Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
85/20.3TNLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA LOBO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL MARÍTIMO
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
ARRESTO
NAVIO
INDEMNIZAÇÃO
NEGLIGÊNCIA
Data do Acordão: 11/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (MARÍTIMO)
Decisão: NEGADA
Sumário :
O Tribunal Marítimo não é competente, em razão da matéria, para conhecer uma acção de indemnização por danos sofridos com um arresto de navio que caducou por negligência do arrestante.
Decisão Texto Integral:

I – Relatório

I.1 – relatório

Almontas Kybartas intentou recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08 de Novembro de 2022 que confirmou a decisão proferida pelo Tribunal Marítimo de Lisboa que julgou procedente a excepção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria, daquele tribunal para conhecer da causa e, consequentemente, absolveu da instância a Ré Cassar Fuel L.td.

O recorrente apresentou alegações que terminam com as seguintes conclusões:

1. Discute-se, com o recurso que ora se interpõe, a (in)competência do tribunal de primeira instância, especificamente em razão da matéria, para conhecer da causa.

2. Ora, a presente acção diz respeito a um pedido de indemnização por danos, na sequência de um arresto pedido pela Ré, ora Recorrida, ao navio V....., o qual foi deixado caducar por razões unicamente imputáveis à negligência e inércia da Ré.

3. Tal inércia causou um prejuízo concreto ao ora Recorrente, prejuízo esse juridicamente tutelado.

4. Nesse sentido o n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”.

5. Mais acrescentando o artigo 621.º do Código Civil que: “Se o arresto for julgado injustificado ou caducar, o requerente é responsável pelos danos causados ao arrestado, quando não tenha agido com a prudência normal.”.

6. Ora, no caso sub judice, tratamos, portanto, da responsabilidade da Ré pelos danos causados por um pedido de arresto que caducou e cuja caducidade é inteira e exclusivamente imputável à Ré, ora Recorrida.

7. Nesse seguimento, o Autor, ora Recorrente, veio intentar a presente acção de indemnização, na sequência do arresto caducado, tendo apresentado o seu pedido no Tribunal Marítimo de Lisboa, por ser este o tribunal competente para conhecer do mesmo.

8. É, aliás, isso que decorre do artigo 113.º da LOSJ, no seu n.º 1, alínea a) que estabele que: “1- Compete ao tribunal marítimo conhecer das questões relativas a: a) Indemnizações devidas por danos causados ou sofridos por navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, ou resultantes da sua utilização marítima, nos termos gerais de direito;”.

9. Mais ainda estando em causa prejuízos (cujo ressarcimento se pede) relacionados com o navio, a sua tripulação, a sua carga, a impossibilidade de sair do porto, etc, tudo questões que exigem a profundidade e especialização existente nos tribunais marítimos.

10. Neste caso, e estando perante uma indemnização decorrente de um arresto que se deixou caducar, verifica-se que o Tribunal Marítimo é o tribunal indicado, fruto da sua especialização, para aferir de tais questões, cuja razão de ser se mantém, por força de razão, num pedido de indemnização autónomo ,como o sub judice, onde se discutirão temas igualmente especializados.

11. Finalmente, releve-se até o facto de que nem a própria Ré põe em causa a competência deste tribunal, pelo que, para as partes, também não está em causa a presente competência do douto tribunal.

12. Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente, requerendo- se a revogação do Acórdão recorrido e da decisão de primeira instância, julgando materialmente competente o Tribunal Marítimo de Lisboa, onde o processo deverá prosseguir seus regulares termos

Tudo com as legais consequências, só assim se fazendo JUSTIÇA!.

Não foram apresentadas contra-alegações.


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I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso

O recurso de revista é admissível ao abrigo do disposto nos art.º 629.º, n.º 2, a) e 671.º, n.º 2, a), ambos do Código de Processo Civil.


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I.3 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar a seguinte questão:

1. Tribunal competente, em razão da matéria, para conhecer do presente litígio.


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I.4 - Os factos

O acórdão recorrido considerou relevantes para a decisão do recurso os seguintes factos:

1. Almontas Kybartas intentou acção declarativa, com processo comum, contra Cassar Fuel Ltd., pedindo a condenação da R. no pagamento de € 490.929,74, acrescidos de juros vencidos e vincendos, até efectivo e integral pagamento.

2. Para tanto, alega que adquiriu, por transmissão da sociedade L..., o crédito que esta detinha sobre a R., pelos danos que lhe foram causados.

3. Refere que a sociedade O.... forneceu combustível à L..., destinado ao navio V....., de que esta era proprietária, o qual foi integralmente pago.

4. No entanto, como a referida O.... havia adquirido aquele combustível à aqui R., esta intentou contra a L... uma providência cautelar de arresto do navio V....., a qual correu termos no Tribunal Marítimo de Lisboa, alegando que o preço do combustível não se encontrava pago e que o navio havia sido objecto de contrato de fretamento.

5. O arresto foi decretado e efectivado, quando a ora R. bem sabia que o navio era pertença da L... e não da O.... e não havia sido objecto de qualquer contrato de fretamento.

6. Tal providência veio a caducar, com fundamento no facto de a acção ter estado parada mais de 30 dias, por negligência da requerente.

7. Conclui que o arresto, que era injustificado e que, aliás, caducou, causou diversos prejuízos à L..., no valor do pedido, decorrentes de ter estado impossibilitada de utilizar o seu navio durante 5 meses, período em que não pôde obter receitas para fazer face ao pagamento dos salários da tripulação, teve de pagar os custos inerentes à permanência do navio no porto, efectuou despesas com o processo de arresto e respectivos apensos de embargos de terceiro e prestação de caução, e viu-se desapossada, entre 30/9/2015 e 21/4/2020, do valor da caução que teve de prestar para levantamento do arresto.

II - Fundamentação

1. Competência material do Tribunal Marítimo

O recorrente considera que o Tribunal competente para conhecer da presente acção é o Tribunal Marítimo de Lisboa que decretou o arresto do navio que, alegadamente, gerou os danos que aqui pretender ver indemnizados.

Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, Lei de Organização do Sistema Judiciário estabelece no seu art.º 40.º “Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

Tal lei, no seu Capítulo V, reparte entre os diversos tribunais judiciais de primeira instância a competência, em razão da matéria, definindo as causas que competem às secções de competência especializada dos tribunais de comarca ou aos tribunais de competência territorial alargada. Como decorre da análise da Secção V deste Capítulo daquela lei, o Tribunal Marítimo é um tribunal de competência territorial alargada e compete-lhe conhecer as causas enumeradas no art.º 113.º:

Artigo 113.º

Competência

1 - Compete ao tribunal marítimo conhecer das questões relativas a:

a. Indemnizações devidas por danos causados ou sofridos por navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, ou resultantes da sua utilização marítima, nos termos gerais de direito;

b. Contratos de construção, reparação, compra e venda de navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, desde que destinados ao uso marítimo;

c. Contratos de transporte por via marítima ou contrato de transporte combinado ou multimodal;

d. Contratos de transporte por via fluvial ou por canais, nos limites do quadro n.º 1 anexo ao Regulamento Geral das Capitanias, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265/72, de 31 de Julho;

e. Contratos de utilização marítima de navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, designadamente os de fretamento e os de locação financeira;

f. Contratos de seguro de navios, embarcações, outros engenhos flutuantes destinados ao uso marítimo e suas cargas;

g. Hipotecas e privilégios sobre navios e embarcações, bem como quaisquer garantias reais sobre engenhos flutuantes e suas cargas;

h. Processos especiais relativos a navios, embarcações, outros engenhos flutuantes e suas cargas;

i. Procedimentos cautelares sobre navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, respectiva carga e bancas e outros valores pertinentes aos navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, bem como solicitação preliminar à capitania para suster a saída das coisas que constituam objecto de tais procedimentos;

j. Avarias comuns ou avarias particulares, incluindo as que digam respeito a outros engenhos flutuantes destinados ao uso marítimo;

k. Assistência e salvação marítimas;

l. Contratos de reboque e contratos de pilotagem;

m. Remoção de destroços;

n. Responsabilidade civil emergente de poluição do mar e outras águas sob a sua jurisdição;

o. Utilização, perda, achado ou apropriação de aparelhos ou artes de pesca ou de apanhar mariscos, moluscos e plantas marinhas, ferros, aprestos, armas, provisões e mais objectos destinados à navegação ou à pesca, bem como danos produzidos ou sofridos pelo mesmo material;

p. Danos causados nos bens do domínio público marítimo;

q. Propriedade e posse de arrojos e de coisas provenientes ou resultantes das águas do mar ou restos existentes, que jazam nos respectivos solos ou subsolo ou que provenham ou existam nas águas interiores, se concorrer interesse marítimo;

r. Presas;

s. Todas as questões em geral sobre matérias de direito comercial marítimo;

t. Recursos das decisões do capitão do porto proferidas em processo de contra-ordenação marítima.

2 - A competência a que se refere o número anterior abrange os respectivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.

3 - Nas circunscrições não abrangidas pela área de competência territorial do tribunal marítimo, as competências referidas nos números anteriores são atribuídas ao respectivo tribunal de comarca.

A leitura do preceito permite divisar que foi intenção do legislador que o Tribunal Marítimo se ocupasse de todas as questões que são especificas dos navios e engenhos flutuantes seja quanto aos contratos que lhes são próprios e exclusivos seja quanto ao comércio marítimo naturalmente por demandar conhecimentos técnicos que um tribunal especializado mais facilmente conseguirá gerir, garantindo assim, tanto quanto possível, um tratamento uniforme de questões similares, pelo menos dentro da área de competência territorial do tribunal marítimo onde surgirão com mais frequência. Em matéria de responsabilidade civil reservou-lhe apenas a acção emergente de poluição do mar e outras águas sob a sua jurisdição.

O recorrente fundamenta a sua pretensão no texto da alínea a) do n.º 1 deste artigo, mas sem razão. Ali estão em causa as acções de indemnização por danos causados ou sofridos por navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, ou resultantes da sua utilização marítima. Porém, na situação em análise o navio foi apenas o objecto arrestado e a indemnização que venha a ser arbitrada não se reporta a danos causados ou sofridos por ele, ou a danos originados na sua utilização marítima. Cremos mesmo que estarão sobretudo em causa os danos que o seu proprietário sofreu por não ter podido efectuar a utilização marítima do navio durante o arresto, e o navio em si nem sofreu nem causou danos como aconteceria num acidente de navegação ou ocorrido em operações de carga ou descarga.

A diferença de o bem arrestado ser um navio ou outro bem qualquer não se repercute na competência em razão da matéria do tribunal competente para conhecer da acção de indemnização pelos danos causados por um arresto que se veio a revelar injustificado ou que caducou por negligência do arrestante.

Nada na matéria alegada pelo recorrente se apresenta como particularmente atinente ao tráfego marítimo, ao comércio marítimo ou a um concreto contrato que só possa envolver navios.

Não sendo, como não é atribuído por lei a competência material para conhecer desta causa a um qualquer específico tribunal, ela está abarcada pela competência residual dos Juízos Cíveis, neste caso da instância central, atento o valor da causa – art.º 117º, n.1, a) da L. 62/2013.

Tal como decidido pelas instâncias procede a excepção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria, do Tribunal Marítimo para conhecer da causa.

Improcede, pois, a revista.


***


III – Deliberação

Pelo exposto acorda-se em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrida.


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Lisboa, 2 de Novembro de 2023

Ana Paula Lobo (relatora)

Catarina Serra

Fernando Baptista de Oliveira