Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B1210
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BETTENCOURT DE FARIA
Descritores: ÂMBITO DO RECURSO
ALTERAÇÃO DOS FACTOS
JULGAMENTO
REPETIÇÃO
Nº do Documento: SJ200406030012102
Data do Acordão: 06/03/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 3515/03
Data: 10/28/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - A jurisdição recursória define-se pelo âmbito das conclusões, ou seja, pelas questões que são efectivamente submetidas à reapreciação do tribunal superior.
II - Se o recorrente não impugnou a matéria de facto, não pode o tribunal de recurso, exercer a sua jurisdição nesse campo para alterar os factos assentes, apesar de ter havido gravação da prova.
III - Poderá apenas exercer aqueles poderes que no caso a lei lhe permite que use ex officio, nomeadamente, os do art. 712º, nº. 4 do C. P. Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I- "A" moveu a presente acção ordinária contra "Companhia de Seguros B, S.A.", pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe determinada quantia, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu em acidente de viação e cuja responsabilidade imputa ao condutor de um veículo segurado na ré.
A ré contestou.
O processo seguiu os seus trâmites e, feito o julgamento, foi proferida sentença em que se considerou provada a tese do autor quanto ao acidente e, em consequência, foi a dita seguradora condenada a pagar parte da quantia peticionada por aquele.
Apelou a ré, mas o Tribunal da Relação, entendendo que a resposta a um dos pontos da base instrutória era deficiente, anulou a sentença de 1ª instância, para que se produzisse novo julgamento sobre tal matéria.

Recorre novamente a ré, a qual, nas suas alegações de recurso, apresenta as seguintes conclusões:
1- Apesar do recurso de apelação não ter versado a alteração da matéria de facto, com base no disposto no art. 712º, nº. 1 do CPC, do processo constam todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa.
2- Não se tendo provado a paragem, mas tão somente o abrandamento, inexistem quaisquer dúvidas sobre se está incluída ou não na expressão "o autor apenas abrandou" a efectiva paragem. É indubitável a conclusão de que o autor não parou, apenas abrandou.
3- Face ao disposto no art. 712º, nº. 4 do CPC, a anulação oficiosa da decisão da matéria de facto incluída no quesito 37º apenas é legalmente admissível se for reputada deficiente, obscura ou contraditória, o que não acontece.
4- Dos factos apurados é possível concluir que o condutor do veículo do autor infringiu o disposto no art. 29º do CE - sinal B2/Stop - ex vi do art. 3º-A do DL 46-A/94 de 17.01, quadro XI - Sinais de prioridade que determina uma paragem obrigatória na intersecção das vias. Houve uma clara violação ilícita a estas normas.
5- Tendo em conta as infracções cometidas por ambos os condutores intervenientes no acidente, o douto Acórdão deveria ter decretado a divisão de responsabilidade - cf. o disposto no art. 570º, nº. 1 do CC.
6- É fundamento desta Revista a violação da lei substantiva do art. 29º e 3º-A dos diplomas acima citados, sendo certo que, face ao disposto nestas normas e tendo em conta o caso concreto, deviam as mesmas ter sido aplicadas sem necessidade de qualquer outra tramitação processual, em sede probatória. Por esta razão, discorda-se da decisão de anular o julgamento e formar nova decisão para se concretizar se há prova ou não de que o veículo parou. Está provado que apenas abrandou.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

II- As instâncias deram por assente a matéria de facto constante de fls. 213 a 216, para a qual se remete, nos termos do art. 713º, nº. 6 do C. P. Civil.

III- Apreciando
1- Determina o nº. 6 do art. 712º do C. P. Civil, que a Relação decide definitivamente as questões relativas à fixação da matéria de facto. O que está de acordo com o nº. 2 do art. 722º desse código que estipula que o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais não pode ser objecto de revista, salvo nos casos de prova vinculada ou prova plena.
Aliás, esta duas últimas hipóteses não são bem excepções ao princípio enunciado no preceito, dado que, nessas situações não ocorre um problema de convicção, mas de direito. O juiz não julga a realidade, limita-se a consignar aquela que a lei lhe impõe.
Assim, as possibilidades de apreciação do Supremo Tribunal de Justiça quanto modo como a 2ª instância aplicou o art. 712º são apenas de ordem processual e não substantiva. Ou seja, pode ver se a Relação observou as condições ali previstos para a alteração da matéria de facto, mas não pode sindicar a fixação dos factos que resultou dessa alteração.

2- A primeira questão colocada pela recorrente tem cabimento, uma vez que não versa sobre a realidade dos factos, mas sobre uma alegada irregularidade processual: a Relação poderia ter alterado a factualidade, por estar na posse de todos os elementos de prova que serviram de base à decisão, sem necessitar de a anular.
Com efeito, o nº. 4 do referido art. 712º só permite a anulação da decisão, nos termos em que o fez o tribunal recorrido, nos casos em que não constarem do processo todos os elementos probatórios que serviram de base à dita decisão. Ora houve a gravação dos depoimentos e foi com base neles que foi dada a resposta em causa.
Pelo que, aparentemente, o Tribunal da Relação não poderia ter anulado a sentença, devendo antes fixar a matéria de facto que considerava correcta, de acordo com a prova de que dispunha.
Vejamos.
A jurisdição recursória delimita-se pelo âmbito das conclusões, ou seja, pelas questões que são submetidas à reapreciação do tribunal superior. Se o recorrente não impugnou a matéria de facto, não pode o tribunal de recurso exercer a sua jurisdição nesse campo para alterar os factos. Poderá apenas exercer aqueles poderes que no caso pode usar ex officio.
Voltando à hipótese dos autos, temos que a recorrente, na sua apelação não impugnou a matéria de facto. Assim, não é certo que a Relação estivesse na posse de todos os elementos de prova que lhe permitiriam alterar as respostas aos pontos da base instrutória. Só deles poderia dispor - só sobre eles teria jurisdição - se tal competência lhe fosse dada pelo âmbito do recurso. Como isso não aconteceu, ao tribunal apenas restava usar da faculdade que o art. 712º, nº. 4 lhe conferia de, oficiosamente, ordenar a repetição do julgamento quanto à resposta considerada deficiente.

3- Insurge-se a recorrente quanto à deficiência apontada à resposta em causa. Não só a considera válida, como dela extrai uma conclusão, que, na sua perspectiva decide o pleito em sentido diferente daquele que prevaleceu nas instâncias.
Aqui funciona de pleno o disposto no nº. 6 do art. 712º. Trata-se de sindicar a questão de fundo da apreciação da prova e da fixação dos factos. Pelo que atrás consignámos, não compete ao STJ essa análise.

4- Desta forma, tendo a Relação actuado de modo processualmente correcto e não podendo este tribunal ver se, substancialmente, lhe assistia razão, improcedem as respectivas conclusões do recurso. Ficam, por isso, prejudicadas as restantes conclusões, sobre a determinação da responsabilidade.

Pelo exposto, acordam em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 3 de Junho de 2004
Bettencourt de Faria
Moitinho de Almeida
Ferreira de Almeida