Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
080903
Nº Convencional: JSTJ00012953
Relator: JOAQUIM DE CARVALHO
Descritores: CASAMENTO CATÓLICO
CASAMENTO CIVIL
REGISTO CIVIL
TRANSCRIÇÃO
NULIDADE
IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS
Nº do Documento: SJ199111190809031
Data do Acordão: 11/19/1991
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N411 ANO1991 PAG583
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 24337/90
Data: 01/15/1991
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: DIR CIV - DIR FAM.
DIR REGIS NOT.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 1587 N2 ARTIGO 1588 ARTIGO 1596 ARTIGO 1601 C ARTIGO 1631 A ARTIGO 1632
ARTIGO 1651 N1 A ARTIGO 1654 A ARTIGO 1669 ARTIGO 1670 N1.
CRC78 ARTIGO 1 - ARTIGO 5 ARTIGO 64 D ARTIGO 65 N1 B ARTIGO 87 ARTIGO 110 N4 D ARTIGO 113 ARTIGO 114 N1 A B ARTIGO 178 ARTIGO 210 N1 D E ARTIGO 238 ARTIGO 299 N1 ARTIGO 302.
Sumário : I - É nulo o registo do casamento católico ao qual, no nomento da celebração era oponível algum impedimento dirimente, designadamente derivado de casamento anterior não dissolvido.
II - Não deixa de haver infracção à lei pelo facto de o encarregado da transcrição a fazer por desconhecer justificadamente a existência de fundamento legal para a recusar.
III - O impedimento dirimente é, no casamento civil, causa de anulabilidade (artigo 1631, alínea a) do Código Civil.
Porém, a nulidade do registo a que o mesmo impedimento conduz no casamento católico deixa intacta a validade do mesmo casamento até ser discutida nos tribunais competentes.
IV - Isto é, enquanto no casamento civil o impedimento actua no plano da validade substancial, no casamento católico, só actua no plano registral.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, neste Supremo:

A e sua mulher B, naturais, ele de Sobreiro de Baixo, Vinhais, e ela de Murtede, Cantanhede, e ambos emigrantes em França, vieram, em processo comum de justificação judicial nos termos do artigo 299 e seguintes do Código do Registo Civil e tendo como demandada C, casada, doméstica, residente naquela freguesia de Sobreiro de Baixo, requerer que seja declarado nulo, o registo de casamento católico, lavrado por transcrição do respectivo assento em 27 de Abril de 1984, na Conservatória do Registo Civil de Vinhais, onde tem o n. 26, maço 2, e relativo a A, e aquela demandada C, casamento que foi celebrado às 19 horas do dia 23 de Abril de 1984 na casa de habitação dos nubentes, e que se ordene o cancelamento de tal registo.
Citada, opôs-se a requerida C, limitando-se a dizer que o seu primeiro marido, D faleceu em Setembro de 1949, pelo que nada obstava à transcrição do seu segundo casamento católico com o A em 1984.
Foi o processo instruido na Conservatória do Registo Civil de Vinhais, tendo sido remetido ao tribunal daquela comarca com informação desfavorável do Ajudante em exercício, que defende o indeferimento.
E o Senhor Juiz indeferiu as pretensões dos requerentes.
Agravaram estes, mas a Relação do Porto negou-lhes provimento ao recurso mantendo o indeferimento do pedido, embora por razões diversas das invocadas pelo Senhor Juiz da 1 Instância.
Por isso agravaram os mesmos requerentes do Acórdão da Relação, solicitando a sua revogação, para ser substituida a decisão de improcedência por outra que julgue a acção procedente, declarando nulo o registo, porque o acórdão viola os artigos 1588, 1651, 1652, 1654, 1657 e 1601, do Código Civil, e 1 a 5, 110 d), 210 d), 289, 291, 231, 232, 233, 238 e 302 do Código de Registo Civil, pois:- quando a C casou com o Amândio Morais e foi feita a transcrição do casamento católico em causa, subsistia o anterior casamento, civil e católico, dela com o D, cuja morte não pode ser provada testemunhalmente neste processo. Por isso, tal transcrição deveria ter sido recusada; não o tendo sido, deve ser declarado nulo o registo.
Não alegou a Recorrida.
O Excelentíssimo Representante do Ministério Público neste Supremo, como aliás, havia feito o seu colega na Relação, entende que o recurso deve ser provido.
Decidindo, colhidos que foram os vistos:-
A nossa lei reconhece valor e eficácia de casamento ao matrimónio católico e equipara-o nos efeitos civis ao casamento civil - artigo 1587 n. 2 e 1588, do Código Civil (a que pertencerão todos os que forem citados sem referência).
Por isso, os assemelha também quanto à exigência de requisitos e de capacidade matrimonial para validamente serem contraidos - artigo 1596.
O que igualmente acontece quanto à obrigatoriedade do registo, único meio de prova do casamento a permitir a invocação deste e a produção de seus efeitos civis - artigos 1651-1 a), 1669 e 1670-1.
Quanto à forma do registo é que já há diferenças entre os dois casamentos:- enquanto o do civil não urgente é feito por inscrição (artigo 64 d) do Codigo de Registo Civil) o do católico é sempre por transcrição - artigo 1654 a) (e artigo 65-1 b) do Código de Registo Civil).
E desta diferença surge uma outra a que se ligam consequências que podem vir a revelar-se importantes:-
é que enquanto no assento do casamento civil feito por inscrição não há lugar a recusa, a transcrição do casamento católico deve ser recusada nos casos mencionados nas várias alíneas do n. 1 do artigo 210 do
Código de Registo Civil.
E entre os fundamentos da recusa de transcrição encontram-se, para além de razões formais ou processuais, motivos também ligados à validade substancial do próprio acto do casamento. E entre estes
últimos interessa-nos aqui focar especialmente o mencionado sob a alinea d) do n. 1 daquele artigo 210, que se refere à existência, no momento da celebração, de algum impedimento dirimente oponível ao casamento, notando-se, por conjugação com a sua alínea e), que isto respeita mesmo aos casamentos celebrados com precedência do processo de publicação e certificado de autorização a que se refere o artigo 178 do Código de Registo Civil.
E a consequência registral de inobservância do disposto nesta alinea d) é altamente penalizante. Exactamente a de nulidade do próprio registo, nos termos da alinea d) do artigo 110 do mesmo Código do Registo Civil.
Neste ponto detecta-se realmente uma sensivel diferença entre os regimes ou tratamento registral do casamento civil e o do católico.
É que, enquanto no primeiro as causas de invalidade do acto nunca conduzem à nulidade do seu registo, nem sequer ao seu cancelamento (artigos 110 e 114 - 1 b) do Código de Registo Civil), mas apenas ao seu averbamento ao registo, depois do seu reconhecimento por sentença em acção especialmente intentada para isso (uma das chamadas acções de estado) - artigos 87 do Código de Registo Civil e 1632 no segundo, o católico, já a existência de impedimento dirimente (causa de invalidade - 1631 a)) leva à nulidade do próprio registo, como vimos, independentemente de se manter inatacada a validade do acto, pois tal nulidade pode ser declarada judicialmente em mera acção de registo - conforme artigos 113 e 299 - 1, do Código de Registo Civil - como é o caso desta.
Ou seja, enquanto no casamento civil há sempre concomitância entre a realidade registral e a do acto, no católico isso pode não se verificar pois é possivel manter-se inatacada a validade do acto (a invalidade não opera ipso jure) e não haver nota sua (válida) no registo (desde que este é declarado nulo).
A isto não será certamente estranho o facto de aos tribunais eclesiásticos ser atribuida, em exclusividade, a competência para conhecimento das causas respeitantes à invalidade do casamento católico, matéria subtraída à jurisdição civil - artigo 1625.
Assim, embora respeitando tal competência e a validade do casamento católico enquanto não fôr anulado pelos tribunais competentes, cabe já aos tribunais judiciais, através de declaração de nulidade do registo, evitar que tais casamentos produzam os efeitos civis dependentes do mesmo registo.
A explanação que acaba de fazer-se teve em vista salientar o enquadramento desta problemática de nulidade do registo do casamento católico no sistema do registo civil e na essencialidade dos contactos desse casamento com o nosso regime civil, procurando tornar mais compreensivel e "aparentemente menos chocante" a solução legalmente imposta, e que se repete, frisando:-
é nulo o registo do casamento católico quando a transcrição de que resultou respeite a casamento celebrado quando lhe era oponível algum impedimento dirimente - artigos 110 d) concessionado com o artigo
210-1 d), do Código do Registo Civil.
E os registos judicialmente declarados nulos serão cancelados - 114-1 a) deste código.
Vem provado que:
1- a) No dia 30 de Março de 1932, casaram civilmente, um com o outro, na Conservatória do Registo Civil de Mirandela, a requerida C e D - assento n. 52 de 1932 daquela Conservatória
- documento de folhas 6. E estes mesmos nubentes celebraram casamento católico, perante o pároco de S. Pedro Velho, Mirandela, em 13 de Abril do mesmo ano. E, b) Nestes registos não consta o averbamento de qualquer facto relativo à sua validade e subsistência.
2- a) No dia 23 de Abril de 1984, a mesma requerida C contraiu casamento católico, perante o pároco da freguesia de Sobreiro de Baixo, concelho de Vinhais, com A. b) Este casamento foi registado por transcrição, sob o assento n. 26, daquele ano, na Conservatória do Registo Civil de Vinhais - documento de folhas 12. E
3- a) foi precedido do processo preliminar de publicações, tendo sido emitido o certificado de autorização. b) estando já dissolvido por morte do cônjuge Amândio, ocorrida em 10 de Abril de 1988 - documento de folhas
13.
4- No registo de nascimento daquele D não consta averbamento relativo à sua morte.
5 - Ao registo de nascimento da falada C não consta ter sido averbado o casamento que contraiu com o D, embora tenha sido averbado o 2 casamento e a respectiva dissolução por óbito do cônjuge marido.
Perante estes factos é manifesto que a C contraiu segundo casamento com o A quando o seu anterior casamento com o D não estava ainda dissolvido, face aos registos, e subsistia.
E a oposição por ele deduzida não pode proceder porque aqui não é admissivel prova testemunhal da morte do D - artigos 1 a 5, do Código de Registo Civil, tendo de aceitar-se a derivada dos registos e aquela morte só com certidão do respectivo registo se provaria.
A falta deste, se a houver, so atraves de autorização judicial obtida em processo de instificação pode ser suprida - artigos 238 e 299, do Codigo de Registo Civil. E nesse processo, especificamente a isso destinado, e que sera permitida a prova testemunhal a que se refere o artigo 302, entre outros.
Temos assim que no momento da sua celebração era oponivel a esse segundo casamento impedimento dirimente derivado de casamento anterior não dissolvido - artigo 1601 c).
Pelo que a transcrição deste segundo casamento catolico devia ter sido recusada, nos termos do citado artigo 210 - 1 d).
E não o foi certamente, tanto no processo preliminar, digo, certamente por o 1 casamento não ter sido averbado ao registo de nascimento de C, sendo assim silenciado tanto no processo preliminar, como posteriormente. O que impossibilitava, era falta de denuncia por quem disso tivesse conhecimento, a sua descoberta pelo encarregado da transcrição.
Mas isso, ao contrário do que se entendeu no acórdão recorrido, não significa que a transcrição não tenha sido feita com infracção do disposto na alínea d) do n. 1 do artigo 210, como se diz na alínea d) do artigo 110, referidos já.
É que a expressão "infracção" não está ali para significar delito ou violação culposa de lei; infracção no sentido subjectivo do autor da transcrição. Mas apenas com o sentido objectivo de ter sido a transcrição feita contra, ou a despeito do disposto, nas alineas d) e e) do n. 1 do artigo 210, seja qual fôr a causa de não recusa e apesar da perfeita inocência do seu autor.
De outra forma, a lei tinha necessariamente que fazer a distinção entre a não recusa culposa e a inocente, de boa fé.
Não deixa de haver infracção à lei pelo facto de o encarregado da transcrição a fazer por desconhecer, justificadamente, a existência de fundamento legal para a recusar. E não há qualquer dificuldade com a justificação da recusa, pois naturalmente ela tem que ser justificada e sem dificuldade já que só terá lugar quando o recusante conhece ou se apercebe de fundamento para isso.
Por outro lado, não pode dizer-se, contra o que se nota no acórdão recorrido, que assim se coloca o casamento católico em claro desfavor face ao civil. Não há, neste aspecto, comparação.
É que o impedimento dirimente é no casamento civil causa de anulabilidade - artigo 1631. E pode, se accionados tempestivamente os mecanismos legais, levar à anulação do casamento. Porém, a nulidade do registo a que o mesmo impedimento conduz no casamento católico, deixa intacta a validade do mesmo casamento até ser discutida nos tribunais competentes.
Isto é, no casamento civil o impedimento actua no plano de validade substancial, no católico só no plano registral. O que é diferente, e não um mais ou menos dentro do mesmo plano.
Pelo exposto, pode já concluir-se que a transcrição do casamento católico de C com o A infringiu o disposto na alínea d) do n. 1 do referido artigo 210, pelo que o registo do mesmo casamento é nulo por imposição do disposto na alinea d) do artigo 110, também já citados.
E o reconhecimento e declaração dessa nulidade importa o seu cancelamento - mencionado artigo 114 - 1 a).
Procedem, pois, os fundamentos do recurso.
Termos em que se concede provimento ao agravo, revogando-se o acórdão recorrido e a decisão da 1 instância que ele confirmou, para que esta seja substituida por outra em que, na procedência da acção, se declare a nulidade do registo de casamento em causa e ordene o seu cancelamento.
Custas pela recorrida C, aqui e nas Instâncias.
Lisboa, 19 de Novembro de 1991.
Joaquim de Carvalho
Beça Pereira
Martins da Fonseca
Decisões impugnadas:
I - Sentença de 90.04.06 do Tribunal Judicial de Vinhais;
II - Acórdão de 91.01.15 da Relação do Porto.