Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
083340
Nº Convencional: JSTJ00018950
Relator: JOSE MAGALHÃES
Descritores: RECURSO
QUESTÃO NOVA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PROMESSA DE COMPRA E VENDA
DESVALORIZAÇÃO DA MOEDA
FACTO NOTÓRIO
PREÇO
ACTUALIZAÇÃO
ALTERAÇÃO ANORMAL DAS CIRCUNSTÂNCIAS
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
Nº do Documento: SJ199305260833402
Data do Acordão: 05/26/1993
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CJSTJ 1993 ANOI TII PAG122
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 463/91
Data: 04/28/1992
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NAGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: A VARELA RLJ ANO120 PAG294. V XAVIER CJ ANOVIII T5 PAG17. M ANDRADE TEORIA GERAL RELAÇÃO JURIDICA VOLII PAG408. SERRA BMJ N68 PAG330.
Área Temática: DIR CIV - DIR OBG.
DIR PROC CIV.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 437 N2 N1 ARTIGO 439 ARTIGO 438 ARTIGO 439 ARTIGO 442 ARTIGO 550 ARTIGO 551 ARTIGO 762 N2 ARTIGO 830 N3 N1.
CPC67 ARTIGO 506 N1 N2.
DL 236/80 DE 1980/07/18.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1978/04/06 IN BMJ N376 PAG241.
ACÓRDÃO STJ DE 1979/05/22 IN BMJ N287 PAG292.
ACÓRDÃO STJ DE 1980/02/28 IN BMJ N294 PAG283.
Sumário : I - Pelos recursos só se pode visar a modificação das decisões recorridas e não procurar decisões novas sobre matéria nova.
II - Ao Supremo tribunal de Justiça é lícito face ao disposto no artigo 830 do Código Civil referido ao seu artigo 437, proceder à actualização /correcção do preço estipulado no contrato-promessa de compra e venda, dada a desvalorização da moeda que, como facto notório que é, se vem verificando desde há anos.
III - A ter de proceder-se a alguma "actualização / correcção" do preço do contrato-promessa só poderia verificar-se em relação ao resto do preço que ficou de ser pago a quando da outorga do contrato-prometido e nunca ao que já fora pago.
IV - O legislador, ao alterar o artigo 830 do Código Civil em 1980, visou sobretudo proteger o promitente comprador contra o promitente vendedor.
V - O contrato-promessa, não equivale ao contrato prometido, mas garante-o muitas vezes, não só pelas sanções estabelecidas para o contraente não cumpridor, como também por em alguns casos se poder obter a execução do mesmo.
Decisão Texto Integral: Acordam do Supremo Tribunal de Justiça:

A instaurou a presente acção de processo ordinário, que correu termos no tribunal judicial da Comarca de Albufeira, contra B e esposa C, alegando o que a seguir se resume:
Em 26 de Fevereiro de 1979, os réus celebraram com o A. uma promessa de venda - documento junto à providência cautelar apensa - pela qual os primeiros prometeram vender ao segundo um prédio rústico com a área de 29261,82 metros quadrados, sito em Vale de Carros de Baixo ou Várzea de Quarteira, freguesia e Comarca de Albufeira, pelo preço de 9656400 escudos, de que entregou 7300000 escudos e ficando de ser pago o resto a quando da outorga da escritura;
Sucede, porém, que, apesar de o autor sempre ter cumprido o acordado com os réus, se verifica da parte destes a sua recusa em celebrar o contrato prometido, com o fundamento de só venderem o prédio, caso o mesmo lhes seja pago à razão de 700 escudos o metro quadrado.
Pediu que, na procedência da acção, se profira sentença que, produzindo os efeitos da declaração negocial dos faltosos, se declare vendido ao autor o identificado imóvel.
Os réus contestaram, dizendo sobretudo que foi o autor que não cumpriu o contrato, visto se ter recusado a outorgá-lo em 23 de Julho de 1980, apesar de para isso ter sido notificado.
Houve réplica e tréplica, em que as partes mantiveram, no essencial, as posições assumidas nos seus anteriores articulados.
Na sessão de audiência de julgamento que teve lugar em 26 de Abril de 1988, os réus, depois da arguição de uma nulidade que aqui não importa focar, invocando o disposto no artigo 830-3 do Código Civil, requereram que, para a hipótese de a acção vir a proceder, se ordenasse "a notificação do contrato nos termos do artigo 437 do Código Civil porquanto de então até à data é notório não só a desvalorização da moeda como o aumento do valor da propriedade fundiária...", isto é, por ser "manifesto que se alteraram e de forma anormal as circunstâncias com base nas quais as partes contrataram", pediram eles, "a alteração do preço ao abrigo dos critérios referidos no citado artigo 437 do Código Civil".
O Meritíssimo Senhor Juiz, que indeferiu o requerido pelos réus quanto à modificação do contrato ou alteração do preço, fixou ao autor, a pedido deste, na mesma oportunidade, o prazo de 10 dias para depositar o resto do preço no montante de 2256400 escudos, o que veio a ser feito no quantitativo de 2256400 escudos e 60 centavos, conforme a guia e conhecimento de depósito de folhas 132.
Inconformados, agravaram os réus do despacho assim proferido.
Feito, seguidamente, o julgamento, foi proferida a sentença de folhas 153 verso e seguintes, a julgar a acção procedente.
Também os réus recorreram desta sentença, mas o Tribunal da Relação de Évora não os atendeu.
É do Acórdão da Relação que os demandados, de novo inconformados, interpuseram um recurso de agravo e outro de revista, mas já restringidos a um só - o de revista - por acórdão deste Supremo Tribunal.
Pretendem eles, não já a improcedência da acção nem tão pouco a modificação do contrato como dizem a folhas 254 "- à luz do disposto nos artigos 830-3 e 437 do Código Civil", conforme haviam solicitado na 1. instância e mantiveram nos recursos interpostos para a Relação, mas sim a "actualização/correcção" do preço acordado através do contrato-promessa por virtude da desvalorização da moeda ao longo dos "três anos que os presentes autos já levaram(?)". O Acórdão recorrido -dizem -, por não ter considerado a depreciação da moeda, violou, entre outros, o "disposto nos artigos 437 a 439 e 551 do Código Civil".
Não houve contra-alegação.
Obtidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

1 - Comecemos por aludir aos factos dados como assentes.
São eles:
a) Em 26 de Fevereiro de 1979, os réus prometeram vender ao A. um prédio rústico composto de uma courela de terra, com vinha e árvores de fruto, sita em Vale de Carros de Baixo ou Várzea de Quarteira, em Albufeira, ao preço de 330 escudos o metro quadrado;
b) O réu marido assinou, a respeito disso, um documento no qual declara terem os réus recebido do A. a quantia de 200000 escudos como sinal e princípio de pagamento por essa venda;
c) Desse documento constava, além do preço já referido na alínea b), que o pagamento seria feito nas seguintes condições:
a') 300000 escudos no prazo de 8 dias após a aceitação da medição apresentada pelo topógrafo;
b') 3000000 escudos em 30 de Junho de 1979;
c') 4000000 escudos em 30 de Dezembro de 1979, acrescidos de juros de mora, à taxa paga pela banca nacional no tempo correspondente; e
d') O restante em 30 de Junho de 1980, também acrescido de juros de mora, á taxa paga pela banca nacional no tempo correspondente; e
d) Ainda que a propriedade vendida é entregue livre de quaisquer ónus ou encargos.
e) Esse documento foi apresentado pelo A. ao R. marido, e não foi elaborado por este;
f) Nele não se fixou data limite para a elaboração da escritura de venda;
g) Em Fevereiro de 1981, o A. escreveu ao R. marido a propor a data de 20 de Março seguinte para a outorga da escritura, mas este recusou-se a outorgar na escritura, dizendo que havia interessados a propor-lhe a compra a 700 escudos o metro quadrado;
h) O A. pagou ao réu marido após as datas dos respectivos vencimentos: 300000 escudos em 11 de Maio de 1979; 90000 escudos em 5 de Julho de 1979; 500000 escudos em 4 de Outubro de 1979, 45.000 escudos em 17 de Outubro de 1979; 500000 escudos em 26 de Outubro de 1979; 900000 escudos em 5 de Janeiro de 1980; 1500000 escudos em 29 de Abril de 1980; e 2000000 escudos em 15 de Julho de 1980;
i) Em Julho de 1980, o autor recebeu uma comunicação, sem data nem assinatura, mas que pensava provir dos réus, indicando-lhe o dia 23 de Julho de 1980 para a outorga da escritura de compra e venda;
j) O prédio referido na alínea a) tem a superfície de 29261,82 metros quadrados;
l) A data da escritura de compra e venda deveria ser marcada por acordo entre A. e RR.
m) Em resposta à comunicação referida na alínea i), o A. fez notar que o prédio em causa não estava inscrito, na totalidade, em nome dos réus, pelo que não era conveniente fazer-se a escritura, reafirmando, no entanto, a intenção de outorgá-la logo que a inscrição em falta se mostrasse feita;
n) Assim, acordaram em marcar a escritura para dia 2 de Setembro de 1980;
o) Mas verificou-se, nessa data, que o prédio continuava a não estar inscrito, na totalidade, em nome dos réus, tendo o próprio notário desaconselhado a celebração da escritura;
p) O autor teve conhecimento de que o prédio em causa já estava, na totalidade, inscrito em nome dos réus em Fevereiro de 1981;
q) O autor não pagou o resto do preço em 30 de Junho de 1980;
r) Os réus aceitaram os atrasos do autor nos pagamentos, limitando-se a exigir-lhe os, respectivos juros de mora;
s) Os réus recusaram-se a outorgar a escritura no dia 20 de Março de 1981 apenas por já terem ofertas de maior vulto;
t) O prédio em causa está inscrito na Conservatória do Registo Predial de Albufeira a favor dos réus;
u) O autor efectuou o depósito da quantia de 2256400 escudos e 60 centavos relativamente à parte do preço em falta; e
v) O autor procedeu ao pagamento da sisa respectiva.
2 - Descritos os factos, vejamos então.
Disse-se já que o A, ao propor a presente acção - o que ocorreu em 10 de Abril de 1981 -, solicitou que, em suprimento da declaração negocial dos réus, se proferisse sentença a declarar-lhe vendido o identificado imóvel. E anotou-se também que, na sessão de julgamento de 26 de Abril de 1988, requereram os réus que, caso a acção viesse a proceder, se notificasse o contrato, alterando-se o preço, em virtude da alteração anormal das circunstâncias entretanto verificadas, já por a moeda se ter desvalorizado, já por ter aumentado o valor da propriedade fundiária.
Procedeu a acção, como vimos, mas improcedeu, como vimos também, o pedido dos réus.
3 - Referiu-se acima que os recorrentes se não insurgem já contra o desfecho da acção que foi favorável ao A.. Nem também contra o facto de as instâncias os não haverem atendido na sua pretensão de se modificar o contrato "à luz do disposto nos artigos 830-3 e 437 do Código Civil", como tinham requerido.
Pretendem, todavia - se bem compreendemos o seu pensamento -, que "as importâncias pagas e ou depositadas... entre 1979 e 28 de Junho de 1988" se devem actualizar ou corrigir de acordo com a desvolarização da moeda ao longo dos últimos anos e que, por assim se não ter procedido no acórdão recorrido, se violou o preceituado nos artigos 437 a 439 e 551 do Código Civil.
Será, todavia, assim?
4 - Antes de responder à pergunta, é de salientar que o Tribunal da Relação, ao confirmar o decidido na 1a instância sobre o pedido de "modificação do contrato nos termos dos artigos 830-3 e 437 do Código Civil", o fez com os seguintes fundamentos.
a) O de o pedido de modificação do contrato com base na alteração anormal das circunstâncias ao abrigo do disposto no artigo 437-2 do Código Civil ter de ser feito em reconvenção ou, a verificarem-se os pressupostos indicados nos ns. 1 e 2 do artigo 506 do Código de Processo Civil, em articulado superveniente, de modo nenhum bastando um simples requerimento como o que os réus fizeram nesse sentido;
b) o de os réus se acharem já em mora a quando do pedido de modificação do contrato e, a entender-se este pedido, se violar o prescrito no artigo 438 do Código Civil e o princípio da boa fé na execução do contrato consignado no artigo 762 n. 2 do Código Civil; e
c) o de o aumento do preço da propriedade fundiária verificado no período em questão - entre 26 de Fevereiro de 1979 (data do primeiro pagamento) e 26 de Abril de 1988 (data do pedido de modificação do contrato) - estar em consonância com a desvalorização progressiva da moeda já verificada nessa altura, sendo, portanto, previsível, e se não poder admitir que os réus se proponham fazer funcionar a seu favor uma situação para a qual contribuíram, não cumprindo pontualmente aquilo a que se obrigaram.
Quer dizer, o Tribunal da Relação, ao indeferir - e bem - o requerimento dos réus, não o fez só por os mesmos não terem alegado oportunamente e pela forma alegada a alteração anormal das circunstâncias justificativas do pedido de modificação do contrato, mas também e sobretudo por os réus se acharem já em mora para com o autor e, a haver prejuízo derivado da desvalorização da moeda, o mesmo lhes ser de atribuir a eles.
Dito de outra maneira: uma vez que os réus, ao solicitarem a modificação do contrato, só invocaram a depreciação do valor da moeda e o aumento do valor da propriedade fundiária como factores justificativos do seu pedido, nenhumas dúvidas pode haver de que a Relação, ao desatendê-los, o fez por entender que a depreciação do valor da moeda não era de considerar.
Não sendo, no entanto, de atender à depreciação do valor da moeda para o efeito de modificação do contrato em causa, claro que também não podia olhar a ela como factor correctivo do preço. Quanto mais não seja, por se tratar de um mesmo fundamento conducente a um mesmo resultado, havido como ilegítimo no caso concreto.
5 - Quid iuris, pois?
Antes de mais, há que fazer três observações:
a) A primeira é a de que se o preço da transacção foi de 9656400 escudos e 60 centavos - como parece e as partes aceitam - e o A. entregou aos réus, primeiro a quantia de 200000 escudos em 26 de Fevereiro de 1979 como sinal e princípio de pagamento e, depois, as quantias de 300000 escudos, 90000 escudos, 500000 escudos, 45000 escudos, 500000 escudos, 900000 escudos, 1500000 escudos e 2000000 escudos - tudo no total de 6035000 escudos -, se verifica não estar ainda pago ou depositado todo o preço acordado, visto a quantia de 6035000 escudos mais a depositada de 2256400 escudos e 60 centavos, não perfazer a soma de 9656400 escudos e 60 centavos, mas sim a de 8291400 escudos e 60 centavos, faltando, portanto, a importância de 1365000 escudos.
Nada temos, contudo, a ver com esta questão, já por os réus terem aceite o veredicto quanto à declaração de venda, já por, a haver alguma diferença entre o preço acordado e o preço pago ou depositado, se não poder deixar de atribuir ela a lapso do magistrado, ao mandar depositar a quantia de 2256400 escudos como equivalente à que restava pagar (fls. 106 v.), e já ainda por ninguém levantar nenhum problema acerca deste ponto.
b) A seguinte é a de que a questão da "actualização/correcção" do preço acordado entre as partes com base na depreciação do valor da moeda só foi suscitada nas alegações de recurso para o Supremo. Não venham dizer, pois, os recorrentes que a suscitaram já na contestação, "ainda que por forma indirecta", com o manifesto intuito de afastar a aplicação do princípio de que pelos recursos só se pode visar a modificação das decisões recorridas e não criar decisões novas sobre matéria nova.
c) E a terceira é a de que, tendo os réus prometido vender, em 26 de Fevereiro de 1979, o referido imóvel pelo preço de 9656400 escudos e 60 centavos, de que logo receberam a prestação de 200000 escudos e, posteriormente (entre 11 de Maio de 1979 e 15 de Julho de 1980), outras prestações mais (300000 escudos, 90000 escudos, 500000 escudos, 45000 escudos, 500000 escudos, 900000 escudos, 1500000 escudos e 2000000) escudos - no total de 6035000 escudos -, se apresenta de todo descabida a prestação de a actualização/correcção se dever fazer em relação a todas as importâncias pagas e ou depositadas.
É por demais evidente que, a ter de proceder-se a alguma "actualização/correcção", só poderia verificar-se ela em relação ao resto do preço que ficou de ser pago a quando da outorga do contrato prometido. Nunca, pois, quanto ao que o A. entregou no próprio dia do contrato-promessa e entre 11 de Maio de 1979 e 15 de Julho de 1980, se não de harmonia com o estabelecido inicialmente, pelo menos com a aceitação aos demandados, ao invés do que estes pretendem, ao aludirem à actualização/correcção das "importâncias pagas e ou depositadas... entre 1979 e 28 Junho de 1988" (a data do depósito de 2256400 escudos e 60 centavos).
6 - Vamos admitir, porém - e isso por assim se ter entendido já neste Alto Tribunal (Acórdãos de 6 de Abril de 1978, 22 de Maio de 1979 e 28 de Fevereiro de 1980 in Bol. 276/241, 287/292 e 294/283, respectivamente, além de outros) - que ao Supremo é lícito proceder à pretendida actualização/correcção, dada a desvalorização da moeda que, como todos sabem - e é efectivamente facto notório -, se vem verificando desde há mais de uma dúzia de anos, embora agora já em fase de regressão.
Será ela de fazer no caso "sub judice", embora - como vimos de dizer - só em "relação ao que os réus ainda não receberam, ou seja, quanto ao valor depositado em 28 de Junho de 1988 (2256400 escudos e 60 centavos), acrescido porventura de alguma eventual diferença entre, por um lado, o somatório do já pago e depositado e, por outro, o preço acordado para a transacção?
De modo nenhum.
Expliquemos porquê, recorrendo aos normativos jurídicos que mais directamente respeitam à situação.
7 - Diz-se no artigo 830 do Código Civil, na redacção que lhe deu o Decreto-Lei n. 236/80, de 18 de Julho - a aplicável ao caso, conforme se julgou na Relação -;
"1 - Se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, em qualquer caso e desde que a isso se não oponha a natureza da obrigação assumida, obter sentença que produza os efeitos de declaração negocial do faltoso; a requerimento deste, a mesma sentença poderá ordenar a modificação do contrato nos termos do artigo 437".
E no artigo 437 do mesmo Código estipula-se:
"1 - Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato".
Resulta destes normativos jurídicos aqui chamados à colação porque, além de os recorrentes, apesar de declararem não reafirmar já "o pedido de modificação" do contrato "à luz do disposto nos artigos 830-3 e 437 do Código Civil", não deixaram de afirmar infringido pela Relação o artigo 437 (e outros) para que remete o artigo 830, se não descortinam outros capazes de fundamentar a solução que se requer - que, no caso de execução específica por incumprimento de uma das partes, pode o demandado faltoso requerer "a modificação do contrato nos termos do artigo 437".
A. Varela, ao criticar a reforma que o Decreto-Lei n. 236/80 introduziu na nossa lei civil, qualifica esta benesse como um bombom que o legislador terá querido meter na boca do promitente-vendedor "depois do tratamento impiedoso a que o sujeitou com o novo regime fixado no artigo 442 do Código Civil" (Rev. Leg. Jur. 120/294).
E, após referir que "o facto real que pode muito provavelmente ter levado o legislador a destacar o pedido de modificação do contrato formulado pelo contraente faltoso (por via de regra, o promitente-vendedor) terá sido o da grave perturbação causada pela revolução de Abril de 1974 e suas sequelas nos custos da construção civil e duração da realização das obras" e que, ao exprimir-se nos termos em que o faz, "o legislador pode ter criado no espírito do julgador a infundada ideia de que a elevação dos preços dos materiais, a subida dos salários ou as paralisações do trabalho gozam de um tratamento especial em matéria de modificação judicial do contrato...", conclui que uma tal "ideia - particularmente no que concerne às elevações de preço posteriores à celebração do contrato - não tem... nenhum fundamento em face do texto selectivo ao artigo 437 do Código Civil".
Quer dizer, o Prof. A. Varela - cuja autoridade, neste como noutros domínios, todos reconhecem -, à parte o facto de se não mostrar concordante com a alteração que o Decreto-Lei n. 236/80 introduziu no n. 1 do artigo 830 do Código Civil, não deixa de aludir às razões que estiveram na base da alteração do preceito e de o interpretar por forma a excluir do seu campo de aplicação situações que, pelo menos à primeira vista, mais parecem justificá-lo.
7.1 - Temos, por outro lado, como certo que o legislador, ao alterar o artigo 830 do Código Civil em 1980, visou sobretudo proteger o promitente-comprador contra o promitente-vendedor. É o que, conforme o relator deste acórdão já teve ocasião de escrever num outro processo, resulta do que o próprio legislador anotou no preâmbulo do Decreto-Lei n. 236/80, ao referir que "por efeito do regime legal do contrato-promessa - adequado a épocas de estabilidade social e económica mas que não responde na justa medida a situações de rápida mutação da conjuntura económica e financeira em que avulta, como factor preponderante, a desvalorização da moeda -, inúmeros promitentes-compradores encontram-se em situação que justifica diversa tutela normativa". Daí as medidas que tomou em ordem a evitar a frustração das justas aspirações dos promitentes-compradores, impedindo ou procurando impedir, por um lado, a resolução dos contratos por banda dos promitentes-vendedores e, por outro, a satisfação de "exigências inesperadas que incomportavelmente agravam o preço inicialmente fixado", "embora sem prejuízo da adequada modificação do negócio - o tal bombom de que nos fala A. Varela - por alteração anormal das circunstâncias, nos termos que a lei já prevê", isto é, mediante a "actualização da indemnização em certos casos", conforme se esclarece também no preâmbulo do referido Decreto-Lei.
7.2 - O contrato-promessa - o que é igualmente de anotar - não equivale, como todos sabem, ao contrato prometido. Mas garante-o muitas vezes, não só pelas sanções estabelecidas para o contraente não cumpridor, como também por em alguns casos se poder obter a execução do mesmo.
Não admira, por isso, que os interessados recorram a esta figura jurídica como negócio de segurança ou de garantia, não já apenas sob o "ponto de vista económico", mas ainda em alguns casos sob o aspecto jurídico, com a qualidade de assegurar a celebração do contrato que querem mas não estão ainda em condições de celebrar.
Sendo, no entanto, assim, como é ou se afigura, de concluir é ou parece ser também que, conquanto o princípio da estabilidade ou intangibilidade das relações contratuais, traduzido na velha máxima "pacta sunt servanda", se ache abandonado há muito, "ninguém admite que a doutrina da "base negocial" vá ao ponto de sujeitar indefinidamente os efeitos da contratação a serem postos em causa" (Vasco Xavier in Parecer publicado na Col. Jur. VIII - 5/17 e seguintes).
Compreende-se perfeitamente que, verificada uma alteração anormal das circunstâncias que levaram as partes a contratar, susceptível de ocasionar um grande desequilíbrio entre as prestações contratuais e, por via deste, uma profunda lesão nos interesses de uma das partes - como a derivada do pagamento de uma pensão em moeda que entretanto se desvalorizou ou a que pode ocorrer num contrato de fornecimento durante certo período de tempo (contrato de execução continuada ou com trato sucessivo (Manuel de Andrade in Teor. Ger. da Rec. Jur., II/408)), se reconheça à parte lesada o direito à resolução do contrato ou quando "os reflexos da alteração do circunstancionalismo externo não vão até ao ponto de frustrar o fim contratual" (A. Varela e H. Mesquita in Parecer publicado na Col. Jur., VII - 2/7 e seguintes) à modificação do mesmo em termos da equidade. Mas não já que assim possa e deva ser sempre em todos e quaisquer casos. Pensar de outro modo será por em cheque "a segurança do tráfico e os interesses gerais da contratação" com todos os inconvenientes daí resultantes.
Esta a razão por que as regras da "teoria da base negocial" se tenham de haver desde logo por inaplicáveis aos contratos já executados ou quanto à parte em que os mesmos sejam de considerar como executados.
Veio tudo isto a propósito para dizer:
a) que, por o legislador de 1980 ter visado sobretudo a protecção do promitente-comprador contra o promitente-vendedor, se não afigura correcto chamar à colação o disposto no artigo 437 do Código Civil para que remete o artigo 830, na medida em que, ao fazê-lo, estão os recorrentes a dar ao artigo 830 uma interpretação de sentido oposto; e
b) que, por o legislador, ao procurar "reajustar o regime legal do contrato-promessa... às qualidades actuais...", se ter proposto, não só salvaguardar os interesses do promitente-comprador, como também minorar os efeitos da "grave perturbação causada pela revolução de Abril de 1974 e suas sequelas nos custos da construção civil e na duração da realização das obras", por forma a, face à desvalorização da moeda e elevação dos custos entretanto ocorridos, se estabelecer, um maior equilíbrio entre as prestações dos outorgantes, se não mostra verificado, na hipótese, o condicionalismo que levou à alteração da lei, visto o contrato referido nos autos ter por objecto um prédio rústico, ou seja, um imóvel insusceptível de ocasionar quaisquer custos e muito menos custos acrescidos para o promitente-vendedor, justificativo de qualquer actualização/correcção do preço estabelecido, designadamente quanto ao já pago a contento.
8 - A inclinar-nos no sentido da solução adoptada estão ainda as seguintes razões:
a) A de o Tribunal, ao substituir com a sua decisão a declaração negocial dos faltosos, se limitar a confirmar o acordado entre as partes, como se o contrato prometido tivesse sido celebrado na altura em que o devia ter sido: se não em 2 de Setembro de 1980, conforme o acordo a que chegaram, pelo menos em 20 de Março de 1981.
Por o contrato prometido já dever ter sido feito há muito e só o não foi por os promitentes-vendedores a isso se terem recusado com o fundamento de já terem melhores ofertas, isso é, por acto só a eles imputável, não é, por isso, legítimo fazer recair sobre o promitente-comprador o efeito do desequilíbrio a que os recorrentes aludem como verificado entre o actual valor do imóvel e o preço que custou.
b) A de o artigo 830 do Código Civil, ao possibilitar a modificação do contrato nos termos do artigo 437, a requerimento do faltoso, o fazer, pressupondo uma alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar..., desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.
Ora, considerando o contrato em si e o que vem de observar-se, não se vê em que é que as circunstâncias em que as partes fundaram a sua decisão de contratar tivessem sofrido qualquer alteração anormal, capaz de, no comprimento das obrigações assumidas, justificar uma modificação do contrato, sob pena de, a não se proceder a esta, resultar gravemente afectada a posição dos demandados segundo os princípios da boa fé.
Desde logo, por os contraentes, ao outorgarem o contrato-promessa, terem em vista a celebração do contrato prometido para daí a pouco tempo, ou seja, para numa altura em que, a terem-no efectuado, se não verificava ainda a "alteração anormal", (por desvalorização da moeda) das circunstâncias a que se faz referência.
A seguir, por a não celebração da escritura na altura em que o devia ter sido se dever em exclusivo aos promitentes-vendedores, como se disse, e, por isso, só a estes se poder imputar atraso verificado e, consequentemente, qualquer eventual prejuízo daí resultante.
E, finalmente, porque, importando o funcionamento do artigo 437 do Código Civil que a exigência da obrigação assumida pela parte lesada afecte gravemente os princípios da boa fé, se não vê em que é que estes princípios se mostrem atingidos com o facto de o imóvel negociado ter hoje um valor superior ao preço que se acordou pagar e receber por ele.
A perturbação do equilíbrio contratual, que a resolução ou modificação do contrato se destinam a evitar - diz V. Serra (Bol. 68/330)-, deve estar para com o acontecimento imprevisível (na hipótese, a desvalorização da moeda) em relação de causalidade. Sendo, todavia, assim, e porque, no caso "sub judice", só os promitentes-vendedores foram os causadores de não receber o resto do preço num momento em que o mesmo tinha, se não um valor equivalente ao prédio que se negociou pelo menos muito aproximado dele, não lhes pode ser reconhecido o direito à modificação do contrato nos termos do artigo 437 do Código Civil.
Fazê-lo é que seria ir contra os princípios da boa fé, já que, não podendo as partes, ao contratarem, deixar de ter presentes as condições de mercado existentes ao tempo e negociando elas nessa base, se iria compelir o A. a pagar um preço que, não estando nas previsões de nenhum dos contraentes, o promitente-comprador poderia não estar em situação de suportar.
c) A terceira razão justificativa da solução por que se oposta - já referida, aliás, pelo Tribunal "a quo" - é a derivada do facto de os recorrentes se encontrarem em mora há muito a quando do pedido da modificação do contrato (em 26 de Abril de 1988) e, por isso mesmo, não gozaram os recorrentes, face ao disposto no artigo 438 do Código Civil, do direito a que se arrogam.
Atender a pretensão dos recorrentes, quando já em 1976, 1977, 1978 e 1979 o índice de preços ao consumidor, para que os mesmos apelam citando o artigo 551 do Código Civil, era - como todos sabem - de 20 por cento, 27,4 por cento, 22 por cento, 24,2 por cento, respectivamente, seria proceder a uma modificação do contrato sem a ocorrência de uma demonstrada alteração anormal das circunstâncias em relação às já verificadas ao tempo da contratação. E mais: seria permitir que os promitentes-vendedores fizessem o mal e a caramunha, consentindo, por um lado, que eles não cumprissem, quantas vezes deliberadamente, o por si acordado, e, por outro, que se prevalecessem dessa sua falta em benefício próprio e prejuízo do outorgante cumpridor.
9 - Uma vez que o "contrato-promessa" referido nos autos não foi resolvido, o chamamento que os recorrentes fazem do artigo 439 do Código Civil em defesa da sua tese não tem o menor cabimento.
Como o não tem, salvo menor juízo, a invocação do citado artigo 551. Dado o princípio do nominalismo monetário que se consagra no artigo 550 do Código Civil, a actualização das prestações pecuniárias, como a devida aos recorrentes no caso de que nos vimos ocupando, só é admitida a título excepcional.
Não sendo esta a hipótese, como sucede nos casos indicados por P. de Lima e A. Varela in Código Civil Anotado, 1/386 e por este último Professor in Das Obrig. em Ger., 2. edição, I/713 e seguintes, claro que a invocação do artigo 551 do Código Civil se tem de haver algo despropositada.
10 - Em função do exposto, e por se não ver que o Tribunal da Relação haja violado qualquer preceito, acorda-se em negar a revista.
Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 26 de Maio de 1993.
José Magalhães,
Ferreira da Silva,
Miranda Gusmão.