Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
652/03.0TYVNG-Q.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ALVES VELHO
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
RESTITUIÇÃO DE BENS
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
PRAZO DE CADUCIDADE
Data do Acordão: 03/06/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES - DIREITOS REAIS / POSSE.
DIREITO FALIMENTAR - PROCESSO DE FALÊNCIA / VERIFICAÇÃO DO PASSIVO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / PROCESSO DE EXECUÇÃO.
Doutrina:
- BARBOSA DE MAGALHÃES, “Código de Processo Comercial”, Anotado, II, 343.
- P. DE LIMA e A. VARELA, “Código Civil”, Anotado”, I, 772.
- PEDRO MACEDO, Manual de Direito das Falências, II, p. 326 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 442.º, 755.º, Nº1, AL. F), 830.º, N.º1, 1295.º, 1296.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 664.º, 864.º, N.º2.
CPEREF: - ARTIGO 205.º, N.º2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 16/4/1996, BMJ 456, P. 332;
-DE 07/7/1999, BMJ 489º-259.
Sumário :
I- O prazo de um ano, previsto no nº 2 do citado artigo 205º do CPEREF, apenas é aplicável a situações de reclamações de créditos e não às de separação ou restituição de bens.

II-As pretensões emergentes do não cumprimento de contrato-promessa de compra e venda sem eficácia real – execução específica, restituição do dobro do sinal e reconhecimento do direito de retenção -, constituindo providências de natureza obrigacional ou creditícia, não se integram no exercício do “direito à restituição ou separação de bens” da massa falida a que alude o art. 205 do CPEREF (agora art. 146º-2 do CIRE).

III-Os pedidos assim formulados em reclamação fundada apenas nesse incumprimento contratual estão sujeitos ao regime de caducidade cominado no art. 205º-2 do CPEREF.

Decisão Texto Integral:

         Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - AA intentou, em 12.7.2010, por apenso ao processo de falência nº 652/03.0TYVNG, acção declarativa “para verificação ulterior de créditos e outros direitos”, invocando o disposto nos artigos 203º e 205º do C.P.E.R.E.F., contra a “Massa Falida de BB, Lda.”, e seus Credores, pedindo que lhe fosse reconhecido o direito à execução específica - com prolação de sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso - e de separação da Massa e restituição das fracções que a Ré lhe prometeu vender ou, subsidiariamente, que se reconhecesse o incumprimento, pela mesma Ré, do contrato-promessa de compra e venda, com a devolução ao Autor, em dobro, das quantias entregues a titulo de sinal, o reconhecimento do direito de retenção, bem como o direito à separação ou restituição da fracção autónoma e dois lugares de garagem.

         Contestou a Massa Falida, apenas por excepção, invocando a caducidade do direito do autor propor a presente acção, por se encontrar ultrapassado o prazo previsto no artigo 205º do C.P.E.R.E.F.

         O Autor respondeu para sustentar que a acção diz respeito a verificação de direitos com vista à restituição e separação de bens e não a uma mera reclamação de créditos.

         No despacho saneador julgou-se procedente a excepção peremptória de caducidade suscitada pela Ré e, em consequência, extinto o direito de acção do Autor.

         O Tribunal da Relação, confirmou o julgado.

        

O Autor interpôs, então recurso de revista, invocando o concurso de pressupostos justificativos da sua admissibilidade a título excepcional relativamente à questão de saber se “existe caducidade do direito de acção”, requisitos que a Formação julgou verificados.

         Nas conclusões da alegação que ofereceu, o Autor-recorrente argumenta como segue.

   1. A presente acção, em bom rigor, diz respeito a verificação de direitos, com vista à restituição e separação de bens, como se alcança do pedido formulado na petição inicial.

   2. Daí que não se trate de mera reclamação de créditos.

   3. É jurisprudência pacífica e unânime do Supremo Tribunal de justiça que o regime previsto no nº 2 do artigo 205º do C.P.E.R.E.F. não é aplicável aos casos de reivindicação, restituição ou separação de bens, mas tão somente aos de reclamação de créditos.

   4. Com efeito, a acção destinada a actuar o direito de pedir, depois de findo o prazo para a reclamação de créditos, a separação ou restituição de bens, indevidamente apreendidos para a massa falida, não está sujeita aos prazos de caducidade a que alude o artigo 205º, nº 2, do C.P.E.R.E.F.

   5. De tal modo que a interpretação extensiva ou analógica do nº 2 do artigo 205º do C.P.E.R.E.F. é de todo em todo inadmissível.

   6. Com efeito, trata-se de uma disposição excepcional, pois, fixa um prazo de caducidade.

    7. E, assim, não se admite interpretação extensiva (art. 11º do CC), não existindo quaisquer razões de ordem lógica ou imperativos constitucionais que justifiquem uma interpretação extensiva, contrária à vontade claramente expressa pelo legislador.

   8. Por conseguinte, tal acção, como a dos autos, pode ser interposta a todo o tempo, não estando sujeita a caducidade.

   9. Cfr. acs. do STJ, de 16 de Abril de 1996 (no BMJ n.º 456º, p. 332); de 4 de Outubro de 2001 (revista nº 1712/01-7ª Secção); de 24-4-2003, proc. 03B929; de 18-9-2003, proc. 03B1900, de 29-10-2009, proc. 348-Q/2002.C1.S1.

  10. Entendimento que veio a ter consagração do artigo 146º, nº 2, do CIRE.

  11. Por conseguinte, não se verifica a excepção peremptória da caducidade do direito do autor interpor a presente acção.

   12. A R. não impugna, como nunca impugnou, os factos vertidos pelo A. na petição inicial., pelo que, devem os mesmos ser considerados admitidos por acordo.

   13. A R., por esta via, reconheceu os direitos invocados pelo A. na sua petição inicial, tal reconhecimento impede a caducidade invocada, por se tratar de prazo fixado por disposição legal relativa a direito disponível.

14. O que se invoca, à luz do disposto no artigo 331º, nº 2, do C.C.

   15. O A. nunca foi informado do processo de insolvência da R., muito menos da sentença nele proferida.

   16. A R. deveria ter informado o processo de insolvência da existência do contrato promessa e da tradição do imóvel para o A., para que este pudesse exercer os seus direitos.

   17. A R. aceita os factos alegados pelo A. na sua petição inicial, pois, não os impugna, antes confessou.

   18. A R. ao invocar a caducidade da acção, nos termos constantes da sua defesa, excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico desse direito.

   19. Isto é, a R. litiga com abuso de direito, que se invoca por esta via subsidiária, ao abrigo do disposto no artigo 334º do C.C.

   20. O tribunal recorrido violou as normas dos artigos 205º, nº 2, do C.P.E.R.E.F., e 331º, nº 2 e 334º do C.C.

Não foi apresentada resposta.

2. - As questões suscitadas pelo Recorrente, como resulta do que verteu nas conclusões da sua alegação, são as anteriormente propostas ao Tribunal da Relação – as conclusões da revista são a transcrição quase integral das formuladas na apelação -, ou seja, como aí foram definidas:

  A. - caducidade do direito a instaurar a acção;

  B. - reconhecimento do direito, impeditivo da caducidade; e,

  C. - abuso de direito.

Porém, como delimitada a montante, as questão a apreciar consiste unicamente na identificada em A. - caducidade do direito de acção do Autor -, conforme o conteúdo da fundamentação invocada pela Recorrente como suporte do pedido de revista excepcional e do sobre ela decidido pela Formação.

3. - As decisões das Instâncias assentaram nos elementos de facto que a seguir se enunciam.

   1. Nos autos de falência a que esta acção se encontra apensa, BB – …; Lda., foi declarada falida, por sentença proferida em 13.6.2008, transitada em julgado e, 11.8.2008.

   2. Em consequência da declaração de falência foram apreendidos diversos imóveis.

   3. No dia 16.11.2002, o autor celebrou com BB um contrato escrito que denominaram contrato-promessa de compra e venda.

   4. Nesse contrato promessa, a BB interveio como primeiro outorgante e promitente-vendedora e o autor como segundo outorgante e promitente-comprador.

   5. Pelo dito contrato-promessa, a BB prometeu vender ao autor e esta prometeu comprar o apartamento T3, Bloco A – 2E, com dois lugares de garagem, no empreendimento referido na Cláusula Primeira – Cláusula Terceira.

   6. A prometida venda foi feita pelo preço global de 129.500,00€, a pagar da seguinte forma – Cláusula Quarta:

   A. A quantia de €5.000,00 pagos pelo autor e recebido pela BB, a título de reserva pelo cheque nº ... do Banco ....

   B. A quantia de €26.400,00 paga pelo autor, a título de sinal e princípio de pagamento, no acto da assinatura do contrato, a qual a BB recebeu e deu quitação.

   C. A quantia de €10.000,00, como reforço de sinal até 15 de Janeiro de 2003.

   D. O restante – €88.100,00 – pago no acto da escritura.

   7. Ficou acordado que a escritura definitiva de compra e venda seria outorgada no Cartório Notarial de Vila Real, no prazo a acordar entre ambas as partes, comprometendo-se a BB a entregar o apartamento no primeiro semestre de 2003, podendo este prazo ser prorrogado por dificuldades inesperadas na conclusão dos trabalhos, obrigando-se aquela, no entanto, a dar conhecimento à segunda outorgante da prorrogação desse prazo – Cláusula Quinta.

   8. A BB obrigou-se a marcar a escritura de compra e venda no Cartório Notarial de Vila Real e avisar o segundo outorgante, com antecedência mínima de 10 dias, da hora e dia em que esta se realizaria – Cláusula Sexta.

   9. O incumprimento do contrato por facto imputável a qualquer das partes importaria para a primeira outorgante a obrigação de restituir ao segundo o dobro da quantia que tiver recebido, a título de princípio de pagamento, e para o segundo a perda dessa quantia – Cláusula Nona.

   10. Pelos outorgantes foi expressamente acordado e mutuamente aceite dar ao contrato carácter de execução específica, nos termos do artigo 830º do C.C. – Cláusula Décima.

   11. Até 15 de Janeiro de 2003, o autor entregou à BB a quantia de 10.000,00€, que esta recebeu e fez sua, a título de reforço de sinal.

   12. No total, o autor entregou à BB, a título de sinal e antecipação do pagamento do preço final a quantia de 41.000,00€, que esta recebeu e fez sua.

   13. Entretanto, sobreveio o primeiro semestre de 2003 e a prometida compra e venda do apartamento não foi feita.

   14. Em Novembro de 2003, a BB comunicou ao autor que não podia ainda celebrar o contrato prometido, em virtude de dificuldades de legalização do loteamento imputáveis aos anteriores proprietários do terreno onde foi implementado o mesmo loteamento.

   15. A BB, em Novembro de 2003, entregou ao autor a chave do apartamento.

   16. O autor recebeu a chave do apartamento e logo trocou o canhão da fechadura.

   17. Após o que o autor passou, de forma exclusiva, a usar, fruir e administrar o dito apartamento e dois lugares de garagem, ainda inacabado, ocupando-o, reparando-o, conservando-o, nele depositando bens materiais e haveres, bem como estacionando viaturas e guardando vários pertences na garagem, dele retirando todos os seus frutos e rendimentos.

   18. À vista de todas as pessoas e sem oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta e consecutiva, na convicção de que o apartamento lhe pertencia.

   19. Entretanto, a BB procedeu à constituição da propriedade horizontal do empreendimento dos autos, inscrita na Conservatória do Registo Predial de Vila real pela Ap 26 de 2007/10/23.

   20. Tendo o apartamento dos autos ficado descrito na Conservatória do registo Predial de Vila real como composto de “Habitação – Entrada A – T3 – 2º andar esquerdo, Bloco A – 2 lugares de garagem “F1” e “F2” no piso menos 4 do Bloco B, com acesso pela Rua …, através do Bloco A, freguesia de …, descrição nº … – F.

   21. O autor, desde Novembro de 2003, data em que foi entregue a chave da fracção prometida e dois lugares de garagem ao autor marido, têm usado, fruído e administrado a dita fracção, ocupando-a, reparando-a, conservando-a, nela depositando bens, materiais e haveres, bem como estacionando viaturas e guardando pertences na garagem, dela retirando todos os seus frutos e rendimentos, à vista de todas as pessoas e sem oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta e consecutiva, na convicção de que o apartamento lhe pertencia.

   22. Porém, a BB, no ano de 2008, entrou em processo de falência, no qual, por sentença proferida em 13 de Junho de 2003, pelo 1º Juízo do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia, foi judicialmente declarada a respectiva falência.

   23. A fracção autónoma em causa nos autos foi apreendida no dito processo de falência da BB pela Ap. 24 de 2008/12/11.

   24. O administrador da massa falida colocou a referida fracção autónoma à venda para 21/7/2010.

         4. - Mérito do recurso.

4. 1. - Invocada pela Massa Falida a excepção da caducidade do direito dos Autores de exercitar contra si os direitos correspondentes aos pedidos formulados na acção, por ter já decorrido, à data da instauração da acção, o prazo de um ano sobre a data do trânsito em julgado da sentença falimentar, como estatuído no n.º 2 do art. 205º do CPEREF.

         Como mostra a matéria de facto, dúvidas não há que, aquando da instauração de insinuação tardia, há muito se esgotara o prazo fixado na dita norma.

            

         A acção foi intentada, admitida e seguiu termos como de “Verificação ulterior de créditos ou de outros direitos”, prevista no art. 205º do CPEREF, preceito que dispõe:

1- Findo o prazo das reclamações, é ainda possível reconhecer novos créditos, bem como o direito à separação ou restituição de bens, por meio de acção proposta contra os credores, efectuando-se a citação destes por éditos.

2 – A reclamação de novos créditos, nos termos do número anterior, só pode ser feita no prazo de um ano subsequente ao trânsito em julgado da sentença de declaração de falência”.

Na sentença da 1ª Instância, entendeu-se que o prazo de um ano estabelecido no transcrito nº 2 se aplica, tanto ao caso de reclamação de novos créditos, como ao da separação ou restituição de bens.

A Relação, apesar de discordar de tal entendimento, por considerar que o prazo em causa apenas é aplicável a situações de reclamações de créditos e não às de separação ou restituição de bens, ponderou que, tendo os pedidos que o Autor fundamenta no contrato-promessa meros efeitos obrigacionais, é aplicável ao caso o prazo de caducidade estabelecido no dito nº 2 do artigo 205º. 

A resposta à questão colocada passa, em qualquer caso, pela determinação do âmbito de aplicação do prazo de caducidade acolhido pelo nº 2 do art. 205º.

4. 2. - Liminarmente, deve pôr-se em evidência que o problema teve tratamentos bem diferentes nas Instâncias e, nessa medida, vem como que delimitado à sub-questão de saber se as pretensões exercitadas na acção pelo Autor-recorrente devem integrar-se no que a norma do n.º 1 do mencionado artigo designa por “direito à separação ou restituição de bens” ou, apenas, na figura do reconhecimento e reclamação de novos créditos.

Com efeito, embora o não reflictam as alegações do Recorrente – que, ao limitar-se a repetir o conteúdo das alegações (e conclusões) da apelação, agiu como se o acórdão impugnado não existisse enquanto decisão devidamente fundamentada -, certo é que o Tribunal da Relação adoptou a posição de deixar de fora do campo de aplicação do art. 205º-2 as acções destinadas a exercer o direito à separação ou restituição de bens, interpretando a norma com o sentido literal e restrito de aplicabilidade exclusiva ao reconhecimento e reclamação de novos créditos.    

O que aconteceu foi que, divergindo da qualificação proposta pelo então Apelante, o mesmo Tribunal não subscreveu o entendimento, por ele defendido, de que a acção diria respeito a verificação de direitos, com vista à restituição e separação de bens, decidindo, antes, que estavam em discussão, nas pretensões formuladas, efeitos de um contrato-promessa sem eficácia real, logo meros efeitos obrigacionais.

Assim, argumentou-se, enquanto os casos de restituição ou separação de bens se reportam a direitos reais dos respectivos titulares reivindicantes – exclusivos (na restituição) ou co-existentes com os da Massa falida (na separação) -, ao caso ajuizado interessam apenas prestações de natureza obrigacional às quais é aplicável o prazo de caducidade estabelecido no nº 2 do citado artigo 205º do CPEREF.

         4. 3. - Embora, como se aludiu, o Recorrente não dedique uma única palavra a contrariar esta específica argumentação, crê-se que a respectiva impugnação deve considerar-se abrangida pelo objecto do recurso, tanto mais que a questão é ainda de interpretação e aplicação do mesmo normativo legal (arts. 864º-2-2 segmento e 664º, ambos do CPC).

 

         Fica, portanto, claro que o acórdão recorrido não procedeu a qualquer interpretação extensiva do preceito em tema, como o acusa o Recorrente, não decidiu em oposição com a Jurisprudência que cita nas conclusões do recurso (supra transcrita) e, também contrariamente ao alegado, adoptou uma posição coincidente com a que veio a ser consagrada no art. 146º-2 do CIRE, na linha da dita Jurisprudência.

         Ao invés, o entendimento sufragado pelo acórdão sob censura é totalmente conforme com a posição ora consagrada na lei da insolvência.

         4. 4. - Questão única sobrante é, então, saber se, para os fins previstos no art. 205º-2 do CPEREF, os pedidos formulados nesta acção apresentam natureza meramente obrigacional, como vem decidido, ou se, ao invés, são qualificáveis como de “restituição ou separação de bens”.

         Como informa PEDRO MACEDO no seu “Manual de Direito das Falências”, II, pags. 326 e ss., a propósito da restituição ou separação de bens e respectivas classificações, “já o antigo direito se referia aos chamados credores de domínio e credores por direito de separação, expressões sugestivas, mas menos rigorosas. Na verdade, nem são credores nas hipóteses comuns, nem estão sujeitos ao concurso com estes”, acrescentando depois, ao discorrer sobre o regime do art. 1237 do C. Civil, a que ora corresponde o do art. 205º CPEREF, que se considera que “a restituição é própria quando, sobre as coisas, tem o reclamante plena e exclusiva propriedade”, havendo “separação quando convergem sobre as coisas direitos do reclamante e do falido”, o que, de resto, já constava do Código de Falências de 1899, cujo art. 62º-3, mais impressivamente, aludia às reclamações dirigidas a separar da massa quaisquer bens de que “o falido não tenha plena e exclusiva propriedade”.

Confrontado com a apreensão do bem para a massa, “o único meio de reacção é a reclamação para restituição”, mediante “uma verdadeira acção reivindicatória sob a forma de reclamação” (ac. STJ, de 07/7/99, BMJ 489º-259).

Também BARBOSA DE MAGALHÃES (“Código de Processo Comercial, Anotado”, II, 343) já ensinava que «são “restituídos” ao domínio e posse dos reclamantes os bens sobre que o falido não tinha direito algum de propriedade; “separados”, mas não entregues, aqueles sobre que o falido tenha qualquer direito sem ser de propriedade plena e exclusiva».

         A restituição de bens, ao que aqui importa considerar, é, pois, o meio próprio de o titular de um direito real de gozo – direito de propriedade ou direito real limitado ou menor – fazer valer o seu direito e reagir contra uma apreensão de que, com ofensa do direito do reivindicante, resultou uma “posse” indevida pela massa do bem que estava em seu poder aquando da declaração de falência ou insolvência.

         Há-de poder ser, em qualquer caso, invocado um título de posse que legitime a exigibilidade da entrega ou a existência de um vínculo em virtude do qual o falido recebeu a coisa com a obrigação de a restituir ao reclamante.

        

         4. 5. - Numa maior aproximação ao ponto decisivo, perguntar-se-á, então se as pretensões do Autor, nesta reclamação, são de incluir no exercício ao direito de restituição, no âmbito do conceito cujos contornos se deixaram definidos.

         A resposta não pode, a nosso ver, deixar de ser negativa.

         Com efeito, a causa de pedir da reclamação não consiste na invocação de título aquisitivo – originário ou translativo - de qualquer direito real de gozo em que a coisa restituenda se encontrava em poder do falido ou como tal fosse considerada aquando da apreensão.

         Muito diferentemente, a reclamação funda-se exclusivamente nos efeitos de um contrato-promessa incumprido pela Falida, designadamente através dos invocados direitos à execução específica de tal contrato, mediante o pagamento da quantia relativa ao preço em falta, reconhecimento do incumprimento do mesmo contrato, imputável à Falida, e devolução do valor do sinal em dobro, com reconhecimento do direito de retenção da fracção, e, finalmente o reconhecimento de que o A. exerce posse sobre o bem prometido vender.

         O contrato-promessa celebrado entre o A. e a Falida não goza de eficácia real.

         Os referidos efeitos, enquanto inerentes ao incumprimento – mora ou incumprimento definitivo – do contrato hão-de ser, consequentemente, também efeitos obrigacionais.

         Assim, relativamente à execução específica, apesar de se resolver na entrega da coisa que é objecto mediato da promessa de venda, ninguém duvida que o efeito jurídico típico da pretensão, conforme estabelece a norma de direito substantivo que reconhece o direito (art. 830º-1 C. Civil), é a obtenção de sentença que produza os efeitos da declaração negocial do contraente faltoso, em execução específica ou forçada da obrigação de celebrar o contrato, gerada pelo contrato-promessa, ou seja, sentença em que o juiz, substituindo-se ao contraente incumpridor, declare vendidos a quem encabece a titularidade dos direitos do promitente-comprador os bens que constituem o objecto mediato do contrato-promessa.

Vale isto por dizer que o objecto do pedido é, necessariamente, fazer cumprir a obrigação (de prestação de facto) de celebrar o contrato prometido com o contraente fiel, mediante a substituição do tribunal ao contraente inadimplente na emissão da declaração negocial em falta em correspondência com o conteúdo das obrigações livremente assumidas no contrato-promessa cuja execução forçada se peticiona.

        

         No tocante à condenação no pagamento do dobro do sinal, as coisas são ainda mais claras, pois que não está em causa a restituição da coisa pela Massa Falida, mas tão só a restituição do numerário representativo do valor do sinal passado, acrescido da indemnização a forfait de igual montante, típica obrigação de natureza indemnizatória.

 

         E o mesmo se diga relativamente ao direito de retenção que o art. 755º-1-f) do Cód. Civil atribui ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido … pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442º do mesmo Código.
Traduz-se o direito de retenção, portanto, “na faculdade que tem o detentor de uma coisa de a não entregar a quem lha pode exigir, enquanto este não cumprir uma obrigação a que está adstrito para com aquele” (P. DE LIMA e A. VARELA, “C. Civil, Anotado”, I, 772).

O direito de retenção é um direito real de garantia (especial) das obrigações e não um direito real de gozo.
         É conferido ao promitente-comprador para lhe garantir o crédito pela indemnização por incumprimento do contrato-promessa, e não para lhe conceder o gozo da coisa objecto da promessa cuja tradição obteve.
         Como resulta do texto do da al. f) transcrita, o direito de retenção visa garantir o crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442º, isto é, o crédito que representa o dobro do sinal, o do aumento do valor da coisa ou a indemnização estipulada pelas partes, nos termos previstos no n.º 4 do dito artigo.
         Em causa estará, portanto, o crédito do promitente-comprador correspondente à indemnização devida pela outra parte em razão do seu incumprimento, isto é, o crédito “derivado do incumprimento definitivo, de que o direito de retenção constitui garantia acessória”, sendo que, por isso que o direito de retenção surge apenas para garantia do crédito gerado por um incumprimento definitivo do contrato-promessa.

         Finalmente, o Recorrente invoca uma posse com o conteúdo de a uma actuação correspondente ao direito de propriedade

         Só que, tal posse, iniciada com a tradição da fracção, não chegou a perdurar, segundo o alegado, por sete anos, sequer, não havendo registo de título nem da mera posse.

         Carece, portanto, de relevância enquanto modo de aquisição originária da propriedade – arts. 1295º e 1296º C. Civil.

         Daí que, como vem decidido, tal “posse” seja inócua, a não ser para efeitos de invocabilidade do direito de retenção, que não implica a aquisição da posse sobre a coisa prometida vender, mas apenas a sua entrega ao promitente-comprador pelo promitente-vendedor, em termos de lhe facultar uma detenção lícita do bem, como beneficiário da garantia.

         Como, perante situação com grandes notas de afinidade com a que aqui se perfila, escreveu-se no acórdão deste Supremo de 16-4-196, referido pelo Recorrente, que o que o A. pediu, “basicamente, foi uma declaração que transferisse a propriedade sobre uma fracção predial, o que pressupõe, seguramente e em elementar lógica, que o direito real em causa lhe não pertence” ou ainda, acrescenta-se aqui, uma indemnização pela violação incumprimento de uma obrigação de facere a consistir, justamente, nessa mesma transferência.

         Tudo se reconduz, portanto, a uma situação creditícia ou de natureza puramente obrigacional, decorrente de mora ou incumprimento definitivo.

        

         Por isso, é claramente caso de aplicabilidade da regra sobre caducidade acolhida pelo art. 205º-2 do CPEREF (regime a que também corresponde agora o art. 142º-2 do CIRE).

         4. 6. - As restantes questões suscitadas nas conclusões do recurso – impedimento da caducidade e abuso de direito -, mantidas na revista em consequência da mera reprodução das apresentadas no recurso de apelação extravasam, como já referido, o objecto deste recurso excepcionalmente admitido, não havendo, por isso, lugar à respectiva apreciação. 

         4. 7. - Respondendo às questões colocadas, poderá, em síntese conclusiva, dizer-se:

- O prazo de um ano, previsto no nº 2 do citado artigo 205º do CPEREF, apenas é aplicável a situações de reclamações de créditos e não às de separação ou restituição de bens;

- As pretensões emergentes do não cumprimento de contrato-promessa de compra e venda sem eficácia real – execução específica, restituição do dobro do sinal e reconhecimento do direito de retenção -, constituindo providências de natureza obrigacional ou creditícia, não se integram no exercício do “direito à restituição ou separação de bens” da massa falida a que alude o art. 205 do CPEREF (agora art. 146º-2 do CIRE);

- Os pedidos assim formulados em reclamação fundada apenas nesse incumprimento contratual estão sujeitos ao regime de caducidade cominado no art. 205º-2 do CPEREF.

         5. - Decisão.

         Em conformidade com o exposto, acorda-se em:

         - Negar a revista;

         - Confirmar a decisão impugnada; e,

         - Condenar o Recorrente nas custas.

                  

                                      Lisboa, 6 Março 2014

                                      Alves Velho (relator)

                                      Paulo Sá

                                      Garcia Calejo