Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
246/10.3TBLLE.E1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA
Descritores: REPRESENTAÇÃO VOLUNTÁRIA
PROCURAÇÃO
REVOGAÇÃO
ABUSO DE PODERES DE REPRESENTAÇÃO
ERRO
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
MEIOS DE PROVA
MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PODERES DA RELAÇÃO
Data do Acordão: 09/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / PERFEIÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL / REPRESENTAÇÃO / REPRESENTAÇÃO VOLUNTÁRIA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO.
Doutrina:
- José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, Volume II, 2.ª Edição, p. 240 e 241;
- Heinrich Ewald Horster, A parte Geral do Código Civil Português, Almedina, 6.ª reimpressão, p. 476, 477, 483 e 484;
- João de Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, Volume II, Edição da AAFDL, 1995, p. 411 e 412;
- Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 7.ª Edição, p. 276, 278, 296 e 305 ; A Procuração irrevogável, Almedina, p. 98;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição, p. 240 e anotação aos artigos 224.º e 265.º.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 224.º, N.º 1, 258.º, 262.º E 265.º, N.º 2.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 607.º, N.º 4, 662.º, N.º 1 E 663.º, N.º 2.
Sumário :
I - É residual a intervenção do STJ no apuramento da factualidade relevante da causa, restringindo-se, afinal, a fiscalizar a observância das regras de direito probatório material e a determinar a ampliação da matéria de facto ou o suprimento de contradições sobre a mesma existentes.

II - Em face da competência alargada da Relação em sede da impugnação da decisão de facto (art. 662.º, n.º 1, do CPC), é hoje lícito à 2.ª instância, com base na prova produzida constante dos autos, reequacionar a avaliação probatória feita pela 1.ª instância, nomeadamente no domínio dos depoimentos testemunhais, ilações e documentos, nos termos do n.º 4 do art. 607.º, aplicável por via do art. 663.º, n.º 2, ambos do CPC.

III - A Relação tem, nesse campo, a derradeira palavra e, sendo hierarquicamente um tribunal superior, a sua avaliação e decisão terão de sobrepor-se às operadas pela 1.ª instância. Só assim não seria se acaso a reavaliação probatória efectuada infringisse qualquer norma legal, o que não ocorreu.

IV - Na representação (art. 258.º do CC) há um representante que participa no tráfico jurídico negocial em nome de outrem (contemplatio domini), o representado, e os efeitos dos negócios por aquele concluídos produzem-se, directa e imediatamente, na esfera jurídica deste (dominus negotii).

V - Uma das fontes do poder de representação é a procuração, definida pelo art. 262.º do CC como o acto pelo qual alguém (dominus) atribui a outrem (procurador), voluntariamente, poderes representativos.

VI - Trata-se de acto unilateral, por intermédio do qual, é conferido ao procurador o poder de celebrar negócios jurídicos em nome de outrem (dominus), em cuja esfera jurídica se vão produzir os seus efeitos (art. 262.º do CC).

VII - A procuração é revogável, nos termos do n.º 2 do art. 265.º do CC, através de declaração negocial receptícia, ou seja, a revogação só se torna eficaz quando chega ao poder do destinatário ou dele é conhecida (art. 224.º, n.º 1, do CC).

VIII - Tendo a revogação da procuração ocorrido depois de concretizada a venda pela procuradora do autor, aquela estava habilitada ainda com os poderes que o dominus lhe confiara e que incluía a venda do prédio.

IX - Nada se apurando quanto ao alegado erro na emissão da procuração ou que a procuradora tenha exorbitado os poderes representativos ou tenha agido com animus nocendi, a compra e venda realizada, com base na procuração, é válida.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Relatório

I AA, residente em Quarteira, instaurou acção declarativa, com processo ordinário, contra BB residente em Quarteira, CC – Unipessoal, Lda., com sede em Mafamude, e BB, SA, com sede em Lisboa, alegando, em síntese, que:

É casado com a ré BB, a favor de quem emitiu uma procuração, em Fevereiro de 2007, com o objetivo de lhe conferir poderes para o representar em tribunais e escrituras, no âmbito de questões relacionadas com o património do ex-marido daquela e respetivos progenitores.

Fazendo uso dessa procuração, a ré BB vendeu à ré CC, no dia 27 de Novembro de 2008, pelo preço de € 150 000,00 o seu prédio urbano, correspondente a um edifício térreo, com quatro divisões, garagem e logradouro, com piscina, sito no Lugar de ......, freguesia de Quarteira, concelho de Loulé, descrito na Conservatória do Registo Predial desse concelho sob o nº...... e inscrito na matriz sob o artº9..6.

Com a escritura pública da venda foi simultaneamente celebrado um contrato de mútuo oneroso entre as rés CC e BB, garantido por hipoteca sobre o aludido prédio.

Não teve conhecimento da venda e da constituição da hipoteca, não recebeu qualquer quantia relativa ao preço da venda do prédio, onde continuou a residir.

Com tais fundamentos, concluiu por pedir que:

a) se considere ineficaz e inexistente, ao abrigo dos artigos 269.º e 268.º, ambos do Código Civil, o contrato de compra e venda constante da escritura de compra e venda exarada em 27-11-2008, a fls. 140 a 143 do Livro .... do Cartório Notarial da Dr.ª Notária EE, sito na ....... n.º ..., ...andar, sala..., na cidade do Porto (consubstanciado no doc. n.º 19 anexo à petição inicial);

b) se considere ineficaz e inexistente o contrato de mútuo oneroso com hipoteca celebrado através desse instrumento notarial, na parte em que onera, por hipoteca, o referido prédio urbano do autor;

c) se declare nulo e sem qualquer efeito o aludido contrato de compra e venda, por violação de normas imperativas legais;

d) se declare a nulidade subsequente do contrato de mútuo oneroso, na parte em que onera, por hipoteca, o prédio urbano do autor;

e) se declare a resolução da escritura de compra e venda de 27-11-2008, por falta de pagamento do preço, por falta de entrega do bem ao comprador e por o autor continuar a residir no mesmo, nos termos do artigo 886.º do Código Civil, e em consequência também a resolução do contrato de mútuo oneroso, na parte em que onera, por hipoteca, o prédio urbano do autor;

f) se ordene o cancelamento de todos e quaisquer registos prediais e inscrições prediais, designadamente aquisições e hipotecas que incidam sobre o identificado prédio do autor e que sejam incompatíveis com o direito de propriedade plena do autor sobre o dito prédio;

g) ou, caso não sejam atendidos os pedidos antes referidos, a condenação de todas as rés a pagar-lhe solidariamente, a título de preço pelo prédio, a quantia que resultar da avaliação do dito prédio, por perícia colegial a realizar, no âmbito dos presentes autos.

As rés contestaram, autonomamente, contrapondo diferente versão e concluíram pelo infundado do petitório do autor, tendo ainda a ré CC deduzido reconvenção, visando obter a condenação daquele a pagar-lhe a quantia de € 20 000,00 relativa aos prejuízos que sofreu com a interposição e o registo da acção.

O autor apresentou réplica, pugnando pela improcedência da reconvenção.

Em sede da audiência preliminar, foi rejeitada a deduzida reconvenção e saneou-se a causa, após o que se elencou a matéria de facto assente e se organizou a base instrutória.

Na sequência da normal tramitação processual, foi realizada a audiência final e lavrada sentença, datada de 27.11.2016, que, na procedência da acção, decidiu o seguinte:

A) Anula-se o contrato de compra e venda celebrado entre as 1ª e a 2ª rés por escritura de compra e venda que teve por objecto o prédio urbano sito em ....... ou ...... (actualmente Rua .......), freguesia de Quarteira, concelho de Loulé, inscrito na respectiva matriz sob o artigo n.º 9...6 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé com o nº ...... da freguesia de Quarteira;

B) Declara-se ineficaz o contrato de mútuo onerado com hipoteca celebrado em 27/11/2008, entre a ré BB e a ré “CC Unipessoal, Lda”, na parte em que onera o prédio urbano sito em ....... ou ...... (actualmente Rua .......), freguesia de Quarteira, concelho de Loulé, inscrito na respectiva matriz sob o artigo n.º9..6 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé com o nº ...... da freguesia de Quarteira;

C) Determina-se o cancelamento de todos e quaisquer registos prediais e inscrições prediais que incidam sobre o prédio urbano sito em ....... ou ...... (actualmente Rua .......), freguesia de Quarteira, concelho de Loulé, inscrito na respectiva matriz sob o artigo n.º 9....6 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé com o nº ...... da freguesia de Quarteira e que sejam incompatíveis com o direito de propriedade do Autor sobre o referido prédio, designadamente, a aquisição registada pela Ap. ... de 14.11.2008 (provisória) e a Ap. ... de 9.12.2008 (definitiva) a favor da Ré “CC Unipessoal, Lda”, e a hipoteca registada a favor da Ré BB pela Ap. ... de 14.11.2008 (provisória) e Ap. ...de 9.12.2008 (definitiva).

Discordando dessa decisão, apelou a ré BB, impugnando de facto e de direito, com total êxito, tendo a Relação de Évora, na sequência das alterações operadas na matéria de facto, revogado a sentença e decidido julgar a acção improcedente e absolver as rés de todos os pedidos.

Agora inconformado, interpôs o autor recurso de revista, finalizando a sua alegação, com as extensas, complexas e redundantes conclusões que se transcrevem:

1 - Por escritura pública de compra e venda, outorgada no dia 27 de Novembro de 2008, no Cartório Notarial privativo da BB, sito na Rua ......., nº ...., no Porto, BB por si na qualidade de autorizante e na qualidade de procuradora e em representação de AA declarou vender a “CC – Unipessoal, Ldª.”, que declarou aceitar, pelo preço de cento e cinquenta mil euros, já recebido, o prédio urbano, destinado a habitação, correspondente a um edifício térreo, com quatro divisões, garagem e logradouro, com piscina, sito no Lugar de ......, freguesia de Quarteira, concelho de Loulé, descrito na Conservatória do Registo Predial desse concelho sob o nº ...... e inscrito na matriz sob o artº. 9...6.

2 - O A. não deu instruções à Ré BB para vender esse prédio.

3 - Sendo o A. ao tempo casado com a Ré BB uma procuração do A. para a Ré BB (então sua esposa) tinha de ter poderes específicos para os actos de alienação, e a procuração referida nas als. C) e D) dos factos provados não tem esses poderes específicos, é dúbia, e em lado nenhum tem poderes específicos para vender e nem tem em lado algum a palavra “vender”.

4 - O A. não recebeu qualquer valor referente ao preço da compra e venda a que estes autos se reportam.

5 - Aliás, e conforme docs. de fls. 832 a 840, 785 e 786, 823, 841 a 858, 859 a 867 e 874 destes autos, no acto da escritura realizada em 27/11/2008 a Ré BB recebeu do Sr.FF, legal representante da Ré CC, e para pagamento do preço um cheque de 125.000,00€ (da DD.), cheque este que a Ré BB endossou e entregou novamente ao ditoFF legal representante da Ré CC, o qual por sua vez o depositou numa conta do Banif titulada pela firma “.... S. A.”, firma esta onde por sua vez o dito FF legal representante da Ré CC, era ao tempo também Presidente do Conselho de Administração e seu legal representante, e assim se apropriando o Sr.FF, legal representante da Ré CC, de forma criminosa e em perfeito enriquecimento sem causa, da referida quantia de 125.000,00€.

6 - Em 27/11/2008 o valor do mercado do prédio do A. referido em A) dos factos considerados provados era na ordem dos 225.188,00€.

7 - O Tribunal da Relação de Évora teve em conta para considerar não provados os factos constantes das referidas alíneas S, V, X, CC e DD o depoimento da testemunha GG, ao qual o Tribunal de 1ª instância não tinha dado qualquer credibilidade e nem se escorado no mesmo para fundamentar a sua resposta à matéria de facto.

8 - Não se pode, e logo “a priori”, dar qualquer credibilidade ao depoimento da testemunha GG – advogada de profissão – esta nem sequer se dignou para puder depor como testemunha previamente solicitar à Ordem dos Advogados a necessária dispensa/levantamento do sigilo profissional a que está obrigada e pese embora tenha referido que não prestou qualquer serviço, ou seja, o serviço prestado foi “pro bono”, gratuito, e por amizade, tal não a libertava de previamente requerer a necessária dispensa/levantamento do sigilo profissional, e do teor do depoimento por si prestado não restam  dúvidas  que a  assistência/serviço que  prestou  seja ao  ora A.  seja à então ainda mulher  deste  a  Ré  BB, foi  de  natureza  jurídica  e   enquadrando-se  na actividade profissional de advogada desenvolvida pela testemunha GG.

9 - E seguem-se, a título de exemplos, excertos do depoimento da testemunha Drª GG, dos quais é evidente a sua falta de credibilidade:

a) “aquilo que eu percebi na altura é que entre a comunidade alemã havia um grande burburim por causa das vendas judiciais, seja pelas Finanças seja pelos Bancos e era onde toda a gente queria investir, achavam que os apartamentos estavam a ser vendidos por tuta e meia, cinquenta mil, quarenta mil, vinte mil.” (- o que é pública e notória mentira à data de 12 e 13 de Fevereiro de 2007, quando é feita a procuração referida nas als. C) e D) dos Factos considerados provados);

b) ([Advogado do A.]: referiu que a procuração não foi para a venda da casa, que era uma procuração para a mulher puder investir no lugar dele quando ele estava no estrangeiro?)

Resposta da Testemunha – “Eu percebi que era para gerir a casa como um bem comum do casal … e também porque a comunidade alemã andava com este burburinho de investimentos em Portugal, e também se houvesse uma oportunidade de negócio comprar mais alguma coisa.”

c) ([Advogado do A.] – Mas nunca pensou que aquilo era uma procuração com poderes específicos para vender a casa?)

Resposta da Testemunha – “Não me foi pedido nada nesse sentido, a mim foi-me pedido para conferir poderes nos termos que aí está.”

d) ([Advogado do A.]   – Não lhe foi dito para dar poderes para vender a casa?)

Resposta da Testemunha – “Faça uma procuração para vender a casa”, isto não foi dito.

([Advogado do A.] - Sim Senhor.)

e) ([Dra. Juíza] - Pelo Sr. AA?)

Resposta da Testemunha - “Sim Sr., pelo Sr. AA e a Srª. BB também não pediu nenhuma procuração para vender a casa, pediu-me uma procuração com poderes especiais, explicou-me ele também na primeira conversa, explicou-me, mas nem um nem outro pediu especificamente para vender a casa.” “queriam também poderes para vender a casa, no caso de haver alguma situação de aflição como eles se viram quando ele esteve no Zaire,”

f) ([Drª. Juíza] - Mais tarde esta procuração foi usada para a venda da casa onde ambos residiam, na ........ Não esteve presente no dia dessa escritura?)

Resposta da Testemunha - “Não. Nem sabia, desconhecia.”

g) “[Dr. J. Patrício, advogado da Ré DD.] - Srª. Drª, muito bom dia.

Portanto não há dúvidas de que, segundo me apercebi do depoimento da Srª. Drª. Que os poderes que estavam a ser conferidos nesta procuração abrangiam também a casa onde o Sr. AA vivia?)

Resposta da testemunha - “Sem sombra de dúvidas, claramente.”

10 - E, além do depoimento prestado em julgamento pela dita testemunha GG encontram-se nos autos a fls. 42 a 44, 45 a 48, 88 a 118 documentos que estão relacionados com actos profissionais praticados pela dita testemunha GG (e como melhor se encontra explicado a fls. 14 e 15 da dita peça “Contra Alegações” entregue em Juízo em 28/02/2017 e para a qual se remete), e conjugando o depoimento da dita testemunha com os referidos documentos, e inclusive tendo em conta a data da prática dos ditos actos praticados pela testemunha, respectivamente em 19/11/2008, pelas 20h e 58m e em 26/11/2008, pelas 19h40m, - (actos esses praticados em benefício da Ré BB) e bem assim tendo em conta que a venda posta em crise nestes autos ocorreu logo no dia seguinte a 26/11/2008, isto é, ocorreu em 27/11/2008, resulta dessa conjugação do depoimento da testemunha com os ditos documentos a descredibilização total da dita testemunha GG.

11- E ainda no tocante à dita testemunha Drª. GG, e para descrédito total do depoimento da mesma, salienta-se que na procuração em causa foi lavrado termo de autenticação em 13/02/2007, e é público e notório e do conhecimento económico e mundial, que a crise financeira e do imobiliário rebentou em meados do ano de 2008, na sequência da quebra financeira da firma “....”, e com incidência no nosso País nos meses de Setembro e Outubro de 2008, e sendo uma mentira desvirtuosa, e dolosa, vir a dita testemunha Drª. GG referir no seu depoimento que a procuração foi feita e autenticada em 13/02/2007, (isto é, cerca de um ano e meio antes da queda do .... e da crise financeira e de subprime do imobiliário ocorrida em Setembro e Outubro de 2008) porque na altura (em 13/02/2007) “toda a gente queria investir, achavam que os apartamentos estavam a ser vendidos por tuta e meia, cinquenta mil, quarenta mil, vinte mil”.

12 - Quer dos factos provados definitivamente, quer dos documentos que se encontram juntos à presente acção, e nomeadamente e entre outros as informações bancárias documentos bancários que foram juntas aos autos após o incidente de levantamento do sigilo bancário suscitado nestes autos, e na sequência desse levantamento, outro não poderá ser o desfecho final da presente acção senão a sua procedência e com fundamentos em inúmeros motivos e figuras jurídicas, os quais vão, desde as invalidades do negócio jurídico e até à ofensa dos bons costumes, e ao crime de burla.

13 - A 1ª Ré BB e a 2ª Ré CC tudo fizeram para fraudar e burlar o ora A.,  e  sendo  isso  notório  logo  desde  a  formulação   do  texto da  procuração  datada   de 12/02/2007 e até ao momento em que em 27/11/2008 é exarada no Porto a escritura de venda do imóvel bem próprio do ora A. e a Ré BB, outorgando como autorizante e como procuradora do vendedor e ora A., recebe o cheque de 125.000,00€, imediatamente o endossa e o restitui ao Sr. FF, é o gerente e o representante legal da Ré CC, e que é quem, em representação desta (da Ré CC) outorga a respectiva escritura pela qual a Ré CC compra o prédio do A. referido nestes autos e em causa nesta acção, e bem assim sendo o referido FF nessa data o Presidente do Conselho de Administração da I....s, S. A., e depositando o referido FF o aludido cheque de 125.000,00€ na conta nº .... do Banco Banif, conta esta titulada pela referida firma Invictus, S. A. e da qual o referid oFF era (ao tempo) o representante legal – vide docs. de fls. 832 a 840, 785 e 786, 823, 841 a 858, 859 a 867, 874.

14 - Atendendo a que em 12/02/2007 e em 13/02/2007 a ora Ré BB era casada com o ora A. impunha a lei vigente no nosso ordenamento jurídico (e continua a impor) que, tratando-se de marido e mulher (cônjuges) a representação entre os mesmos não pode ter caracter geral e devendo os poderes de representação serem especificados claramente, e conforme estipulado no Código do Notariado, e bem assim conforme informação do site do Instituto dos Registos e do Notariado (vide fls. 119/120 dos autos – doc. 21 da p.i.)

15 - Compulsando a procuração – vide fls. 48 dos autos – constata-se logo que no texto dessa procuração nem sequer ficou a constar em lado algum da mesma que a “representante/procuradora” BB, ora Ré, era (ao tempo) esposa (cônjuge) do representado AA, ora A..

16 - É usual, e habitual nas procurações com as quais se visa dispor de móveis, ficar expressamente consignado poderes para vender imóveis, ou para comprar imóveis, ou ainda para comprar e para vender imóveis, e, quando se trata de procurações em que o representante é cônjuge do representado devem ser especificados os poderes referentes à venda de imóveis, e impondo esse dever a obrigação de estar identificado no texto da procuração, sem rodeios, o imóvel, ou os imóveis a vender, e nomeadamente, e pelo menos, a freguesia, ou o concelho, onde esses imóveis se situam – e na procuração de fls. 48 dos autos não estão especificados os poderes para vender e nem está identificado o imóvel para vender.

17 - O imóvel do A. em causa nestes autos, e conforme flui dos mesmos, era a casa de morada de família do A. e da Ré BB – vide als. M), N), O) e E) dos factos considerados (definitivamente) provados – e que nessa casa continuou a morar a Ré até meados de Agosto de 2009 (vide certidão da sentença do divórcio entre o A. e a Ré BB e que se encontra a fls. 614 a 619 destes autos), e nessa casa continua a residir o ora A. – vide al. Z) dos factos considerados (definitivamente) provados.

18 - Sendo o imóvel em causa nestes autos a casa de morada de família obrigatoriamente recrudescia o dever de identificar perfeitamente o mesmo numa situação em que um dos cônjuges que nele habitasse, conferisse poderes ao outro cônjuge, que também nele habitava, para puder proceder à sua venda, e neste caso concreto, os poderes que constam na procuração entre cônjuges (de fls. 48) em causa nestes autos, e atinentes a direitos reais são:

…”para o representar junto de cartórios Notariais, públicos ou privados, para em seu nome celebrar escritura de compra e venda, escritura de mútuo oneroso com hipoteca,  escritura  de  hipoteca,   escritura  de  compra  e  venda  com  hipoteca,   de qualquer imóvel situado no distrito de Faro”…(sic).

19 - Resulta provado dos autos, na al. E) que em 04/05/2001 A. e Ré contraíram casamento sob o regime comunhão de adquiridos”, na al. Q) que “o A. não dominava a língua portuguesa”, na al. Y) que “o A. não deu instruções à Ré BB para vender”, na al. EE) que “o prédio referido em A) era o único bem do A.”, e na al. GG) que “o A. apenas teve conhecimento da compra e venda em 20/10/2009”, e, tendo em conta, o texto genérico e não elucidativo da procuração de fls. 48, e bem assim o teor dos referidos factos provados nas alíneas E), Q) Y), EE), GG) dos factos considerados (definitivamente) provados, não podem restar quaisquer dúvidas de que na referida procuração de fls. 48 destes autos não se encontram quaisquer poderes que permitissem á ré BB vender o único bem do A., pois tendo este (o A.) um único bem (o imóvel em causa) ao passar (o A.) uma procuração ao seu cônjuge para permitir vender esse seu único bem obrigatoriamente tinham que ser referidos expressamente nessa procuração poderes para vender esse seu único bem e, identificar o bem, e não poderes “para em seu nome celebrar escritura de compra e venda … de qualquer imóvel situado no distrito de Faro.”

20 - E, a al. E) dos factos provados (“Em 04/05/2001 autor e ré contraíram casamento sob o regime comunhão de adquiridos”) – impunha que, sendo o A. e a Ré BB casados um com o outro, uma procuração passada de um para o outro, e ainda por cima para vender a casa de morada de família, tinha de ser especificada e não genérica e a procuração de fls. 48 é genérica.

21 - As al. M), N) e O) dos factos provados – donde resulta que o prédio em causa nestes autos é a morada do A. desde 31/07/1998, e desde 2000 passou a ser a morada do casal formado pelo A. e pela Ré BB – impunham ainda a obrigatoriedade de uma maior especificação dos poderes para vender.

22 - A al. Q) dos Factos Provados (o A. não dominava a língua portuguesa), impunha que qualquer procuração passada pelo A. a favor da sua esposa, a Ré BB, para além de ter os poderes especificados tinha também de ser clara e de não se prestar a duplas, ou triplas, interpretações.

23 - A al. Y) dos factos provados (o A. não deu instruções à Ré BB para vender) – implica que a Ré BB agiu em abuso de representação, o que acarreta a ineficácia do negócio em relação ao A. (artº. 269º e 268º, nº 1 do C. C.).

24 - A alínea Z) dos factos provados (O Autor continua a residir até à data da interposição da acção no referido prédio) implica que o prédio nunca saiu da esfera patrimonial do A. e que nunca foi entregue à Ré CC.

25 - A alínea AA) dos factos provados (o A. não recebeu qualquer valor referente ao preço da compra e venda) implica que o A. foi burlado pela Ré BB e pela Ré CC, agindo estas Rés de forma criminosa, e conforme resulta provado documentalmente (da conjugação) dos docs. destes autos de fls. 832 a 840, 785 e 786, 823, 841 a 858, 859 a 867, e 874, para os quais se remete, sendo essa burla qualificada atento o valor consideravelmente elevado da mesma (muito superior a 200UCs), e bem assim sendo o negócio celebrado entre a Ré BB e a Ré CC, além de criminoso, também ofensivo dos bens costumes, o que implica a sua nulidade.

26 - A al. BB) dos factos provados (nem foi pela Ré CC ou terceiro exigida a entrega do prédio) demonstra à evidência que o negócio foi feito em conluio entre a Ré BB e a Ré CC.

27 - As alíneas EE) e FF) dos factos provados implicam que sendo o prédio referido em A) o único bem do A. a venda do mesmo acarretaria este (o A.) ficar sem casa para habitar.

28 - A alínea GG) dos factos provados (o A. apenas teve conhecimento da compra e venda em 20/10/2009) - o que implica que a Ré BB, para além do abuso de representação, e para além do crime de burla qualificada que praticou em conluio com a Ré CC, e a quem devolveu 125.000,006 do preço da compra, agiu face ao A. sem quaisquer regras morais, sem quaisquer escrúpulos, pois, e conforme doc. de fls. 614 a 619 dos autos, (certidão da sentença do divórcio do A. e Ré BB) a Ré BB mesmo após ter celebrado em 27/11/2008 a venda do prédio do A. referido em A) dos factos provados continuou a residir no mesmo prédio e com o ora A. até meados de Agosto de 2009, como se nada tivesse ocorrido, e nada dizendo ao A., que só veio a ter conhecimento da compra e venda posteriormente em 20/10/2009.

29 - A alínea HH) dos factos provados (o prédio referido em A) tinha em 27/11/2008 um valor de mercado na ordem dos 225.188,006) implica que o negócio feito entre a Ré BB e a Ré CC, para além de ter sido uma burla, seria também altamente prejudicial para o ora A. e reduzindo pelo menos em 75.188,006 o valor do bem do A. e que implicaria essa redução ser superior a 1/3 do valor total do bem, o que em percentagem correspondia a mais de 33,3% do valor do bem.

30 - Os factos definitivamente considerados provados nestes autos e a aplicação do Direito sobre os mesmos, e na sequência do ancestral aforismo jurídico “dimi factus, dibi ius”, impõem a procedência da presente acção, pois:

• Dos factos provados nas respectivas alíneas E), C), M), N), O) e Q) resulta que sendo o A. e a Ré BB ao tempo casados a procuração do A. para a Ré BB deveria de conferir-lhe poderes específicos, concretos, e sem qualquer dubiez, e da referida al. C) sobressai a não especificidade dos poderes, e a dubiedade dos conferidos.

• Do facto provado na alínea Y) resulta que a Ré BB mesmo que tivesse poderes formais claros e específicos (e não os tinha) agiu em abuso de representação, o que tornou o acto ineficaz perante o A. - artº. 269º e 268º, nº 1 do C. C..

• Dos factos provados nas alíneas E), Q), Y), AA), EE), FF), GG) e HH) resulta que a Ré BB a Ré CC, agiram com dolo, e sendo pois o negócio anulável - artº. 253º e 254º do C.C..

• Dos factos provados nas alíneas E), F), M), N), O), Q), Y), Z), AA), BB), FF), GG) e HH) e bem assim dos docs. de fls. 832 a 840, 785 e 786, 823, 841 a 858, 859 a 867 e 874 dos autos, resulta que o negócio celebrado em 27/11/2008 entre a Ré BB e a Ré CC é ofensivo dos bons costumes, e é contrário à ordem pública, pelo que é nulo nos termos do artº. 280º, nº 2 do C.C., e bem assim desses factos provados resulta também que o negócio celebrado entre as Rés BB e CC consubstancia um crime de burla qualificada, (praticado pelas Rés BB e CC, e em conluio entre si) previsto e punível pelos artº.s 217º, nº 1 e 218º, nº 1 e nº 2, al. a) do C. Penal o que acarreta também que tal negócio seja contrário à lei, e consequentemente também nulo (artº. 280º, nº 1 do C.C.).

31 - Pois, em nenhum ordenamento jurídico se permite que seja válido um negócio em que um procurador (representante) faça uma venda sem instruções do representado, receba o cheque do preço da venda do legal representante da firma compradora, endosse esse cheque e o restitua ao legal representante da firma compradora, e que por sua vez o legal representante da firma compradora, na posse desse cheque o deposita na conta bancária de outra firma distinta da firma compradora mas da qual o legal representante da firma compradora é também representante legal, e assim se apropriando o legal representante da firma vendedora do preço da venda que cabia ao representado do procurador - e tudo isto numa sequência vertiginosa de abuso de representação, de dolo, de burla qualificada (atento o valor), de negócio ofensivo dos bens costumes, e contrário à ordem pública, e de enriquecimento sem causa, e pelo que, manter válido o negócio celebrado em 27/11/2008 entre a Ré BB e a Ré CC seria premiar e convalidar quer a desonestidade total quer a burla praticada pelas referidas Rés BB e CC, o que não se coaduna com um Estado de Direito.

32 - A Ré DD. não formulou reconvenção, pelo que, sendo procedente a acção, não é nesta acção que a Ré DD. faz valer os seus direitos face à Ré CC.

33 - Conforme provado em GG) dos factos assentes o ora A. teve conhecimento da compra e venda em 20/10/2009, e ao intentar a presente acção em 2010/01/26 está em tempo para arguir quaisquer invalidades, e bem assim só tomou conhecimento da burla praticada pela Ré BB e pela Ré CC, (e conforme fls. 823 dos autos) quando tomou conhecimento da informação bancária do Banif dada nestes autos em 26/11/2015.

As rés não contra-alegaram e, colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II -  Fundamentação de facto

A factualidade dada como provada, nas instâncias, é a seguinte:

A) O prédio urbano composto por edifício térreo com 4 divisões, cozinha, 2 casas de banho, hall, garagem e logradouro com piscina, com a área coberta de 220m2 e a área descoberta de 1......m2, situado em ......., freguesia de Quarteira, mostra-se descrito sob o n.º ....../.... da Conservatória do Registo Predial de Loulé e inscrito na matriz sob o artº9..6.

B) Por escritura pública de compra e venda, outorgada em 31 de Julho de 1998 no Primeiro Cartório Notarial de Loulé, ............. declarou vender ao autor, pelo preço de dezoito mil e quinhentos contos, declarando este aceitar, o prédio urbano, térreo para habitação, com vários compartimentos e garagem, com a superfície coberta de 220m2 e logradouro com piscina com a área de 1830m2, no Sítio da ......., ou Perna ...., freguesia de Quarteira, concelho de Loulé, inscrito sob o artº9..6.

C) Em documento particular, datado de 12 de Fevereiro de 2007, subscrito pelo autor, denominado “Procuração” ficou declarado que AA, portador do título de residência definitivo em Portugal nº ........, emitido em 09/05/1995 e contribuinte fiscal nº ..... casado no regime comunhão de bens adquiridos, residente na Rua da ......., caixa postal ...., 8125-186 Quarteira, constitui seu bastante procurador a Exma. Sra. BB, casada, portadora do bilhete de identidade nº ........, emitido a 17/12/2001 pelo arquivo de identificação de Lisboa, contribuinte fiscal nº ........e residente na Rua da ....... da .., CP ....., 8125-186 Quarteira, a quem individual ou colectivamente, confere os mais amplos poderes forenses em direito permitidos, incluindo o de substabelecer, transaccionar e desistir bem como os poderes especiais para o representar junto de Cartórios Notariais, públicos ou privados, para em seu nome celebrar escritura de compra e venda, escritura de mútuo oneroso com hipoteca, escritura de hipoteca, escritura de compra e venda com hipoteca, de qualquer imóvel situado no Distrito de Faro, para celebrar contratos de fiança e representar na qualidade de fiador de terceiros, liquidar quaisquer emolumentos notariais dar e receber quaisquer quantias necessárias à celebração de escrituras, contratos de arrendamento, contratos de fiança, contratos de leasing. Confere ainda, poderes especiais para a representar junto de entidades administrativas tais como Câmaras Municipais, Juntas de Freguesias, Serviços de Finanças, Serviços Municipalizados das àguas, EDP e todos os Ministérios, requerer junto dos respectivos serviços municipalizados da água e junto da EDP contratos de fornecimento de água, de electricidade, de gás e de telefones.

D) Por termo de autenticação lavrado no dia 13 de Fevereiro de 2007, no Cartório Notarial em Vilamoura a cargo do Dr. KK, foi declarado que ali compareceu AA, casado, natural de ..., de nacionalidade alemã, residente habitualmente em Rua da ........, caixa Postal ...., freguesia de Quarteira, concelho de Loulé e que para fins de autenticação da procuração referida em C) a apresentou, a qual disse ter lido e assinado e que a mesma exprime a sua vontade. Mais ficou declarado que dado o outorgante não compreender a língua portuguesa interveio como intérprete da sua escolha JJ, solteiro, maior, com residência no Edifício ...., Avenida ...., Apartamento ..., Vilamoura, freguesia de Quarteira, concelho de Loulé, a qual sob compromisso de honra prestado perante a ajudante com competência delegada II, traduziu a procuração e o termo ao signatário e lhe declarou a sua expressão de vontade, depois de lhe haver lido e explicado o conteúdo do termo.

E) Em 04/05/2001 autor e ré contraíram casamento sob regime comunhão de adquiridos.

F) Por escritura pública de compra e venda, outorgada no dia 27 de Novembro de 2008, no Cartório Notarial Privativo da BB, sito na Rua ......., nº ...., no Porto, BB por si na qualidade de autorizante e na qualidade de procuradora e em representação de AA declarou vender a “CC- Unipessoal, Ldª”, que declarou aceitar, pelo preço de cento e cinquenta mil euros, já recebido, o prédio urbano, destinado a habitação, correspondente a um edifício térreo, com quatro divisões, garagem e logradouro, com piscina, sito no Lugar de ......, freguesia de Quarteira, concelho de Loulé, descrito na Conservatória do Registo Predial desse concelho sob o nº...... e inscrito na matriz sob o artº9..6.

G) Mostra-se inscrita a favor da ré CC pela ap. ....de 2008/11/14 a aquisição, por compra ao autor, do prédio referido em A).

H) Por escritura pública de mútuo com hipoteca, outorgada no dia 27 de Novembro de 2008, no Cartório Notarial Privativo da BB, sito na Rua ......., n.... no Porto, foi declarado pela BB conceder à “CC- Unipessoal, Ldª” um empréstimo da quantia de €150.000,00, declarando-se esta devedora das quantias que forem debitadas na conta da operação.

I) A ré “CC- Unipessoal, Ldª” encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial com o nº .... e tem por objecto social a compra e venda de bens imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, gestão, administração e arrendamento de imóveis e promoção imobiliária.

J) Mostra-se registada pela ap...de 2008/11/14 hipoteca voluntária a favor da BB, para garantia de empréstimo, com juro anual de 11,45%, cláusula penal mais 4%, despesas €6.000,00, com capital de €150.000,00 e capital máximo assegurado de €225.525,00.

K) A presente acção mostra-se registada sob a ap. 2..4 de 2010/01/26.

L) L) Por instrumento de revogação de procuração, lavrado no dia 29 de Outubro de 2009, no Cartório Notarial sito em Portimão, Avenida .....s, Edifício ...., Bloco...., a cargo do Dr. LL, AAl declarou revogar a procuração, com termo de autenticação outorgado em 13 de Fevereiro de 2007, no Cartório Notarial II, em Vilamoura, freguesia de Quarteira, concelho de Loulé, a favor de sua mulher BB.

M) O autor reside no prédio referido em A) desde 31/07/1998.

N) Em 2000 conheceu a ré BB enquanto enfermeira da sua mãe.

O) A qual passou a residir com o autor no prédio referido em A).

P) Entre 2003 e 2006 o autor acompanhou a ré BB a Tribunais e em escrituras de compra e venda de prédios desta em Beja e Quarteira.

Q) O autor não dominava a língua portuguesa.

R) Em 12/02/2007 o autor dirigiu-se com a ré BB a escritório de advogada em Vilamoura no qual foi redigida a procuração referida em C).

S) (Eliminado pela Relação, por o considerar não provado, conforme se alcança de folhas 1037 e 1041)[1].

T) O autor foi acompanhado por JJ ao Cartório Notarial em Vilamoura onde foi feito o termo de autenticação da procuração.

U) A qual lhe referiu que a procuração ia ser autenticada.

V) (Eliminado pela Relação, por o considerar não provado, conforme se alcança de folhas 1037 e 1041)[2].

X) (Eliminado pela Relação, por o considerar não provado, conforme se alcança de folhas 1037 e 1041)[3].

Y) O autor não deu instruções à ré BB para vender.

Z) O autor continua a residir até à data da interposição da acção no referido prédio.

AA) O autor não recebeu qualquer valor referente ao preço da compra e venda.

BB) Nem foi pela ré CC ou terceiro exigida a entrega do prédio.

CC) (Eliminado pela Relação, por o considerar não provado, conforme se alcança de folhas 1037 e 1041)[4].

DD) (Eliminado pela Relação, por o considerar não provado, conforme se alcança de folhas 1037 e 1041)[5].

EE) O prédio referido em A) era o único bem do autor.

FF) Se vendesse ficaria sem casa para habitar.

GG) O autor apenas teve conhecimento da compra e venda em 20/10/2009.

HH) O prédio referido em A) tinha a 27/11/2008 um valor de mercado na ordem dos € 225.188,00.

     III – Fundamentação de direito

A apreciação e decisão da presente revista passam, atentas as conclusões da alegação do recorrente (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil), pela análise e resolução, em primeiro lugar, da temática relativa ao erro na apreciação das provas pela Relação quando operou a modificação da matéria de facto e, em segundo lugar, pela dilucidação da questão central colocada a este Tribunal pelo recorrente e que consiste em determinar se é válida a procuração que passou à ré BB, com base na qual a mesma outorgou, em sua representação, no contrato de compra e venda do seu imóvel.

1 – Entrando, de imediato, na apreciação da primeira das enunciadas questões, interessa relembrar, desde logo, que na fixação da matéria factual relevante para a solução do litígio a Relação tem a derradeira palavra, através do exercício dos poderes que lhe são conferidos pelos n.ºs 1 e 2 do artigo 662.º do Cód. de Proc. Civil, acrescendo que da decisão proferida nesse particular pela Relação não cabe sequer recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (artigo 662.º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil). Este limita-se, no exercício da sua função de tribunal de revista, a definir e aplicar o regime ou enquadramento jurídico adequado aos factos já anterior e definitivamente fixados, ou seja, apenas conhece de direito, sendo que, no âmbito do recurso de revista, o modo como a Relação fixou os factos materiais só é sindicável se foi aceite um facto sem produção do tipo de prova para tal legalmente imposto, ou se tiverem sido incumpridos os preceitos reguladores da força probatória de certos meios de prova, podendo, no limite, mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto (cfr. artigo 46.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto - e artigos 662.º, n.º 4, 674.º, n.ºs 1 a 3, e 682.º, n.ºs 1 e 2, do Cód. de Proc. Civil).

É, pois, residual a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no apuramento da factualidade relevante da causa, restringindo-se, afinal, a fiscalizar a observância das regras de direito probatório material e a determinar a ampliação da matéria de facto ou o suprimento de contradições sobre a mesma existentes. Nessas situações, do que se tratará é de saber se a Relação, ao proceder da forma como o fez, se conformou, ou não, com as normas que regulam tal matéria (direito probatório), o que, no fundo, constitui matéria de direito, caindo, por isso, na esfera de competência própria e normal do Supremo Tribunal de Justiça.

Esclarecido isto, e focando-nos na alteração da matéria de facto realizada pela Relação, traduzida na eliminação dos pontos S), V), X), CC) e DD) do elenco factual dado por provado pela 1ª instância (correspondentes aos factos integradores do invocado erro contaminador da procuração e dos negócios celebrados, com base na mesma), não vemos qualquer inobservância dessas regras probatórias. Pelo contrário, como se alcança do teor do acórdão recorrido, em especial de folhas 1031 a 1037, as provas indicadas pela apelante, para sustentar a parte impugnada da decisão da matéria de facto, foram examinadas pela Relação, que motivou a sua decisão de forma coerente e transparente, de acordo com o princípio da convicção racional, consagrado pelo artigo 607.º, n.º 5, do Cód. Proc. Civil, que combina o sistema da livre apreciação ou do íntimo convencimento com o sistema da prova positiva, sendo certo que, como já referenciado, nesse domínio (da livre convicção do julgador) está vedado ao Supremo exercer censura e sindicar a respectiva substância (artigo 662.º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil).

O recorrente insurge-se essencialmente quanto à credibilidade da testemunhaGG e ao valor probatório conferido pela Relação ao seu depoimento em detrimento de outros, sustentando que a avaliação feita, nesse campo, pela 1ª instância deveria prevalecer e, nessa medida, não deveriam subsistir as alterações factuais determinados pela Relação.

Não tem razão.

Com efeito, em face da competência alargada da Relação em sede da impugnação da decisão de facto (artigo 662.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil), é hoje lícito à 2ª instância, com base na prova produzida constante dos autos, reequacionar a avaliação probatória feita pela 1ª instância, nomeadamente no domínio dos depoimentos testemunhais, ilações e documentos, nos termos do n.º 4 do artigo 607.º, aplicável por via do artigo 663.º, n.º 2, ambos do Cód. Proc. Civil. A Relação tem, nesse campo, a derradeira palavra e, sendo hierarquicamente um Tribunal Superior, a sua avaliação e decisão terão de sobrepor-se às operadas pela 1ª instância. Só assim não seria se acaso a reavaliação probatória efectuada infringisse qualquer norma legal, o que não ocorreu.

Nas aludidas páginas do acórdão da Relação nada se descortina que possa ser tido como violador de qualquer norma probatória ou que, na reponderação dos meios de prova, a Relação tenha ido além do que lhe é permitido pelo artigo 662.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil. Ao invés, surge ali traçado um trilho argumentativo baseado na análise crítica das provas produzidas, no tocante aos pontos de facto impugnados pela apelante, conjugando os factos com as circunstâncias temporais em que ocorreram e com os depoimentos testemunhais prestados, para daí, com recurso às regras da experiência e num discurso escorreito e perfeitamente lógico, coerente e convincente, concluir pela não comprovação dos factos eliminados do elenco factual provado e que, na essência, respeitavam ao erro em que o recorrente (o autor) alegadamente teria agido quando emitiu a procuração em causa a favor da ré BB.

Deste modo, inexistindo qualquer violação das regras de direito probatório, não há motivo para interferir no juízo emitido pela Relação quando alterou a decisão referente à matéria de facto, eliminando a referente ao alegado vício da vontade (erro) que teria afectado a sua vontade ou declaração quando passou a dita procuração, não sendo possível fazer reverter a seu favor o decidido, a esse propósito, pela 1ª instância.

2 – Passando, agora, à questão central colocada pelo recorrente, a respeitante à (in)validade da procuração que passou à ré BB, vê-se que a 1ª instância entendeu existir erro na declaração e, ao abrigo do artigo 247.º do Cód. Civil, anulou a procuração, enquanto a 2ª instância decidiu, ao invés, que a procuração não está inquinada.

O recorrente pugna naturalmente para que fique a subsistir a 1ª decisão, em substituição da ditada pela Relação, abonando-se, para o efeito, em considerações e argumentos ali tecidos, com especial incidência em sede de matéria de facto e convicção do julgador, que foram rebatidos, depois, no acórdão posto em crise, quando operou a modificação da matéria de facto provada, eliminando do seu acervo, como já dito, os factos em que assentava o erro na declaração constante da procuração. Consciente dessa realidade, o recorrente assestou baterias, procurando alvejar precisamente esses pontos factuais e, tendo aí naufragado, com manutenção da materialidade fáctica dada por assente pela Relação, não restam dúvidas de que, como bem equacionou e decidiu o acórdão recorrido, «não logrou o autor demonstrar a invocada desconformidade entre a vontade e a declaração prestada na procuração que outorgou», pelo que, mostrando-se esta válida, os subsequentes contratos celebrados pela ré BB, em sua representação, não se encontram contaminados.

Para melhor compreender essa decisão, que inteiramente se sufraga, interessa ter em consideração que a essência do diferendo que está na base da demanda respeita à procuração que, em 12 de Fevereiro de 2007 e autenticada no dia seguinte, o recorrente passou à ré BB - cfr. pontos C) e D) do elenco factual provado -, a quem conferiu poderes especiais para, nomeadamente, o representar junto de Cartórios Notariais, públicos ou privados, para em seu nome celebrar escritura de compra e venda, escritura de mútuo oneroso com hipoteca, escritura de hipoteca, escritura de compra e venda com hipoteca, de qualquer imóvel situado no Distrito de Faro, estendendo-se à celebração da compra e venda aludida no ponto F) do elenco factual provado, realizada em 27 de Novembro de 2008, e a subsequente revogação da procuração operada, como se alcança do ponto L) desse mesmo elenco factual, no dia 29 de Outubro de 2009.

Será, portanto, no âmbito dos poderes de representação conferidos através da procuração, em confronto com o período de vigência dos mesmos, que se encontrará a solução para a manutenção ou não da questionada venda do imóvel realizada pela ré BB.

Como se sabe, constitui principio basilar da «autonomia privada e da autodeterminação do homem que este, em vez de agir ele próprio, possa autorizar outrem para encontrar um resultado ou negociar um efeito que deve valer juridicamente»[6] e, nessa medida, as declarações negociais nem sempre são prestadas pelas próprias partes, podendo ser formuladas e manifestadas por outros que agem em vez das partes ou de uma delas.

É o que acontece na representação (artigo 258.º do Código Civil) em que há um representante que participa no tráfico jurídico negocial em nome de outrem (contemplatio domini), o representado, e os efeitos dos negócios por aquele concluídos produzem-se, directa e imediatamente, na esfera jurídica deste (dominus negotii)[7].

Uma das fontes do poder de representação é a procuração, definida pelo artigo 262.º do Código Civil como o ato pelo qual alguém (dominus) atribui a outrem (procurador), voluntariamente, poderes representativos.  Trata-se, portanto, de acto unilateral, por intermédio do qual, é conferido ao procurador o poder de celebrar negócios jurídicos em nome de outrem (dominus), em cuja esfera jurídica se vão produzir os seus efeitos (artigo 262.º do Código Civil)[8]. A concessão desses poderes de representação não é ilimitada. Está circunscrita ao âmbito dos poderes contidos na procuração, sob pena de, sendo tais poderes extravasados, existir abuso de representação.

O procurador actua como um intermediário, situação que comporta riscos para o representado, mas que lhe traz simultaneamente vantagens, sendo estas que o motivam a fazer-se representar na conclusão de negócios jurídicos por outrem – procurador – em vez de o fazer pessoalmente. Estes riscos correm naturalmente por conta de quem se faz representar.

No caso, o recorrente emitiu procuração em que autorizava a ré BB, sua procuradora, a celebrar escritura pública de venda de prédio localizado no distrito de Faro, o que se concretizou, como decorre do ponto F) do elenco factual provado, na venda realizada no dia 27 de Novembro de 2008. Tal procuração, tida por válida, por ter fracassado a demonstração do erro que alegadamente a inquinava, é revogável, nos termos do nº 2 do artigo 265.º do Código Civil, através de declaração negocial receptícia[9] que só se torna eficaz quando chega ao poder do destinatário ou dele é conhecida (artigo 224.º, n.º 1,  do Código Civil).

Tendo a revogação da procuração ocorrido a 29 de Outubro de 2009 - cfr. ponto L) do elenco factual provado - e a venda realizada a 27 de Novembro de 2008 – cfr. ponto F) desse elenco – é óbvio que nessa data a ré estava habilitada ainda com os poderes que o recorrente lhe confiara e, nessa medida, como bem equacionou e ajuizou o acórdão recorrido, os contratos celebrados, com base na procuração, não se mostram inquinados, nem pode ter lugar a sua resolução.

Acresce que, contrariamente ao alegado pelo recorrente, nada se apurou que configure a «burla» de que se considera vítima, sendo certo que a existir crime tal teria de passar sempre pelo seu apuramento e julgamento, no âmbito do processo criminal (e não na jurisdição cível, sede em que decorreu este processo), nem, por outro lado, os documentos para que genericamente remeteu permitem concluir que agiu em erro ou que na celebração dos negócios autorizados pela procuração, a ré BB (a procuradora) tenha exorbitado os poderes representativos ou tenha agido com animus nocendi ou sequer conluiada dolosamente com a ré CC.

Em suma, inexistem motivos para não considerar válida a procuração e a venda do prédio realizada, com base naquela, negócio que, frise-se, não se mostra contrário à lei, à ordem pública ou aos bons costumes (artigo 280.º do Cód. Civil).

Nesta conformidade, improcedem ou mostram-se deslocadas todas as conclusões do recorrente, a quem não assiste razão para se insurgir contra o decidido pela Relação, que não merece os reparos que lhe aponta, nem viola as disposições legais que indica.

IV – Decisão

Nos termos expostos, decide-se negar a revista e confirmar consequentemente o acórdão recorrido.

 Custas pelo recorrente.


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Anexa-se sumário do acórdão (art.ºs 663º, n.º 7, e 679º, ambos do CPC).

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Lisboa, 13 de Setembro de 2018

António Joaquim Piçarra (Relator)

Fernanda Isabel Pereira

Olindo Geraldes

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[1] Tinha a seguinte redacção: ”Quando o autor assinou foi-lhe dito apenas que dava poderes à ré BB para esta o representar nos Tribunais e em assuntos relacionados com o ex-marido desta e com os pais desse ex-marido”.
[2] Tinha a seguinte redacção: ”O autor estava convencido que a procuração apenas dava poderes à ré BB para esta usar nos Tribunais e eventualmente em escrituras relacionadas com património desta, do ex-marido e pais deste”.
[3] Tinha a seguinte redacção: ”Nunca foi vontade do autor vender o prédio referido em A)”.
[4] Tinha a seguinte redacção: ”A ré BB sabia que o autor não pretendia vender”.
[5] Tinha a seguinte redacção: ”E não possuía instruções do autor para vender pelo preço e condições constantes da escritura referida em F)”.
[6] Cfr. Heinrich Ewald Horster, in A parte Geral do Código Civil Português, Almedina, 6ª reimpressão, págs. 476 e 477.
[7] Cfr,a este propósito, João de Castro Mendes, in Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, edição da AAFDL, 1995, págs. 411 e 412, Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, pág. 240, Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, 7ª edição, págs. 276 e 278, e José de Oliveira Ascensão, in Direito Civil, Teoria Geral, Vol. II, 2ª edição, págs. 240 e 241.
[8] Cfr., neste sentido, Heinrich Ewald Horster, in A parte Geral do Código Civil Português, Almedina, 6ª reimpressão, págs. 483 e 484, Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, 7ª edição, pág. 296,  e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, in A Procuração irrevogável, Almedina, págs. 98 e Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, 1987, pág. 240.
[9] Cfr., neste sentido, Heinrich Ewald Horster, in A parte Geral do Código Civil Português, Almedina, 6ª reimpressão, pág. 484, Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, 7ª edição, pág. 305 e Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, 1987, anotação aos artigos 224º e 265º.