Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A2489
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ALVES VELHO
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
CADUCIDADE
Nº do Documento: SJ200612140024891
Data do Acordão: 12/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : - Ante a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do n.º 1 do art. 1817º C. Civil "na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante" impõe-se, no termos do art. 204º da CRP, recusar a aplicação dos preceitos dos n.ºs 1 e 4 do C. Civil ao caso em que o autor não conseguiu demonstrar a posse de estado em que se apoiou, na medida em que, indirecta ou directamente, estabelecem o prazo de caducidade de dois anos para a caducidade do direito de investigar. *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - "AA" intentou, em 23/2/2000, acção declarativa contra BB, CC, DD e respectivos cônjuges, pedindo que fosse judicialmente reconhecida como filha de EE, irmão dos RR., falecido em 20 de Dezembro de 1999.
Para além da factualidade tendente a demonstrar o vínculo biológico, a A. alegou que o EE a reconhecia e sempre a tratou como sua filha e como tal era também considerada pela generalidade dos seus conterrâneos.

Arguida a excepção da caducidade, a sentença julgou-a verificada, decisão que a Relação revogou, julgando a acção procedente.


Interpuseram, então, recurso de revista os RR. DD e marido que, defendendo a reposição da decisão da 1ª Instância, levaram às conclusões:
- Os factos provados não permitem a conclusão de que houve reputação e tratamento como filha por parte do investigado, para efeitos do disposto no n.º 4 do art. 1817º do C. Civil;
- Esta norma não é inconstitucional;
- Pelo contrário, a interpretação dos nº.s 1 e 4 do art. 1817º segundo a qual não há qualquer prazo para a propositura da acção numa situação como a dos autos em que a acção foi proposta mais de 20 anos desde a maioridade e já após o falecimento do investigado e o conhecimento da sua herança, sem que tenha alguma vez existido tratamento como filha, viola os arts. 25º, 26º, 27º e 13º da Constituição da República;
- Caso se viesse a decidir que a presente acção não está sujeita a qualquer prazo de caducidade, sempre se imporia decidir, face à factualidade assente, circunstancialismo e motivação que esta na base da sua instauração, que o exercício deste direito é manifestamente abusivo por violação da boa fé, bons costumes e fim social desse direito - art. 334º C. Civil.

A Recorrida respondeu, pugnando pela confirmação do acórdão.

2. - Como resulta do conteúdo das conclusões do recurso, as questões a apreciar são as seguintes:

- Se a Autora beneficia da "posse de estado" de filha do investigado;
- Se, em caso negativo, se encontra extinto, por caducidade, o direito da Autora, conforme o disposto nos n.ºs 4 e 1 do art. 181º C. Civil ou se deve ser recusada, por inconstitucionalidade, a aplicação dessas normas;
- Se, neste último caso - de não se reconhecer a caducidade -, há abuso de direito no exercício do direito de investigar.

3. - Vem assente em sede de matéria de facto:

1. Em 17.11.61 nasceu na freguesia de Oliveira do Mondego, concelho de Penacova, a autora AA.
2. O nascimento foi registado em 18.12.61, na Conservatória do Registo Civil de Penacova apenas como filha de FF, solteira, não tendo sido feita menção à respectiva paternidade.
3. Em 22.12.43 nasceu na freguesia de Oliveira do Mondego, concelho de Penacova, GG, filha de FF e como tal foi registado o seu nascimento, não tendo sido feita menção à respectiva paternidade.
4. Em 28.5.46 nasceu na Freguesia-B, concelho de Penacova, HH, filho de FF e como tal foi registado o seu nascimento não tendo sido feita menção à respectiva paternidade.
5. Em 30.5.54 nasceu na freguesia de Oliveira do Mondego, concelho de Penacova, II, filho de FF e como tal foi registado o seu nascimento não tendo sido feita menção à respectiva paternidade.
6. Aquando da concepção e nascimento da autora, a sua mãe trabalhava em casa de JJ, mãe de EE, BB e CC, servindo como criada e trabalhadora rural.
7. A sua mãe era uma pessoa simples, pobre e séria, que nunca frequentou a escola.
8. No Inverno de 1960/1961, o EE regressou a Cunhedo tendo mantido, por diversas vezes, relações sexuais com FF durante a sua permanência em Portugal.
9. Desse relacionamento nasceu a ora autora.
10. Tal facto era e é do conhecimento geral da população de Cunhedo.
11. E o EE nunca o negou.
12. Até aos seis anos de idade a autora frequentou a casa de JJ, mãe de EE.
13. Em criança brincava com os filhos dos irmãos do EE.
14. O EE reconheceu e assumiu perante o seu irmão BB a paternidade da autora.
15. Em conversas com pessoas mais chegadas reconhecia que era pai da autora.
16. No início do mês de Dezembro de 1999, o EE ficou acamado.
17. Faleceu em 20.12.99.
18. A autora tentou visitar o referido EE, enquanto ele esteve acamado, o que não conseguiu por ter sido impedida pela ré DD, que sempre se opôs.
19. A autora sempre foi e ainda é hoje reputada como filha de EE, por toda a população de Cunhedo.
20. Ao longo da sua vida, a mãe da autora manteve relações sexuais com outros homens.
21. A autora pronunciou a palavra pai em relação ao EE, em voz alta, no dia do funeral deste.

4. - Mérito do recurso.

4. 1. - Posse de estado e caducidade.

A acção de investigação da paternidade de que ora se cuida apresentou--se apoiada em presunção legal e paternidade - a posse de estado a que se refere a al. a) do art. 1871º C. Civil.

Diferentemente do que sucede com as acções "lançadas a céu aberto", apenas baseadas na paternidade biológica, relativamente às quais a lei estabelece que só podem ser propostas durante a menoridade do investigante ou nos dois anos posteriores à sua maioridade ou emancipação, fixando-se, assim, um prazo geral de caducidade, quando, entre outras situações que agora não interessa considerar, a acção se funde naquela presunção, a mesma lei admite um regime especial de caducidade, de sorte que, se o investigante for tratado como filho pelo pretenso pai, a acção pode ser proposta dentro de um ano a contar da data em que cessar o tratamento - arts. 187º e 1817º-1 e 4 C. Civil.

Resulta, deste modo, que, existindo tratamento como filho, a acção pode ser proposta para além do prazo geral estipulado no n.º 1 do preceito citado, contando-se o seu termo inicial da cessação do tratamento, caia ou não fora dos limites fixados no prazo-regra.
Para poder beneficiar desse alargamento do prazo, terá o autor de demonstrar o tratamento como filho, como consta da hipótese das normas substantivas que conferem o direito.

Diz-se haver "posse de estado" quando, cumulativamente, se mostre que uma pessoa é reputada como filho pelo pretenso pai, que goza do tratamento como filho e ainda que como tal é reputada pelo público (nomen, tractatus e fama).

A reputação como filho consiste na convicção que o pai tem de que determinada pessoa é seu filho. É um elemento de natureza subjectiva.
O tratamento como filho, de natureza comportamental, traduz-se na adopção de uma actuação que, no contexto social em que ambos estão inseridos, é própria das relações que é habitual existirem entre pai e filho, abrangendo e revelando-se um leque de manifestações que podem ir do carinho e amparo moral e social à assistência material, passando pelas mais variadas atitudes de natureza económica, de protecção e de afectividade.
Finalmente, a reputação pelo público, significa que o círculo de pessoas que conhecem pai e filho consideram aquele pai deste (cfr., por todos, acs. deste STJ, de 12/11/02 e 12/12/02, ambos disponíveis em ITIJ).

Ora, os factos provados não dão notícia de qualquer relacionamento entre a Autora e o EE donde possa concluir-se pelo preenchimento do conceito jurídico de "tratamento" e, consequentemente, do requisito.
Não reflectem, eles, mesmo perante a parcimónia do a propósito alegado, nenhuma preocupação de auxílio, nenhum gesto afectivo, nem sequer qualquer apoio económico, fosse na infância, na juventude ou na idade adulta da Autora.
Numa palavra, não há tratamento da A. como filha pelo investigado.

Deste modo, indemonstrado o pressuposto de que depende a aplicação da norma especial de alargamento do prazo de propositura da acção - n.º 4 do art. 1817º -, não pode a A. beneficiar desse prazo.

Restaria o prazo-regra ou geral.
Porém, tendo a A. nascido em 1961, logo com 38 anos de idade aquando da instauração da acção, também à luz da norma do n.º 1 do mesmo preceito, cujos prazos se encontram há muito esgotados, o direito da Autora se encontrará extinto, por caducidade, tal como se decidiu na 1ª Instância.

4. 2. - Caducidade e inconstitucionalidade.

Acontece, porém, que, entretanto, foi declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do n.º 1 do art. 1817º C. Civil, "na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos arts. 26º, n.º 1, 36º, n.º 1, e 18º, n.º 2, da CRP" - Ac. do T. C. n.º 23/2006, de 10/01/06.

Se bem interpretamos, a declaração de inconstitucionalidade, não contendo nem prevendo qualquer restrição nem aludindo a cláusulas de salvaguarda, elimina completamente a norma no que respeita à subsistência do termo estabelecido no prazo-regra para o exercício do direito de investigar.
É esse também o sentido que se colhe da "declaração de voto" nele proferida.

E, assim sendo, perante o acolhimento da ideia da inconstitucionalidade de qualquer prazo, assente na da imprescritibilidade do direito de investigar, essencialmente fundada na "diminuição do alcance do conteúdo essencial dos direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família" e na desproporcionalidade de restrições, afigura-se-nos que não podem deixar de estar abrangidas pela mesma declaração de inconstitucionalidade as normas que, como a do n.º 4, se limitam a alargar prazos em razão do concurso de pressupostos que a norma geral dispensa.

Por um lado, a extinção do direito, por caducidade, verifica-se porque, não concorrendo o pressuposto especial, o prazo da norma geral está exaurido, ou seja, o direito caduca porque a acção não foi instaurada no prazo-regra, devendo sê-lo, já que não ocorria o especial condicionalismo que permitia o benefício de um prazo também especial. Em última análise, caída a relação de especialidade, é sempre o prazo-regra que está em causa e é à luz do seu regime que a caducidade é declarada.
Por outro lado, não se encontram razões que aconselhem ou sugiram a desaplicação da fundamentação do Acórdão à norma do n.º 4 do art. 1817º, cujo conteúdo, perante os termos da declaração de inconstitucionalidade, fica por ela consumido. Quem se baseou um fundamento mais forte, como a posse de estado, cujos elementos não conseguiu demonstrar, total ou parcialmente, não deve ficar numa situação mais gravosa que outrem que nada invocou.

Consequentemente, ante a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, impõe-se, no termos do art. 204º da CRP, recusar a aplicação dos preceitos dos n.ºs 1 e 4 do C. Civil ao caso ajuizado, na medida em que, indirecta ou directamente, estabelecem o prazo de caducidade de dois anos para a caducidade do direito de investigar.

4. 3. - Abuso de direito.

Demonstrada à saciedade e admitida sem controvérsia a paternidade biológica e afastada a caducidade, a acção estará em condições de proceder, com o inerente reconhecimento da paternidade da Autora.

Ao Recorrentes suscitam, porém, a questão-excepção do abuso de direito, a pretexto de que o exercício do direito de acção, face à factualidade assente, é violador dos bons costumes, da boa fé e do fim social desse direito.

Não concretizam os Recorrentes em que factos, de entre os assentes para que remetem, deve apoiar-se o juízo de violação do princípio da boa fé, dos bons costumes ou do fim social do reconhecimento da paternidade, nos termos acolhidos pelo art. 334º C. Civil e de modo a que o direito exercitado mereça ser paralisado.

O instituto do abuso de direito, verdadeira «válvula de segurança» para impedir ou paralisar situações de grave injustiça, que o próprio legislador preveniria se as tivesse previsto, é uma forma de antijuridicidade cujas consequências não devem ser diferentes das de qualquer facto ilícito.
O ordenamento jurídico, ao colher esses conceitos moderadores, compromete-se a assegurar a confiança nas condutas e comportamentos das pessoas responsáveis e imputáveis, objectivamente apreciados, «ilegitimando» os que com eles não se conformem.

Ora, restrições ao direito de investigar, com fixação de prazos limitativos, como as assentes em razões atinentes à "segurança jurídica dos pretensos pais e seus herdeiros" e às "finalidades puramente egoísticas", permitindo «caças à fortuna», correspondem justamente àquelas que o Acórdão 23/2006 - transcrevendo a quase totalidade da fundamentação anteriormente vertida no Ac. n.º 486/2004 (DR, 18/02/05, II Série) - rebateu exaustivamente, sobre todas fazendo prevalecer os mencionados direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família, embora sem arredar, de todo, que "o argumento da segurança possa eventualmente justificar um prazo de caducidade".

Se, como parece, os Recorrentes pretendem sustentar que a Recorrente se move por interesses exclusiva ou predominantemente patrimoniais, visado a herança do falecido EE, certo é que, ao menos a nosso ver, não o mostram os factos provados, totalmente omissos a tal respeito, nem os autos fornecem outros elementos que apoiem seguramente a tese.

Não vislumbramos, em suma, razões que, por via do art. 334º C. Civil, legitimem a exclusão do direito de investigar.

5. - Decisão.

Em conformidade com o exposto, decide-se:
- Negar a revista pedida pelos Réus-recorrentes;
- Manter, embora por fundamentos diferentes, a decisão impugnada; e,
- Condenar os Recorrentes nas custas.


Lisboa, 14 de Dezembro de 2006

Alves Velho
Faria Antunes
Sebastião Póvoas