Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1145/12.0TBBCL-C.G1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FERNANDES DO VALE
Descritores: CREDITO LABORAL
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
CONSTRUÇÃO CIVIL
BEM IMÓVEL
Data do Acordão: 01/13/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO.
DIREITO DO TRABALHO - CONTRATO DE TRABALHO / PRESTAÇÃO DO TRABALHO - INCUMPRIMENTO DO CONTRATO / GARANTIAS DE CRÉDITOS DO TRABALHADOR.
Doutrina:
- Fernando Olavo, Direito Comercial, Vol. I, 2ª Ed. (1970), pp. 250, 268.
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa”, Anotada, Vol. I, 4ª Ed., p. 777.
- Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 12.ª Ed., p. 418.
- Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, Vol. I, p.75.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 9.º, N.º3.
CÓDIGO DO TRABALHO (CT): - ARTIGOS 193.º, 333.º, N.º1, AL. B).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 58.º, 59.º, Nº3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:
-DE 30/05/2013, EM WWW.DGSI.PT .

-*-

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
-DE 22/10/2013, EM WWW.DGSI.PT .

-*-

ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 23/09/2010;
-DE 13/11/2014, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - O que justifica a concessão do privilégio imobiliário especial aos créditos laborais é, sem dúvida, a especial ligação funcional – e não meramente naturalística – do trabalhador ao imóvel, através do exercício da sua actividade, a qual, tendo de ser circunscrita no espaço e no tempo, não pode ser reportada aos diversos prédios ou fracções autónomas em cuja construção tenha participado, o que, podendo até integrar já património alheio por via de subsequente comercialização, não pode constituir o imóvel em que o trabalhador presta a sua actividade, antes tendo de ser encarado como o resultado ou produto da respectiva actividade, como o seriam, v.g., os artigos de vestuário ou calçado produzidos pela respectiva entidade patronal que tais actividades tivesse por objecto.

II - O entendimento contrário acarretará, designadamente nas empresas de construção civil, um tratamento discriminatório – completamente arbitrário e alheado do critério interpretativo dimanado do art. 9.º, n.º 3, do CC, e, pois, não prosseguido pelo legislador – entre trabalhadores da mesma empresa, conforme as funções por si exercidas o sejam no estabelecimento da respectiva sede – v.g. pessoal administrativo, da área financeira, de gestão, etc. – ou nos seus edifícios construídos ou em edificação – v.g. trolhas, serventes, carpinteiros, canalizadores, pintores, electricistas, etc.
Decisão Texto Integral:

Proc. nº1145/12.0TBBCL-C.G1.S1[1]

               (Rel. 188)

                              Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça

1 – “AA, Lda” foi, por sentença de 04.05.12, já transitada em julgado, declarada insolvente.

       Aberto o concurso de credores, foram reclamados e reconhecidos pelo administrador da insolvência, os créditos que constam da lista junta de fls. 3 a 10 (com a rectificação introduzida a fls. 79 e segs).

       Tal lista foi objecto de impugnação, relativamente a alguns dos créditos.

       A lista definitiva, em conformidade com os acordos e decisões, entretanto, proferidas, foi apresentada pelo administrador da insolvência, constando a mesma de fls. 271 e segs.

       O tribunal procedeu à graduação dos créditos reconhecidos, a pagar pelo produto dos bens imóveis, pela seguinte forma:

                                                       /

     1º - O crédito reclamado pelos trabalhadores (id. na lista como proveniente de relações laborais, créditos nº/s 4, 6, 19, 27, 28, 30, 33, 34, 37 e 41);

     2º - O crédito dos credores “BB” (nº 10), garantido por hipotecas sobre as verbas nº/s 7 a 14, e “CC” (nº/s 11 e 12), garantido por hipotecas sobre as verbas nº/s 1 a 6, 15 e 16);

     3º - O crédito da Segurança Social (crédito nº/s 15 e 16);

     4º - O crédito reclamado pela Fazenda Nacional (créditos nº/s 43 e 45 – parte – ou seja, IRS e IRC, nos termos acima delimitados);

     5º - Os créditos comuns (e aqueles que não obtiveram pagamento com o funcionamento da respectiva garantia/privilégio);

     6º - Por último, os créditos subordinados.

       Mais se decidiu, aí, que os pagamentos das dívidas da massa insolvente a que se refere o art. 51º do CIRE sairão precípuos do produto da venda.

       Inconformada com a sentença de verificação e graduação de créditos, na parte em que, pelo produto da liquidação de todos os bens imóveis apreendidos, graduou os créditos de natureza laboral com prevalência sobre os créditos hipotecários, apelou a credora “CC, S. A.”, tendo a Relação de Guimarães, por acórdão de 10.07.14 e na procedência da apelação, revogado a sentença recorrida, “no segmento em que reconheceu privilégio imobiliário especial aos créditos dos trabalhadores sobre os imóveis apreendidos para a massa, hipotecados para garantia dos créditos nos autos reconhecidos à apelante (verbas descritas no respectivo auto de apreensão sob os nº/s 1 a 6, 15 e 16)”, mais determinando queos créditos da apelante (CCC), garantidos por hipoteca sobre esses imóveis, preferem e são graduados antes dos créditos dos trabalhadores”.

       Daí a presente revista interposta pelos trabalhadores da insolvente, DD, EE e FF, visando a revogação do acórdão recorrido, conforme alegações culminadas com a formulação das seguintes conclusões:

                                                       /

1ª – O acórdão recorrido considerou assente a seguinte factualidade:

1 – A insolvente dedicava-se à construção civil;

             2 – Nos presentes autos de insolvência, foram apreendidos dezasseis bens imóveis, oito deles…, hipotecados para garantia do crédito da “CC, S.A.”;

             3 – Os imóveis apreendidos e hipotecados a favor da CC foram construídos pela insolvente no exercício da sua actividade;

4 – Os trabalhadores, ... , operários da construção civil, trabalharam nas obras da insolvente de construção desses imóveis (sublinhado nosso);

2ª – Dispõe o artigo 333º, nº1 alínea b), do Código do Trabalho – houve manifesto lapso na referência a Código “Civil” – que "os créditos emergentes de contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam de privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade ";

3ª – O privilégio imobiliário especial previsto no artigo 3330 do Código do Trabalho abrange todos os imóveis nos quais o trabalhador tenha prestado a sua actividade, não prevendo essa norma jurídica qualquer limitação ou exclusão ao âmbito de aplicação do referido privilégio;

4ª – Se o legislador quisesse ter restringido a atribuição do privilégio imobiliário especial aos imóveis onde o empregador tivesse a sua sede ou estabelecimento, certamente teria dado outra redacção a esse normativo legal, referindo claramente que aquele privilégio recairia apenas sobre o imóvel onde funcionasse a sede da empregadora;

5ª – A insolvente exercia a actividade industrial de construção civil, definindo-se esta como a actividade que engloba a execução de várias obras;

6ª – A construção civil é uma actividade que se exerce nas várias obras que as empresas têm em execução, e não apenas nas instalações onde funcionam as sedes das empresas;

7ª – Na construção civil, a parte principal da logística, da organização do trabalho, do parqueamento de equipamento ou dos próprios estaleiros das empresas encontram-­se precisamente em locais que vêm a ser considerados como o produto da actividade ou da indústria dessas empresas, razão pela qual se justifica que o local de trabalho seja entendido em sentido amplo;

8ª – O acórdão recorrido refere que, no caso específico dos trabalhadores da construção civil, o respectivo local de trabalho é onde a empresa tem os seus estaleiros, armazéns e depósitos de materiais;

9ª – Ora, na construção civil, os estaleiros, armazéns e depósitos de materiais situam-se nas próprias obras que as empresas têm em curso, já que é nesse local que permanecem as gruas, as máquinas de movimentar terras, as máquinas de cortar e vergar ferro, todas as ferramentas utilizadas diariamente pelos trabalhadores;

10ª – Na construção civil é nas próprias obras que as empresas têm em curso que os trabalhadores se apresentam para desempenhar a sua actividade, é aí que recebem ordens dos superiores hierárquicos, bem como é aí que lhes é pago o salário;

11ª – Na construção civil é nas próprias obras que as empresas têm em curso que está instalado o refeitório, as casas de banho, o dormitório, o posto médico e o posto de vendas ao público;

12ª – No caso dos autos, e atendendo à actividade de construção civil a que a insolvente se dedicava, tem de se concluir que o local onde os recorrentes e demais credores laborais da insolvente prestavam a sua actividade não seria apenas no local da sede da empresa, mas, preferencialmente, nas obras que esta tinha em curso,

13ª – nas quais aqueles trabalharam, conforme foi considerado assente pelo acórdão em crise,

14ª – não havendo, assim, dúvidas de que os imóveis descritos no auto de apreensão como verbas nº/s 1 a 6, 15 e 16 haverão de estar sujeitos ao privilégio imobiliário especial que a lei confere aos trabalhadores;

15ª – Como bem decidiu já o Tribunal da Relação de Coimbra, no seu acórdão de 12.06.12 "do objecto do privilégio em presença apenas se exclui o património do empregador não afecto à organização empresarial, notadamente os imóveis destinados à fruição pessoal do empregador, tratando-se de pessoa singular, ou de qualquer outro modo integrados em estabelecimento diverso daquele em que o reclamante desempenhou o seu trabalho ";

16ª – Citando o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 31.01.13, com a expressa menção que passou a constar do anterior artigo 377º do Código do Trabalho e actual 333º, conferindo privilégio especial somente ao bem imóvel do empregador no qual o trabalhador preste a sua actividade, não se tem em vista uma ligação estritamente física e permanente entre o exercício de funções e aquele, mas apenas excluir desse privilégio todos aqueles imóveis que, no caso de insolventes singulares, estão exclusivamente destinados à fruição pessoal do empregador;

17ª – Decidiu também já o Supremo Tribunal de Justiça no sentido que o legislador pretendeu que os trabalhadores reclamantes gozam do privilégio relativamente a todos os bens imóveis integrantes do património dos insolventes afectos à sua actividade empresarial e não apenas sobre um específico prédio onde trabalham ou trabalhavam, e independentemente do seu particular posto e local de trabalho ser no interior ou exterior das instalações;

18ª – Face à factualidade dada como assente pelo acórdão recorrido, designadamente a constante do ponto 4, deveria aquele ter considerado como local de trabalho dos recorrentes e demais credores laborais da insolvente, todos os imóveis apreendidos para a massa insolvente, incluindo as verbas nº/s 1 a 6, 15 e 16 do auto de apreensão;

19ª – Em consequência, deveria o acórdão recorrido ter considerado que os créditos dos recorrentes e demais credores laborais da insolvente gozam do privilégio imobiliário especial previsto no artigo 333° do Código do Trabalho sobre todos os bens imóveis apreendidos nos presentes autos, incluindo os descritos no auto de apreensão como verbas nº/s 1 a 6, 15 e 16;

20ª – Da conjugação dos artigos 686° n° 1 e 751°, ambos do Código Civil, resulta que a garantia real e a preferência no pagamento do crédito conferidas pela hipoteca cedem perante privilégio especial,

21ª – pelo que deveriam os créditos dos recorrentes, detentores de privilégio imobiliário especial sobre todos os bens imóveis apreendidos para a massa, ser graduados em primeiro lugar relativamente ao produto da venda desses imóveis, incluindo dos garantidos por hipoteca a favor da “CC, S. A.”;

22ª – O acórdão recorrido, ao interpretar de forma restritiva o artigo 333° do Código do Trabalho, considerando que o mesmo confere privilégio imobiliário especial apenas sobre os imóveis que integram a sede ou o estabelecimento da insolvente, está a violar o disposto no n° 3 do artigo 59° da Constituição da República Portuguesa,

23ª – violando os direitos dos trabalhadores constitucionalmente consagrados nos artigos 58° e 59° da Constituição da República Portuguesa, nomeadamente o direito do salário gozar de garantias especiais;

24ª – O acórdão recorrido fez incorrecta interpretação e aplicação da lei, nomeadamente do disposto no artigo 3330 do Código do Trabalho, e nos artigos 6860 e 7510 do Código Civil, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que confira privilégio imobiliário especial aos créditos dos recorrentes e demais credores laborais da insolvente, sobre todos os bens imóveis apreendidos para a massa insolvente.

       Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente, com as consequências legais, assim se fazendo a COSTUMADA JUSTIÇA.  

       Contra-alegando, defende a recorrida “CC, S. A.” a manutenção do julgado.

       Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

                                                     *

2 – A Relação teve por provados os factos numerados de 1 a 4 e constantes da conclusão 1ª supra, os quais, aqui, se têm por reproduzidos, para os legais efeitos.

                                                     *

3 – Perante o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes e não havendo lugar a qualquer conhecimento oficioso, são as seguintes as questões que, no âmbito da revista, demandam apreciação e decisão por parte deste Tribunal de recurso:

                                                      /

 I – Se, relativamente aos imóveis identificados no auto de apreensão como verbas nº/s 1 a 6, 15 e 16, os créditos dos recorrentes gozam, ou não, do privilégio imobiliário especial previsto na al. b) do nº1 do art.333º do Cod. do Trabalho, na redacção introduzida pela Lei nº 7/2009, de 12.02;

IINa negativa, se tal implica violação do preceituado nos arts. 58º e 59º, nº3 da CRP (Constituição da República Portuguesa).

       Apreciando:

                                                      *

4I – Como consta do antecedente relatório, “AA, Lda” foi declarada insolvente por sentença de 04.05.12, transitada em julgado, sendo, pois, aplicável à apreciação e decisão da 1ª questão enunciada o preceituado no art. 333º, nº1, al. b), do Cod. do Trabalho na sobredita redacção, a qual sucedeu ao preceituado na al. b) do nº1 do art. 377º do anterior Cod. do Trabalho, antecedido, por seu turno, do estatuído nos arts. 25º da LCT e 4º da Lei nº 96/2001, de 20.08.

       Nos termos do citado art. 333º, nº1, al. b), “Os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios:…

(…) Privilégio imobiliário especial sobre o bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade”.

       Estando provado que:

--- A insolvente dedicava-se à actividade da construção civil;

--- Nos presentes autos de insolvência, foram apreendidos dezasseis bens imóveis, oito deles descritos no respectivo auto de apreensão como verbas nº/s 1 a 6, 15 e 16, hipotecados para garantia de créditos da “CC, S. A.”;

--- Tais imóveis foram construídos pela insolvente, no exercício da sua actividade;

--- Os recorrentes, operários da construção civil, trabalharam nas obras da insolvente de construção desses imóveis, pretendem os recorrentes que o mencionado privilégio imobiliário especial, legalmente estatuído a seu favor, incida sobre todos e cada um desses imóveis.

       Porém, muito embora a 1ª instância assim o tivesse entendido, falece razão aos recorrentes quando tal pretendem, como – bem – decidiu a Relação e sustenta a recorrida CCC, navegando, aliás, na corrente maioritária – senão unânime – em que conflui a generalidade dos correspondentes arestos dos Tribunais Superiores, para os quais, desde já, no omitido e com a devida vénia, se remete[2].

       É que, desde logo, não deixa de ferir a sensibilidade jurídica do intérprete a circunstância de, na mais recente e, aqui, aplicável formulação legal, ter passado a constar a expressão “bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade”, aí onde, antes, se dizia “bens imóveis nos quais o trabalhador preste a sua actividade”.

       Com efeito, ali, contempla-se apenas um bem imóvel a isolar dos demais pelo facto de o trabalhador em causa lá prestar – no presente – a sua actividade, enquanto na paralela formulação se apontava para os imóveis – no plural – nos quais o trabalhador preste – admitindo a possibilidade de abrangência daqueles em que tenha prestado – a sua actividade.

       E, se é certo que esta última formulação ainda poderia despoletar dúvidas – quais os imóveis contemplados, os que (no caso de construção civil) estão a ser construídos, ou também os já construídos, há algum tempo e, eventualmente e entretanto, comercializados? E, se apenas aqueles, qual o fundamento legal da discriminação, uma vez que, num caso e noutro, o trabalhador teve idêntica intervenção e ligação laboral?!... –, a redacção vigente e a ter em conta não deixa, a tal propósito, lugar a dúvidas: apenas é contemplado o imóvel em que o trabalhador-credor presta a sua actividade.

       Para a determinação deste imóvel e atenta a natureza jurídica da insolvente, terá de convocar-se a noção de estabelecimento, definido pelo Prof. Fernando Olavo[3] como o “conjunto de elementos afectados pelo comerciante” (aqui, também industrial) “ao exercício da sua empresa”, consistindo esta, por seu turno e na definição do mesmo insigne Mestre, na “actividade profissionalmente exercida e dispondo de organização em ordem à realização de fins de produção ou troca de bens e de serviços”.[4]

       Para Monteiro Fernandes[5], “…o local de trabalho é, em geral, o centro estável (ou permanente) de actividade de certo trabalhador e a sua determinação obedece essencialmente ao intuito de se dimensionarem no espaço as obrigações e os direitos e garantias que a lei lhe reconhece”. Como consta do citado acórdão deste Supremo, sendo a sede “elemento obrigatório em termos de contrato de sociedade, como decorre do art. 9º, nº1, al. e) do CSCom”, aí é, decerto, o local de trabalho contratualmente definido para os respectivos servidores, de harmonia com o disposto no art. 193º do CTrabalho.

       Aliás, o que justifica a concessão do privilégio imobiliário especial aos créditos laborais é, sem dúvida, a especial ligação funcional – e não meramente naturalística – do trabalhador ao imóvel através do exercício da sua actividade, a qual, tendo de ser circunscrita no espaço e no tempo, não pode ser reportada aos diversos prédios ou fracções autónomas em cuja construção tenha participado, o que, podendo até integrar já património alheio por via de subsequente comercialização, não pode constituir o “imóvel em que o trabalhador presta a sua actividade”, antes tendo de ser encarado como o resultado ou produto da respectiva actividade, como o seriam, v. g., os artigos de vestuário ou calçado produzidos pela respectiva entidade patronal que tais actividades tivesse por objecto.

       Em suma, para o efeito que vem sendo considerado, não releva uma ligação ou conexão com um qualquer imóvel onde os trabalhadores tenham exercido funções, exigindo-se, antes, que esse imóvel faça parte integrante, de forma estável, da empresa encarada como unidade produtiva e emanação do complexo organizacional do empregador.

       Diga-se, finalmente, que só o entendimento perfilhado permite evitar, nas empresas de construção civil como a insolvente, discriminações de tratamento entre os trabalhadores das mesmas empresas, conforme as funções por si  exercidas o fossem no estabelecimento da respectiva sede – v. g. pessoal administrativo, da área financeira e contabilística, de gestão, etc – ou nos seus edifícios construídos ou em edificação – v. g. trolhas, serventes, carpinteiros, canalizadores, pintores, electricistas, etc –, o que, sem qualquer dúvida, tornaria tais discriminações completamente arbitrárias e destituídas de fundamento legal e, mesmo, ético, e sem qualquer possibilidade de harmonização com o critério interpretativo dimanado do art. 9º, nº3, do CC.  

       Concorda-se, pois, com a posição perfilhada no Ac. deste Supremo, de 23.09.10, onde, à semelhança do sustentado nos sobreditos arestos, se entendeu que ”…numa empresa de construção civil, os imóveis que lhe advêm como resultado da actividade que lhe é própria são o produto da organização empresarial, mas não são um elemento que a integra. Por outras palavras, resultam do estabelecimento do empregador, mas dele não fazem parte. Apesar de, após a sua conclusão, pertencerem ao património do empregador, não significa isto que, só por tal, passem a englobar o seu estabelecimento. O destino dos imóveis é, até, normalmente, outro, como seja a sua comercialização. E de acordo com a letra e o espírito do art. 377º” – hoje, 333º - “do C. Trabalho, o que o legislador pretendeu foi que o privilégio em causa versasse imóveis «nos quais» - hoje, imóvel no qual – “o trabalhador presta a sua actividade”.

                                                      /

II – Como evidenciam os autos, as fracções apreendidas e em relação às quais os trabalhadores recorrentes invocam a titularidade de correspondente privilégio creditório imobiliário (especial) não podem ser consideradas como o “imóvel em que os mesmos presta(ra)m a sua actividade”: embora possam ter constituído, temporariamente, o seu local de trabalho, mais não representam as mesmas que o resultado da actividade da empresa insolvente, integrando o respectivo património, mas não a unidade ou organização produtiva da empresa, que, aí, não está (nem, jamais, esteve) centrada.

       Assim, não integrando tais fracções, de forma estável, a organização empresarial da insolvente, nem estando as mesmas afectas à actividade por si prosseguida, não pode ser reconhecido aos recorrentes o invocado privilégio creditório imobiliário especial, conforme – bem – se decidiu na Relação.

                                                   /

III – Os recorrentes sustentam que a posição que se deixa propugnada viola o preceituado nos arts. 58º e 59º, nº3, ambos da CRP.

       Assim o não entendemos, todavia.

       Com efeito, aquele primeiro art. proclama que todos têm direito ao trabalho, enunciando, a propósito, o que, para assegurar tal direito, incumbe ao Estado: nada, pois, com interferência na temática que nos ocupa.

       Por seu turno, o invocado art. 59º, nº3 estatui que “Os salários gozam de garantias especiais, nos termos da lei”, assinalando, a propósito, os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira[6] que “As garantias especiais incluirão, nomeadamente, privilégios creditórios…

       Ora, estes não deixaram de ser criados pelo legislador ordinário, o qual, para o efeito, dispunha de total liberdade de conformação, nos termos proclamados pelo próprio preceito constitucional em análise.

       E o facto de os recorrentes não coincidirem na definição e determinação do exacto conteúdo do questionado privilégio creditório não torna inconstitucional o entendimento contrário, o qual, como se viu, até evita o tratamento discriminatório de trabalhadores que devem ser tratados de igual forma.

       Improcedendo, pois, as conclusões formuladas pelos recorrentes.

                                                   *

5 – Na decorrência do exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se, assim, o acórdão recorrido.

      Custas pelos recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário com que litigam.

                                                   /

                                      Lx     13  /  01   /   15  /

Fernandes do Vale (Relator)

Ana Paula Boularot

Pinto de Almeida  

______________________
[1]  Relator: Fernandes do Vale (37/14)
   Ex. mos Adjuntos
   Cons. Ana Paula Boularot
   Cons. Pinto de Almeida
[2]  Assim, designadamente, os Acs. da Relação de Guimarães, de 30.05.13, da Relação do Porto, de 22.10.13 e, muito recentemente, de 13.11.14, deste Supremo, este relatado pela, ora, 1ª adjunta e em que interveio, como 1º adjunto o, ora, 2º adjunto, todos eles acessíveis em www.dgsi.pt.
[3]  In “Direito Comercial”, Vol. I, 2ª Ed. (1970), pags. 268.
[4]  Ibidem, pags. 250. Mais recentemente, o conceito de empresa é desenvolvido em “Direito Comercial”, Vol. I, pags.75, do Prof. Pedro Pais de Vasconcelos, nos termos assinalados no mencionado Ac. de 13.11.14 deste Supremo e que, não contendendo com o que ficou expendido, aqui se têm por reproduzidos.
[5] In “Direito do Trabalho”, 12ª Ed., pags 418.
[6]  In “Constituição da República Portuguesa”, Anotada, Vol. I, 4ª Ed., pags. 777.