Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B2490
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARAÚJO BARROS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
REQUISITOS
FUNÇÃO JURISDICIONAL
DECISÃO JUDICIAL
REVOGAÇÃO
TRIBUNAL SUPERIOR
Nº do Documento: SJ200510200024907
Data do Acordão: 10/20/2005
Votação: UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. O artigo 22º da Constituição da República Portuguesa consagra o princípio da responsabilidade patrimonial directa das entidades públicas por danos causados aos cidadãos, sendo inequívoco que no seu âmbito estão abrangidos também os actos dos titulares dos órgãos jurisdicionais, ainda que os titulares desses órgãos possam não ser civilmente responsáveis (art. 216º, nº 2, da Constituição).
2. Assim, e para além dos casos em que se consagra expressamente o dever de indemnização a cargo do Estado (arts. 27°, n° 5, e 29°, n° 6, da Constituição - privação ilegal da liberdade e erro judiciário), há-de entender-se que a responsabilidade do Estado-Juiz pode e deve estender-se a outros casos de culpa grave, designadamente no que respeita a grave violação da lei resultante de negligência grosseira, afirmação ou negação de factos cuja existência ou inexistência resulta inequivocamente do processo, adopção de medidas privativas da liberdade fora dos casos previstos na lei, denegação de justiça resultante da recusa, omissão ou atraso do Magistrado no cumprimento dos seus deveres.

3. Todavia, os pressupostos da ilicitude e da culpa, no exercício da função jurisdicional susceptível de importar responsabilidade civil do Estado, conforme o artigo 22º da Constituição, só podem dar-se como verificados nos casos de mais gritante denegação da justiça, tais como a demora na sua administração, a manifesta falta de razoabilidade da decisão, o dolo do juiz, o erro grosseiro em grave violação da lei, a afirmação ou negação de factos incontestavelmente não provados ou assentes nos autos, por culpa grave indesculpável do julgador.

4. Isto é, para o reconhecimento, em concreto, de uma obrigação de indemnizar, por parte do Estado, por facto do exercício da função jurisdicional, não basta a discordância da parte que se diz lesada, nem sequer a convicção que, em alguns processos, sempre será possível formar, de que não foi justa ou melhor a solução encontrada: impõe-se que haja a certeza de que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso não teria julgado pela forma a que se tiver chegado, sendo esta inadmissível e fora dos cânones minimamente aceitáveis.

5. A mera revogação de uma decisão judicial não importa, à partida, um juízo de ilegalidade ou de ilicitude, nem significa que a decisão revogada estava errada; apenas significa que o julgamento da questão foi deferido a um Tribunal hierarquicamente superior e que este, sobrepondo-se ao primeiro, decidiu de modo diverso.

6. Ainda que se admita que a actividade jurisdicional se enquadra no âmbito da responsabilidade do Estado por facto lícito (artigos 22º da Constituição e 9º, nº 1, do Dec.lei nº 48.051) só existirá obrigação de indemnizar se, além do mais, se provar que a Administração tenha lesado direitos ou interesses legalmente protegidos do particular, fora dos limites consentidos pelo ordenamento jurídico.

7. Em todo o caso, a prova, quer a existência do dano, quer do nexo de causalidade adequada entre o acto e o dano, incumbe ao lesado, nos termos gerais aplicáveis à responsabilidade civil extracontratual (artigo 342º, nº 1, do C.Civil).

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


"Empresa-A" instaurou, no Tribunal Judicial de Santarém, acção declarativa, com processo ordinário, contra o Estado Português, pedindo que este seja condenado a pagar-lhe a quantia de 126.000.000$00, acrescida de juros de mora, desde a data da citação e ainda na quantia que se liquidar em execução de sentença.

Para tanto alegou que:

- a Repartição de Finanças de Santarém, no âmbito de um processo de execução fiscal, penhorou um prédio urbano de que era proprietária o qual, em venda por propostas em carta fechada, foi adjudicado a AA;

- a pedido deste, foi pelo Tribunal Tributário de 1ª Instância de Santarém deferida a entrega daquele prédio, decisão de que a autora interpôs recurso, a que foi atribuído efeito devolutivo;

- o Tribunal Central Administrativo declarou incompetente em razão da matéria aquele Tribunal Tributário para conhecer daquela pretensão do referido AA, o que gera a ilegalidade da sentença do Tribunal Tributário;

- não fora a sentença do Tribunal Tributário, o autor poderia ter invocado o direito de retenção com fundamento em benfeitorias e utilizado o processo previsto no artigo 929º do C.Proc.Civil;

- a execução da referida sentença causou-lhe prejuízos de 126.000.000$00, correspondentes a benfeitorias que havia feito no prédio, perda do direito ao respectivo trespasse , bem como à cessação da sua actividade comercial e do recebimento de rendas pelo arrendamento de um pavilhão do mesmo prédio.

Citado, o Estado contestou, através do M° P°, excepcionando a prescrição do alegado crédito e impugnando a materialidade alegada pela autora,.

Em réplica, a autora defendeu o indeferimento da invocada excepção.

Exarado despacho saneador, julgada improcedente a excepção, foram seleccionados os factos assentes e os controvertidos.

Efectuado julgamento, com decisão acerca da matéria de facto controvertida, foi proferida sentença a absolver o réu Estado Português do pedido.

Inconformada apelou a autora, sem êxito embora, porquanto o Tribunal da Relação de Évora, em acórdão de 3 de Março de 2005, julgou improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.

Interpuseram, então, os réus recurso de revista, pugnando pelo respectivo provimento.

Contra-alegando defende o recorrido a justeza do julgado.

Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, corridos os vistos, cumpre decidir.

Nas alegações do recurso formulou a recorrente as conclusões seguintes (sendo, em princípio, pelo seu teor que se delimitam as questões a apreciar - arts. 690º, nº 1 e 684º, nº 3, do C.Proc.Civil):

1. O acórdão recorrido é nulo, nos termos do disposto no artigo 668°, 1, d), do C.Proc.Civil, na medida em que não aprecia e decide todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações de recurso apresentadas pela recorrente, mormente as conclusões número 1, 2, 3 e 7.

2. A decisão do Tribunal Tributário é ilegal, na medida em que foi proferida com violação das normas legais relativas à competência dos Tribunais em razão da matéria: aquele Tribunal não decidiu no uso de um poder legalmente conferido, mas sim abusando dos seus poderes, a despeito das limitações legais impostas.

3. Ao assim não considerar, o Tribunal a quo não interpretou nem aplicou devidamente as normas legais pertinentes, nomeadamente os artigos 101º e 103° do Código de Processo Civil, e decidiu em violação do artigo 22° da Constituição Portuguesa.

4. A interpretação e aplicação daquelas normas processuais, tal como constam do acórdão recorrido, implica a respectiva inconstitucionalidade por violação do artigo 22° da Constituição da República Portuguesa.

5. O acórdão recorrido deveria ter interpretado e aplicado o conceito de culpa em causa no artigo 487° do Código Civil, no sentido de o considerar verificado, uma vez que um Tribunal Tributário que se considera competente para apreciar um pedido de entrega judicial de coisa decide contra a lei, acarreta o funcionamento anormal dos órgãos judiciais e denota desconhecimento do Direito.

6. Os danos sofridos pela recorrente estão demonstrados nos autos, conforme factos provados n°s 13 a 18. Existe pois uma errada valoração e subsunção dos factos provados às normas jurídicas aplicáveis.

7. A posição da recorrente enquanto possuidora e locadora manteve-se até à execução ilegal, louvada numa sentença incompetente, sendo certo que até essa data a recorrente gozava das protecções que lhe são conferidas pelos artigos 1273° do Código Civil e 929° do Código de Processo Civil.

8. O prejuízo da recorrente traduziu-se no valor do imóvel acrescido do valor das benfeitorias e do trespasse, subtraído o valor das dívidas, e inclui ainda a perda de clientes e encomendas, bem como do respectivo aviamento comercial. Existem, portanto, factos provados que impõem uma decisão diversa da recorrida, no sentido da real verificação de danos.

9. Estão, pois, verificados todos os pressupostos de que depende a obrigação de indemnizar por parte do Estado, a título de responsabilidade civil extracontratual.

São os seguintes os factos que vêm dados por provados:

i) - na Repartição de Finanças de Santarém correu termos contra a autora o processo de execução fiscal n.° 93/101191.0;

ii) - nesse processo foi penhorado o prédio urbano pertencente à autora, inscrito na matriz sob o art. 1833º, da freguesia de S. Nicolau, concelho de Santarém, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santarém, sob o n° 603/210391, sito em Rego dos Mansos, composto por edifício de rés-do-chão, destinado a fábrica de móveis, com dois compartimentos para arrecadações com 123 m2 e 18 m2 e uma secção de pavimento intermédio para escritórios, recepção, sanitários e vestiários, com a área coberta de 1.052 m2 e logradouro com 4.900 m2 confrontando de Norte com BB, Sul com CC, Nascente com Estrada e Poente com Herdeiros de Santa Marta;

iii) - este prédio foi adjudicado a AA, por proposta em carta fechada;

iv) - foi emitido o título de adjudicação a favor do comprador, depois de satisfeito o pagamento do preço e encargos legais;

v) - por apenso àquele processo de execução fiscal, o comprador requereu ao Tribunal Tributário de 1ª Instância de Santarém a entrega judicial do bem adjudicado, alegando que essa entrega não se mostrava efectuada pela executada, aqui autora, e pelo fiel depositário;

vi) - por sentença proferida no dia 25 de Novembro de 1996, no processo n° 4/96, do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Santarém, foi ordenada, além do mais, a efectiva entrega do prédio ao comprador, ficando o Chefe da Repartição de Finanças de Santarém mandatado para requerer o auxílio da força policial e proceder ao arrombamento e demais diligências necessárias ao efectivo empossamento daquele bem;

vii) - a autora, em 10 de Dezembro de 1996, ao abrigo do disposto nos arts. 667° e 669° al. a) do Código de Processo Civil, requereu a rectificação de erro material e a aclaração da sentença;

viii) - tendo sido os autos conclusos, foi proferido, em 12/12/1996, despacho do seguinte teor: "Nada a esclarecer, que não conste do texto da decisão";

ix) a autora recorreu da sentença referida em vi);

x) - o acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo, datado de 9 de Dezembro de 1997, concedeu provimento ao recurso, revogou a decisão recorrida e julgou o Tribunal Tributário de 1ª Instância de Santarém incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido formulado no processo n° 4/96;

xi) no dia 6 de Janeiro de 1997, a autora foi desapossada do seu prédio, em cumprimento da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de 1ª Instância de Santarém, de 25 de Novembro de 1996, tendo sido lavrado o respectivo auto de arrombamento;

xii) - até à data em que foi efectuada a venda a que se alude em iii), as dívidas da autora quer à Administração Fiscal, quer a outras entidades, ascendia a 219.082,51 Euros (43.922.099$00);

xiii) - posteriormente à aquisição do prédio identificado em ii), a autora edificou nele três pavilhões industriais destinados a carpintaria e indústria de móveis, sendo um com a área coberta de 1.000 m2 e cada um dos outros com a área coberta de 500 m2;

xiv) - a autora levou a efeito terraplanagens e fundações, empregando betão armado e alvenaria, colocou pavimentos e cobertura novos, no que gastou 274.340,00 Euros (55.000.000$00);

xv) a autora equipou os pavilhões com equipamentos de ar comprimido e instalações de aspiração com os respectivos motores, no valor de 49.879,79 Euros (10.000.000$00);

xvi) a autora dotou os pavilhões de sistemas novos de instalação eléctrica, água, esgotos e telefone, no que gastou mais de 4.987,98 Euros (1.000.000$00);

xvii) as referidas obras, instalações e equipamentos não podem ser separados do imóvel sem se deteriorarem e valorizaram o prédio em valor idêntico à quantia despendida na sua realização;

xviii) - a autora tinha arrendado à firma "Empresa-B" um pavilhão com máquinas de carpintaria pela renda mensal de 498,80 Euros (100.000$00);

xxix) - após a venda referida em iii), a autora não mais recebeu as rendas;

xx) - após a venda referida em iii), a autora ficou privada das suas instalações fabris e viu-se compelida a cessar a sua actividade;

xxi) após a venda referida em iii), a autora perdeu os seus clientes habituais e potenciais, nomeadamente as firmas "Empresa-C", "Empresa-D", "Empresa-E" e "Empresa-F";

xxii) - à data da venda referida em iii), a autora tinha encomendas em carteira de móveis de cozinha, feitas pela firmas "Empresa-E" e "Empresa-C", as quais não pôde satisfazer;

xxiii) - a autora desenvolvia a indústria de fabrico de móveis licenciada pelo Ministério da Indústria e Energia e estava preparada para o fabrico de móveis de cozinha em série, destinados nomeadamente à construção social;

xxiv) - a autora cessou os contratos de trabalho com os seus trabalhadores, os quais chegaram a atingir o número de trinta;

xxv) - actualmente, a autora não tem quaisquer trabalhadores ao seu serviço;

xxvi) - o volume de vendas da autora foi de 238.592,32 Euros (47.833.465$00) em 1994, de 63.965,60 Euros (12.823.844$00) em 1995, de 99.672,74 Euros (19.982.590$00) em 1996 e de 12.038,40 Euros (2.413.483$00) em 1997;

xxvii) - o valor do trespasse do estabelecimento da autora não é inferior ao valor do prédio após a realização das obras.

Sustenta, antes de mais, a recorrente, que o acórdão recorrido é nulo por se não ter pronunciado acerca das questões suscitadas nas conclusões 1, 2, 3 e 7 das alegações que produziu na apelação da sentença da 1ª instância.

Tal nulidade, resultante da violação do comando do artigo 660º, nº 2, do C.Proc.Civil, segundo o qual "o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pelo solução dada a outras", consistiria na omissão de pronúncia, prevenida na al. d) do nº 1 do art. 668º do mesmo diploma.

Desde logo, há que interpretar em termos exactos a expressão questões utilizada na redacção do nº 2 do citado art. 660º. Tais questões são apenas aquelas que suscitam a apreciação quer a causa de pedir apresentada quer o pedido formulado.

Com efeito, "resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito (art. 511-1) as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art. 664) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas". (1)

Assim, "não enferma da nulidade da 1ª parte do nº 4 (redacção do Código de 1939) o acórdão que não se ocupou de todas as considerações feitas pelas partes, por o tribunal as reputar desnecessárias para a decisão do pleito. São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão". (2)

Ora, o acórdão recorrido assume esta mesma posição quando, ao iniciar a análise do mérito jurídico da apelação, afirma que "não há que apreciar todos os argumentos aduzidos pelas partes", cingindo-se, portanto, a actividade do tribunal a "decidir se estão verificados os pressupostos de responsabilidade civil para que o Estado possa e deva ser condenado na indemnização peticionada pela autora" (fls. 649).

E, na sequência, fazendo o elogio da sentença da 1ª instância, cuja motivação de direito inteiramente sufraga, acrescenta algumas razões que considera decisivas - e se nos afiguram mais do que suficientes - para sustentar a solução a que chega de confirmar a sentença recorrida.

Poderá, é certo, não ser aquela, vista a interpretação e aplicação da lei aos factos, a melhor solução. Todavia, se assim acontece, estaremos já no domínio do erro de julgamento que não perante a nulidade invocada pela recorrente.

Nulidade de que, como parece claro, o acórdão não padece.

Importa, em seguida, apreciar a única questão de fundo concretamente suscitada pela recorrente, que é a de averiguar se ao Estado incumbe ou não a obrigação de indemnização por acto praticado por um seu órgão (o Tribunal Tributário de Santarém).

Vejamos, então.

Visa, com esta acção, a autora obter indemnização por danos que, em seu entender, sofreu no seu património em consequência de um acto de gestão pública do Estado (praticado no exercício da função judicial), acto este que situa, se atentarmos no pedido e na causa de pedir, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual por acto ilícito.

Com efeito, com tal desiderato, alegou na petição inicial que, não fora a sentença (ilegal) que ordenou a entrega do imóvel ao adquirente proferida por um Tribunal que para o efeito não era competente, sentença ainda executada antes da sua revogação pelo Tribunal superior (dado que ao recurso que dela interpôs foi atribuído efeito devolutivo) poderia ter invocado o direito de retenção previsto no art. 754° do Código Civil e usado o direito de deduzir embargos com fundamento em benfeitorias, consagrado no art. 929° do Código de Processo Civil: como tal não sucedeu, sofreu graves prejuízos, que enuncia.

Preceitua o artigo 22º da Constituição da República Portuguesa, que "o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem".

Esta norma consagra o princípio da responsabilidade patrimonial directa das entidades públicas por danos causados aos cidadãos, sendo "um dos princípios estruturantes do estado de direito democrático, enquanto elemento do direito geral das pessoas à reparação dos danos causados por outrem". (3)

Sendo inequívoco - dado que a Constituição se refere, sem quaisquer restrições, a actos ou omissões praticados no exercício das suas funções pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes - que no seu âmbito estão abrangidos também os actos dos titulares dos órgãos jurisdicionais, ainda que os titulares desses órgãos possam não ser civilmente responsáveis (art. 216º, nº 2, da Constituição). (4)


Tratando-se aí, todavia, "da previsão de direitos de natureza análoga a direitos fundamentais, desfruta o referido artigo 22º da lei fundamental, à sombra do artigo 18º, nº 1, de aplicabilidade directa, independente de mediação normativa institucional, nesta medida pressupondo, todavia, complementar recurso aos princípios gerais da responsabilidade civil, envolvendo peculiaridades concernentes à ilicitude e à culpa que vão implicadas na específica natureza da actividade jurisdicional". (5)

Assim, e para além dos casos em que se consagra expressamente o dever de indemnização a cargo do Estado (arts. 27°, n° 5, e 29°, n° 6, da Constituição - privação ilegal da liberdade e erro judiciário), há-de entender-se que a responsabilidade do Estado-Juiz pode e deve estender-se a outros casos de culpa grave, designadamente no que respeita a grave violação da lei resultante de negligência grosseira, afirmação ou negação de factos cuja existência ou inexistência resulta inequivocamente do processo, adopção de medidas privativas da liberdade fora dos casos previstos na lei, denegação de justiça resultante da recusa, omissão ou atraso do Magistrado no cumprimento dos seus deveres. (6)

Todavia, se bem que a obrigação de indemnizar por parte do Estado pressuponha sempre a verificação dos requisitos previstos na legislação civil: o facto (comissivo ou omissivo), a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre a conduta e o dano, certo é que "alguns desses pressupostos podem assumir um enfoque diferente quando se discute a responsabilidade do Estado, por contraposição ao enfoque resultante da área civil. Tal acontecerá, por exemplo, com a ilicitude e com o nexo de causalidade". (7)

Retomando o discurso, "assume efectivamente, proeminência no exercício desta função (jurisdicional) o parâmetro da independência dos tribunais e da subordinação do juiz à Constituição, à lei e aos juízos de valor legais que brotam do artigo 203º do diploma fundamental e do artigo 4º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, propiciando compreensivelmente divergências de interpretação e aplicação aos casos da vida; e podendo similares assintonias emergir no exercício da garantia de reapreciação das decisões judiciais, em via de recurso, quando o tribunal hierarquicamente superior sobrepõe um diverso julgamento da questão ao tribunal inferior, não é só por isso que pode legitimar-se um juízo material de verdade a respeito daquele e de erro quanto a este outro pólo da relação de supra-ordenação. Assim, os pressupostos da ilicitude e da culpa, no exercício da função jurisdicional susceptível de importar responsabilidade civil do Estado, conforme o artigo 22º da Constituição, só podem dar-se como verificados nos casos de mais gritante denegação da justiça, tais como a demora na sua administração, a manifesta falta de razoabilidade da decisão, o dolo do juiz, o erro grosseiro em grave violação da lei, a afirmação ou negação de factos incontestavelmente não provados ou assentes nos autos, por culpa grave indesculpável do julgador". (8)

É que "a autonomia na interpretação do direito e a sujeição exclusiva às fontes de direito jurídico-constitucionais são manifestações essenciais do princípio da independência dos juízes", pelo que "os actos jurisdicionais de interpretação de normas de direito e de valoração jurídica dos factos e das provas, núcleo da função jurisdicional são insindicáveis". Em consequência, "o erro de direito praticado pelo juiz só poderá constituir fundamento de responsabilidade civil quando, salvaguardada a essência daquela função jurisdicional, seja grosseiro, evidente, palmar, indiscutível, e de tal modo grave que torne a decisão judicial uma decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas". (9)

Dizendo de outro modo, "para o reconhecimento, em concreto, de uma obrigação de indemnizar, por parte do Estado, por facto do exercício da função jurisdicional, não basta a discordância da parte que se diz lesada, nem sequer a convicção que, em alguns processos, sempre será possível formar, de que não foi justa ou melhor a solução encontrada: impõe-se que haja a certeza de que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso não teria julgado pela forma a que se tiver chegado, sendo esta inadmissível e fora dos cânones minimamente aceitáveis". (10)

Ademais, no que, em concreto, diz respeito ao prejuízo causado pela actividade jurisdicional, isto é, por actos praticados pelos tribunais, rege o Dec.lei nº 48.051, de 21 de Novembro de 1967 (11) (12), sendo que "nesta área de actividade de gestão pública, o Estado responde civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses resultantes, não só de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício (artigo 2º, nº 1, do Dec.lei nº 48.051) como também de factos ilícitos praticados em idênticas circunstâncias (artigo 9º, nº 1, do mesmo diploma legal". (13)

Ainda no campo dos factos ilícitos, o art. 3° do mesmo diploma refere-se à responsabilidade dos próprios titulares do órgão e agentes administrativos, quando excederem os limites das suas funções ou se, no desempenho destas e por sua causa, tiverem procedido dolosamente, sendo, neste último caso, a pessoa colectiva solidariamente responsável com o titular do órgão ou agente (n°s 1 e 2).

Sendo certo que, para tal efeito, se consideram ilícitos "os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração" (art. 6°).

Feitas estas considerações, cremos poder concluir que o acto jurisdicional aqui em causa (sentença do Tribunal Tributário de Santarém que ordenou a entrega do imóvel adjudicado ao respectivo adquirente) não sofre de ilegalidade, nem, consequentemente, reveste a natureza de acto ilícito.

Infere-se da petição inicial que a autora identifica a ilicitude com a invocada ilegalidade da decisão, na medida em que foi proferida por um Tribunal incompetente (assim se decidiu no tribunal superior, que a revogou).

Todavia, e desde logo, a revogação de uma decisão judicial não importa, à partida, um juízo de ilegalidade ou de ilicitude.

Na verdade, como se entendeu no Ac. TC n° 90/84 (14)

, " (...) não perderá tal despacho (o acto de um juiz) o carácter de um acto judicial lícito, pois que proferido no uso de uma competência legal (...) e com respeito pelos princípios deontológicos que regem o exercício da função judicial. É que os recursos judiciais visam apenas o controlo material do conteúdo das decisões e não o controlo funcional da conduta dos juízes. Ou seja: visam permitir que a questão contenciosa seja reapreciada por outro tribunal, suposto melhor qualificado ou habilitado para o seu julgamento, mas sem que tal reapreciação afecte a legitimidade funcional da decisão do tribunal inferior (...): este tribunal, tal como o tribunal de recurso, não deixou de exercer a função que constitucionalmente lhe cabe de administrar a justiça (art. 205° da CRP) com plena e integral independência (art. 208°, idem), isto é, a função de dizer o direito (tanto que, não fora o recurso, e a sua definição do direito do caso teria adquirido carácter definitivo). A revogação da decisão do tribunal inferior apenas significa que o tribunal de recurso emitiu sobre o facto ou sobre o direito um juízo diverso do daquele (...), e que este segundo juízo vai prevalecer, obviamente, sobre o primeiro".

Mas, sendo assim, continua aquele Acórdão, "o que teremos é a exigência ao Estado de uma indemnização por danos causados pelo acto de um juiz agindo licitamente em tal veste - ou seja, por um acto lícito do poder público, enquanto poder ou função judicial".

Idêntica posição é defendida no Ac. STJ de 08/07/97 (15) .

onde se entendeu, além do mais, que "sabido, como é, que as suas características de generalidade e abstracção distanciam cada vez mais a lei dos casos da vida, e considerando a multiplicidade de factores, endógenos e exógenos, determinantes da opção final que o Juiz toma (...), bem se compreende que seja com grande frequência que se manifestam sobre a mesma questão opiniões diversas, cada uma delas capaz de polarizar grande adesão, e com isso se formando correntes jurisprudenciais das quais, se se pode ter a certeza de que não estão ambas certas, já difícil ou impossível será assentar em qual está errada. Daí que a própria reapreciação de decisões judiciais pela via do recurso não signifique, em caso de revogação da decisão recorrida, que esta estava errada; apenas significa que o julgamento da questão foi deferido a um Tribunal hierarquicamente superior e que este, sobrepondo-se ao primeiro, decidiu de modo diverso".

Desta forma, poderá dizer-se que, in casu, a decisão do Tribunal Tributário de Santarém, proferida no uso de um poder legalmente conferido, não enferma de ilegalidade e, como tal, não é ilícita.

Não se esquece que a revogação dessa decisão pelo tribunal superior pode implicar uma alteração do statu quo ante, mormente nos casos em que a sentença ou despacho foi executado antes de ser conhecida a decisão do tribunal ad quem. Daí não decorre, contudo, que ela seja ilegal, como já vimos.

Aliás, o próprio legislador, ponderando os interesses em causa, optou por atribuir ao recurso o efeito devolutivo, permitindo dessa forma a imediata execução do decidido (art. 326° do Código de Processo Tributário então vigente). (16)

Sabendo o legislador que, fixando esse efeito ao recurso, abria as portas à imediata execução da decisão, optou, uma vez ponderados os interesses em conflito, por proteger em primeiro lugar os cidadãos que viram os seus direitos acautelados pela mesma, em detrimento, pelo menos nessa fase, das expectativas, quiçá legítimas, da parte contrária.

Por último, ainda que se admita que a decisão revogada é ilegal, daí não resulta de forma automática que seja ilícita.

Com efeito, "o facto de se falar em ilicitude, concepção objectiva e concepção subjectiva da ilicitude, não impõe uma transferência global destes conceitos, tais como são entendidos no âmbito civilístico, para o direito público. Ilícito civil administrativo e ilícito civil podem não coincidir. No nosso direito positivo, facilmente se constata que o ilícito definido no art. 6° do Decreto-Lei n° 48051 é mais amplo que o ilícito civil definido no art. 483° do Código Civil. Cremos, porém, que nos devemos precaver contra a completa equiparação da ilegalidade à ilicitude, possivelmente sugerida pela redacção do citado art. 6° do Decreto n° 48051, ao dizer que se consideram ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis. A violação dos preceitos jurídicos não é, por si só, fundamento bastante da responsabilidade. Quer se exija a violação de direitos subjectivos, quer a violação dum dever jurídico ou funcional para com o lesado, quer ainda uma falta da administração, faz-se intervir sempre um elemento qualificador e definidor de uma relação mais íntima do indivíduo prejudicado para com a administração do que a simples legalidade e regularidade do funcionamento dos órgãos administrativos". (17)

Assim, para haver obrigação de indemnizar é necessário, além do mais, que a Administração tenha lesado direitos ou interesses legalmente protegidos do particular, fora dos limites consentidos pelo ordenamento jurídico. É que a função principal da responsabilidade civil é a de reparar danos e não a de sancionar condutas.

Ora, no caso em apreço a autora limitou-se a alegar que a decisão proferida pelo Tribunal Tributário é ilegal, mas nada disse sobre a existência do referido elemento qualificador da relação que estabeleceu com a administração fiscal.

Aliás, resulta dos factos provados e do próprio processo de execução fiscal (cfr. a certidão dele extraída e junta aos autos) que entre o Estado e a autora foi estabelecida uma relação igual a tantas outras, relação essa que se fundou no incumprimento de obrigações tributárias e para-fiscais. Nada nela se surpreende que a possa destacar das restantes execuções fiscais e que tome de tal modo singular e especial em confronto com outras situações que os operadores judiciários conhecem.

Faltaria, sempre, por isso, o requisito da ilicitude, constitutivo da obrigação de indemnizar com fundamento na responsabilidade civil extracontratual do Estado.

Donde, o recurso não pode proceder, havendo que confirmar a decisão recorrida (porquanto a análise das demais questões suscitadas - existência de dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano se encontra prejudicada pela solução a que se chegou quanto à inexistência de ilicitude).

Certo é, porém, que se poderia considerar, na situação sub judice, um caso de responsabilidade civil do Estado por actos lícitos.

Tal como se refere no nº 1 do art. 9º do Dec.lei nº 48.051, "o Estado e demais pessoas colectivas públicas indemnizarão os particulares a quem, no interesse geral, mediante actos administrativos legais ou actos materiais lícitos, tenham imposto encargos ou causado prejuízos especiais e anormais".

"A responsabilidade civil do Estado por actos lícitos constitui, indiscutivelmente, um corolário do princípio do Estado de direito: o princípio do Estado de direito obriga, como lembra o Tribunal Constitucional, a indemnizar os danos resultantes de actos lesivos de direitos - cfr. Acórdão TC nº 131/88, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 48º, Dezembro de 1998, pags. 895 e segs.) e Acórdão TC nº 52/90 (Diário da República, I Série, de 30 de Março de 1990)" (18)

Sendo que "o texto constitucional não faz depender a responsabilidade das entidades públicas do carácter ilícito dos factos causadores dos danos. É certo que a referência à responsabilidade solidária das entidades públicas e dos titulares dos órgãos, agentes ou funcionários aponta, em primeiro lugar, para as hipóteses de danos derivados de comportamentos (acções ou omissões) ilícitos dos agentes públicos, pois só nesse caso se justifica a responsabilização destes. Mas o âmbito normativo-material do preceito não pode deixar de abranger também as hipóteses de responsabilidade do Estado por actos lícitos e de responsabilização pelo risco, podendo apenas a lei exigir certos requisitos quanto ao prejuízo ressarcível (exemplo: exigência de uma dano especial e grave). De outro modo, ficaria lesado o princípio geral da reparação dos danos causados a outrem". (19)

Ainda assim, todavia, nenhum dano, patrimonial ou moral, pode ter sido provocado na esfera jurídica da autora com a execução da sentença proferida pelo Tribunal Tributário. Isto porque aquando do seu cumprimento coercivo a autora já não era legítima proprietária do imóvel, nem sobre ele detinha qualquer outro direito (real ou obrigacional). Com a venda judicial do imóvel, realizada na execução fiscal, transferiu-se para a esfera jurídica do adquirente a posição que a autora tinha no contrato de arrendamento e o direito de propriedade sobre aquele (art. 405° do Código Civil; arts. 894°, n° 3, e 904°, n° 1, do Código de Processo Civil, na redacção anterior à reforma de 1995/96; arts. 326° e 327° do Código de Processo Tributário então vigente). E se a autora lá continuou a exercer a sua actividade comercial, fê-lo contra legem, pelo que a sua conduta não merece a tutela do direito.

Os prejuízos podiam dar-se, isso sim, na esfera jurídica da pessoa que adquiriu o imóvel, por ter sido retardada no gozo e fruição do mesmo, tendo-se visto na contingência de suscitar a intervenção do Tribunal à ordem do qual pendia a execução fiscal.

Doutro passo, também não ocorre o nexo de causalidade adequada entre o facto e o dano invocado pela recorrente.

Com efeito, deu-se como provado que só após a adjudicação do bem ao adquirente é que autora não mais recebeu as rendas, ficou privada das suas instalações fabris, perdeu os seus clientes habituais e potenciais e viu-se compelida a cessar a sua actividade. Não se provou, tal como havia sido alegado, que tais factos ocorreram como consequência da decisão proferida pelo Tribunal Tributário de Santarém (cfr. as respostas dadas aos arts. 14°, 16°, 17°, 18°, 19°, 20° e 21° da base instrutória).

Ora, só haveria nexo de causalidade adequada dos danos eventualmente produzidos se a autora tivesse demonstrado que, se a decisão tivesse sido proferida pelo Tribunal Comum, outro teria sido o seu conteúdo. Pelo contrário, e em face dos factos que se provaram no apenso de posse judicial avulsa, estavam reunidos os pressupostos para que a decisão fosse precisamente a mesma. Do ponto de vista do direito substantivo, continuaria a existir a violação do direito do adquirente da coisa, violação essa que se traduzia na não entrega da mesma após ter sido vendida em processo de execução fiscal.

Não se pode, assim, afirmar, como faz a autora, que, não fosse a sentença proferida pelo referido Tribunal, sempre poderia ter usado meios de defesa, tais como o direito de retenção e o processo de embargos com fundamento em benfeitorias, nos termos do art. 929° do Código de Processo Civil (na redacção anterior à recente reforma).

Com efeito, não há qualquer dano ou prejuízo (uma "ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica" (20) nem nexo de causalidade adequada (segundo o qual "nem todos os danos sobrevindos ao facto ilícito são incluídos na responsabilidade do agente, mas apenas os resultantes do facto, os causados por ele" (21) entre o facto (a decisão do Tribunal Tributário que ordenou a entrega do imóvel ao comprador) e os invocados danos.


Na verdade, os danos que a autora invoca não resultam da decisão de entrega ao comprador do imóvel mas antes da venda realizada no processo de execução fiscal - é o que resulta dos factos provados sob os n°s 19 e seguintes; nem se mostra que as obras realizadas no imóvel sejam danos causados pela ordenada entrega, nem que, uma vez vendido o imóvel, a autora tenha direito a receber o seu valor.

Doutro passo, os prejuízos invocados assentam no pressuposto de a autora ser a proprietária do imóvel, titularidade que já não existia quando foi ordenada pelo Tribunal Tributário a entrega do imóvel - com aquela venda, a propriedade transferiu-se da autora para o comprador, sendo certo que se não mostra da factualidade provada que a autora gozasse de qualquer outro direito sobre a coisa que legitimasse a recusa de entrega do imóvel ao comprador (note-se que fazem parte do prédio todas as coisas móveis a ele ligadas materialmente com carácter de permanência (art. 208° n° 3 do C.Civil) tudo o que nele se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico (art. 1344° do C.Civil) e que a coisa vendida deve ser entregue no estado em que se encontrava (art. 882° do C.Civil) e ainda que o invocado direito a benfeitorias (art. 1273° do C.Civil) pressupõe que quem as realiza seja possuidor e não proprietário (e a autora não era possuidora mas proprietária do imóvel à data da realização daquelas obras).

Além do mais, a recorrente limitou-se a fazer uma referência genérica ao direito de retenção, não tendo explicitado os factos que o sustentam. Temos até algumas dúvidas em compreender esta alegação pela seguinte razão: pressupondo o direito de retenção que o devedor disponha de um crédito (art. 754° do Código Civil), não sabemos quem é o credor, ou seja, quem é a pessoa, física ou jurídica, contra a qual pode aquele opor o seu direito (o Estado ou o adquirente, actual proprietário do prédio).

Por outro lado, a petição de embargos prevista no citado art. 929° é um meio de oposição à execução para entrega de coisa certa e não ao processo especial de posse judicial avulsa. Por outras palavras: mesmo que esta pretensão tivesse sido deduzida no Tribunal Comum, a oposição que a autora apresentasse jamais assumiria a veste de embargos de executada tal como prescreve aquele dispositivo legal.

E ainda que à autora fosse abstractamente reconhecida a possibilidade de invocação daquele preceito legal, o disposto no seu n° 3 impediria o seu concreto exercício, uma vez que esse não seria o momento idóneo para fazer valer o seu direito a benfeitorias.

Consequentemente, não tendo o facto (ainda que lícito) estadual produzido qualquer dano na esfera jurídica da autora, não há obrigação de indemnização.

Razão pela qual, nunca a pretensão da recorrente poderia proceder.

Pelo exposto, decide-se:

a) - julgar improcedente o recurso de revista interposto pela autora "Empresa-A";

b) - confirmar inteiramente o acórdão recorrido;

c) - condenar a recorrente nas custas da revista.

Lisboa, 20 de Outubro de 2005

Araújo Barros
Salvador da Costa ( Com declaração de voto)
I
Oliveira Barros.


Dec voto Cons. Salvador da Costa: Na motivação do acórdão entende-se, por um lado, que no artigo 22º da Constituição estão abrangidos os actos dos titulares dos órgãos jurisdicionais e que a responsabilidade do Estado-Juiz se estende, para além dos casos previstos nos artigos 27º, nº 5 e 29º, nº 6, daquele diploma, a casos de grave violação da lei por dolo ou negligência grosseira.
E, por outro, que os pressupostos da ilicitude e da culpa no exercício da função jurisdicional só envolvem os casos de gritante denegação da justiça, tal como a demora na sua administração, a manifesta falta de razoabilidade da decisão e a afirmação ou negação de factos não provados ou provados.
É uma motivação que vem na linha de alguma doutrina e de alguma jurisprudência que extrai do artigo 22º da Constituição o princípio geral da responsabilidade civil do Estado por danos causados por actos legislativos, jurisdicionais e administrativos, na modalidade de actos ilícitos ou lícitos, seja na vertente da responsabilidade subjectiva ou na vertente do chamado sacrifício ou do risco.
Mas esse entendimento não pode deixar de ser confrontado com a circunstância de o mencionado normativo constitucional omitir os pressupostos da obrigação de indemnizar e o respectivo âmbito quantitativo, naturalmente deixando a sua definição à lei ordinária.
E a lei ordinária ainda não concretizou a referida normatividade, e não se trata de uma lacuna jurídica, superável por via da aplicação do disposto no artigo 10º, nºs 1 e 3, do Código Civil, mas de lacuna política, em que o legislador ordinário, confrontado com a relevância e a particularidade da matéria, optou por adiar a respectiva regulamentação.
Nessa linha de cautela legislativa, temos que, em sede de obrigação de indemnização do Estado por actos praticados no exercício da função jurisdicional, em concretização dos normativos constitucionais dos artigos 27º, nº 5 e 29º, nº 6, da Constituição, só temos lei ordinária concernente nos artigos 225º e 462º do Código de Processo Penal.
Na mesma linha, constata-se que o Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967, não se reporta à responsabilidade civil por actos lícitos e ilícitos no âmbito da função administrativa do Estado, ou seja, queda inaplicável à responsabilidade civil por actos lícitos ou ilícitos no âmbito da actividade jurisdicional.
Assim, e enquanto não houver uma intervenção legislativa, estamos perante a inviabilidade de concretização do mencionado normativo constitucional em relação a casos concretos, por virtude de a lei ordinária ainda não haver definido os termos do exercício dos concernentes direitos subjectivos.
A concretização dos pressupostos da obrigação de indemnização decorrente do artigo 22º da Constituição pelos tribunais, sem lei ordinária que a preveja, traduzir-se-á em ilegal intromissão do poder judicial na esfera legislativa do poder legislativo.
Entendemos, por isso, inexistir base legal para a argumentação expressa no acórdão, que vai muito além do que é função jurisdicional, ou seja, a de seleccionar, interpretar e aplicar as normas envolvidas pelos factos que são submetidos à apreciação dos tribunais.

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(1) José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, "Código de Processo Civil Anotado", vol. 2º, Coimbra, 2001, pag. 646.
(2) Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado", vol. V, Reimpressão, Coimbra, 1984, pag. 143. Cfr. Acs. STJ de 05/05/2005, no Proc. 839/05 da 7ª secção (relator Araújo Barros); de 12/05/2005, no Proc. 1730/05 da 7ª secção (relator Salvador da Costa); e de 31/05/2005, no Proc. 840/05 da 7ª secção (relator Oliveira Barros).
(3) Gomes Canotilho e Vital Moreira, "Constituição da República Anotada", vol. I, 2ª edição, pag. 185.
(4) Cfr. Rui Medeiros, "Ensaio sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos", Coimbra, 1992, pags. 86 ss.
(5) Ac. STJ de 19/02/2004, no Proc. 4170/03 da 2ª secção (relator Lucas Coelho).
(6) Cfr. Ac. STA de 07/03/89, favoravelmente comentado por Gomes Canotilho, in RLJ, Ano 123°, pag. 293; e Ac. STJ de 27/11/2003, no Proc. 3341/03 da 7ª secção (relator Oliveira Barros).

(7) Cfr. Gomes Canotilho, "O problema da Responsabilidade do Estado por Actos Lícitos", Coimbra, 1994, pags. 74 ss e 313 ss.

(8) Citado Ac. STJ de 19/02/2004.
(9) Ac. STJ de 31/03/2004, no Proc. 51/04 da 6ª secção (relator Nuno Cameira).
(10) Acs. STJ de 08/07/97, in CJSTJ Ano V, 2, pag. 153 (relator Ribeiro Coelho); e de 03/12/98, no Proc. 644/98, da 1ª secção (relator Afonso de Mello).
(11) Note-se, ademais, que o próprio STJ, em acórdão de 11/06/92, no Proc. 80695 da 2ª secção (relator Mário Noronha) entendeu já que "sendo, parte de um prédio, arrematado ... em execução fiscal, a jurisdição competente para dirimir a pretensão possessória do arrematante sobre o objecto arrematado cabe aos tribunais tributários".

(12) Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, "Constituição da República Portuguesa Anotada", 1978, pag. 87 (nota 2); Jorge Miranda, "O Regime dos Direitos, Liberdades e Garantias", in Estudos sobre a Constituição, vol. III, 1979, pag. 65 (nota 24); e Maria José Rangel de Mesquita, "Responsabilidade Civil Extracontratual da Administração Publica", 2004, pags. 115 ss, que sustentam estar em vigor o mencionado Dec.lei n° 48.051, sem prejuízo de eventuais inconstitucionalidades.

(13) Ac. STJ de 28/04/98, in BMJ nº 476, pag. 137 (relator Garcia Marques).
(14) Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4° volume, pag. 267.

(15) In CJSTJ Ano V, 2, pag. 153 (relator Ribeiro Coelho) maxime 156 e 157.

(16) Aprovado pelo Dec.lei n° 154/91, de 23 de Abril, sendo que esta já era a solução do direito anterior (art. 254° do Código de Processo das Contribuições e Impostos, aprovado pelo Dec.lei n° 45.005, de 27/4/63).

(17) Gomes Canotilho, "O Problema da Responsabilidade do Estado por Actos Lícitos", citado, pags. 74 e 75.

(18) Ac. STJ de 28/04/98, in BMJ nº 476, pag. 137 (relator Garcia Marques), maxime 147.
(19) Gomes Canotilho e Vital Moreira, "Constituição da República Portuguesa Anotada", 3ª edição revista, pag. 169.
(20) Almeida Costa, "Direito das Obrigações", 5ª edição, Coimbra, 1991, pág. 477
(21) Antunes Varela, "Das Obrigações em Geral", vol. I, 6ª edição, Coimbra, 1989, pag. 587.