Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3/05.9GFMTS.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO FRÓIS
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
VÍCIOS DO ARTº 410 CPP
CONHECIMENTO OFICIOSO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PERDA DE BENS A FAVOR DO ESTADO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/24/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário :
I - O conhecimento oficioso pelo STJ verifica-se por duas vias: uma primeira que ocorre por necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP; e outra que poderá verificar-se em virtude de nulidade de decisão, nos termos do estatuído no art. 379.º, n.º 2, do mesmo diploma legal.
II - Por outro lado, definindo os poderes de cognição do STJ, estatui o art. 434.º do CPP que, sem prejuízo do disposto no art. 410.º, n.ºs 2 e 3, o recurso interposto para este Tribunal visa exclusivamente o reexame da matéria de direito.
III - Após a reforma operada pela Lei 59/98, de 25-08, o STJ pode ainda conhecer dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, não a pedido do recorrente, isto é, como fundamento do recurso, mas por iniciativa própria, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto claramente insuficiente, ou fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias, detectadas por iniciativa do STJ, ou seja, se concluir que, por força da existência de qualquer daqueles vícios, não pode chegar a uma correcta solução de direito e devendo sempre o conhecimento oficioso ser encarado como excepcional, surgindo como último remédio contra tais vícios.
IV - E continua em vigor o Ac. do Plenário das secções criminais do STJ, de 19-09-1995, que no âmbito do sistema de revista alargada decidiu ser oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.
V - No caso concreto foram apreendidas quantias monetárias em numerário, parte das quais provenientes da venda de haxixe (aos consumidores), mas, sendo assim, obviamente, que não ficou provado que todo esse dinheiro/numerário apreendido era proveniente da venda daquela substância (haxixe).
VI - Porém, não obstante não ter ficado provado que a totalidade do dinheiro apreendido era resultado das vendas de haxixe efectuadas, o certo é que foi decidido declarar perdidas a favor do Estado as quantias em dinheiro apreendidas, isto é, a totalidade dessas quantias.
VII - Ora, decorre do exposto que há/haverá uma parte do dinheiro apreendido que não se provou que resultasse da venda de haxixe, por isso, essa parte do dinheiro apreendido não podia ter sido declarada perdida a favor do Estado, pois não se provou que tivesse sito produzida pela prática de uma infracção prevista no DL 15/93, de 22-01 (cf. art. 35.º, n.º 1, do mesmo DL 15/93) ou tivesse sido directamente adquirida pelos arguidos, através da infracção (cf. art. 36.º, n.ºs 2 e 3).
VIII - E, porque neste aspecto, em julgamento, não ficou apurado qual o exacto quantitativo que realmente é/era proveniente das vendas de haxixe, tal dúvida fica a subsistir, devendo ser a questão decidida em benefício dos arguidos, por aplicação do princípio do in dubio pro reo. Daí que, nessa parte, a decisão recorrida não possa subsistir, devendo ser revogada.
IX - De acordo com o art. 35.º do DL 15/93, de 22-01, com a redacção introduzida pela Lei 45/96, de 03-09, a perda a favor do Estado, dos objectos que tivessem servido ou estivessem destinados a servir a prática de infracções previstas nesse diploma, deixou de estar dependente do perigo que deles pudesse resultar para a segurança das pessoas e ordem pública ou do risco sério de serem utilizadas no cometimento de novos ilícitos.
X - Para a declaração de perda a favor do Estado prevista no art. 35.º referido basta que os objectos possam ser considerados produtos do crime ou instrumentos deste, no sentido de que tenham servido ou se destinassem a servir para a prática de uma infracção prevista no referido diploma. Para que assim seja, não se afigura necessário que os objectos tenham essa aplicação exclusiva, embora seja exigível que a sua relação com a prática do crime se revista de um carácter significativo, numa relação de causalidade adequada, para que a infracção se verifique em si mesma ou na forma de que se revestiu.
XI - No caso em apreço está provado que os veículos automóveis eram usados pelos dois arguidos no transporte do haxixe, com uma certa regularidade. Porém, dos factos provados não resulta que esses veículos fossem determinantes ou essenciais à venda dos produtos estupefacientes, tanto mais que para se deslocarem para o local onde habitualmente procediam à venda dos estupefacientes os arguidos poderiam facilmente utilizar transporte público ou mesmo deslocar-se a pé.
XII - Os factos poderiam ser praticados pelos arguidos sem o recurso ou a utilização dos veículos; a utilização destes correspondia a mera comodidade dos arguidos.
XIII - Acresce que as quantidades de estupefacientes detidas e transaccionadas pelos arguidos foram consideradas “pequenas quantidades”, o que, aliás, determinou e possibilitou a convolação jurídica do tipo legal de crime do art. 21.º do DL 15/93, de 22-01, por que ambos os arguidos estavam acusados, para o crime do art. 25.º, al. a), do mesmo diploma legal, por que foram condenados.
XIV - Sendo assim, não é difícil concluir que as quantidades detidas e transaccionadas pelos arguidos podiam ser levadas com facilidade, em qualquer bolso ou local do vestuário ou em qualquer pequena carteira ou saco. Portanto, também aqui se constata que para o transporte daquelas pequenas quantidades de haxixe não era indispensável ou essencial a utilização daqueles veículos, isto é, dos factos provados não resulta que a conduta delituosa dos arguidos estivesse dependente da utilização daqueles veículos.
XV - E, perante o circunstancialismo concretamente provado no caso dos autos, não será temerário dizer-se que, mesmo sem aqueles veículos, os arguidos levariam a cabo as vendas de haxixe, dadas as pequenas quantidades que transaccionavam e a facilidade de transporte dessas pequenas quantidades/doses de haxixe e a facilidade de deslocação para o local dessas transacções. Com efeito, da factualidade assente e como decorre do que atrás se disse, não pode concluir-se existir uma relação directa determinante e/ou de causalidade adequada, entre a utilização daqueles veículos pelos arguidos e a actividade delituosa dos mesmos. Tudo isso impede a declaração de perda daqueles veículos a favor do Estado.
XVI - Além disso, dos factos provados resulta que os arguidos, à data da prática dos factos, exerciam actividades profissionais remuneradas, e, por outro lado, não ficou provado que fosse principalmente da venda de cannabis que os arguidos retiravam proveitos económicos que lhes permitiam fazer face ao sustento diário. Assim sendo, não pode concluir-se nem resulta provado que tais viaturas tivessem sido adquiridas pelos arguidos com dinheiro proveniente da venda de droga, pelo que, com esse fundamento não poderiam ser declaradas perdidas para o Estado.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Na 2ª Vara Mista de Vila Nova de Gaia, no processo comum nº 3/05.9GFMTS, foram submetidos a julgamento, perante Tribunal Colectivo, os arguidos:

– AA, filho de F… de J… V… da S… e de M… J… C… de C…, solteiro, nascido em 6/9/85, em Mafamude, Vila Nova de Gaia, residente na Rua Heróis do Ultramar, …., 2o andar, Vilar de Andorinho, Vila Nova de Gaia; e
– BB, filho de J… O… dos S… e de E… dos S… G…, nascido em 3/2/80 em Mafamude, Vila Nova de Gaia, casado, residente na Rua Heróis do Ultramar, …, 2º andar - Vilar de Andorinho, V.N. de Gaia.


Era imputada, a cada um dos arguidos AA e BB, a prática, em autoria material de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 21º-1, do DL 15/93, de 22 de Janeiro.

A final, foi proferida sentença/acórdão, em 16 de Novembro de 2006, que, além do mais:

1 - Condenou o arguido AA na pena de um (1) ano e quatro (4) meses de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25°, alínea a), do Decreto-Lei n°15/93, de 22 de Janeiro, cuja execução foi suspensa pelo período de quatro (4) anos;

2 - Condenou o arguido BB na pena de dois (2) anos de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25°, alínea a), do Decreto-Lei n°15/93, de 22 de Janeiro, cuja execução foi suspensa pelo período de quatro (4) anos;

3 – Declarou perdidos a favor do Estado o estupefaciente, as facas, isqueiro, placa de madeira, folha branca, tubo de medição de cor amarela e a caixas, bolsa, rolos de fotografias, o telemóvel Nokia, modelo 5210 e o telemóvel Nokia, modelo 6630, apreendidos (cuja destruição foi ordenada), as quantias em dinheiro, a viatura Peugeot, modelo 106, matrícula …-…-TT e o veículo Volkswagem, modelo Pólo, de matrícula …-…-SH;

Inconformados com tal condenação, os arguidos AA e BB interpuseram recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, recurso esse que é interposto de decisão proferida pelo Tribunal Colectivo e versa exclusivamente sobre matéria de direito (discordam de ter sido decretada a perda dos veículos automóveis a favor do Estado e a perda das quantias em numerário, apreendidas, pretendendo que tais bens lhes sejam entregues, entendendo ainda, quanto a estas quantias em numerário, que a decisão recorrida padece do vício previsto no artigo 410º-2-b) do CPP: contradição insanável entre a decisão e a fundamentação).

Terminam a respectiva motivação (conjunta) com as seguintes - - - -

CONCLUSÕES:

1. Os recorrentes contestam a perda dos veículos automóveis, determinada pelo douto acórdão condenatório em obediência ao disposto no artigo 35° do D.L, 15/93.
2. Na verdade, entendem que tais viaturas não foram determinantes, nem essenciais para o cometimento do crime aqui em causa.
3. Foi dado como provado que os arguidos eram também eles consumidores, que a totalidade do produto apreendido não era destinada à venda a terceiros.
4. Pelo que, os recorrentes poderiam deslocar-se ao referido café apeados, de transporte público, à boleia... não se podendo considerar os veículos como factores determinantes e possibilitantes do crime de tráfico.
5. Não se verificando, portanto, qualquer razão para a aplicação do artigo 35° do referido D.L.
6. Além do mais, tais viaturas, encontram-se registadas em nome de terceiro tal propriedade não lhes pertencendo não pode ser determinada a sua perda sob pena de prejudicar interesses de terceiros, de boa fé, já que foram adquiridas através da celebração de contratos de leasing, especificamente celebrados para o efeito.
7. Pelo que, a sua perda não deveria ter sido determinada
8. Foram indevidamente declarados perdidos a favor do estado as quantias em numerário apreendidas, tendo em conta o facto não provado in ponto 32.

Respondeu o Exmº Magistrado do MºPº junto da 2ª Vara Mista do Tribunal Judicial da comarca de Vila Nova de Gaia, pugnando pelo não provimento do recurso e pela manutenção do decidido.

Alega, em resumo:

O perdimento dos veículos a favor do Estado foi bem determinado uma vez que se deu como provado (ponto 21) que tais veículos “eram usados pelos dois arguidos no transporte de haxixe”.
E para tal, é indiferente que a propriedade desses veículos seja ou não do(s) arguido(s)/agente(s), sendo certo que os terceiros de boa fé, para protegerem os seus direitos, podem lançar mão do procedimento a que alude o artigo 36º-A do DL 15/93, de 22.Janeiro.
Aliás, a utilização dos veículos para o transporte de droga não teve natureza esporádica, como decorre dos pontos 1, 4, 5, 6, 11 e 12, dos factos provados.

Por outro lado, no que respeita á declaração de perdimento das quantias em dinheiro apreendidas, não se colhe do texto da decisão recorrida contradição insanável da fundamentação e/ou entre os fundamentos e a decisão.
É que o conteúdo dessa decisão terá de ser relacionado com ols pontos 15 e 17 dos factos provados e, por isso, não foi determinado que todas as quantias em dinheiro apreendidas fossem declaradas perdidas, devendo ter-se em conta aquela restrição.

A Exmª Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal teve vista do processo nos termos do artigo 417º-1 do CPP e emitiu douto Parecer no sentido do não provimento dos recursos.

Foi cumprido o disposto no artigo 417º-2 do CPP.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

As questões suscitadas pelos recorrentes e a decidir são apenas as respeitantes à perda dos veículos e á perda das quantias em numerário, apreendidas.


É a seguinte a matéria de facto (transcrição):

FACTOS PROVADOS ALEGADOS NA ACUSAÇÃO PÚBLICA.

1. O arguido BB deslocava-se com o seu veículo de matrícula …-…-SH, marca Volkswagen, modelo Pólo, por regra após as 20.30 horas, junto do café "Seixas", situado na Rua Ponte Pereiro, em Pedroso, nesta comarca, onde era abordado por indivíduos consumidores de haxixe, a quem entregava pequenas porções desta substância, e deles recebia o respectivo pagamento em dinheiro.
2. No dia 14/3/05, entre as 20.28 horas e as 21.20 horas, junto do café "Seixas", o arguido AA efectuou 6 vendas de haxixe a outros tantos consumidores.
3. No dia 30/6/05, pelas 19.20 horas, junto ao mesmo café, o mesmo arguido entregou a um indivíduo que se encontrava sentado num degrau das escadas do café uma porção de haxixe a troco de 3 notas de cinco euros.
4. No dia 8/7/05, pelas 21.28.20 horas, o arguido BB, junto do veículo Peugeot, matrícula …-…-TI conduzido pelo cunhado, o arguido AA, rodeado de indivíduos, partiu um pedaço de haxixe e entregou-o a um consumidor a troco de dinheiro.
5. Cerca de 2/3 minutos depois, o arguido BB abandonou o grupo e dirigiu-se ao condutor do Peugeot, o arguido AA, e através da janela desse lado recebeu em mãos vários pedaços de haxixe que guardou no bolso das calças, tendo de seguida, regressado ao convívio do grupo, enquanto que o cunhado no Peugeot abandonou o local.
6. No dia 15/7/05, pelas 20.12 horas, o AA chegou junto ao dito café no veículo Peugeot já referido, saiu do seu interior e entregou porções deste produto ao condutor do veículo de matrícula …-…-CZ, que se encontrava estacionado à sua frente. No regresso ao carro, vendeu produto semelhante a dois indivíduos.
7. No dia 14/10/05, entre as 21.11 e as 21.55 horas, junto do citado café, e depois de ter saído da casa do cunhado pelas 20.53 horas, o arguido BB vendeu a pelo menos, 6 consumidores haxixe, tendo alguns dos compradores logo procedido ao seu consumo no local. Após as vendas, o BB regressou a casa do AA, tendo ali dado entrada pelas 22.10 horas.
8. No dia 15/10/05, pelas 13.35 horas, depois de ambos terem saído do café Seixas, o arguido AA entregou uma "placa" de haxixe ao arguido BB e este entregou-a, a troco de dinheiro, a três consumidores que se encontravam por perto, tendo de imediato os compradores consumido no local parte do produto comprado.
9. Ainda nesta ocasião o arguido BB vendeu haxixe a, pelo menos, 6 consumidores.
10. No dia 7/11/05, depois de sair do café "Seixas", pelas 21.04 horas, o arguido BB vendeu a um grupo de, pelo menos, 6 indivíduos pedaços de haxixe.
11. Mais tarde, pelas 21.18 horas, o arguido AA chegou ao local no veículo de matrícula …-…-TT, e recebeu do arguido BB - que após abandonou a zona e foi pernoitar em casa do cunhado - pedaços de haxixe e vendeu a três consumidores acabados de chegar algumas porções daquele estupefaciente que recebera do cunhado, tendo logo ali os consumidores também consumido parte do produto adquirido.
12. Nesta ocasião, o arguido AA efectuou mais cinco vendas de produto igual a outros tantos consumidores.
13. No dia 6 de Janeiro de 2006, foi efectuada uma busca à residência do arguido AA, sita na Rua Heróis do Ultramar, n.° …, 2.° andar, Vilar de Andorinho, V.N. de Gaia, onde também o BB costumava pernoitar, vindo a apreender-se os bens seguintes:. No quarto de dormir do AA:

- a quantia de 125 euros em notas do BCE, que se encontrava guardada numa gaveta da mesinha de cabeceira;
- 1,990 gramas líquidas de haxixe í resina). que se encontravam no interior de uma caixa metálica, depositada dentro de uma gaveta da mesinha de cabeceira;
- 3360 gramas líquidas também de haxixe (resina) que se encontravam na mesma gaveta dentro de um maço de tabaco Malboro;
- cinco euros do BCE. No quarto utilizado pelo BB:
- 140 euros, em notas do BCE, que se encontravam escondidas debaixo do colchão;
- debaixo da cama, no interior de uma embalagem de cartão, faca contendo resíduos de canabis, isqueiro, placa de madeira, folha branca e tubo de medição de cor amarela, todos eles também com resíduos de canabis, e ainda uma caixa metálica contendo 6,250 gramas líquidas de haxixe (resina);
- a quantia de 900 euros , dentro de uma gaveta da mesinha de cabeceira;
- 4.150 gramas líquidas de haxixe (resina), guardada dentro de uma bolsa que se encontrava depositada noutra gaveta;
- 3,740 gramas líquidas de haxixe (resina), guardadas dentro de uma outra caixa metálica da mesma gaveta;
- 36.230 gramas líquidas de haxixe (resina) guardados dentro de um rolos de fotografias, que se encontrava no mesmo local;
- 8.330 gramas líquidas de haxixe ( resina) que se encontram dentro de uma caixa
metálica colocada por cima do guarda-fatos;
- 109,920 gramas líquidas também de haxixe (resina) guardados dentro do guarda-fatos.
Na sala de jantar:
Uma faca, sem resíduos de estupefaciente, guardada dentro da gaveta de um móvel.
Junto das garagens do prédio:
A viatura Peugeot, modelo 106, matrícula …-…-TT, conduzida pelo arguido AA.
Na posse do arguido AA:
- 8,250 gramas de haxixe (resina);
-telemóvel Nokia, modelo 5210;
-a quantia de 25 euros, em notas oficiais do BCE.
14. Na residência do pai do arguido BB, sita na Rua Adelino Amaro da Costa, …, em Olival, V.N. de Gaia, correspondente à sua residência oficial, foi apreendido:
Na posse do BB :
- telemóvel Nokia, modelo 6630, com o IMEI 355677008371722, e n.° 91-6040346;
- livrete e titulo de registo de propriedade do veículo Volkswagem, modelo Pólo, de matrícula …-…-SH;
- o próprio veículo a que aqueles documentos diziam respeito, que se encontrava
aparcado no Hospital de São João, do Porto, onde o arguido prestava os seus serviços
de motorista .
15. Parte dos 155 euros - divididos por 2 notas de 20 euros, 8 de 10 e 7 de 5 euros -apreendidos ao arguido AA eram provenientes da venda de haxixe.
16. A totalidade do haxixe que lhe foi apreendido aquando da busca e na sua posse, que perfazia o total de 13,600 gramas líquidas, era por ele destinado à venda a terceiros e ao seu consumo.
17. Também parte dos 1.040 euros - divididos por 45 notas de 20 euros, 7 de 10 e 14 de 5 euros - apreendidos ao arguido BB eram resultado das vendas daquela substância aos consumidores.
18. As duas facas eram utilizadas nas operações de corte da canabis, as quais se realizavam sobre o placa de madeira, enquanto que a folha em papel e o tubo amarelo, serviam para dosear as doses e o isqueiro para fechar as embalagens das doses de haxixe.
19. Igualmente, todo o haxixe que lhe foi encontrado no quarto que ocupava na residência do cunhado, no total de 168,620 gramas líquidas, tinha como fim a sua venda aos consumidores e seu consumo pelo arguido BB.
20. Os dois telemóveis eram utilizados nos contactos estabelecidos para a compra da droga.
21. Os veículos Peugeot e Volkswagen apreendidos eram usados pelos dois arguidos no transporte do haxixe.
22. Os arguidos vendiam as doses de haxixe aos consumidores, de acordo com o tamanho, entre os 10 e os 25 euros a "placa" e os 2,5 e os 5 euros a "meia placa".
23. O arguido AA tem como última declaração de IRS a referente ao ano fiscal de 2004, tendo aí declarado ter auferido naquele ano rendimento bruto de 4.007,54 euros.
24. O arguido BB, no ano de 2005, trabalhou para a firma J. F… S…, Lda., tendo auferido por mês cerca de 547 euros.
25. Não obstante desenvolveram actividade laboral, os dois arguidos retiravam proventos económicos da venda de haxixe que utilizavam para satisfação do seu consumo de haxixe e para adquirir outros produtos.
26. Os arguidos conheciam as características estupefacientes e psicotrópicas do haxixe e sabiam que a sua posse, detenção, venda ou consumo eram proibidos por lei.
27. Actuaram livres, consciente e voluntariamente bem sabendo que as suas condutas eram punidas por lei.

ACTOS NÃO PROVADOS ALEGADOS NA ACUSAÇÃO PÚBLICA.

28. Os arguidos deslocavam-se diariamente ao Café Seixas.
29. Depois de cerca de 30 minutos da chegada do arguido BB ao referido café aprecia o arguido AA que, a partir desse momento, assegurava o negócio de venda de haxixe.
30. Ambos procuravam vender o haxixe de modo discreto, em local pouco iluminado e sempre atentos ao que se passava ao seu redor, existindo entre os arguidos elevando grau de afectividade e de convivência.
31. A totalidade de haxixe apreendido era destinado pelos arguidos à venda a terceiros.
32. A totalidade do dinheiro apreendido era resultado das vendas de haxixe efectuadas.
33. Os arguidos, desde Janeiro de 2005, dedicavam-se à venda de porções de haxixe na Rua Ponte Pereiro, em Pedroso, Vila Nova de Gaia.
34. As porções de haxixe eram preparadas em comunhão de esforços dos arguidos.
35. Era principalmente da venda de canabis que os arguidos retiravam proveitos económicos que lhes permitiam fazer face ao sustento diário.

FACTOS DEMONSTRADOS COM INTERESSE PARA A DETERMINAÇÃO DA SANÇÃO.

36. Os arguidos confessaram os factos demonstrados e demonstraram arrependimento.
37. Os arguidos não têm antecedentes criminais.
38. Os arguidos vivem na mesma residência com os pais do arguido AA, sua irmã, mulher do arguido BB, sua namorada e sobrinho (filho do arguido BB e mulher).
39. Os arguidos estiveram presos preventivamente à ordem deste processo desde 06 de Janeiro de 2006 até 26 de Outubro de 2006.
40. O arguido AA, que tem o 6o ano de escolaridade, trabalhava, antes de preso, como metalúrgico há cerca de 4 anos, aonde auferia o rendimento médio mensal de €425,00.
41. O arguido BB, que tem o 6° ano de escolaridade, trabalhava, antes de preso, como motorista há cerca de um ano, auferindo o rendimento médio mensal de € 540,00.

E é a seguinte a fundamentação da matéria de facto:

O tribunal formou a sua convicção quanto à matéria de facto apreciada nos seguintes meios de prova:
a) declarações do arguido AA, relativamente à detenção e venda do canabis, destino da canabis apreendida, origem do dinheiro apreendido, destino do produto da venda, consciência da ilicitude dos factos e condições pessoais;
b) nas declarações do arguido BB, relativamente à detenção e venda do canabis, destino da canabis apreendida, origem do dinheiro apreendido, destino do produto da venda, consciência da ilicitude dos factos e condições pessoais;
c) nas declarações da testemunha L… A… F… relativamente ao número de consumidores detectados nas vigilâncias que efectuou;
d) no teor dos autos de busca e apreensão de fls.135 a 141 (e reproduções fotográficas de fls. 170 a 183), autos de busca e apreensão de fls. 193 a 196, relativamente à natureza dos objectos apreendidos, em conjugação com o teor do relatório de exame de toxicologia de fls. 374 a 376;
e) no teor dos extractos de pesquisa do registo criminal de fls. 245 e 246, relativamente à ausência de antecedentes criminais;
f) no teor do documento de fls, 349 e 358 (extracto de consulta da Direcção geral dos Impostos relativamente aos rendimentos dos arguidos);
- nas declarações das testemunhas, patrão e superior hierárquico dos arguidos AA e BB, respectivamente, relativamente ao desempenho profissional dos arguidos antes da detenção;
g) no teor das informações escritas do IRS (produzidas no âmbito da requerida aplicação da obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica) de fls. 591 a 593 e 599 a 602, quanto às condições pessoais dos arguidos.
Os factos não provados resultam da circunstância de sobre os mesmos não ter sido produzido qualquer meio de prova ou de ter sido produzida prova do contrário.

Os Factos e o Direito:

Como atrás se disse, as únicas questões suscitadas e a resolver neste recurso, são as respeitantes á perda dos veículos utilizados pelos arguidos/recorrentes e à perda das quantias em numerário, apreendidas.

Relativamente a este último segmento – perda das quantias em numerário, apreendidas – os recorrentes suscitam, embora de forma muito sintética e linear, a questão da existência na decisão recorrida, do vício previsto no artigo 410º-2-b) do CPP: contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.

Apreciando este aspecto:

Como decorre do artigo 412º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido, que se define o âmbito do recurso.

É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso.

E o conhecimento oficioso pelo STJ verifica-se por duas vias: uma primeira que ocorre por necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no artigo 410º-2 do CPP; e outra que poderá verificar-se em virtude de nulidade de decisão, nos termos do estatuído no artigo 379º-2 do mesmo diploma legal.

Por outro lado, definindo os poderes de cognição deste STJ, estatui o artigo 434º do citado CPP que, sem prejuízo do disposto no artigo 410º-2 e 3, o recurso interposto para este Tribunal visa exclusivamente o reexame da matéria de direito.

Na verdade, enquanto antes de 01.01.1999 estava estabelecido um sistema de “revista ampliada”, após a reforma da Lei 59/98, de 25 de Agosto, deixou de ser possível recorrer para o STJ com fundamento da existência de qualquer dos vícios referidos nas várias alíneas do artigo 410º-2 do CPP.

Anteriormente, o Supremo tinha poderes de intromissão em aspectos fácticos, mesmo nos casos em que o conhecimento se restringia a matéria de direito, embora de forma mitigada pois o reexame da matéria de facto apenas poderia ter lugar através da análise do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum e podendo o recorrente invocar como fundamento do recurso os vícios referidos.

Após a reforma de 1998, o STJ pode ainda conhecer dos vícios do artigo 410º-2 do CPP, não a pedido do recorrente, isto é, como fundamento do recurso, mas por iniciativa própria, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto claramente insuficiente, ou fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias, detectadas por iniciativa do STJ, ou seja, se concluir que, por força da existência de qualquer daqueles vícios, não pode chegar a uma correcta solução de direito e devendo sempre o conhecimento oficioso ser encarado como excepcional, surgindo como último remédio contra tais vícios – cfr. Acs. deste STJ de 12.09.2007 (que aqui seguimos de perto) in Proc.2583/07 – 3ª; de 17.01.2001, de 25.01.2001, de 22.03.2001, in CJSTJ 2001, I, pág 210, 222 e 257; de 04.10.2001 in CJSTJ 2001, III, 182, de 24.03.2003 in CJSTJ 2003, I, 236, de 27.05.2004 in CJSTJ 2004, II, 209, de 30.03.2005 in Proc. 136/05 – 3ª, de 03.05.2006 in Processos 557/06 e 1047/06, ambos da 3ª secção, de 20.12.2006 in CJSTJ 2006, III, 248, de 04.01.2007 in Proc. 2675/06 – 3ª, de 08.02.2007 in Proc. 159/07 – 5ª, de 15.02.2007 in Processos 15/07 e 513/07, ambos da 5ª secção, de 21.02.2007 in Proc. 260/07 – 3ª, de 02.05.2007 in Processos 1017/07, 1029/07 e 1238/07, todos da 3ª secção e ainda Simas Santos e Leal Henriques, CPP anotado, 2ª edição, II volume, pág. 967, onde se refere: “O considerar-se que não podem invocar-se os vícios do nº 2 do artigo 410º como fundamento do recurso directo para o STJ de decisão final do tribunal colectivo, não significa que este Supremo Tribunal não os possa conhecer oficiosamente, como ocorre no processo civil e é jurisprudência fixada pelo STJ (…)”.

Por outro lado, continua em vigor o Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ, de 19.09.1995, in DR I Série-A, de 28.12.1995 e BMJ 450, 71 (acórdão 7/95) que no âmbito do sistema de revista alargada decidiu ser oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º-2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.

Como se disse, os arguidos/recorrentes invocam, na respectiva motivação e conclusões a violação do disposto no artigo 410º-2-b do CPP ou seja, neste segmento, invocaram o vício da matéria de facto – contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão - previsto naquele normativo.

Porém, o recurso para este Supremo Tribunal é restrito á matéria de direito, embora o STJ possa conhecer dos vícios do artigo 410º-2 do CPP nos termos (supra) referidos: por iniciativa própria, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto claramente insuficiente, ou fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias, detectadas por iniciativa do STJ, ou seja, se concluir que, por força da existência de qualquer daqueles vícios, não pode chegar a uma correcta solução de direito e devendo sempre o conhecimento oficioso ser encarado como excepcional, surgindo como último remédio contra tais vícios.

Ora, da análise do acórdão recorrido, do respectivo texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum e sem recurso a quaisquer elementos externos ou exteriores ao mesmo (designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo, designadamente em julgamento ou, como diz Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, III, pág. 339 “ … vedada a consulta a outros elementos do processo, nem é possível a consideração de quaisquer outros elementos que lhe sejam externos. É que o recurso tem por objecto a decisão recorrida e não a questão sobre que incidiu a decisão recorrida. …”) não se indicia a existência de qualquer um daqueles vícios.

Na verdade, daquele texto considerado nos termos referidos e indicados no citado artigo 410º-2 do CPP, não se indicia quer a insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, quer erro notório na apreciação das provas ou seja erro de que todos se apercebam directamente ou que a decisão esteja eivada de clara contradição insanável na fundamentação.

Isto é, da decisão recorrida, considerada por si só ou conjugada com as regras da experiência comum não se indicia erro grosseiro na decisão da matéria de facto, erro patente, que não escapa à observação do homem de formação média (neste sentido, cfr. entre muitos outros, os Acs. deste STJ de 06.04.1994 in CJSTJ, II, Tomo 2, pág. 186; de 17.12.1997 in BMJ 472, pág. 407; de 03.06.98 in Proc. 277/98 e de 15.07.2004 in Proc. 2150/04 – 5ª).

Do texto da decisão recorrida considerada nos termos referidos não resulta de forma evidente uma conclusão contrária àquela a que o tribunal chegou.

Na verdade, resulta do texto da decisão recorrida que o tribunal criou e fundou a sua convicção nas provas produzidas em audiência, provas essas que enumera e cuja análise crítica faz e valora em função das regras normais da experiência e da livre convicção (do tribunal).

O raciocínio lógico que serviu para o tribunal formar a sua convicção consta da motivação, de forma clara e sem contradições, tendo o tribunal concluído que os arguidos agiram de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.

Além disso, concluiu também o tribunal, considerando provado (da conjugação dos elementos de prova produzidos e devidamente individualizados no processo) quanto ao segmento agora em causa, ou seja, o respeitante ás quantias em numerários apreendidas, que:
Nº 15: “Parte dos 155 euros - divididos por 2 notas de 20 euros, 8 de 10 e 7 de 5 euros -apreendidos ao arguido AA eram provenientes da venda de haxixe”;
Nº 17: “Também parte dos 1.040 euros - divididos por 45 notas de 20 euros, 7 de 10 e 14 de 5 euros - apreendidos ao arguido BB eram resultado das vendas daquela substância aos consumidores”.

Por outro lado, o tribunal considerou não provado que:

Nº 32: “A totalidade do dinheiro apreendido era resultado das vendas de haxixe efectuadas”.

Sendo assim, não se vê que exista qualquer contradição entre aqueles factos provados e não provados.
Deles resulta evidente que foram apreendidas quantias em numerário, parte das quais eram provenientes da venda de haxixe (aos consumidores), mas, sendo assim, obviamente, que não ficou provado que todo esse dinheiro/numerário apreendido, era proveniente da venda daquela substância (haxixe).

Inexiste, portanto, qualquer contradição entre os factos provados e não provados.
E analisando a fundamentação da matéria de facto (supra transcrita) não se verifica que exista também qualquer contradição insanável da mesma.

Porém, não obstante não ter ficado provado que a totalidade do dinheiro apreendido era resultado das vendas de haxixe efectuadas, o certo é que foi decidido declarar perdidos a favor do Estado as quantias em dinheiro apreendidas, isto é, a totalidade dessas quantias.

Ora, decorre do exposto que há/haverá uma parte do dinheiro apreendido que não se provou que resultasse da venda de haxixe.

Por isso, essa parte do dinheiro apreendido, não podia ter sido declarada perdida a favor do Estado pois não se provou que tivesse sido produzida pela prática de uma infracção prevista no DL nº 15/93, de 22 de Janeiro (cfr. artigo 35º-1, do DL 15/93, citado) ou tivesse sido directamente adquirida pelos arguidos, através da infracção (cfr. artigo 36º-2 e 3 do mesmo DL 15/93).

E, ao contrário do que sustenta o Exmº Magistrado do MºPº na 1ª Instância, não foi declarada perdida apenas a parte do dinheiro que se provou ser resultado das vendas de haxixe efectuadas.

Na verdade, a decisão recorrida não faz qualquer distinção ou limitação quanto ao dinheiro declarado perdido a favor do Estado.

E, porque neste aspecto, em julgamento, não ficou apurado qual o exacto quantitativo que realmente é/era proveniente das vendas de haxixe, tal dúvida fica a subsistir, devendo ser a questão decidida em benefício dos arguidos, por aplicação do princípio do “in dúbio pró reo”.

Na verdade, após a produção da prova o Tribunal não conseguiu apurar com exactidão que parte concreta das quantias em numerário apreendidas aos arguidos era proveniente das vendas de haxixe, ficando a subsistir essa dúvida.

Sendo assim, a decisão respectiva não pode declarar tais quantias – na sua totalidade – perdidas a favor do Estado, pois o princípio “in dúbio pro reo” não o permite.

Daí que, nesta parte, a decisão recorrida não possa subsistir, devendo ser revogada, procedendo o recurso embora por outros fundamentos.

Apreciemos agora a questão respeitante á perda dos veículos Peugeot e Volkswagen apreendidos.

Entendem os arguidos/recorrentes que tais veículos não podiam ter sido declarados perdidos a favor do Estado porque, por um lado, tais viaturas não foram determinantes nem essenciais para o cometimento do crime em causa nestes autos e, por outro lado, tais veículos não são propriedade dos arguidos, mas de terceiros, pelo que a sua perda prejudica interesses desses terceiros de boa fé.
Quid iuris?

Nos termos do artigo 35º-1 do citado DL 15/93, de 22 de Janeiro, “são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos”.

E, nos termos do artigo 36º-2 do mesmo diploma legal, “São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos de terceiro de boa fé, os objectos, direitos e vantagens que, através da infracção, tiverem sido directamente adquiridos pelos agentes, para si ou para outrem”.

Ainda nos termos deste artigo 36º, mas seu nº 5, “Estão compreendidos neste artigo, nomeadamente os móveis, imóveis, aeronaves, barcos, veículos, depósitos bancários ou de valores ou quaisquer outros bens de fortuna”.

E preceitua o artigo 36º-A do mesmo DL, no seu nº 1 que “O terceiro que invoque a titularidade de coisas, direitos ou objectos sujeitos a apreensão ou outras medidas legalmente previstas aplicadas a arguidos por infracções previstas no presente diploma pode deduzir no processo a defesa dos seus direitos através de requerimento em que alegue a sua boa fé, indicando logo todos os elementos de prova”.

E acrescenta o nº 2 do mesmo preceito que “Entende-se por boa fé a ignorância desculpável de que os objectos estivessem nas situações previstas no nº 1 do artigo 35º”

Por outro lado, o artigo 109º-1 do Código Penal, na redacção resultante da revisão operada pelo DL 48/95, de 15 de Março, é no mesmo sentido ao estatuir que “São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas ou a ordem pública, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos”.

E estatui o artigo 110º-1 do mesmo Código que “Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, a perda não tem lugar se os objectos não pertencerem, á data do facto, a nenhum dos agentes ou beneficiários ou não lhes pertencerem no momento em que a perda foi decretada.”, acrescentando o nº 2 que “Ainda que os objectos pertençam a terceiro, é decretada a perda quando os seus titulares tiverem concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou do facto tiverem retirado vantagens; ou ainda quando os objectos forem, por qualquer título, adquiridos após a prática do facto, conhecendo os adquirentes a sua proveniência”.

Entendem os arguidos/recorrentes que aqueles veículos não poderiam ter sido declarados perdidos a favor do Estado porque não foram determinantes nem essenciais para o cometimento do crime em causa nestes autos e porque, tais veículos, não são propriedade dos arguidos, mas de terceiros, pelo que a sua perda prejudica interesses desses terceiros de boa fé.

Quanto ao facto de os veículos não terem sido determinantes nem essenciais para o cometimento do crime em causa há que ter em atenção o seguinte:

De acordo com o artigo 35º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, com a redacção introduzida pela Lei nº 45/96, de 03 de Setembro, a perda a favor do Estado, dos objectos que tivessem servido ou estivessem destinados a servir a prática de infracções previstas nesse diploma, deixou de estar dependente do perigo que deles pudesse resultar para a segurança das pessoas e ordem pública ou do risco sério de serem utilizadas no cometimento de novos ilícitos (ac. STJ de 16.Março.2005, SASTJ, nº 89, 90).
Para a declaração de perda a favor do Estado prevista no artigo 35º do DL 15/93, de 22.Janeiro, basta que os objectos possam ser considerados produtos do crime ou instrumentos deste, no sentido de que tenham servido ou se destinassem a servir para a prática de uma infracção prevista no referido diploma.

Para que assim seja, não se afigura necessário que os objectos tenham essa aplicação exclusiva, embora seja exigível que a sua relação com a prática do crime se revista de um carácter significativo, num relação de causalidade adequada, para que a infracção se verifique em si mesma ou na forma de que se revestiu (ac. STJ de 23.Junho.2005, Proc. 1578/05-5ª, SASTJ, nº 92, 116).

Ou, como se refere no acórdão deste STJ de 24.03.04, Proc. 270/04, desta 3ª Secção “A perda de objectos que tiverem servido para a prática de infracção relacionada com estupefacientes tem como fundamento a existência ou a preexistência de uma ligação funcional e instrumental entre o objecto e a infracção, de sorte que a prática desta tenha sido especificadamente conformada pela utilização do objecto.
Na especificidade de execução dos diversos e amplos casos de factualidade típica dos crimes ditos de “tráfico de estupefacientes” a possibilidade, concreta e determinada, da utilização de certos objectos depende muito do tipo de actuação que estiver em causa. O objecto há-de ser apto à execução, ou para contribuir e condicionar de modo específico ou modelar dos termos da execução, de tal sorte que sem o auxílio ou o uso do objecto os factos que constituem a infracção não teriam sido praticados, ou apenas teriam sido praticados de modo diferente, independente e autónomo, ou com neutralidade executiva do objecto.

Ora, no caso em apreço, é verdade que está provado que os veículos Peugeot e Volkswagen eram usados pelos dois arguidos no transporte do haxixe (cfr. nº 21 dos factos provados), com uma certa regularidade.

Porém, dos factos provados não resulta que esses veículos fossem determinantes ou essenciais á venda dos produtos estupefacientes.

É que os arguidos dirigiam-se normalmente ao café Seixas, situado em Pedroso, Vila Nova de Gaia.

Esse café era o local ou ponto de encontro dos arguidos e dos compradores.

Só que os arguidos residem próximo desse local, em Vilar de Andorinho, Vila Nova de Gaia.

E para se deslocarem para aquele local poderiam utilizar facilmente, transporte público ou mesmo deslocar-se a pé, sendo certo que, dos factos provados, resulta a existência, no local, aquando das vendas, de outros veículos e de pessoas apeadas.

Daqui decorre com alguma clareza que para a prática dos factos criminosos em questão, os veículos atrás referidos, embora usados pelos arguidos com alguma regularidade, não eram determinantes ou essenciais para a realização das vendas de haxixe.

Aqueles factos poderiam ser praticados pelos arguidos, sem o recurso ou a utilização dos veículos.

A utilização destes, correspondia a mera comodidade dos arguidos.

Por outro lado, as quantidades detidas pelos arguidos e transaccionadas foram consideradas “pequenas quantidades”, o que, aliás, determinou e possibilitou a convolação jurídica do tipo legal de crime do artigo 21º do DL 15/93, de 22 de Janeiro por que ambos os arguidos estavam acusados, para o crime do artigo 25º-a) do mesmo diploma legal, por que foram condenados.

Atente-se, aliás, que as quantidades transaccionadas foram “pequenas porções” de haxixe (nº 1 dos factos provados); uma porção de haxixe (nº 3); um pedaço de haxixe (nº 4); porções de haxixe (nº 6); vendeu a pelos menos 6 consumidores, haxixe, tendo alguns compradores logo procedido ao seu consumo no local (nº 7); uma placa de haxixe, tendo de imediato os compradores consumido no local parte do produto comprado (nº8); pedaços de haxixe (nº 10).

E, como decorre dos factos provados sob o nº 13, na residência do arguido AA foram apreendidas 1, 990 gramas líquidas de haxixe (resina); 3,360 gramas líquidas também de haxixe; mais 6,250 gramas líquidas de haxixe; 4,150 gramas líquidas; 3,740 gramas líquidas, 36,230 gramas líquidas; 8,330 gramas líquidas, 109,920 gramas líquidas, sempre de haxixe (resina), cujo total não chega ás duzentas gramas (168,620 gramas).
E o arguido BB aquando da busca tinha na sua posse o total de 13,600 gramas líquidas de haxixe (resina)

Sendo assim, não é difícil concluir que as quantidades detidas e transaccionadas pelos arguidos podiam ser levadas com facilidade, em qualquer bolso ou local do vestuário ou em qualquer pequena carteira ou saco.

Portanto, também daqui se constata que para o transporte daquelas pequenas quantidades de haxixe não era indispensável ou essencial a utilização daqueles veículos, isto é, dos factos provados não resulta que a conduta delituosa dos arguidos estivesse dependente da utilização daqueles veículos.

Aliás, como se disse, está provado que os arguidos usavam os referidos veículos no transporte do haxixe.

Mas não está provado que a utilização desses veículos pelos arguidos, fosse importante, determinante, essencial, para aquela actividade, para a realização e concretização das vendas do haxixe.

E, perante o circunstancialismo concretamente provado no casos dos autos, não será temerário dizer-se que, mesmo sem aqueles veículos, os arguidos levariam a cabo as vendas de haxixe, dadas as pequenas quantidades que transaccionavam e a facilidade de transporte dessas pequenas quantidades/doses de haxixe e a facilidade de deslocação para o local dessas transacções.

Com efeito, da factualidade assente e como decorre do que atrás se disse, não pode concluir-se existir uma relação directa determinante e/ou de causalidade adequada, entre a utilização daqueles veículos pelos arguidos e actividade delituosa dos mesmos.

O que impede a declaração de perda daqueles veículos a favor do Estado, nos termos atrás referidos.

Acresce que dos factos provados resulta ainda que o arguido AA, antes de preso, trabalhava como metalúrgico há cerda de 4 anos, auferindo, em média, cerca de 425 euros mensais.
E que o arguido BB, antes de preso, trabalhava como motorista há cerca de 1 ano, auferindo, em média, cerca de 540 euros mensais.

E, por outro lado, não ficou provado que fosse principalmente da venda de cannabis que os arguidos retiravam proveitos económicos que lhes permitiam fazer face ao sustento diário.

Assim sendo, não pode concluir-se nem resulta provado, que tais viaturas tivessem sido adquiridas pelos arguidos com dinheiro proveniente da venda de droga, pelo que, com esse fundamento não poderiam ser declaradas perdidas para o Estado.

Só que, não foi com esse fundamento que os veículos foram declarados perdidos para o Estado.

Finalmente, dos factos provados não resulta quem é ou quem são os proprietários dos veículos atrás referidos e apreendidos, designadamente que pertençam aos arguidos.

E os arguidos/recorrentes alegam que pertencem a terceiros, designadamente a sociedades com as quais aqueles terão celebrado contratos de leasing, cujas prestações vinham ou vêm pagando.

Assim, o veículo conduzido pelo arguido AA (Peugeot, matrícula …-…-TI) está a ser pago por este através de contrato de leasing celebrado com “Banque PSA Finance”, não sendo ainda propriedade daquele arguido, mas de terceiro.

E o veículo conduzido pelo arguido BB (Volkswagen, Pólo, matrícula …-…-SH) está registado em nome do “Banco Mais”.
(Cfr. docs. juntos aos autos).

Isso, porém, não seria suficiente para impedir a declaração de perda desses veículos a favor do Estado.

Na verdade, mesmo pertencendo a terceiro, a perda dos veículos pode ser decretada, como foi, podendo, nesse caso, o(s) terceiro(s) de boa fé, lançar mão do mecanismo previsto no citado artigo 36-A do DL 15/93, de 22 de Janeiro.

Porém, como se viu, não está provado que a utilização desses veículos pelos arguidos, fosse importante, determinante, essencial, para aquela actividade, para a realização e concretização das vendas do haxixe.

Por isso, também neste segmento, o recurso procede.

Decisão:

Nos termos expostos, concede-se provimento aos recursos dos arguidos e, em consequência:

Revoga-se a decisão recorrida na parte em que decretou a perda a favor do Estado (da totalidade) das quantias em dinheiro apreendidas e dos veículos automóveis Peugeot e Volkswagen, igualmente apreendidos.

Sem custas.

Lisboa, 24 de Fevereiro de 2010
Fernando Fróis (Relator)
Henriques Gaspar