Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03S3688
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERNANDES CADILHA
Descritores: CRÉDITO LABORAL
PRESCRIÇÃO
COMPENSAÇÃO
RECONVENÇÃO
Nº do Documento: SJ200405130036884
Data do Acordão: 05/13/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 8752/02
Data: 05/14/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Sumário : I - O crédito reclamado pela entidade patronal, no âmbito de um pedido reconvencional deduzido em acção emergente de contrato de trabalho, que provenha de pretensa prática de ilícito penal, por parte do trabalhador, está sujeito ao regime prescricional geral previsto no artigo 498º, nº 3, do Código Civil;
II - Desde que, na intitulada reconvenção, o réu não tenha produzido qualquer declaração de compensação, e não tenha reconhecido sequer a existência do crédito invocado pelo autor, não poderá o correspondente pedido reconvencional ser interpretado como constituindo matéria de excepção peremptória para efeito de obter, por compensação, a extinção do contracrédito do autor;
III - Nesses termos, em relação ao crédito invocado em reconvenção, não é aplicável o regime prescricional mais favorável do artigo 850º do Código Civil, que pressupõe que opere a compensação judiciária de créditos.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

1. Relatório.

"A", identificado nos autos, intentou a presente acção emergente do contrato de trabalho contra B, pedindo que se declare ilícito o seu despedimento e se condene o réu a reintegrá-lo no seu posto de trabalho, com direito às prestações salariais que deixou de auferir desde a data do despedimento até à data da sentença, e sem prejuízo da possibilidade de exercício do direito de optar pela indemnização de antiguidade.

Na contestação, o réu formulou um pedido reconvencional, reclamando uma indemnização pelos prejuízos decorrentes da ilícita apropriação pelo autor de valores provenientes da venda de produtos existentes no estabelecimento comercial do réu, e que caracterizaria um crime de furto cometido no exercício da actividade laboral.

No despacho saneador foi declarada verificada a prescrição dos créditos invocados pelo réu em reconvenção e, em consequência, julgado improcedente o pedido reconvencional, e em sentença final, foi julgada parcialmente procedente a acção e condenado o réu a pagar ao autor ao montante global de 1 999 078$00 (correspondente a 16 886,37 Euros), acrescido de juros até integral pagamento.

O réu apelou para o Tribunal da Relação quer do despacho saneador, quer da decisão final: no primeiro caso, invocou que os créditos peticionados no âmbito da reconvenção, sendo provenientes de ilícito penal, se encontravam sujeitos ao prazo prescricional mais longo previsto no artigo 498º, nº 3, do Código Civil, e, por isso, não se encontravam ainda prescritos à data da dedução do pedido reconvencional; no segundo caso, aduziu, além do mais, que a sentença final violou o disposto no artigo 850º do Código Civil, ao não efectuar a compensação dos aludidos créditos, visto que, nos termos dessa disposição, tal compensação tinha lugar independentemente de ter ocorrido a prescrição.

Apreciando conjuntamente ambos os recursos, a Relação negou-lhes provimento, por considerar, quanto à excepção peremptória, que os créditos reclamados pelo réu, sendo resultantes da violação dos deveres a que o trabalhador se encontrava obrigado, no quadro da relação laboral, se encontravam sujeitos ao prazo prescricional previsto no artigo 38º, nº 1, da LCT, e tendo sido peticionados para além do prazo de um ano aí previsto se encontravam efectivamente prescritos; por outro lado, com base na ocorrência da prescrição, entendeu que os aludidos créditos não poderiam ser atendidos para efeitos de compensação, julgando também improcedente, nesse ponto, o recurso interposto da decisão final.

É contra esta decisão que o réu se insurge, mediante recurso de revista em que formula as seguintes conclusões:

1ª O acórdão recorrido, ao julgar improcedente o pedido reconvencional, por prescrição, viola o disposto nos arts. 483° e 498° do Código Civil, aplicando incorrectamente o disposto no art. 38° do DL 49 408;
2ª Os créditos invocados pelo R. não prescreveram, pois que a obrigação de os pagar decorre para o A de responsabilidade civil, por facto ilícito de responsabilidade criminal, para além e sem prejuízo de também o comportamento que aos mesmos deu causa constituir violação dos deveres laborais;
3ª Deverá ser assim revogado o douto acórdão recorrido, julgando-se improcedente o pedido de prescrição formulado pelo A, devendo este ser condenado no pedido reconvencional;
4ª Deverá ainda ser fixada jurisprudência no sentido de: o prazo de um ano referido no art° 38°, n° 1 da LCT respeita aos créditos derivados directamente das relações essenciais de trabalho, enquanto que os derivados de factos ilícitos de natureza criminal são regulados, quanto ao aspecto prescricional, pela lei geral.
5ª O acórdão recorrido violou também o art. 850º do Código Civil, ao não efectuar a compensação dos créditos reconhecidos nos autos;
6ª Mesmo ajuizando pela prescrição do crédito do R., ficando porém nos autos bem reconhecida a sua existência, teria a sentença de declarar a compensação com o crédito do A.

O autor, ora recorrido, não contra-alegou, e o representante do Ministério Público neste Supremo Tribunal de Justiça, reconhecendo a divergência da jurisprudência quanto aos aspecto em causa, manifestou-se no sentido da aplicação do prazo prescricional previsto no artigo 38º, nº 1, da LCT, baseando-se no elemento interpretativo que resulta da circunstância do novo Código de Trabalho não ter operado qualquer alteração relativamente ao disposto naquele preceito. Quanto à possível compensação de créditos ao abrigo do artigo 850º do Código Civil, o mesmo magistrado sustenta que a referida norma não tem aplicação no caso, desde logo porque o réu não invocou, na contestação o seu potestativo direito compensatório, e também porque o pretenso crédito não era judicialmente exigível antes do termo do prazo estabelecido no citado artigo 38º.

O Exmo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça não atendeu, entretanto, ao pedido de julgamento em plenário para uniformização de jurisprudência que havia sido formulado pelo recorrente.

Colhidos os vistos dos Juízes Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

2. Matéria de facto.

As instâncias deram como assente a seguinte factualidade:

A) O Autor foi admitido ao serviço do Réu em 1.1.90 para trabalhar sob as suas ordens, direcção e fiscalização no seu estabelecimento "...., Bar e Restaurante", sito no Largo Luís Camões, n.º ...., em Cascais.
B) Exercia as funções de chefe de bar, competindo-lhe, para além de atender os clientes, cobrando os pagamentos por estes efectuados, supervisionar e orientar o serviço dos outros barmen.
C) Auferia ultimamente o salário mensal de Esc. 150.000$00, constando parte do mesmo no recibo de vencimento, sendo o restante pago extra-recibo.
D) Cumpria um horário de trabalho, por determinação do Réu, compreendido entre as 17h e as 2h, com uma hora de intervalo para o jantar, de segunda-feira a sábado, folgando ao domingo.
E) O Réu instaurou ao Autor o processo disciplinar junto a fls. 46 a 64, cujo teor dou por reproduzido.
F) No seu âmbito deduziu a nota de culpa junta a fls. 50 a 53, que enviou ao Autor, acompanhado do escrito de fls. 49, no qual lhe comunicava a intenção de proceder ao seu despedimento, com invocação de justa causa.
G) À nota de culpa respondeu o Autor conforme consta de fls. 54 a 56, dando por reproduzido o seu teor.
H) Em 6.12.99 o Réu decidiu proceder ao despedimento do Autor, invocando justa causa, nos termos constantes do relatório e decisão de fls. 61 a 64, dando também por reproduzido o seu teor.
I) O Autor tomou conhecimento da decisão referida em H) em 15.12.99.
J) O Autor foi suspenso preventivamente do exercício das suas funções, sem perda de retribuição, a partir de 20.10.99.
K) O Autor está inscrito no Sindicato da Indústria Hoteleira, Turismo e Similares do Sul, sendo o sócio n.º 102421.
L) Pelo menos a partir de 1.9.2000 o Autor aufere rendimentos de trabalho no valor de Esc. 106.000$00.
M) Vários meses antes de Outubro de 1999, o Réu vinha constatando uma redução nas receitas do estabelecimento, consubstanciada numa insuficiente facturação relativa a consumos de existências adquiridas.
N) No sentido de controlar tais situações, o Réu adquiriu equipamento informático, com cinco registadoras de rede, sendo três nos bares, uma a esplanada e outro no restaurante, incluindo um programa de gestão de bares e restaurantes e gestão de stocks.
O) Os registadores são operados com uma chave de cada um dos utilizadores, registando a hora, o produto, a quantidade, o preço e a forma de pagamento.
P) O Réu fez ainda instalar nas torneiras de saída de cerveja, por ser um produto de maior consumo, contadores de quantidade.
Q) Para que o sistema funcione adequadamente é necessário fazer um inventário físico de stocks, um inicial e outros quinzenais.
R) ... Inventários a que o Réu procedeu.
S) O equipamento instalado pelo Réu custou mais de Esc. 7.000.000$00.
T) O Réu efectuou um período de experiência e de adaptação de dois meses dos seus trabalhadores ao novo sistema, no qual o Autor se integrou.
U) ... Tendo o novo sistema iniciado o seu funcionamento em Maio de 1999.
V) Todos os registos efectuados nos registadores de front-office são recolhidos diariamente em computador portátil e transmitidos ao computador central, nos escritórios do Réu, onde são lançados na base de dados que tem todos os produtos em stock, com respectiva ficha técnica de controle, assim se fazendo automaticamente a actualização de stocks.
X) Através do processo referido em V), qualquer venda é traduzida em unidades de consumo e abatida ao stock, possibilitando a verificação de faltas com o inventário quinzenal.
Z) Para alem deste inventário, o gerente do bar, C efectuava um controle das existências do estabelecimento no início da manhã e outro antes das 17h.
A’) Através do sistema referido em V) X) e Z) foi detectado entre 6.5.99 e 16.9.99 um desvio de facturação superior a Esc. 5.000.000$00, referente a bebidas, ao preço de custo.
B’) Tal desvio ficou a dever-se nomeadamente ao facto dos 2 empregados do bar (incluindo o Autor), que exerciam as funções entre as 17h e as 2horas, de forma voluntária e consciente e em comunhão e conjugação de esforços, não registarem e facturarem grande parte das bebidas que vendiam, nomeadamente cerveja.
C’) ... Apropriando-se do respectivo preço que cobravam aos clientes.
D’) Nos anos de 1996, 1997 e 1998 o salário mensal do Autor era de Esc. 120.000$00, passando a ser de Esc. 150.000$00 no ano de 1999.
E’) O Autor falava em inglês com os clientes que se exprimiam nessa língua.
F’) O Autor emitiu as declarações de fls. 44 e 45 dos autos, nas quais declarou ter recebido da entidade patronal todas as prestações e outras que lhe eram devidas pela sua prestação laboral durante o ano civil de 1996 e 1997, nomeadamente vencimento, subsídios, abonos, gratificações, trabalho extraordinário ou quaisquer outros, nada mais tendo a exigir ou a reclamar, conferindo a correspondente quitação.

3. Fundamentação de direito.

As questões a dirimir são as de saber se ocorreu a prescrição dos créditos laborais invocados pelo réu no pedido reconvencional e se, em todo o caso, há lugar à compensação judiciária desses créditos.

Por razões de precedência lógica, deverá começar-se por apreciar a matéria da compensação judiciária que, conforme vem alegado, poderia operar, nos termos previstos no artigo 850º do Código Civil, independentemente do crédito se encontrar prescrito, deixando prejudicada a possível verificação da excepção peremptória.

Nos termos do artigo 30º do Código de Processo de Trabalho de 1999, ao caso aplicável, a reconvenção é admissível quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção e quando se verifique a situação prevista na alínea p) do artigo 85º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro.

A primeira circunstância corresponde ao preceituado na alínea a) do nº 2 do artigo 274º do CPC, ao passo que a segunda contempla justamente a hipótese em que a reconvenção de destine a obter a compensação (caso em que a lei não exige sequer que o pedido reconvencional apresente qualquer conexão com o pedido formulado na acção) o que se compagina com o disposto na norma da alínea b) do nº 2 daquele mesmo artigo 274º.

No caso, o autor formulou um pedido indemnizatório fundado em despedimento ilícito, por considerar que os factos constantes da nota de culpa que a entidade patronal contra ele deduziu eram insubsistentes; e são esses mesmos factos, caracterizados na contestação como ilícito penal, que suportam, na perspectiva do réu, o pedido reconvencional.

A reconvenção, tal como se encontra formulada pelo réu, seria admissível, portanto, com base no disposto na primeira parte do artigo 30º do CPT e em correspondência com o previsto na norma paralela da alínea a) do nº 2 do artigo 274º do Código de Processo Civil.

E, na verdade, parece ter sido esse o fundamento do pedido reconvencional, visto que o réu se limitou a pedir a condenação do autor no pagamento das importâncias que considera serem-lhe devidas, abstendo-se de formular, no articulado, qualquer declaração destinada a obter a compensação do seu crédito. De resto, a interpretação do articulado como constituindo um mero pedido reconvencional (independente de qualquer pretensa compensação) mostra-se consentânea com a posição processual assumida pelo réu, na contestação, no que concerne aos créditos invocados pelo autor.

De facto, o réu, para além de se arrogar um contracrédito resultante de um ilícito penal cometido pelo autor, igualmente deduziu a sua oposição relativamente ao pedido formulado pelo autor, alegando nada dever seja a título de diferenças salariais, seja a título de trabalho extraordinário ou qualquer outro, afastando, por isso, qualquer obrigação de pagar as quantias que se encontram discriminadas na petição inicial (cfr. artigos 32º e seguintes da contestação e, em especial, o artigo 36º).

4. Conforme tem sido entendimento jurisprudencial, a compensação de créditos deve ser invocada por via de excepção peremptória, quando o montante do crédito do réu seja igual ou inferior ao alegado pelo autor, e só quando esse montante seja superior é que é justificável a dedução do pedido reconvencional, que, nesse caso, se destinará a exigir do autor o pagamento da parte excedente (vejam-se, entre outros, os acórdãos do STJ de 14 de Janeiro de 1982, BMJ nº 313, pág. 288, de 14 de Março de 1990, processo nº 2241/90, de 9 de Dezembro de 1994, processo nº 3382/94, de 22 de Novembro de 1995, processo nº 86578/95; a solução é igualmente admitida pela doutrina, cfr. ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 3ª edição, Coimbra, pags. 803 e 805, e restante bibliografia aí citada).

Por outro lado, a circunstância de o réu ter deduzido indevidamente a reconvenção, não impede que a declaração de compensação formulada nesses termos seja entendida como constituindo uma defesa por excepção, conduzindo à pretendida extinção do crédito alegado pelo autor (cfr. o citado acórdão de 14 de Janeiro de 1982).

O ponto é que o pedido reconvencional envolva, nos seus próprios termos, uma manifestação de vontade do réu no sentido de obter a compensação, de modo a que esta possa chegar ao conhecimento da contraparte. É o que resulta do disposto no nº 1 do artigo 848º do Código Civil, onde se declara que "a compensação torna-se efectiva mediante declaração de uma das partes à outra". Essa declaração pode ser feita extrajudicialmente ou judicialmente, e, neste caso, por notificação judicial avulsa, ou em acção judicial, quer por via da acção de simples apreciação, quer por via da excepção quer ainda por via de reconvenção (PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol II, 2ªedição, Coimbra, 1967, pág. 120).

A compensação não pode, pois, ter lugar ipso jure, mas depende sempre da declaração de vontade de uma das partes, por isso se entendendo que ela carece de ser invocada expressamente (neste sentido, o acórdão do STJ de 5 de Fevereiro de 1992, no processo 3299/92(4ª)).

Acresce que o recurso à compensação como excepção peremptória ou pedido reconvencional postula sempre, como sucede no direito substantivo, o reconhecimento de um crédito, ao qual se opõe o contracrédito, pelo que o reconvinte não pode pretender liberar-se da sua obrigação, por via da compensação, se nega simultaneamente a preexistência desse crédito (acórdão do STJ de 10 de Fevereiro de 1983, BMJ nº 324, pág. 513, de 9 de Dezembro de 1994, processo nº 3882/94, e de 8 de Outubro de 1998, processo nº 643/98). Como se afirma no primeiro dos arestos agora citados, tal é uma necessária decorrência da reciprocidade das prestações debitórias, que constitui um dos elementos do conceito de compensação, sendo ainda esse princípio que justifica que a compensação se efective mediante a declaração de uma das partes à outra: o declarante tem de admitir que se encontra obrigado para com outrem, procurando, por sua vez, desvincular-se ou desobrigar-se opondo o seu crédito (cfr. artigos 847º, nº 1, e 848º, nº 1, do Código Civil).

5. Ora, no caso em apreço, a reconvenção deduzida pelo réu, ainda que possa ser entendida como constituindo matéria de excepção peremptória (considerando que o crédito invocado pelo réu é inferior ao reclamado pelo autor) não preenche qualquer dos enunciados requisitos de admissibilidade da compensação: embora tenha formulado um pedido reconvencional destinado a obter uma prestação que considera ser-lhe devida, o réu não só não produziu qualquer declaração no sentido de obter a compensação, como negou a existência do crédito invocado pelo autor - deduzindo a sua oposição por impugnação.

A compensação é apenas alegada em sede de recurso, numa linha argumentativa que visa obstar à consequência da declarada prescrição dos créditos invocados pelo réu, mediante a pretendida aplicação ao caso do regime mais benévolo do artigo 850º do Código Civil.

Segundo este preceito, "o crédito prescrito não impede a compensação, se a prescrição não podia ser invocada na data em que os dois créditos se tornaram compensáveis."

Como assinala a doutrina, esta norma é uma consequência da retroactividade da compensação, tal como se encontra prescrita no artigo 854º: a prescrição apenas é relevante para efeito de impedir a extinção da dívida por compensação, se o respectivo prazo ainda não estiver decorrido quando os créditos se tornaram compensáveis. Isto é, o momento a que deve reportar-se o impedimento é aquele em que se verificam os requisitos da compensação e não um momento ulterior. Solução que se justifica - como esclarece VAZ SERRA - "pelo facto de o credor da dívida prescrita poder ter protelado a exigência dela por confiar na possibilidade de vir a invocar a compensação" (cfr. (PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, ob. cit., pág. 123, e o estudo aí mencionado).
Ora, no caso vertente, se o réu não admitiu sequer a existência da dívida, não poderia ter pretendido obter a compensação, nem seria legítimo que beneficiasse do regime mais favorável previsto no artigo 850º do Código Civil.

E, em qualquer caso, não tendo sido efectuada a declaração de compensação, e estando em causa apenas a formulação de um pedido reconvencional, o crédito do réu não está sujeito ao preceituado nesse diploma, mas antes ao regime da prescrição aplicável aos créditos laborais, que, como vimos, é o resultante do artigo 38º, nº 1, da LCT.

6. Resta averiguar, por isso, se o crédito que o réu contrapôs em reconvenção poderá considerar-se prescrito à luz do disposto no artigo 38º da LCT.

Como se anotou, o réu, ora recorrente, deduziu um pedido reconvencional pretendendo obter o reembolso de importâncias de que o autor se terá apropriado ilicitamente enquanto prestava a sua actividade laboral no estabelecimento àquele pertencente, alegando, além do mais, que esses factos, que integram um ilícito penal, foram levados à nota de culpa elaborada no âmbito do processo disciplinar instaurado contra autor e que culminou com o seu despedimento.

Por aplicação do disposto no artigo 38º, nº 1, da LCT, o Tribunal da Relação, em consonância com a decisão da primeira instância, julgou improcedente a reconvenção, por considerar verificada a prescrição dos créditos assim reclamados, tendo em consideração que o contrato de trabalho existente entre as partes cessou em 15 de Dezembro de 1999 e o pedido reconvencional só foi formulado em 9 de Fevereiro de 2001, e, portanto, para além do prazo de um ano previsto naquele preceito.

Sustenta, no entanto, o recorrente, em revista, que o seu crédito se fundamenta na prática de ilícito penal, conforme ficou demonstrado através dos factos constantes das alíneas A´, B´ e C´ da decisão de facto, e, nesses termos, emerge de uma responsabilidade civil conexa com a criminal, à qual é aplicável o regime do artigo 498º, nº 3, do Código Civil, onde se estabelece que "se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável."

Quanto a este ponto, a jurisprudência do STJ começou por entender que o prazo de um ano previsto no artigo 38º, nº 1, da LCT respeita aos créditos derivados directamente das relações essenciais do trabalho (entre os quais se poderão considerar, a título de exemplo, os aspectos retributivos), ao passo que os derivados de factos ilícitos de natureza criminal, que em muito transcendem a simples violação de deveres laborais, são regulados pela lei geral que, no caso, é a prevista no artigo 498º, nº 3, do Código Civil, e que remete para o disposto no artigo 118º do Código Penal (acórdão de 24 de Outubro de 1980, BMJ nº 300, pág. 319).

Mais recentemente, porém, o STJ tem vindo a sustentar posição diversa, aplicando o regime definido no nº 1 do artigo 38º da LCT a todo o tipo de créditos que possam resultar da relação laboral, partindo da ideia de que o preceito em causa integra uma norma especial que afasta a aplicação das regras gerais (acórdãos de 14 de Março de 2000, no processo nº 247/99, e de 19 de Dezembro de 2002, no processo nº 383/02).

Afigura-se, no entanto, que esta última solução acarreta consequências inaceitáveis no plano da segurança jurídica.

Como há pouco se explicitou, a lei processual laboral, nos termos do seu artigo 30º, admite a reconvenção em duas circunstâncias: quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção e quando se verifique a situação prevista na alínea p) do artigo 85º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, que abarca as questões reconvencionais que com a acção tenham relações de conexão por acessoriedade, complementariedade ou dependência, ou que envolvam um pedido de compensação, caso em que é dispensada a conexão.

No caso vertente, como se concluiu, o réu não chegou a formular um pedido de compensação judiciária, pelo que a reconvenção deve ter-se como aceite na base do disposto na primeira parte daquele preceito, tendo em consideração que o despedimento que o autor impugna na acção, e que o réu alega ter-se baseado em factos que integram ilícito penal, constitui também o fundamento para o pedido reconvencional. A reconvenção diz respeito, por isso, ao acto ou facto-fundamento da acção e a actividade que o tribunal é chamado a exercer numa ou noutra hipótese é precisamente a mesma, visto que tem de apurar se os factos que constam da nota de culpa constituem justa causa de rescisão do contrato, dando azo a declaração de ilicitude do despedimento, ou, sendo este considerado legal, à reparação dos danos invocados pelos réu, se estes constituírem também ilícito penal.

Certo é que o pedido reconvencional é meramente facultativo e que o réu poderia deduzir o pedido de indemnização cívil no âmbito do processo penal respectivo, à luz do princípio da adesão previsto no artigo 71º do Código de Processo Penal, ou em acção separada, perante o tribunal cível, caso se verificasse alguma das circunstâncias descritas no artigo 72º do mesmo diploma.

E se o réu tivesse optado por qualquer destas soluções, sem dúvida que se aplicaria o regime prescricional previsto no nº 3 do artigo 498º do Código Civil, ficando a prescrição do direito indemnizatório sujeita ao prazo mais longo que se encontre previsto na lei penal para o tipo de crime em causa.

Ora, desde que se aceite, verificados os demais requisitos da sua admissão, que o tribunal de trabalho é igualmente competente para conhecer de um pedido reconvencional fundado na prática de crime, não se vê qualquer motivo para deixar de aplicar ao caso os mesmos critérios jurídicos de apreciação.

Qualquer outra solução afrontaria de modo flagrante a unidade do sistema jurídico.

A declaração jurisdicional de prescrição do direito invocado pelo réu, em reconvenção, implicaria a improcedência do pedido, correspondendo a uma decisão de mérito que teria o valor de sentença e era susceptível de constituir caso julgado material (cfr. artigos 510º, nº 3, segunda parte e 691º, nº 2, do Código de Processo Civil). Isso significa que, caso se aplicasse ao crédito do réu o regime menos favorável decorrente do artigo 38º, nº 1, da LCT, com consequente reconhecimento da existência da prescrição, este ficaria definitivamente impossibilitado, logo que transitasse em julgado essa decisão, de reclamar o mesmo crédito na jurisdição cível ou penal.

A solução jurídica do caso seria, por isso, inteiramente diversa consoante a opção que interessado tivesse efectuado quanto ao tribunal ou meio processual a utilizar para exercer o seu direito, não obstante a lei lhe conceder a faculdade de, dentro de certo condicionalismo, recorrer ao processo penal, ao processo cível ou ainda ao processo laboral para obter a reparação do dano que invoca.

Tudo aponta pois para a necessidade de uma interpretação restritiva do apontado artigo 38º, nº 1, da LCT, em obediência ao critério hermenêutico que decorre artigo 9º, nº 1, do Código Civil.

O regime prescricional definido nesse preceito, que difere para o momento da ruptura da relação laboral o início do contagem do prazo de prescrição de créditos, que poderão ser de antiguidade muito variada, fixando concomitantemente um prazo curto (um ano) para o exercício do direito, teve em conta as especificidades da situação de dependência gerada pelo vínculo laboral, que, presumivelmente não permite ao trabalhador exercer em pleno os seus direitos relativamente a créditos que se vençam na vigência do contrato (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 140/94, in Diário da República, II série, de 6 de Janeiro de 1995).

Tratando-se de uma regra especial, a sua aplicação só se justifica em relação aos créditos fundados no contrato de trabalho, pois é quanto a eles que poderão funcionar os condicionamentos, sob o ponto de temporal, quanto à efectivação dos direitos por via judicial, que terão constituído a ratio legis. E se o legislador optou por tornar extensivo o mesmo regime aos créditos do empregador, como tem sido entendimento pacífico (por todos, MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, 11ª edição, Coimbra, pág. 462), não há nenhuma razão para efectuar qualquer discriminação quanto à natureza dos créditos que estarão em causa, quando seja a entidade patronal a recorrer à acção emergente de contrato de trabalho para fazer valer os seus direitos.

Ora, os direitos indemnizatórios que derivam para o empregador de ilícito penal cometido pelo trabalhador durante a actividade profissional e aproveitando o exercício dessa actividade - como sucede quando o trabalhador se apropria de bens que pertencem à entidade patronal, desviando o valor de vendas de produtos existentes em estabelecimento comercial - não constituem, em rigor, um crédito resultante à relação laboral, mas antes um crédito atinente a uma relação jurídica delitual de responsabilidade civil, que, sendo inteiramente distinta daquela, apenas mantém, no plano dos factos, uma conexão espacio-temporal com a prestação do trabalho.

Os referidos direitos encontram-se sujeitos, por isso, ao regime prescricional geral que decorre do citado artigo 498º, nº 3, do Código Civil. E, considerando que os factos se reportam a 1999 e o pedido reconvencional foi formulado em 9 de Fevereiro de 2001, ainda não havia transcorrido, nesta última data, o prazo de prescrição, que, no caso, era de cinco anos, por aplicação do disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 118º do Código Penal.

Sendo assim, e sem embargo de não poder ser considerada a compensação judiciária, pelas razões anteriormente expostas, nada impede que se aprecie o pedido formulado pelo réu, na contestação, como simples pedido reconvencional, tendo em conta a matéria de facto dada como assente.

6. Decisão.

Pelo exposto, decide-se conceder parcial provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida e determinar a baixa do processo à primeira instância para conhecer, nos sobreditos termos, o pedido reconvencional.
Custas pelo recorrente na parte em que decaiu.

Lisboa, 13 de Maio de 2004
Fernandes Cadilha
Mário Pereira
Salreta Pereira