Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
12/05.8TBMTR-A.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO CRUZ
Descritores: LETRA DE CÂMBIO
AVAL
RELAÇÃO SUBJACENTE
OBRIGAÇÃO CAMBIÁRIA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/03/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Legislação Nacional: LEI UNIFORME LETRAS E LIVRANÇAS: ARTIGOS 17º, 32º, 43º E 47º; CÓDIGO CIVIL: ARTIGO 334º
Sumário :
I. O avalista responde da mesma maneira que o avalizado.
II. Desde que a letra não tenha saído das mãos do sacador primitivo ou a ele tenha tornado, o avalista pode opor ao sacador da letra as excepções que a este poderia opor o avalizado.
III. Só quando haja endosso da letra, é que não pode o avalista opor ao tomador as excepções que poderia opor o avalizado.
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

AA-Sociedade de Tratamento Industrial de Madeira, Ld.ª, com sede na Zona Industrial de S... R… N…, Viana do Castelo,
instaurou no Tribunal Judicial de Montalegre acção executiva para pagamento de quantia certa,
contra
BB e esposa CC, residente em G…, C…, Montalegre,
apresentando como títulos executivos
- seis letras de câmbio, sacadas pela Exequente e aceites pela firma “BB, Unipessoal, Ld.ª”, da qual o BB é o único gerente, e que nas referidas letras deu o seu aval pessoal à aceitante.
Foi então alegado que o Executado e a sua empresa estão em grave situação económica, tendo suspendido todos os pagamentos, e que as dívidas subjacentes às letras de câmbio que servem de fundamento ao requerimento executivo foram contraídas no exercício da actividade comercial do Executado marido, em proveito comum do casal.
Na execução não foi demandada a sociedade “BB, Unipessoal, Ld.ª”, que havia sido a aceitante das letras, e a favor de quem o ora Executado dera o seu aval.

O M.º Juiz julgou a executada CC parte ilegítima, absolvendo-a da instância.
Foi entretanto ordenada a penhora dos vários prédios nomeados como sendo pertencentes ao Executado avalista.

Este veio no entanto deduzir oposição à execução e à penhora:
Quanto à execução, defendeu-se o Executado, ora oponente, excepcionando o incumprimento ou cumprimento defeituoso da oposta (Exequente) no contrato de subempreitada, negócio subjacente às letras avalizadas, em que esta assumia a qualidade de subempreiteira, e no qual era empreiteiro a aceitante das letras (entidade por si avalizada) - a sociedade “BB, Ld.ª”.
Alegava que a referida sociedade, sublinha-se, não demandada na execução, recusou legitimamente pagar o preço titulado nas letras enquanto os defeitos da obra não fossem totalmente reparados pela Exequente.
Como entretanto o dono da obra (Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto), entidade que adjudicara a empreitada à referida sociedade “BB, Unipessoal, Ld.ª”, resolveu o contrato com esta sociedade, não pode esta exigir nem o ora oponente Executado que os defeitos sejam reparados, razão pela qual entende que haja lugar à redução do preço.
Quanto às penhoras, alegou a duplicação de descrições prediais e o conteúdo falso de uma outra.

A ora oposta (Exequente) pronunciou-se pela improcedência das oposições à execução e às penhoras.

Tanto a oposição à execução como às penhoras foram julgadas improcedentes.

O executado interpôs recurso de ambas as decisões.

A Relação veio a negar provimento ao agravo (oposição às penhoras) e a dizer que julgava “parcialmente procedente a apelação” (oposição à execução), ainda que em termos efectivos e reais tenha julgado improcedente a apelação e mandado prosseguir a execução. (fls. 395).
No corpo do Acórdão, a Relação explicitou a sua posição dizendo, em síntese, que por não terem as letras saído da mão do credor originário (sacador) e o avalista responder nos mesmos termos da entidade por si avalizada - no caso, a entidade sacada, aceitante da letra - , continuava-se dentro das relações imediatas, e, assim, o avalista ( BB) podia opor à portadora-sacadora das referidas letras (AA- subempreiteira) todos os meios de defesa que a aceitante (BB, Unipessoal, Ld.ª), podia opor aquela (no caso, à Exequente “AA, Sociedade de Tratamento Industrial de Madeiras, Ld.ª”) no negócio subjacente.
No entanto, - continuando a reportar-nos ao que foi exarado no Acórdão -, não pode o avalista sobrepor-se à avalizada (empreiteira) a respeito de determinar se, perante o cumprimento defeituoso da (sacadora) subempreiteira, opta pelo cumprimento integral da obrigação – reparação dos defeitos, pagando, em contrapartida, as quantias acordadas e tituladas, ou se pelo contrário, opta pela redução do preço, ou, até, a restituição de parte do preço já pago.

Continuando inconformado, veio o Executado interpor recurso, qualificado como Revista e com efeito devolutivo.
Terminou as alegações de recurso com as seguintes “conclusões”:

“1.º O Recorrente concorda com o entendimento sufragado no Acórdão recorrido quanto à questão do avalista da letra poder utilizar os mesmos meios de defesa que seria lícito ao aceitante opor ao sacador, não pretendendo recorrer quanto a este segmento do aresto.
2.º Como consequência deste entendimento, é lícito concluir que o exercício dos direitos do avalista/Recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 17° da LULL, não depende da posição adoptada pelo aceitante.
3.º O direito do avalista/Recorrente se defender perante as letras dadas à execução é totalmente independente do direito do aceitante, não funcionando apenas num segundo momento, depois de se saber se este último fez ou não algo.
4.º Perante alguns aspectos que o Acórdão recorrido considerou não provados, se se considerar que os mesmos são importantes para a boa decisão da causa, deverá ordenar-se a remessa dos autos à primeira instância para o seu conhecimento.
5.º O exercício imediato, incondicional e sem limitações de qualquer ordem por parte do Recorrente/avalista dos meios de defesa que o aceitante poderia opor ao portador da letra é o único entendimento que se coaduna com o disposto no artigo 17° da LULL.
6.º O Acórdão recorrido violou o disposto no artigo 17° da LULL.
TERMOS EM QUE deve o Acórdão recorrido ser revogado na parte em que conhece o mérito da causa, considerando-se que o Recorrente pode pedir a redução do preço da empreitada em face do cumprimento defeituoso do contrato de empreitada, julgando-se assim a oposição procedente, ou, se se entender não estarem apurados todos os factos necessários à boa decisão da causa, deverá ordenar-se a remessa dos autos à primeira instância para o seu conhecimento, assim se fazendo JUSTIÇA.”

Não houve contra-alegações.

II. Âmbito do recurso e fundamentação

II.-A) As questões

Tendo em conta o disposto nos arts. 684.º-3 e 690.º-1 do CPC e a matéria incluída nas conclusões das alegações que acima transcrevemos, vemos que as questões colocadas para nossa reapreciação são as seguintes:
a) Determinar se pode o avalista do aceitante defender-se contra o sacador de uma letra, quando o aceitante assume na relação causal a posição de empreiteiro sendo subempreiteiro o sacador, alegando o avalista o cumprimento defeituoso do contrato e exigindo por isso a redução do preço;
b) Determinar se é necessária a remessa dos autos às instâncias para ampliação da matéria de facto.


II.-B) Os factos


Foram considerados fixados pela Relação os factos seguintes:

“1. À "BB Unipessoal, Lda." foi adjudicada pela Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto a "Empreitada de Construção do Centro Hípico de Vinha de Mouros".
2. A consignação dos trabalhos foi efectuada em 01/09/2003.
3. Em 26 de Fevereiro de 2004, por escrito, a "BB Unipessoal, Lda." declarou ter em execução a empreitada de "Construção do Centro Hípico de Vinha de Mouros", em Cabeceiras de Basto, declarando adjudicar à exequente, ora oposta, que aceitou, pelo preço de € 160.000,00, a (sub)empreitada de fornecimento e montagem de uma estrutura de cobertura em madeira para o referido Centro.
4. A empreitada referida em 3. contemplava a entrega e montagem de estrutura de madeira melada colada, composta por cavaletes e vigas, com secção de 945x160 mm, madres com secções de 270 x115 mm e 225x115 mm colocadas entre cavaletes e vigas, com afastamento de l,22mm entre si, ferragens para fixação, tirantes metálicos, e fornecimento de painéis sandwich AA, e fornecimento e montagem de sub-telha Onduline, com acessórios, tratamento base das madeiras contra insectos e fungos, pintura interior e exterior e transporte e meios de auxílio à montagem.
5. Em 30/04/2004 e 28/05/2004 ( na matéria de facto está escrito 2005, como de resto ao longo de todo o processo, mas trata-se de lapso continuado, induzido pela própria petição de oposição à execução, em contradição com o documento para o qual remetia o artigo 52 desse articulado. – cfr. fls. 13 e 121), a Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto solicitou à "BB Unipessoal, Lda." a entrega do projecto de estrutura da cobertura e o respectivo termo de responsabilidade.
6. Em 05/05/2004 e 31/05/2004, a referida Câmara solicitou novamente os elementos referidos em 5., comunicando ao oponente que, em caso de não entrega, tomá-lo-iam em consideração do auto de medição dos trabalhos.
7. Em Junho de 2004, a estrutura de madeira começou a revelar um abaixamento.
8. Em 11/06/2004, a Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto - CMCB - solicitou à "BB Unipessoal, Lda." os elementos referido em 5. e deu-lhe a conhecer o abaixamento referido em 7.
9. Os elementos referidos em 5. foram entregues em 06/2004.
10. Em 01/07/2004, o projecto de estrutura da cobertura em madeira foi aprovado pela CMCB que declarou condicionar a aprovação ao solucionamento do abaixamento.
11. Com o decorrer do tempo, a estrutura de madeira foi apresentando um abaixamento e deformação mais acentuados.
12. Em 21/07/2004, a "BB Unipessoal, Lda."solicitou à ora oposta a apresentação de uma solução para o conserto do abaixamento, insistindo no pedido em 27/07/2004.
13. Em 05/08/2004, a CMCB exigiu à BB Unipessoal, Ld.ª a adopção de soluções técnicas para solucionar o abaixamento da estrutura.
14. Em 10/08/2004, a BB Unipessoal, Lda. insistiu no solucionamento do abaixamento.
15. Em 30/08/2004, à Exequente, ora oposta, é comunicado que a CMCB não recepcionou provisoriamente a estrutura e que não pagaria os trabalhos executados, também porque não haviam sido reparados o abaixamento e deformação da estrutura em madeira.
16. Em 07/10/2004, a CMCB renovou a exigência referida em 13. e, em 13/10/2004, a BB Unipessoal, Ld.ª insistiu no solucionamento do abaixamento junto da oposta e/ ou o envio de uma declaração de conformidade da execução do projecto da estrutura.
17. Em 15/12/2004 foi notificado à BB Unipessoal, Ldª. um auto de violação de prazos contratuais, com proposta de aplicação de multa, invocando-se, como um dos fundamentos, a pendência dos trabalhos de reparação da cobertura.
18. Em 14/01/2005, a CMBC aplicou à BB Unipessoal, Ld.ª. uma multa no valor de € 132.152,34, invocando o abaixamento na estrutura.
19. Em finais de Junho, início de Julho, a oposta deslocou um funcionário ao Centro Hípico, o qual concluiu que o abaixamento verificado se encontrava dentro dos valores definidos nas respectivas normas regulamentares.
20. Em 18/02/2005, no âmbito do proc. n.o 47/05.0 TBMTR, a BB Unipessoal, Lda. foi declarada em estado de insolvência.
21. A entrega do projecto de estrutura de madeira é, em regra, entregue no final da obra, para permitir a introdução das alterações que se fazem ao longo dos trabalhos.
22. No escrito referido em 3. está prevista a entrega das telas finais antes da recepção provisória dos trabalhos.
23. As deformações da cumieira da estrutura verificadas estão dentro dos valores admissíveis e expectáveis, de acordo com os regulamentos aplicáveis.
24. As deformações apresentadas são inestéticas.
25. A CMCB solicitou à oposta a apresentação de orçamento para reparação do abaixamento.
26. Na execução de que esta oposição é apenso foram juntas seis letras de câmbio, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, sacadas pela Exequente, e aceites pela firma BB, Unipessoal, Ld.ª.
27. O Oponente era o único sócio da dita firma, ora insolvente;
28. O Oponente deu o seu aval pessoal nessas letras;
29. O valor inscrito nessas letras, no total de € 72.975,00 ainda não foi pago à Exequente.”

II-C) O Direito

Estamos perante uma oposição à execução, cujos títulos são constituídos por Letras de câmbio, tendo como negócio subjacente um contrato de subempreitada, em que é empreiteira “BB, Unipessoal, Ld.ª” (aceitante nas letras, em favor de quem o ora oponente deu o seu aval) e subempreiteira a Exequente AA-Sociedade de Tratamento Industrial de Madeira, Ld.ª (sacadora nas mesmas), inserindo-se, por sua vez, o contrato de subempreitada num outro contrato em que a dona da obra é a Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto.
As referidas Letras destinaram-se a pagamento dos materiais e serviços prestados pela subempreiteira à empreiteira, sendo os avales dados como garantia desses pagamentos.
Perante a falta de pagamento, a Exequente veio a instaurar execução contra o Executado BB, que dera o aval à firma empreiteira com o mesmo nome e que nas Letras ocupava o lugar de Sacada-aceitante, sendo o Executado o único sócio e representante dela, mas não demandando a sociedade.

Pois bem:

De acordo com o disposto no art. 43.º da LULL, “O portador de uma letra pode exercer os seus direitos de acção contra os endossantes, sacador e outros co-obrigados (…)
In casu, a Exequente é portadora das Letras, não tendo elas saído da sua mão. Na relação cartular ocupa o lugar de sacadora e o Executado oponente é nas letras obrigado cambiário, dado nelas ter colocado o seu aval pessoal à aceitante (BB, Unipessoal, Ld.ª.
Todas as Letras se mostravam vencidas.
Pode por isso demandá-lo.

De acordo com os §§ 1.º e 2.º do art. 47.º da LULL,

“Os sacadores, aceitantes, endossantes ou avalistas de uma letra são todos solidariamente responsáveis para com o portador.
O portador tem o direito de accionar todas estas pessoas, individualmente ou colectivamente, sem estar adstrito a observar a ordem por que elas se obrigaram.
Assim, a Exequente podia demandar o avalista sem que demandasse a aceitante, em favor da qual o ora Executado oponente dera o aceite.

Nos termos do art. 32.º §1.º da LULL, “O dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada”

Conjugando agora os preceitos acima enunciados, isto significa, por um lado, que o avalista responde da mesma forma que a entidade por ele avalizada, que a sua obrigação é autónoma - não podendo escudar-se no benefício de prévia excussão - , o que, no plano concreto vem a traduzir-se no seguinte enunciado:
BB (avalista do aceitante) é responsável da mesma forma que a sociedade “BB, Unipessoal, Ld.ª” (aceitante) perante a “AA-Sociedade de Transformação Industrial de Madeira, Ld.ª, sacadora e portadora das Letras.

São características das letras a autonomia literalidade, e abstracção, o que significa que as Letras, como outros títulos de crédito, valem por si mesmos, nos exactos termos em que as obrigações nela vêm definidas e independentemente da relação causal que lhes deu origem (negócio jurídico subjacente).
Dentro destas características, dúvidas não podem restar que o ora Oponente (Avalista do aceitante) assumiu perante o Oposto-Executado (Sacador e ainda portador da letra - pois não a chegou a endossar -) a obrigação de pagamento da quantia nelas tituladas, no tempo e lugar indicados, nos mesmos termos em que a Aceitante a assumira.

Refere-nos no entanto o art. 17.º da LULL que

“As pessoas accionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador as excepções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador, ao adquirir a letra, tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor.”
Este preceito é mais uma afirmação dos princípios da autonomia, literalidade e abstracção, que subsiste independentemente da “causa debendi”, e por isso se diz que o negócio cartular é um negócio formal (1). No entanto, introduz-lhe uma explícita excepção, que é a do obrigado poder opor ao portador da Letra, que ao adquiri-la haja actuado de má fé, com intenção de prejudicá-lo.
Mas há outros casos em que o devedor pode opor ao portador excepções de direito material, para retirar aos títulos a força executiva que estes adquirem e porventura até podem vir a extinguir, total ou parcialmente a obrigação:
Desde logo, os casos em que o portador seja o originário sacador e os obrigados cambiários permaneçam sem alteração, uma vez que o art. 17.º da LULL está inserido no capítulo dedicado ao endosso, o que significa que a regra geral da inoponibilidade das excepções ao portador só tem campo de aplicação quando haja endosso e o sacador primitivo deixe de confundir-se com o portador.
Daí que, no mundo do Direito se tenha vindo a entender, como se pode ver designadamente nos Acórdãos mais recentes, que se considere admissível a possibilidade de oposição de excepções de direito material ao portador da Letra quando se esteja no restrito domínio das relações internas da obrigação cartular primitiva.(2)
Entendemos que, nessa situação, se está no domínio das relações imediatas.(3)

É certo que a relação entre avalista do aceitante e sacador se interpõe o avalizado, pelo que haja quem sustente que o avalista do sacado-aceitante não possa defender-se perante o sacador, opondo-lhe as excepções de direito material que o avalizado poderia opor-lhe, porque não está na relação sacador-sacado, aceitante-avalizado e vê no art. 32.º da LULL uma barreira intransponível, ao estabelecer que
“A obrigação (do avalista) se mantém, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.”

No entanto, essa posição, quando interpretada em termos rígidos, está a perder terreno no dia a dia dos Tribunais, e não deve continuar a sustentar-se tout court que assim seja sempre, pois as proibições estabelecidas no art. 17.º da LULL, dada a sua posição sistemática, tiveram e têm como pressuposto a existência de endosso, o que pressupõe, na generalidade das situações, a tomada das Letras por parte de quem era estranho ao negócio cartular primitivo.(4)
A razão principal desse regime assenta na necessidade de preservar a quem é estranho ao negócio e venha a tornar-se em portador da Letra, a certeza de que lhe não virão a ser opostas excepções assentes nas relações pessoais dos obrigados com o sacador ou com anteriores portadores, assim se dando segurança ao comércio jurídico a quem é terceiro estranho à convenção cartular, e reforçando nesse campo a garantia de pagamento com a existência do aval, mesmo que a obrigação seja nula por vício de forma, ainda que ficando subrogado nos direitos emergentes da letra contra a pessoa a quem dera o aval, no caso de a haver pago.

Já Fernando Olavo admitia, nas suas Lições de Direito Comercial que “ (…)Nos títulos que gozassem de abstracção, como as Letras, os direitos neles integrados viviam independentemente da causa, o que não queria dizer que esta não pudesse jamais ser invocada. O negócio jurídico causal poderia ser invocado nos mesmos termos em que entre as mesmas partes pudessem ser invocados os direitos decorrentes de vários negócios que tenham celebrado (…)” (5)
Já defendemos, inclusive, em Acórdão citado nas alegações do Recorrente, - e continuamos a sustentar a mesma tese - , que é inaplicável a proibição do art. 17.º da LULL a quem retorne à posição de tomador-sacador originário e, nessa posição, queira voltar a demandar os primitivos obrigados, pois tudo se passa entre esses obrigados como nunca tivesse saído desse restrito âmbito de contratantes no pacto.(6)

O art. 17.º, vale portanto, para as situações em que haja endosso, onde então, os obrigados não podem opor ao tomador as excepções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que, o portador, ao adquirir a Letra, tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor.

Aqui chegados, a questão que se coloca é a seguinte:

Pode o Oponente (Avalista do Sacado) defender-se perante o Oposto (Sacador), quando a obrigação causal se reporta a um contrato de subempreitada, que foi cumprida com defeitos, e assim contrapor ao sacador a existência desses defeitos, para impedir a prossecução da execução apenas contra si instaurada, enquanto não reduzido o preço?

A resposta não é fácil:
Antes de mais, porque não foi demandada a Avalizada (empreiteira), em situação de insolvência, que, de resto vira o seu afastamento pelo dono da obra (Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto), que quem em melhor situação estaria para se definir em que se traduziu o cumprimento defeituoso.
Em segundo, porque, mesmo que fosse demandada a Insolvente, através do seu Administrador, não podia este exigir que a Subempreiteira reparasse os defeitos, já que a Empreiteira (BB, Unipessoal, Ld.ª) havia sido entretanto afastada pela Dona da obra, a Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto.

Mas há um dado certo, que nos permite avançar para a decisão:
A obra subempreitada veio a acusar defeitos, que a Subempreiteira, apesar de instada pela Empreiteira (ausente na execução) não reparou, o que permitiria a esta defender-se, se estivesse na execução, exigindo àquela a redução do preço.
Numa palavra:
Tratava-se de uma excepção de direito material que a Empreiteira (sacada-aceitante) poderia opor à Subempreiteira (sacadora nas Letras).
Ora, se o Avalista da sacada-aceitante (BB) responde na mesma forma que a sua afiançada (art. 32.º § 1.º) , e está para com a AA (subempreiteira) ainda no domínio da relação cartular primitiva, confundindo-se nessa relação cartular o Tomador com o Sacador, sem interferência de qualquer estranho, não vemos que possa estar condicionada a defesa do Avalista do Sacado ao colete de forças do art. 17.º da LULL., o que leva, para não nos socorrermos de argumentário contraditório, a considerar a regra do §2.º do art. 32.º como regra geral, retirando no entanto dela a sua aplicabilidade aos casos em que também se mostram inaplicáveis as restrições às excepções do art. 17.º
Assim, considerando que o preço titulado nas Letras é o sinalagma da execução perfeita do contrato de subempreitada e considerando que a Subempreiteira (Sacadora nas Letras) não reparou os defeitos apesar de instada pela Empreiteira (Avalizada), pode o Avalista do Empreiteiro defender-se como se defenderia a Avalizada se estivesse na execução, ou seja, opondo à Exequente a mesma defesa, isto é, não reconhecendo a totalidade da dívida e exigindo a redução de preço.
Importa sublinhar, no entanto, que já assim não seria se entretanto as Letras tivessem saído das relações imediatas, pois nesse caso, o Avalista ou outra qualquer pessoa accionada das Letras teria de responder perante esse terceiro, não lhe podendo opor as excepções de direito material fundadas nas relações pessoais delas com o sacador ou outros portadores anteriores, a menos que ao adquiri-las, tivesse procedido conscientemente em detrimento do devedor. Era nesse campo que a autonomia, a literalidade e abstracção se colocava como sendo natureza e espelho dos títulos de crédito, aí se aplicando, sim, em toda sua dimensão, o § 2.º do art. 32.º da LULL.

A redução do preço envolve no entanto o reconhecimento da transformação de uma dívida determinada, líquida e exigível, que vem indicada nos títulos, por uma outra que, no contexto da presente execução, se transforma em ilíquida, indeterminada ainda que determinável, separando-se do título, e valendo apenas nos mesmos termos em que seja devida face à relação causal.
Ou seja, com a prova da execução defeituosa do contrato de subempreitada – e que foi provada nos embargos - a obrigação do Avalista adequa-se à mesma obrigação do Empreiteiro avalizado, pelo que o ora Exequente (Subempreiteiro) não pode exigir que o ora Executado lhe pague por um serviço que apresentou defeitos, ou seja, mais do que a quantia a que em termos da relação causal (e a que o referido aval servia de garantia) tivesse direito de exigir ao avalizado nesse negócio no pressuposto que o contrato havia sido bem cumprido.
Assim como o Prof. Vaz Serra admitiu que o responsável cambiário pode opor ao tomador a extinção parcial ou total da obrigação por já haver sido paga por outro obrigado(6), da mesma forma se argumenta que qualquer obrigado, actuando no domínio das relações internassublinha-se - , pode opor-lhe a excepção de execução defeituosa e que o credor se recusou a não reparar, a qual, a não ser atendida, viria a corresponder a um prémio ao infractor na exacta medida em que se revele excessiva ao que em termos ético-jurídicos havia sido acordado para ser cumprido pelo Exequente, e não veio a sê-lo.
Pode mesmo qualificar-se como abuso de direito pretender obter a cobrança de um título que se destinou a garantir o pagamento de uma obrigação sinalagmática sem defeitos, quando a prestação correlativa o foi sem que tal tivesse sido atingido ou reparado, apesar de instada pelo respectivo credor para o efeito visado.
Seria um acto absolutamente censurável, manifestamente ofensiva do sentimento ético da sociedade em que estamos inseridos, saber-se que a prestação da Exequente (Subempreiteira) foi defeituosamente cumprida e, apesar disso, admitir-se-lhe a atribuição de um prémio como se a tivesse cumprido sem defeitos, quando ela mesmo, depois de instada por diversas vezes se recusou a repará-los.- art. 334.º do CC.


III. Decisão


Assim posto, face à ainda indeterminação do montante líquido pelo qual o Executado (Avalista do Aceitante) deve responder perante o Sacador (quantum debitoris), concede-se parcial Revista, revogando o não obstante douto Acórdão recorrido e a Sentença, ordenando-se que os embargos prossigam para, em face dos defeitos que se encontram provados – e se mostram indicados na matéria de facto - , se apurar em liquidação, a quanto deve corresponder a obrigação exequenda, tendo em conta a redução do preço que será necessário efectuar, face ao cumprimento defeituoso da prestação causal sinalagmática.
Custas por recorrente e recorrida, a determinar a final, na proporção de vencidas; provisoriamente, são determinadas em igual medida.

Lisboa, 3 de Novembro de 2009

Mário Cruz (Relator)
Garcia Calejo
Hélder Roque


____________________________________________
(1) Pinto Coelho, Lições de Direito Comercial, 2.º, fascículo II, As Letras, 45
(2) Acs. do STJ de 2009.06.16, ref.ª 344/05.5TBBGC.A.S1, Fonseca Ramos, Cardoso de Albuquerque e Salazar Casanova; 2008.01.24, Arlindo Rocha, Oliveira Vasconcelos e Serra Baptista; Ac. De 2008.07.10, ref.ª 08B2107, Salvador da Costa, Ferreira de Sousa, Armindo Luís; Ac. de 2008.04.17, ref.ª 08A727, Silva Salazar, Nuno Cameira, Sousa Leite; Ac. de 2007.09.18, ref.ª 07A2673, de Mário Cruz, Faria Antunes, Moreira Alves; de 2006.12.14, ref.ª 06A2589, Sebastião Póvoas, Faria Antunes, Moreira Alves, todos in www.dgsi.pt., para além de outros indicados pelas partes.
(3) Esta mesma posição tem sido defendida ainda que por vezes com outros argumentos, em abundantes Acs deste Supremo Tribunal, podendo citar-se, a título meramente exemplificativo, o Ac. de 1994.03.08
2000.07.03, in Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do STJ, ano VIII, tomo II, pg. 140, assinado por Ribeiro Coelho, Garcia Marques e Ferreira Ramos, ainda que a propósito de um caso de livrança. E o de 2004.06.29, ref.ª 04A1459, in www. dgsi.pt
(4) Abel Pereira Delgado, “Lei Uniforme Sobre Letra e Livranças, Anotada, 5.ª ed, pg. 118
(5) Fernando Olavo, Lições de Direito Comercial, 1963, vol II, ed. da AAFDL, pg. 114, com a colaboração de Alberto Xavier e Martim de Albuquerque.
(6) Ac. RP de 2006.06.27, in www. dgsi.pt. ref.ª 0623005, do aqui Relator, Teresa Montenegro e Emídio Costa, ou, de uma forma mais desenvolvida, no Ac da mesma Relação de 2008.06.03, ref.ª 072722737, Canela Brás, Maria das Dores Eiró e Anabela Dias da Silva.
(7) Vaz Serra, RLJ, 113.º-186, citado nos Acs da RP de 2006.11.14, ref.ª 06255711, (Vieira da Cunha, José G. P. da Silva e Maria das Dores Eiró e de 2006.11.29, Henrique Araújo, Alziro Cardoso e Vieira da Cunha, ambos in www.dgsi.pt, que no entanto, na parte final dos respectivos Acórdãos, e salvo o devido respeito, um tanto ou quanto contra a corrente argumentativa que estavam a seguir, acabaram por divergir da solução aqui indicada, colando-se à interpretação estritamente literal do § 2.º do art. 32.º da LULL, postergando a indissociabilidade dessa previsão aos casos excepcionais em que a inoponibilidade das excepções previstas no art. 17.º da LULL não funciona.