Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1065/06.7TBESP.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: GREGÓRIO SILVA JESUS
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
TÉCNICO OFICIAL DE CONTAS
ESTATUTOS
DEVERES FUNCIONAIS
IMPOSTO
OBRIGAÇÃO FISCAL
DECLARAÇÃO DE RENDIMENTOS
REGIME APLICÁVEL
SEGURO DE RESPONSABILIDADE PROFISSIONAL
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 06/21/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - SENTENÇA - RECURSOS
DIREITO FISCAL
Doutrina: -Alberto dos Reis, Código Processo Civil Anotado, V Volume, pág. 143.
- António Borges e outros, in Elementos da Contabilidade, 14ª ed., Rei dos Livros, págs. 17 a 22.
- Antunes Varela, no Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, págs. 669 e 672; RLJ, ano 122, pág. 112.
- Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III Volume, 1972, págs. 228, 247.
- Lebre de Freitas, “A Acção Declarativa Comum à luz do Código Revisto”, Coimbra Editora, 2000, págs. 291, 297.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 762.º, N.º2, 798.º, 799.º, 1154.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 659.º, 660.º, N.º 2, 666º, N.º 2, 668.º, N.º 1, ALS. B), D), 729º, NºS 1 E 2, 722°, Nº 2.
CÓDIGO DO IMPOSTO SOBRE O RENDIMENTO DAS PESSOAS COLECTIVAS (CIRC): - ARTIGO 53.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 205.º, N.º1.
DL N.° 265/95, DE 17-10: - ARTIGOS 2.º, 3.º ALS. A) E E), 11.º, ALS. A) E C).
DL N.º 452/99, DE 05-11 (ECTOC): - ARTIGOS 6.º, 16.º, 52.º, N.º 4, 54.º, N.º1, AL. A).
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 19-10-2004, PROCESSO N.º 04B2638;
-DE 13-01-2005, PROCESSO N.º 04B4251;
-DE 3-02-2005, PROCESSO N.º 04B4009;
-DE 7-04-2005, PROCESSO N.º 05B175;
-DE 5-05-2005, PROCESSO N.º 05B839;
-DE 31-05-2005, PROCESSO N.º 05B1730;
-DE 17-04-2007, PROCESSO N.º 07B956;
-DE 13-10-2007, PROCESSO N.º 07A3570;
-DE 24-01-2008, PROCESSO N.º 07B3813;
-DE 21-02-2008, PROCESSO N.º 08B271;
-DE 10-04-2008, PROCESSO N.º 08B396;
-DE 9-10-2008, NO PROCESSO N.º 08B2809;
-DE 8-01-2009, PROCESSO N.º 08B3510, TODOS DISPONÍVEIS EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :

I - São coisas diferentes deixar de conhecer de questão de que deva conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. O que importa é que o tribunal decida da questão posta, não lhe incumbindo apreciar todos os fundamentos ou razões em que as partes se apoiam para sustentar a sua pretensão, pois a expressão “questões”, referida nos arts. 660.º, n.º 2, e 668.º, n.º 1, al. d), do CPC, não abrange os argumentos ou razões jurídicas invocadas pelas partes.
II - Só a falta absoluta de fundamentação é causa de nulidade da sentença, mas já não a que decorre de uma fundamentação incompleta, errada, medíocre, insuficiente ou não convincente, que apenas afecta o valor doutrinal e persuasivo da decisão e sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada quando apreciada em sede de recurso.
III - Uma das principais funções do TOC é assegurar o cumprimento das boas regras contabilísticas e o cumprimento das regras fiscais, assumindo a responsabilidade pela regularidade técnica, nas áreas contabilística e fiscal, das entidades sujeitas aos impostos sobre o rendimento que possuam ou devam possuir contabilidade regularmente organizada.
IV - Quando um TOC informa a entidade para que presta serviço acerca de qual o regime tributário que deve ser seguido – simplificado de tributação ou regime normal assente na contabilidade organizada –, está a exercer uma actividade que se enquadra na planificação da execução da contabilidade para a qual tem competência funcional.
V - A informação prestada pelo TOC para opção do regime tributário insere-se na sua actividade de consultadoria.
VI - Quando os clientes, as entidades sujeitas aos impostos, contratam um TOC esperam dele competência e diligência no exercício das respectivas funções, que passam pelo pagamento ao Estado dos impostos sobre o rendimento que têm de pagar, por uma aplicação judiciosa e consciente das normas fiscais e contabilísticas, e por deles exigirem um especial dever de informação sobre a forma como as suas obrigações fiscais devem ser cumpridas.
VII - Tem de considerar-se abrangida pelo âmbito do contrato de seguro celebrado entre a Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas e a seguradora, no âmbito da obrigatoriedade imposta pelo art. 52.º, n.º 4, do DL n.º 452/99, de 05-11, a responsabilidade por danos patrimoniais decorrentes do respectivo incumprimento.
VIII - O STJ não pode alterar a decisão sobre a matéria de facto quanto ao nexo de causalidade, do ponto de vista naturalístico.

Decisão Texto Integral:

    Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



        I— RELATÓRIO        

“AA - , Ldª, com sede na Rua ......., ......, Espinho, intentou acção declarativa, com processo ordinário, contra BB, residente na Rua ....., nº ....., Espinho, e “Companhia de Seguros CC, S.A.”, com sede no Largo do Calhariz, nº 30, Lisboa, pedindo a condenação solidária dos réus a pagarem-lhe a quantia de 15.193,00 €, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Alega para tanto, em síntese, que o réu BB foi seu contabilista e técnico oficial de contas durante mais de 15 anos, pagando-lhe mensalmente os respectivos honorários, e que o mesmo, no exercício das suas funções, não a informou do ónus de comunicar à administração fiscal que pretendia optar pelo denominado regime geral de determinação do lucro tributável, tendo, por isso, sido tributada pelo denominado regime geral simplificado, disso lhe advindo prejuízos, pois que se tivesse sido tributada por aquele primeiro regime geral teria liquidado a título de IRC uma quantia inferior em 15.193,00 €, por cujo ressarcimento é também responsável a ré seguradora por força de contrato de seguro que celebrou com a Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas.

Contestou apenas a ré seguradora excepcionando a incompetência territorial do tribunal recorrido, por ser competente o tribunal da comarca de Lisboa, e a ilegitimidade da autora, e, por impugnação, sustentando que o contrato de seguro não cobre a indemnização peticionada pela autora, apenas abrangendo a responsabilidade extracontratual dele estando excluído o acordo alegado entre a autora e o 1º réu, concluindo pela procedência das excepções e pela improcedência da acção.

A autora replicou pugnando pela improcedência das excepções.

Foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a excepção de incompetência territorial do tribunal recorrido e procedente a de ilegitimidade passiva da ré, e não da autora, absolvendo a seguradora da instância. Mais considerou, perante a falta de contestação do réu, confessados os factos articulados pela autora na sequência do que veio a ser proferida sentença a condenar o réu BB nos termos peticionados.

A autora agravou do despacho saneador na parte em que declarou a ré seguradora parte ilegítima no que obteve provimento no Acórdão da Relação do Porto de 17/12/08 (fls. 362 a 373), pelo que se procedeu à selecção da matéria de facto, sem reclamações.

Realizada a audiência de discussão e julgamento e decidida a matéria de facto, nos termos que constam do despacho de fls. 473/474, foi proferida sentença que julgou a acção procedente e, consequentemente, condenou solidariamente os réus no pagamento à autora da quantia de 15.193,00€, acrescida de juros à taxa legal de 4% desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Inconformada, apelou a ré, a Relação do Porto julgou parcialmente procedente a apelação e, alterando a sentença recorrida, condenou solidariamente os réus no pagamento à autora da quantia de 13.481,82€, e o réu BB a pagar à autora a quantia de 1.497,98€, quantias acrescidas de juros à taxa legal de 4% desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Continuando inconformada, a ré seguradora recorreu de revista, e nas alegações que apresentou formulou as seguintes conclusões:

a) 1ª questão - o acórdão recorrido deve ser considerado nulo por omissão de pronúncia em relação a uma das questões levantadas pela Recorrente (questão que aqui se coloca em 4º lugar);

b) com efeito, na decisão, o julgador deve "indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final, o que  foi de todo omitido no que toca à questão que então se colocou ao Tribunal de recurso;

c) 2ª questão - Da matéria de facto dada como provada não se pode extrair que o 1º Réu estivesse obrigado para com a Autora a exercer qualquer opção ou sequer a aconselhar o exercício de uma opção ligada ao regime de tributação a que esta última ficaria submetida;

d) A decisão que foi citada na sentença em recurso, assentou no pressuposto de que entre o dito t.o.c e o seu cliente foi acordada a prestação de serviços de consultoria fiscal e que aquele técnico se comprometeu também a entregar junto da Administração Fiscal a competente declaração de opção;

e) Embora não se prescinda do entendimento que a seguir se defende, repisa-se o que ressalta da Jurisprudência analisada: o técnico oficial de contas pode exercer funções de consultoria (e outras como entrega de declarações fiscais) desde que acordado com o cliente;

f) Ora, da matéria de facto dada como provada, o que se pode concluir é, apenas e só, que "durante cerca de 15 anos e até Junho de 2006 o réu BB fiscalizava, organizava e coordenava a execução da contabilidade da autora, assinando, conjuntamente com o legal representante da mesma, as declarações fiscais, as demonstrações financeiras e anexos" (realçado da responsabilidade da Apelante);

g) O conteúdo da obrigação assumida pelo 1º Réu perante a Autora foi única e exclusivamente a fiscalização, organização e coordenação da "execução da contabilidade": Execução da contabilidade;

h) E assinar declarações conjuntamente com o legal representante da Autora;

i) Exercer uma opção por um determinado regime de tributação ou aconselhar esse exercício nada tem a ver com execução de contabilidade;

j) Não se provou que o 1º Réu se tivesse comprometido perante a Autora com qualquer outro tipo de prestação de serviços;

k) Logo, o 1º Réu não estava obrigado a agir ou a aconselhar a agir num ou noutro sentido de conformação do regime de tributação;

1) 3ª questão - Há ainda que ponderar a apropriação ilícita que está a ser permitida nestes autos pois o contrato de seguro não pode cobrir os eventos que a Autora alegou nem estes eventos são susceptíveis de serem reconduzidos a um "erro profissional" do técnico oficial de contas;

m) Nos termos do artigo 2º, n° 1, das Condições Gerais da Apólice dos autos "O presente contrato tem por objecto a garantia da responsabilidade extracontratual que, ao abrigo da lei civil, seja imputável ao segurado, na qualidade ou no exercício da actividade expressamente referidas nas respectivas Condições Especiais e Particulares";

n) Nos termos do ponto 3 das Condições Particulares do contrato de seguro dos autos, estão cobertas "as indemnizações que legalmente sejam exigíveis ao Segurado, em consequência de danos patrimoniais causados a Clientes e ou Terceiros, desde que resultem de actos ou omissões cometidos durante o exercício da actividade de Técnico Oficial de Contas.";

o) Por outro lado, o n° 4 das condições especiais do contrato de seguro dos autos que prevê que "para além das exclusões referidas nas Condições Gerais, fica ainda excluída a responsabilidade: (...) por danos resultantes da prática de actos e/ou exercício de actividade profissional, para os quais o Segurado não esteja legalmente habilitado";

p) Assim, a apólice dos autos não abrange qualquer responsabilidade decorrente da prática de qualquer acto ou exercício de qualquer actividade que não se enquadre na actividade a que, por lei, os técnicos oficiais de contas estão habilitados a exercer, o que nos leva a ter de determinar os riscos decorrentes do exercício da profissão para a qual o técnico oficial de contas esteja habilitado e à análise das funções legalmente consagradas no art. 6º do Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas;

q) Do art. 6º do "ECTOC" resulta claro que o cerne e conteúdo fundamental da actividade a que os técnicos oficiais de contas estão habilitados a prosseguir está concentrado na alínea a) do citado preceito;

r) Tudo gira à volta de "planificar, organizar e coordenar a execução da contabilidade das entidades sujeitas aos impostos sobre o rendimento que possuam ou devam possuir contabilidade regularmente organizada" - note-se: planificar, organizar e coordenar a execução da contabilidade;

s) É de execução da contabilidade que se trata e de tudo quanto tenha a ver com planificar, organizar e coordenar essa tarefa de execução;

t) No elenco das funções legalmente atribuídas aos técnicos oficiais de contas enquadra-se apenas e só tudo o que tem a ver com organização e arquivo de documentos contabilísticos e fiscais, classificação de documentos e seu lançamento nos respectivos livros contabilísticos e no sistema informático e apuramento de impostos a pagar, ao que se acrescenta a planificação da execução dessa actividade com prestação de consultoria nessa área;

u) Não lhe cabe proceder ao exercício de opções de natureza jurídico - fiscal ou ao aconselhamento dessa natureza;

v) O entendimento de que aos técnicos oficiais de contas é permitido o exercício da actividade aconselhamento jurídico - fiscal representa a primeira apropriação que aqui se denuncia: é que a questão que se discute nestes autos (opção ou conselho de opção por um ou outro regime de tributação) envolve uma actividade de aconselhamento jurídico - fiscal, pois trata-se aqui de emitir um juízo opinativo para fundamentar uma resolução da administração tributária que pressupõe a interpretação e aplicação de normas jurídicas;

w) Porém, ao contrário do que a Autora pretende neste processo, a responsabilidade que está a pretender assacar ao 1º Réu é uma responsabilidade que se enquadra, não na actividade dos "TOC", mas na dos advogados e solicitadores habilitados à prática de actos jurídicos e à consulta jurídica - fiscal, reservada a estes profissionais nos termos da Lei n° 49/2004, de 24 de Agosto (cfr. também os artigos 53° e 56° do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pelo Decreto-Lei n° 84/84, de 16 de Março e pela Lei n° 15/2005, de 26 de Janeiro e o artigo 358°, b) do Código Penal);

x) É por esta mesma razão que o art. 3º, n° 2 do Código Deontológico dos Técnicos Oficiais de Contas dispõe que "os Técnicos Oficiais de Contas devem eximir-se da prática de actos que não sejam da sua competência profissional ou quando os mesmos, nos termos da lei, sejam da competência de outros profissionais.";

y) Este mesmo entendimento foi consagrado no Parecer n° E-57/04, emitido pelo Conselho Geral da Ordem dos Advogados, de 17 de Dezembro de 2004 (acessível em www.oa.pt, "pareceres do conselho geral"): "Os pareceres elaborados pelos técnicos oficiais de contas em matéria fiscal, bem como a preparação, elaboração, auxílio e entrega de reclamações de actos tributários, conexos com a profissão, sendo estas assinadas pelos respectivos sujeitos passivos, constituem actos próprios dos advogados e solicitadores";

z) Existe ainda uma ideia - simplista e errada, a nosso ver - de que o técnico oficial de contas "devendo servir para mais que fazer contas”, está obrigado a" invadir outras áreas da gestão económico-financeira e do planeamento fiscal das empresas (e empresários) seus clientes;

aa) Há que recordar o regime legal: a opção por um ou outro dos regimes de tributação, grosso modo, deve ser feita até 31 de Março de cada ano (art. 28° do CIRC);

bb) Ora, essa opção tem a ver com o volume de negócios (proveitos e despesas) gerados em cada ano, bem podendo suceder que o dito "regime simplificado" seja mais favorável que o dito de "regime geral de tributação pelo lucro tributável";

cc) Mas, a 31 de Março de cada ano é impossível a qualquer pessoa que não seja o próprio empresário/contribuinte prever qual vai ser a evolução da sua actividade;

dd) O facto é que o técnico oficial de contas não está obrigado a prever esta evolução e a assumir este risco - até porque não tem habilitações académicas e profissionais para tanto;

ee) Esta previsão, típica da actividade do empresário, cai no domínio da gestão económica e financeira e do planeamento fiscal da empresa: não cabe ao técnico oficial de contas, que é responsável apenas pela boa execução da contabilidade;

ff) Este é um problema de cultura e mentalidade que parece querer implantar-se em alguns sectores da nossa sociedade e que leva a desresponsabilizar o empresário e contribuinte, encarando-o como parte fraca ou verdadeiro néscio em assuntos cruciais da vida da sua empresa e levando a considerar que o contabilista (rectius, técnico oficial de contas) tem de fazer mais que as simples contas;

gg) Há que rebater esta visão arcaica e pouco consentânea com a especialização das actividades e profissões que caracteriza as sociedades modernas e avançadas, por forma a não se permitir esta invasão de terrenos das actividades de outros profissionais;

hh) Nas funções de um técnico oficial de contas cabe a responsabilidade pela planificação e organização da execução da contabilidade e a responsabilidade pelo cumprimento das obrigações fiscais (isto é, a comunicação ao Estado dos factos tributários ou com repercussão na situação tributária do contribuinte);

ii) Não cabe nessas funções o exercício de faculdades e direitos e não cabe a planificação do regime fiscal ou consultadoria nessa área que envolve pura consultadoria no plano do direito fiscal;

jj) Como foi decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão datado de 30 de Outubro de 2008 (Apelação n° 5637/02, 2ª Secção) e relatado pelo Juiz Desembargador Borges Carneiro (acessível em www.dgsi.pt): "O seguro profissional obrigatório não garante uma actividade contratada entre um contribuinte e um técnico oficial de contas, em termos de se obrigar a prestar-lhe consultadoria na área do direito fiscal, pois o que lhe compete é planificar, organizar e coordenar a execução da sua contabilidade ou prestar-lhe funções de consultadoria nessa área. Tais funções de consultadoria dos T.O.C, são relativas à planificação, organização e execução da contabilidade e não a consultadoria na área fiscal, isto é, a opção por um determinado regime de tributação";

kk) E, com mais actualidade, foi adoptada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24 de Março de 2009, nos seguintes termos:

"Em primeiro lugar, exceptuados os casos previstos no n° 3 do artigo 31° do CIRS, na redacção que lhe foi dada pela Lei n° 30-G/2000, de 29 de Dezembro (sem relação com o caso dos autos), a determinação dos rendimentos empresariais e profissionais, com base na contabilidade, de sujeitos passivos cujo volume de vendas não tivesse atingido valor superior a 30.000.000$00 não constituía um dever. Era apenas uma faculdade.

Em segundo lugar, o n° 4 do artigo 31° do Código do IRS, na redacção que lhe foi dada pelo art. 1º da Lei n° 30-G/2000, de 29 de Dezembro, ao dispor que a opção a que se refere o n° 2 (isto é, a opção pela contabilidade organizada) deve ser formulada pelos sujeitos passivos, na declaração de início de actividade (alínea a)) ou até ao fim do mês de Março do ano em que pretende utilizar a contabilidade organizada como forma de determinação do rendimento mediante a apresentação de uma declaração de alterações (alínea b)) não consente quaisquer dúvidas quanto à pessoa com legitimidade para fazer a opção pelo regime da contabilidade organizada: era o autor, pois era ele o sujeito passivo do imposto.

Em terceiro lugar, nem do artigo 6º nem do artigo 52° do Estatuto dos Técnicos Oficiais de Contas decorria para a 2ª Interveniente, caso fosse técnica oficial de contas do autor, o dever de optar pelo regime de contabilidade organizada. O artigo 6º diz respeito às funções dos técnicos oficiais de contas; o artigo 52° trata dos deveres gerais a que estão sujeitos estes profissionais. Nenhum segmento destas normas aponta no sentido de que cabe aos técnicos oficiais de contas o dever de optarem pela contabilidade organizada na determinação dos rendimentos profissionais e empresariais dos seus clientes, sujeitos passivos do imposto. Não havendo lei ou negócio jurídico que impusessem à 2ª Interveniente o dever de optar pelo regime da contabilidade organizada, é seguro que o facto de ela não ter feito essa opção não a constituiria na obrigação de reparar os danos daí resultantes, caso eles existissem." - com sublinhados da responsabilidade da Apelante.

ll) Desta forma foi também decidido pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 24 de Setembro de 2009, relatado pelo Exmo. Snr. Desembargador José Ferraz (3ª Secção, Processo n° 3035/07.9TBPVZ.P1), foi decidido que:

"Por outro lado, também não parece consentir dúvidas que é o contribuinte que tem a faculdade (e legitimidade) de fazer a opção. O contribuinte ou o seu representante legal, como um acto de gestão e de planeamento da sua empresa."

"Portanto que são os sujeitos passivos do imposto a quem cabe exercer a faculdade. Em nenhum passo da lei (tributária ou do estatuto dos TOCs) se coloca (como não poderia colocar-se) o exercício dessa faculdade a cargo dos Técnicos Oficiais de Contas."

"Ora, o assumir a responsabilidade técnica pelas áreas contabilística e fiscal não implica, necessariamente, a obrigação de entrega da dita declaração (que é do sujeito passivo e não do TOC) nas finanças."

"Desse leque de atribuições, não ressalta a de conselheiro fiscal, a fazer recair sobre o TOC o dever de informar o cliente e opinar sobre as melhores e escolha das melhores opções fiscais da empresa, maxime, tomando decisões (como seria a de optar por este ou aquele "regime" fiscal) pelo sujeito passivo e para este vinculativas."

"A actividade do TOC centra-se nos procedimentos, na regular elaboração das contas, do que não decorre alguma obrigação de aconselhamento no planeamento fiscal da empresa. Por outro lado, o facto do TOC poder desempenhar funções de consultadoria na área da sua (do TOC) formação [(n° 2, al. a)], relaciona-se essa consultadoria com as actividades mencionada na al. a) do nº 1 (é essencialmente essa a área da sua formação) e não com outras actividades como a do direito fiscal (na qualidade de TOC, entenda-se)."

"Em nenhum passo se diz que o TOC é (ou pode ser) um consultor fiscal, obrigando-se a emitir parecer (e pelas melhores soluções no planeamento fiscal da empresa ou a tomar decisões nessa área."

"A actividade do TOC concentra-se nas funções de "planificar, organizar e coordenar a execução da contabilidade das entidades sujeitas aos impostos sobre o rendimento" de modo que as contas e as declarações fiscais que elabora, assina e apresenta estejam regulares, regularidade essa que não decorre da escolha deste ou daquele regime de determinação do rendimento tributável mas da observância das regras dos planos oficiais de contas e conexas, já que lhe compete assumir a responsabilidade técnica nas áreas contabilística e fiscal (a regular execução das contas e das declarações fiscais necessárias à liquidação dos impostos sobre o rendimento). Ora estas funções não têm que ver nem dependem da escolha de determinado regime fiscal.";

mm) E também pelo Tribunal da Relação de Guimarães, com o acórdão datado de 3 de Novembro de 2009, proferido no âmbito da apelação n° 4810/06.7TBBCL.G1, da 2ª Secção Cível;

nn) Também a recente evolução legislativa de que se deu conta no corpo das alegações, que tem de ser analisada em face da lei de autorização legislativa ("Lei n° 97/2009, de 3 de Setembro) permite concluir a justeza deste entendimento: é que, como se pode ler por esta lei de autorização, o governo ficou autorizado a legislar no sentido de "clarificar as funções dos técnicos oficiais de contas no sentido de aquelas passarem a enquadrar:" (...) "que as funções de consultoria atribuídas aos técnicos oficiais de contas se referem a matérias contabilísticas, fiscais e relacionadas com a segurança social";

oo) Assim, o novo art. 6º do Estatuto dos técnicos oficiais de contas passou a abranger "funções de consultoria nas áreas da contabilidade, da fiscalidade e da segurança social";

pp) Houve uma evolução, passando a prever-se o que antes não se poderia considerar previsto e aquilo que agora podemos ler na al. a) do n° 2 do art. 6º (assim como na al. d) do n° 1 e b) do n° 2) é o reconhecimento do que não existia e o reconhecimento do que não existia corresponde à razão da aqui Apelante;

qq) Repisa-se o entendimento do legislador: clarificar as funções dos técnicos oficiais de contas no sentido de aquelas passarem a enquadrar;

rr) Nem contra o que se acaba de alegar pode valer o disposto no art. 11° do "Código Deontológico dos Técnicos Oficiais de Contas" pois, como resulta  facilmente da leitura do mesmo preceito, só existe dever de informar relativamente a condicionalismos de ordem legal relacionadas exclusivamente com o exercício da profissão: O dever de informar pressupõe, por isso, que estejamos a falar de condicionalismos que afectam o exercício da profissão do técnico oficial de contas, não de condicionalismos legais que possam afectar os clientes destes;

ss) De qualquer das formas, também o art. 11° do novo "Código Deontológico" saído da recente alteração legislativa confirma este entendimento: é que caiu a alínea c) que previa justamente aquela citada obrigação;

tt) 4ª questão - invoca-se aqui que não está provado o nexo de causalidade entre o facto (omissão do 1º Réu) e os danos da Autora (o acréscimo de imposto por ela pago ao fisco) em termos de se poder afirmar que os danos foram uma consequência directa, necessária ou provável da dita omissão do 1º Réu;

uu) Na verdade, não está provado - nem alegado - que a Autora, sabendo da possibilidade de opção, optaria por esse regime de contabilidade organizada;

vv) Assim decidiu o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, datado de 02 de Julho de 2009, relatado pelo Exmo. Snr. Conselheiro Mota Miranda e subscrito pelos Exmos. Snrs. Conselheiros Maria dos Prazeres Beleza e Carlos Alberto Sobrinho - junta-se aqui cópia por se desconhecer se se encontra publicado;

ww) O presente recurso deve ser julgado procedente e revogada a decisão recorrida, pois assim o impõem a boa interpretação e aplicação dos arts. 659°, n° 2, 660°, n° 2, 668°, n° 1, al. d), 713° e 721°, n° 2, todos do Código de Processo Civil, art. 6º do Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, Lei n° 97/2009, de 3 de Setembro, a Lei n° 49/2004, de 24 de Agosto e também os artigos 53° e 56° do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pelo Decreto-Lei n° 84/84, de 16 de Março e pela Lei n° 15/2005, de 26 de Janeiro, que foram incorrectamente aplicados e consequentemente violados pela decisão recorrida, com o que farão V. Exas. a mais nobre e elevada.

A autora ofereceu contra-alegações defendendo a improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

O objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, salvo as questões de conhecimento oficioso, nos termos dos artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil[1] – por diante CPC.

São as seguintes as questões suscitadas que importa apreciar e decidir:

a) Nulidade do Acórdão;

b) Se o 1º réu não estava obrigado para com a autora a aconselhar o exercício de uma opção ligada ao regime de tributação a que ela ficaria submetida;

c) Se o contrato de seguro não cobre os eventos que a autora alegou;

d) Se não está provado o nexo de causalidade entre o facto (omissão do 1º réu) e os danos da autora.

                                             II-FUNDAMENTAÇÃO

DE FACTO

Vem tida por assente a seguinte matéria de facto:

Constantes da matéria de facto assente:

1) Por contrato de seguro titulado pela apólice n.º 49.704, a Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas transferiu para a ré a responsabilidade por indemnizações que legalmente sejam exigíveis ao segurado, em consequência de danos patrimoniais causados a clientes e ou terceiros, desde que resultem de actos ou omissões cometidos durante o exercício da actividade de Técnico Oficial de Contas.

Nos termos do Ponto 2 das condições particulares do referido seguro: segurado é o técnico oficial de contas inscrito na Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas cuja obrigação de subscrição deste seguro se encontra estabelecida pelo nº 4, do art. 52, do ETOC.

Nos termos do ponto 5 das condições particulares a garantia da apólice está limitada aos erros, actos ou omissões geradoras de responsabilidade ocorridas após a data de início do contrato e antes do respectivo termo, reclamadas até ao período de 4 anos subsequentes ao termo do contrato, desde que o facto gerador dos danos tenha ocorrido antes do referido termo - A.

2) Por contrato titulado pela apólice nº 87/42205, do Ramo Responsabilidade Civil exp. prof., com início a 10 de Novembro de 2000 e em vigor em 30 de Junho de 2003, a Câmara dos técnicos oficiais de contas transferiu para a ré Companhia de Seguros CC, S.A. a responsabilidade por indemnizações que legalmente sejam exigíveis ao Segurado, em consequência de danos patrimoniais causados a clientes e ou terceiros, desde que resultem de actos ou omissões cometidos durante o exercício da actividade de Técnico Oficial de Contas.

Nos termos do art. 2º das condições gerais da apólice o contrato tem por objecto a garantia da responsabilidade extracontratual, que, ao abrigo da lei civil seja imputável ao segurado, na qualidade ou no exercício da actividade expressamente referidas nas condições Especiais e Particulares. Estabelece o ponto 2 das condições particulares Segurado é o Técnico oficial de Constas, inscrito na Câmara dos Técnicos Oficiais de Constas, cuja obrigação de subscrição deste seguro se encontra estabelecida pelo n.º 4º do art. 52º, do ECTOC.

No art. 4º, n.º 1, al. l) das condições gerais, excluem-se do âmbito do seguro os danos decorrentes de acordo ou contrato particular, na medida em que a responsabilidade que daí resulte exceda a que o segurado estaria obrigado na ausência de tal acordo ou contrato -B.

Resultantes das respostas dadas à base instrutória:

3) O réu BB exerceu a actividade de Técnico Oficial de contas.

4) Durante cerca de 15 anos e até Junho de 2006 o réu BB fiscalizava, organizava e coordenava a execução da contabilidade da autora, assinando, conjuntamente com o legal representante da mesma, as declarações fiscais, as demonstrações financeiras e anexos.

5) A autora, em contrapartida pagava ao réu a execução dos actos supra referidos.

6) Em Março de 2003, réu BB não informou a autora que poderia optar pelo regime geral de determinação do lucro tributável.

7) Pelo que a autora não declarou à Administração Fiscal, até 31 de Março de 2003, a vontade de beneficiar de tal regime.

8) Ficando, por essa razão, sujeita ao regime de determinação simplificado.

9) No ano de 2003 a autora teve proveitos no valor de € 157, 474.

10) E no ano de 2004 teve proveitos no valor de € 164.707, 39.

11) No exercício de 2005 teve proveitos de € 139.151, 39.

12) Assim, pelo exercício do no ano de 2003, a autora pagou de IRC a quantia de € 8.425, 52.

13) No ano de 2004 a autora pagou, a título de IRC, a quantia de € 3.658,30.

14) Relativamente ao exercício de 2005 a autora pagou de IRC a quantia de € 3.407, 53.

15) A autora acordou com a Administração Central o pagamento em prestações do IRC relativo ao ano de 2003, até 30 de Setembro de 2005.

16) Pese embora tenha aceite o acordo, a Administração Central cobrou à autora juros moratórios, compensatórios e despesas relativas a custas prováveis.

17) O que elevou o valor devido pela autora à Administração Central, relativo a IRC do ano de 2003, para a quantia de € 9.808, 43.

18) Pelo que, em consequência dos factos descritos em 5º, 6º, 14º e 15º, a autora sofreu prejuízos no valor de 14.979,80 €.

DE DIREITO

A) Nulidade do Acórdão

Argui a recorrente a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia em relação a uma das questões por si levantadas reportada à inexistência de prova do nexo causal necessária à verificação da obrigação de indemnizar, questão que, diga-se, de novo coloca nesta revista em 4º lugar.

Conferindo atenção à apelação, constata-se, na realidade, haver a recorrente nas suas conclusões eee) e fff)[2] invocado que não estava provado o nexo de causalidade entre o facto (omissão do 1º réu) e os danos da autora (acréscimo de imposto por ela pago ao fisco) em termos de se poder afirmar que os danos foram uma consequência directa, necessária ou provável da dita omissão do 1º réu, pois que não estava provado, nem alegado, que a autora, sabendo da possibilidade de opção, optaria pelo regime de contabilidade organizada.

Mas lendo de igual forma atenta o acórdão impugnado, comprova-se que, depois de explicar o incumprimento do réu derivado da sua conduta omissiva e a causalidade entre essa conduta e os danos produzidos, o Tribunal recorrido deu resposta expressa, directa, e inequívoca a esta questão do nexo de causalidade, no seguinte trecho da sua deliberação que se transcreve: “Tal responsabilidade é regulada pelas regras da responsabilidade contratual, já que resulta de não ter sido cumprida uma obrigação contratualmente assumida, decorrendo dos factos provados o preenchimento dos pressupostos da obrigação de indemnização constantes do artº 798º do Código Civil por parte do co-réu TOC, designadamente o nexo de causalidade [factos provados de 6) a 18)], que vinha questionado pela apelante, obrigação de indemnização que, por força da alteração da matéria de facto, é apenas relativa ao montante de 14.979,80 €. “.

O juízo imediato que daqui deriva é, então, que a ocorrer algum vício não é seguramente o de omissão de pronúncia.

De facto, a nulidade prevista no art. 668º, n.º 1, alínea d) – primeira parte – do CPC, traduz-se no incumprimento ou desrespeito, por parte do julgador, do dever prescrito no art. 666º, n.º 2 do mesmo Código, segundo o qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outra[3].

Esta nulidade é uma constante nos recursos, originada na confusão que se estabelece entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos pelas partes. São, na verdade, coisas diferentes deixar de conhecer de questão de que deva conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento, ou razão produzida pela parte.

Com efeito, quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista. O que importa é que o tribunal decida a questão posta, não lhe incumbindo apreciar todos os fundamentos ou razões em que as partes se apoiam para sustentar a sua pretensão pois a expressão “questões” referida nos arts 660º, nº 2 e 668º, nº 1, al. d), do CPC não abrange os argumentos ou razões jurídicas invocadas pelas partes[4].

Sendo o espaço de censura da recorrente o acima mencionado, o problema que ela aqui coloca nada tem que ver com uma pretensa omissão de pronúncia, geradora de nulidade da sentença nos termos do artigo 668°, n° 1, do CPC acima caracterizada. Antes se poderá prender com eventual falta de fundamentação.

E apontando nesse sentido, manifesta a recorrente que aquela “explicação” não chega para se dar por cumprida a obrigação de fundamentação das decisões (art. 659° do CPC), não se tratando “de um caso em que a fundamentação seja pobre, escassa, medíocre ou simplesmente errada”, porque não chega a perceber a razão pela qual o Tribunal recorrido considera a existência desse nexo causal, o que é o mesmo que não responder à questão suscitada.

Ora, neste contexto, “é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão” (al. b), do nº 1, do art. 668º).

O dever de fundamentar as decisões judiciais que não sejam de mero expediente está previsto no n.º 1 do art. 205º da Constituição da República Portuguesa, que prescreve: “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.

Mas, não definindo nem delimitando o âmbito do dever de fundamentar as decisões judiciais a Constituição remete essa definição para a lei ordinária.

Sintetiza Lebre de Freitas o conceito de fundamentação da sentença do seguinte modo: “Na fundamentação, o juiz discrimina os factos que considera provados, determina as normas jurídicas aplicáveis, interpreta-as e aplica-as …”[5]  .

Neste âmbito, importa lembrar que tanto a doutrina como a jurisprudência têm unanimemente entendido que só a falta absoluta de fundamentação é causa de nulidade da sentença, mas já não a que decorre de uma fundamentação “incompleta, errada, medíocre, insuficiente ou não convincente” [6], que apenas afecta o valor doutrinal e persuasivo da decisão e sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada quando apreciada em sede de recurso.

Revertendo à decisão aqui recorrida, o que se pode dizer é que a recorrente pode entender que a sua fundamentação não o satisfaz, que é incompleta ou insuficiente. O que não pode é dizer que há falta de fundamentação. Os factos estão discriminados na sua integralidade e a motivação jurídica está presente, certo que de forma breve e condensada mas límpida e suficiente, nomeadamente no referente ao nexo de causalidade e danos da autora, explicitando as razões que levaram à procedência do seu pedido.

Deste modo, ainda que alguma deficiência ou, mais propriamente, alguma insuficiência fosse de apontar à fundamentação da decisão, não seria causa da sua nulidade.

Mas, poder-se-á ir um pouco mais longe na análise desta censura e acrescentar que se dermos enfoque à questão nos estritos termos em que a recorrente a coloca - “não está provado - nem alegado - que a autora, sabendo da possibilidade de opção, optaria por esse regime de contabilidade organizada “ - a mesma assume a feição de uma questão nova, uma vez que nunca como tal foi colocada na 1ª instância e nessa conformidade a ela não deveria a Relação dar resposta, pois que é pacífico, na jurisprudência e doutrina, que os recursos não se destinam a alcançar decisões novas, a menos que se imponha o conhecimento oficioso, que não é o caso, pois que visam a modificação das decisões recorridas[7].

Sem dúvida que o Tribunal recorrido naquele trecho da fundamentação que desenvolveu deu resposta concisa, directa e explícita à imputada falta de nexo de causalidade entre a omissão do 1º réu e os danos da autora/recorrida.

Não enferma, pois, o acórdão recorrido de qualquer nulidade, seja por omissão de pronúncia seja por falta de fundamentação.

B) Se o 1º réu não estava obrigado para com a autora a aconselhar o exercício de uma opção ligada ao regime de tributação a que ela ficaria submetida

Resulta dos factos provados (nºs 6, 7, 8 e 18) que em Março de 2003 o réu BB, a exercer a actividade de Técnico Oficial de Contas (TOC) da autora, não a informou que poderia optar pelo regime geral de determinação do lucro tributável, pelo que a autora não declarou à Administração Fiscal, até 31 de Março de 2003, a vontade de beneficiar de tal regime, ficando, por essa razão, sujeita ao regime de determinação simplificado, em consequência do que sofreu um prejuízo no valor de 14.979,80 €.

No acórdão impugnado concluiu-se que essa informação estava integrada na competência funcional de um TOC, e como não foi prestada considerou-se a responsabilidade por danos patrimoniais decorrentes desse incumprimento abrangida pelo âmbito do contrato de seguro celebrado entre a Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas e a recorrente, conforme a obrigatoriedade imposta pelo nº 4 do artigo 52º do DL nº 452/99.

Discorda a recorrente/seguradora argumentando que da matéria de facto dada como provada não se pode extrair que o réu BB estivesse obrigado para com a autora a exercer qualquer opção ou sequer a aconselhar o exercício de uma opção ligada ao regime de tributação a que esta última ficaria submetida.

O que se pode concluir do facto provado sob o nº 4, diz, é, apenas e só, que a obrigação por ele assumida foi única e exclusivamente “executar a contabilidade”, assinar declarações fiscais, as demonstrações financeiras e anexos conjuntamente com o legal representante da autora, e exercer uma opção por um determinado regime de tributação ou aconselhar esse exercício nada tem a ver com execução de contabilidade. O 1º Réu não se comprometeu perante a autora com esse tipo de prestação de serviços, pelo que não estava obrigado a agir ou a aconselhá-la a agir num ou noutro sentido de conformação do regime de tributação.

Vejamos o que se nos oferece dizer.

Dispõe o art. 53º do CIRC (Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas), aprovado pelo Dec.Lei nº 442-B/88, de 30/11, na redacção que lhe foi dada pelos arts. 1º da Lei 30-G/2000, de 29/12, e 30º da Lei 109-B/2001, de 27/12 que “Ficam abrangidos pelo regime simplificado de determinação do lucro tributável os sujeitos passivos residentes que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, não isentos nem sujeitos a algum regime especial de tributação, com excepção dos que se encontrem sujeitos à revisão legal de contas, que apresentem, no exercício anterior ao da aplicação do regime, um volume total de proveitos não superior a € 149.639,37 e que não optem pelo regime de determinação do lucro tributável previsto na secção II do presente capítulo”.

A opção pela aplicação do regime geral de determinação do lucro tributável devia ser formulada pelos sujeitos passivos na declaração de início de actividade ou na declaração de alterações a que se referem os artigos 110º e 111º, até ao fim do 3º mês do período de tributação do início da aplicação do regime. Opção que seria válida por um período de três anos (nºs 7 e 8 do citado art. 53º).

Vem assente que o 1º réu exerceu a actividade de Técnico Oficial de Contas, e durante cerca de 15 anos e até Junho de 2006 “fiscalizava, organizava e coordenava a execução da contabilidade da autora, assinando, conjuntamente com o legal representante da mesma, as declarações fiscais, as demonstrações financeiras e anexos”. A autora, em contrapartida, pagava-lhe a execução destes actos (nºs 3, 4 e 5 dos factos provados).

 Ainda assente está que “em Março de 2003, réu BB não informou a autora que poderia optar pelo regime geral de determinação do lucro tributável, pelo que a autora não declarou à Administração Fiscal, até 31 de Março de 2003, a vontade de beneficiar de tal regime, ficando, por essa razão, sujeita ao regime de determinação simplificado”, do que lhe advieram prejuízos no valor de 14.979,80 € (nºs 6, 7, 8 e 18 dos factos provados).

Estando em causa o desempenho de um TOC, quanto às suas funções estabelece o art. 6º do DL nº 452/99, de 05/11[8], que aprovou o Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas (ECTOC), que:

1 - São atribuídas aos técnicos oficiais de contas as seguintes funções:

a) Planificar, organizar e coordenar a execução da contabilidade das entidades sujeitas aos impostos sobre o rendimento que possuam ou devam possuir contabilidade regularmente organizada, segundo os planos de contas oficialmente aplicáveis, respeitando as normas legais e os princípios contabilísticos vigentes, bem como das demais entidades obrigadas, mediante portaria do Ministro das Finanças, a dispor de técnicos oficiais de contas;

b) Assumir a responsabilidade pela regularidade técnica, nas áreas contabilística e fiscal, das entidades referidas na alínea anterior;

c) Assinar, conjuntamente com o representante legal das entidades referidas na alínea a), as respectivas declarações fiscais, as demonstrações financeiras e seus anexos, fazendo prova da sua qualidade, nos termos e condições definidos pela Câmara, sem prejuízo da competência e das responsabilidades cometidas pela lei comercial e fiscal aos respectivos órgãos.

2 - Compete ainda aos técnicos oficiais de contas o exercício de:

a) Funções de consultadoria, nas áreas da respectiva formação;

b) Quaisquer outras funções definidas por lei, adequadas ao exercício das respectivas funções, designadamente as de perito nomeado pelos tribunais ou outras entidades públicas ou privadas”.

Desta formulação legal ressalta com flagrante evidência como uma das principais funções do TOC a sua vinculação a uma obrigação de natureza jurídico - pública, assegurar o cumprimento das boas regras contabilísticas e o cumprimento das regras fiscais, assumindo a responsabilidade pela regularidade técnica, nas áreas contabilística e fiscal, das entidades sujeitas aos impostos sobre o rendimento que possuam ou devam possuir contabilidade regularmente organizada, o que o torna num “interlocutor privilegiado com a administração fiscal”, como se diz no preâmbulo do referido Decreto Lei, e realça o interesse público do seu exercício.

Nesse contexto e propósito compete-lhe “planificar, organizar e coordenar a execução da contabilidade” dessas entidades, atribuição mais vasta do que as funções anteriormente reconhecidas no art. 2º do já citado Dec. Lei n° 265/95, de 17/10 que regulava o estatuto destes profissionais.

Ora, planificar etimologicamente significa “submeter a um plano” ou “estabelecer plano, projecto ou roteiro para[9], ou seja, estabelecer um conjunto de medidas, também de ordem económica ou fiscal, visando determinado objectivo.

Por sua vez, “a contabilidade é uma disciplina essencialmente concreta, pragmática, utilitária que, na sua parte metodológica, não oferece dificuldades de maior mas que, nas suas aplicações, exige, pelo contrário, bastante estudo e longa prática, porque como observa Quesnot, penetra de tal forma no domínio dos conhecimentos jurídicos, económicos, financeiros e administrativos que se reveste da complexidade das matérias a que se aplica”, assim considera o Prof. F. V. Gonçalves da Silva na Enciclopédia POLIS, 1º, vol., 1197.

Com o desenvolvimento das técnicas de gestão a contabilidade já não é apenas entendida como um elemento de simples recolha e interpretação dos dados históricos de uma empresa privada, ou mesmo de um departamento da administração pública, é além disso uma técnica eficiente de gestão. Daí que o técnico que a executa deva conhecer além dos processos de registo das operações muitas outras matérias, como direito fiscal, direito comercial, organização de empresas e gestão de empresas[10].

Portanto, “executar a contabilidade”, utilizando a expressão da recorrente, não é apenas como defende “só tudo o que tem a ver com organização e arquivo de documentos contabilísticos e fiscais, classificação de documentos e seu lançamento nos respectivos livros contabilísticos e no sistema informático e apuramento de impostos a pagar“, mas também, sem dúvida, projectar e estabelecer medidas que não só assegurem que as entidades sujeitas aos impostos sobre o rendimento cumpram as suas obrigações em matéria de execução da contabilidade e nas suas relações com a Administração Fiscal, como sejam simultaneamente convergentes com a melhor satisfação dos interesses dessas entidades.

Por isso, entendemos que quando um TOC informa a entidade para que presta serviço acerca de qual o regime tributário que deve ser seguido – simplificado de tributação ou regime normal assente na contabilidade organizada –, está a exercer uma actividade que se enquadra na planificação da “execução da contabilidade” para a qual tem competência funcional.

Mas, como se não bastasse, o nº 2, al. a) do transcrito normativo, também atribui ao TOC funções de consultadoria “nas áreas da respectiva formação”. Funções aqui conferidas no mesmo plano das definidas no nº 1, pois que, ao invés do que acontecia no anterior regime legal instituído pelo Dec. Lei n.° 265/95, de 17/10, desapareceu o sentido facultativo constante do então n° 2 do art. 6° referindo expressamente que “os técnicos oficiais de contas podem também exercer funções de consultadoria em matérias relacionadas com as habilitações que possuam...”.

Significa tal imputação que pode o TOC exercer consultadoria nas áreas contabilística e fiscal, áreas específicas da sua formação relacionadas com a função de TOC[11], e o conhecimento das coisas da vida diz-nos que é isso o que se passa na grande maioria dos casos.

Nem faria sentido que assim não fosse. Não se compreenderia que à época o legislador tivesse imposto, às entidades sujeitas aos impostos sobre o rendimento que possuam ou devam possuir contabilidade regularmente organizada, a obrigatoriedade de disporem de um TOC, determinando para esse desempenho uma maior exigência da sua formação académica e profissional com a necessidade de licenciatura, bacharelato ou curso superior equivalente e a instituição de estágio e de exame, à semelhança do que se constata relativamente a profissionais de outras áreas (cfr. preâmbulo do DL nº 452/99 e seus arts. 3º, nº 1, e 6º, e art. 16º do Estatuto) para os confinar a puras tarefas de guarda-livros na organização e arquivo de documentos contabilísticos e fiscais, seu lançamento nos respectivos livros contabilísticos e no sistema informático, e apuramento de impostos a pagar.

Como tal, temos por certo que a informação para opção do regime tributário se insere ainda na sua actividade de consultadoria[12].

Para além do mais, independentemente do que tenha sido clausulado no contrato celebrado com o cliente, estabelece a al. a) do nº 1 do art. 54º do seu Estatuto que os TOC nas relações com as entidades a que prestem serviços têm o dever de “desempenhar conscienciosa e diligentemente as suas funções”.

Ora, quando os clientes, as entidades sujeitas aos impostos, contratam um TOC esperam dele competência e diligência no exercício das respectivas funções, que passam pelo pagamento ao Estado dos impostos sobre o rendimento que têm de pagar, por uma aplicação judiciosa e consciente das normas fiscais e contabilísticas, e por deles exigirem um especial dever de informação sobre a forma como as suas obrigações fiscais devem ser cumpridas.

E compreende-se que assim seja já que se trata de profissionais com uma especial habilitação técnica, capaz de melhor interpretar e executar as normas que regulam aquelas matérias e de perspectivarem as consequências da sua aplicação aos clientes, que na grande maioria dos casos não têm essa habilitação, nem sequer a possibilidade de os acompanhar, que a eles recorrem para os auxiliar na tomada de decisões, e neles confiam que, no rigoroso cumprimento das regras contabilísticas e fiscais, tudo façam para defesa dos seus interesses patrimoniais.

Neste contexto, se não consente dúvidas que é o contribuinte que tem a faculdade de fazer a opção enquanto acto de gestão da sua empresa, é do TOC, conhecedor dos dados económicos e financeiros da mesma, que ele espera a informação ou aconselhamento sobre os regimes em função dos quais pode ser executada a sua contabilidade fiscal, do modo que entenda ser-lhe mais favorável.

Essa opção depende de factores variáveis como os elementos concretos da exploração, volume de negócios, estrutura de custos, e evolução esperada, dados que são do particular conhecimento do TOC cuja informação e conselho, por isso mesmo, assume especial importância para tal tomada de decisão pelo cliente face aos prejuízos ou benefícios que daí lhe advirão.

Também eram princípios relevantes no exercício do TOC, à data dos factos, constantes do art. 3º do seu Código Deontológico[13], a “Integridade” que significa padrões de honestidade e boa fé no exercício da profissão (al. a), a “Competência” que caracteriza o respeito pela lei e critérios éticos, consequentemente qualidade dos serviços que desempenha (al. e), a par de no art. 11º, sob a epígrafe Deveres de Informação, instituir-se como dever do TOC informar as entidades onde exercem funções, a pedido delas ou “por iniciativa própria”, “…das suas obrigações contabilísticas, fiscais e legais relacionadas exclusivamente com o exercício das suas funções” e “…dos condicionalismos de ordem legal susceptíveis de as afectar relacionadas exclusivamente com o exercício da profissão” (als. a) e c)).

Emana, assim, deste conjunto de princípios orientadores que se só por si o dever de informar se enquadra no que se deve entender por uma actuação diligente do TOC em atenção aos interesses do cliente, é apodíctico que o ónus de optar por um dos regimes de tributação integra os condicionalismos de ordem legal susceptíveis de afectar o cliente do TOC, daí que a prestação de informação com esse âmbito era estatutariamente obrigatória e imposta pela regra de que os contratos devem ser cumpridos de boa fé (nº 2 do artigo 762º do Código Civil).

Para rematar, reconheça-se, que nos TOC reside boa parcela da dinâmica das empresas, pois que acabam “por ter um papel que extravasa o âmbito da mera elaboração da contabilidade…para se tornar num conselheiro e, até, um parceiro estratégico no desenvolvimento do negócio da empresa”[14], do mesmo passo que assumem, inquestionavelmente, um papel primordial na gestão do sistema fiscal.

E é precisamente este o sentir e pulsar da própria classe como o expressa o seu Bastonário no seguinte escrito que se transcreve: “…os TOC são os mais bem posicionados na tomada de decisão de quem dirige as empresas, afirmando-se como o braço que apoia o empresário. Está ultrapassado o paradigma do profissional que se limita a debitar e a creditar. Entrou-se, irreversivelmente, numa era sem retorno: o profissional que cria valor para a empresa e, por arrasto, para o País.[15].

O intérprete não se pode alhear desta realidade. As funções de aconselhamento do regime tributário que deve ser seguido por um seu cliente está dentro da competência funcional de um TOC.

Improcede, assim, a pretensão da recorrente em demonstrar que o co-réu não estava obrigado perante a autora/cliente, em face do contrato que com ela celebrou e da matéria de facto dada por provada, a informá-la da opção a tomar por um determinado regime de tributação.

C) Se o contrato de seguro não cobre os eventos que a autora alegou

Alega a recorrente que a apólice dos autos não abrange qualquer responsabilidade decorrente da omissão apontada ao 1º réu, dado que não cobre a prática de qualquer acto ou exercício de qualquer actividade que não se enquadre na actividade a que, por lei, os técnicos oficiais de contas estão habilitados a exercer, e ao 1º réu não cabia proceder ao exercício de opções de natureza jurídico - fiscal ou ao aconselhamento dessa natureza.

Acabámos de ver que não lhe assiste razão nesta parte. A obrigação de informar para que a declaração de opção do contribuinte pelo regime da contabilidade organizada fosse atempadamente entregue integrava o leque dos deveres inerentes às funções contratualmente assumidas pelo 1º réu.

Não oferece, então, dúvidas que o 1º réu é civilmente responsável perante a autora por essa omissão ocorrida no exercício da sua actividade de TOC, tal como se encontra definida no art. 6º do Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas.

Nessa medida, tem de considerar-se abrangida pelo âmbito do contrato de seguro celebrado entre a Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas e a recorrente[16], no âmbito da obrigatoriedade imposta pelo nº 4 do artigo 52º do Decreto-Lei nº 452/99, a responsabilidade por danos patrimoniais decorrentes do respectivo incumprimento.

Disse a recorrente na sua contestação, e repete agora no recurso, que o contrato de seguro dos autos não pode cobrir eventos da natureza dos que se discutem neste processo, uma vez que nos termos do artigo 2º, n° 1, das Condições Gerais da Apólice o contrato tem por objecto a garantia da responsabilidade extracontratual que, ao abrigo da lei civil, seja imputável ao segurado, na qualidade ou no exercício da actividade expressamente referidas nas respectivas Condições Especiais e Particulares.

Mas as coisas não se passam assim, dado que segundo as “condições particulares”, “para além do que se expressa nas Condições Gerais da Apólice, o âmbito de cobertura da mesma compreende: as indemnizações…em consequência de danos patrimoniais causados a Clientes e ou Terceiros, desde que resultem de actos ou omissões cometidos durante o exercício da actividade de Técnico Oficial de Contas”.

Essa actividade obviamente que pode ser desenvolvida, como foi no caso dos autos, no âmbito de um contrato. Sobre a recorrente recai inevitavelmente a obrigação de reparação.

Decorre igualmente dos factos provados que estão preenchidos os pressupostos da obrigação de indemnizar, enumerados nos artigos 798º, 799º e 1154º do Código Civil, por parte do 1º réu: o não cumprimento de uma obrigação contratualmente assumida (6º facto provado) o dano (18º facto provado), o nexo de causalidade (6º a 18º dos factos provados) e a culpa (4º a 6º dos factos provados).

Por último, não colhe a observação da recorrente de que a responsabilidade que se está a pretender assacar ao 1º réu é uma responsabilidade que se enquadra, não na actividade dos TOC, mas na dos advogados e solicitadores habilitados à prática de actos jurídicos e à consulta jurídica - fiscal, reservada a estes profissionais nos termos da Lei n° 49/2004, de 24 de Agosto. Desde logo porque, como já expusemos, a actividade de consultadoria fiscal do TOC em relação ao seu cliente se insere na sua competência funcional, daí que “a ser verdadeira, provaria demais, impedindo os técnicos oficiais de contas de exercerem as suas funções”, como apropriadamente se ponderou e expressou no Acórdão deste Supremo de 9/10/08, no Proc. nº 08B2809, disponível no ITIJ, a propósito de questão análoga.

D) Se não está provado o nexo de causalidade entre o facto (omissão do 1º Réu) e os danos da Autora

Por fim, sustenta a recorrente que não está provado o nexo de causalidade entre a omissão do 1º Réu e os danos da autora (o acréscimo de imposto por ela pago ao fisco), em termos de se poder afirmar que os danos foram uma consequência directa, necessária ou provável da dita omissão, pois que não está provado - nem alegado - que a autora, sabendo da possibilidade de opção, optaria por esse regime de contabilidade organizada.

Ainda aqui lhe falece razão.

Pelo que acima já anotámos na alínea A), nos termos em que a recorrente a coloca, em bom rigor, trata-se de uma questão nova, e nessa conformidade a ela nem se deveria resposta.

 Mas, procurando dar cabal esclarecimento ao reparo feito, acrescentar-se-á que no acórdão recorrido entendeu-se que da actividade do 1º réu TOC resultaram prejuízos para a autora.

Como é sabido, o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, não conhece de matéria de facto, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (arts. 729º, nº 2 e 722°, nº 2, do CPC), situações de todo aqui inverificadas. Aplica definitivamente aos factos fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue aplicável (art. 729°, n.º1 do mesmo diploma).

Não pode, pois, alterar a decisão sobre a matéria de facto quanto ao nexo de causalidade, do ponto de vista naturalístico, como pretende a recorrente.

Já acima evidenciámos a responsabilidade contratual do réu TOC, e que dos factos provados decorre igualmente estarem preenchidos os pressupostos da obrigação de indemnizar, enumerados nos artigos 798º, 799º e 1154º do Código Civil, por parte do 1º réu.

Na realidade, mais precisamente dos factos referidos nos nºs 6º a 18º, resulta o prejuízo resultante de actos do réu TOC.

Portanto, está provado que, não fora a omissão do réu TOC a autora liquidaria quantias inferiores.

Está, pois, demonstrado o prejuízo e a sua causalidade na actuação do 1º réu.

Assim, não colhe na totalidade a argumentação conclusiva das alegações recursivas apresentadas pela recorrente.

III – DECISÃO

Pelos motivos expostos, acordam os juízes no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão da Relação do Porto recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 21 de Junho de 2011


Gregório Silva Jesus (Relator)
Martins de Sousa
Gabriel Catarino

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[1] No regime anterior ao introduzido pelo Dec. Lei nº 303/07, de 24/08, atenta a data de instauração da acção em 28/09/06 (cfr. arts. 11º e 12º do referido diploma).
[2] Agora ipsis verbis repetidas nas conclusões tt) e uu) desta revista.
[3] Cfr. Antunes Varela, no Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, pág. 672, Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III Volume, 1972, pág. 247 e Acs. do STJ de 13/01/05, 5/05/05, e 31/05/05, respectivamente, Proc. 04B4251, 05B839 e 05B1730, no ITIJ.
[4] Cfr. neste sentido Alberto dos Reis, Código Processo Civil Anotado, V Volume, pág. 143, Antunes Varela, RLJ, ano 122, pág. 112, Jacinto Rodrigues Bastos, obra citada, pág. 228.
[5] Em A Acção Declarativa Comum à luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 2000, pag. 291.
[6] Neste sentido se pronunciam Antunes Varela no Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, pag. 669, Lebre de Freitas, na ob. cit. pag. 297; e os acórdãos do STJ de 13-10-2007, 17-04-2007, 24-01-2008, 10-04-2008 e 08-01-2009, Procs. n.º 07A3570, 07B956, 07B3813, 08B396 e 08B3510, respectivamente, todos disponíveis no ITIJ.
[7] Cfr. Acs. do STJ de 19/10/04, Proc. 04B2638, 3/02/05, Proc. 04B4009, e 7/04/05, Proc. 05B175, todos disponíveis no ITIJ.
[8] Na redacção vigente à data dos factos, porquanto, tendo substituído o Dec. Lei nº 265/95 de 17/10, este diploma foi recentemente objecto de significativa alteração pelo Decreto-Lei n.º 310/2009 de 26/10 que, entre outras coisas, passou a denominação desta associação pública de profissionais para Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas.
[9] Dicionário Houaiss Da Língua Portuguesa, pág. 2893.
[10] Neste sentido, António Borges e outros, in Elementos da Contabilidade, 14ª ed., Rei dos Livros, págs. 17 a 22.
[11] Nos arts 2º e 9º do anterior regulamento estabelecido no DL nº 265/95, de 17/10 era empregue a expressão habilitação ou habilitações académicas agora substituída pela expressão área de formação pelo que esta não pode ter esse sentido restrito alusivo a habilitação académica.
[12] Os termos da Lei n.º 97/2009, de 3 de Setembro, que autorizou o Governo a alterar o Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, aprovado pelo Decreto-Lei n° 452/99, de 5 de Novembro, particularmente o seu art. 2º, e a al. a) do n° 2 do art. 6° do Dec. Lei n.° 310/2009, de 26/10, de forma expressa estabelecendo que os TOC prestam serviço de consultadoria nas áreas da contabilidade e fiscalidade, acrescentando apenas a área da segurança social como alargamento da sua área de intervenção, a nosso ver terão vindo clarificar isto mesmo, ao contrário do que sustenta a recorrente.
[13] Aprovado pela Câmara em cumprimento do disposto no art. 3º, nº 1, al. o) do ECTOC. Foi recentemente alterado pelo Dec. Lei nº 310/2009 de 28/10.
[14] Ac. deste Supremo de 21/02/08, Proc. nº 08B271, disponível no ITIJ,
[15] No Diário Económico de 21/04/10, sobre “O Papel do TOC”.
[16] Seguro de grupo em que o tomador é a mencionada Câmara e os segurados são os Técnicos Oficiais de Conta.