidos em função do Homem.
5.
Atentemos agora, finalmente, na questão fulcral de saber se a proibição do n.º 1 do artigo 1º da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, abrange ou não a actividade desportiva de tiro ao voo de pombos.
Não releva nesta matéria, ao invés do que do alegado pela recorrente, o facto por ela invocado de a prática da modalidade desportiva em causa visar o treino da precisão do tiro e de os pombos poderem substituídos, sem perda da eficácia respectiva, por pratos ou hélices.
Mas, tal como ela refere, não pode haver tradição, por mais antiga que seja, que justifique a infracção da lei que proíba a prática de actividade de violência contra os animais, mas não é isso que está em causa no recurso, certo que se pretende saber se ocorre ou não essa proibição.

Também não relevam para o mesmo efeito as concepções e a sensibilidade de cada um acerca da natureza como suporte da vida e da própria vida humana e dos outros animais, pois o que importa é a determinação do sentido e alcance das normas interpretandas.

Os factos não revelam, como já se referiu, que aos pombos, na sua sujeição de alvos de tiro em voo no âmbito da prática desportiva em análise, seja infligido sofrimento cruel e prolongado ou lesões graves diversas daquelas que lhe provocam a morte.
A solução do caso espécie depende, por isso, essencialmente, conforme já se referiu, da ponderação de valores sociais envolvidos no conceito indeterminado de necessidade inserido na referida previsão legal proibitiva do n.º 1 do artigo 1º da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro.
Ao invés do que a recorrente alegou, o único critério de determinação da necessidade da morte dos pombos não pode ser apenas o que resulta do confronto valorativo entre o acréscimo da perícia dos atiradores e o gozo destes e a morte e o sofrimento dos pombos.
Nem há fundamento legal para considerar a exclusiva conexão desse conceito com razões de alimentação, de saúde pública, de investigação científica, porque, conforme resulta do ordenamento jurídico globalmente considerado, há outros valores a considerar nesta sede.

Conforme resulta da experiência comum, os pombos reproduzem-se facilmente, não há risco da sua extinção, e a própria prática desportiva em causa constitui um facto de promoção do crescimento da espécie.

Como resulta da própria natureza das coisas, no âmbito das competições desportivas de tiro ao voo de pombos desenvolve-se actividade económica no quadro dos bens e dos serviços, com a consequente produção de riqueza individual e colectiva.
Tal como acima se referiu, o conceito de necessidade em análise significa o resultado de uma valoração de confronto entre a preservação dos animais na sua vida e integridade física e o seu sacrifício socialmente útil e justificado ou útil em função do interesse das pessoas ou da comunidade.

A referida justificação não é excluída em absoluto em situações em que está em causa uma prática desportiva de longa tradição integrante da cultura de uma comunidade humana.

Ora, o tiro ao voo de pombos, em paralelo com a arte equestre e as touradas, traduz-se numa modalidade desportiva com tradição e relevância em Portugal, conforme resulta, além do mais, designadamente do número de clubes de tiro existentes em Portugal e, de algum modo, de o Governo ter confiado a uma federação desportiva o seu fomento, regulação e disciplina.
Por isso, no caso espécie, a morte infligida aos pombos não é meramente gratuita ou improvisada, porque se inscreve numa prática desportiva já antiga, integrada na tradição, como processo de ligação do passado ao presente, e, consequentemente faz parte do nosso património cultural, a exemplo do que ocorre com as touradas e a arte equestre.
Decorrentemente, tendo em conta o que se prescreve no artigo 1º, n.º 1, da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, há no caso espécie justificação e utilidade para a e na morte dos pombos no âmbito das provas de tiro ao voo e para o sofrimento que isso lhes implica, que se não revela cruel.
Por conseguinte, a prática desportiva de tiro ao voo de pombos não se enquadra na proibição a que se reporta o proémio e o n.º 1 do artigo 1º nem no seu n.º 3, alínea e), da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, pelo que não é proibida no nosso ordenamento jurídico.

Improcede, por isso, o recurso, com a consequência de dever manter-se o conteúdo do acórdão recorrido.

Vencida, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

Todavia, está dispensada de pagamento de custas neste processo, ou seja, goza de isenção objectiva do seu pagamento (artigo 10º da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro).


IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso.

Lisboa, 19 de Outubro de 2004.
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís