Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
351/09.9TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ALVES VELHO
Descritores: VENDA JUDICIAL
ARRENDAMENTO
CADUCIDADE
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 09/16/2014
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: COLECTÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA DO STJ - Nº 259 - ANO XXII - T. III/2014 - P. 43-45
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL.
Doutrina:
- A. LUÍS GONÇALVES, "Arrendamento de prédio hipotecado. Caducidade do arrendamento", in RDES, ano XXXX (XII, da 2ª Série), n.º 1, 98.
- ANA CAROLINA S. SEQUEIRA, “A Extinção De Direitos Por Venda Executiva”, in Garantias das Obrigações, 23 e 43.
- ANÍBAL DE CASTRO, A Caducidade, 2ª ed., 216.
- HENRIQUE MESQUITA, in RLJ, A. 127º, 223.
- M. ISABEL H. MENÉRES CAMPOS, Da Hipoteca – Caracterização, Constituição e Efeitos, 232 e ss..
- P. ROMANO MARTINEZ, Da Cessação do Contrato, 321.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 483.º, 686.º, 695.º, 700.º, 701.º, 795.º, 824.º, N.º2, 879.º, 1038.º AL. I), 1051.º, 1057.º, 1311.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 02/02/98, IN BMJ 482º-224;
-DE 27/5/2010 - PROC. N.º 5425/03.7TBSXL.S1;
-DE 08/5/2013, PROC. N.º 9304/09.6YYPRT-A.P1.S1.
Sumário :
I - A relação locatícia estabelecida após a constituição de hipoteca sobre o imóvel, objecto desse contrato, é inoponível ao adquirente do mesmo, em venda executiva, caducando automaticamente por efeito dessa alienação.


II - A manutenção da ocupação dum imóvel após a extinção, por caducidade, decorrente da venda judicial, do contrato de arrendamento que a titulava, constitui violação do direito de propriedade do adquirente, integrando acto ilícito, pressuposto da obrigação de indemnizar.  

Decisão Texto Integral:

         Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. 1. - “Caixa AA” intentou acção declarativa contra BB, pedindo que lhe fosse reconhecido o direito de propriedade sobre a fracção autónoma, designada pelas letras “AA”, do prédio urbano designado por Lote …, sito na Quinta ..., freguesia de São ... – Lisboa e que o Réu fosse condenado a entregar-lhe, livre e devoluto, o referido imóvel, bem como a pagar-lhe uma indemnização, de 82.288,95€, correspondente à ocupação ilegítima, desde 21/5/2007 até 06/02/2009, acrescida de 4.256,95€, por cada mês que decorra até à sua efectiva desocupação.

         Para tanto, e em síntese, alegou que adquiriu a fracção em venda executiva, sendo que o Réu a ocupava e ocupa sem título, impedindo a A. de a vender ou arrendar, com os inerentes prejuízos.

         O Réu opôs a sua qualidade de arrendatário habitacional da fracção, posição que deu a conhecer à Autora, mediante envio do contrato de arrendamento, e impugnou os prejuízos reclamados.

         Tramitado o processo, a acção obteve parcial procedência.

O Réu foi condenado a entregar o imóvel à Autora, mas absolvido do pedido indemnizatório.

Apelaram ambas as Partes.

A Relação julgou improcedente o recurso do R. e procedente o da A., “condenando-se o R. a entregar à A. a aludida fracção e a pagar-lhe, a título de indemnização, a quantia, a liquidar, correspondente aos danos decorrentes da sua privação”.

1. 2. - Interpôs recurso de revista, “normal” ou, subsidiariamente, excepcional, o Réu, recurso que veio a ser admitido nos termos gerais quanto à questão da indemnização e excepcionalmente, com fundamento na particular relevância jurídica e social, quanto à questão da caducidade do contrato de arrendamento, questão que a Formação definiu como sendo a de “saber qual o destino de um contrato de arrendamento celebrado em data posterior à hipoteca (ainda que anterior à penhora) perante a venda judicial do imóvel objecto daquele contrato”.

Para insistir na pretensão de ver julgado que o contrato de arrendamento dos autos mantém a sua plena vigência e que, em qualquer caso, não se condene em indemnização, o Réu argumenta nas conclusões da alegação que ofereceu:

  “1) O contrato de locação de que é titular o Recorrente na qualidade de arrendatário é oponível à Recorrida na qualidade de adquirente do imóvel porquanto não ocorreu a caducidade do direito de arrendamento do Recorrente por força da venda executiva do locado;

  2) A venda na acção executiva não é legalmente identificada como causa de caducidade da locação, logo, do arrendamento (n.º 1 do artigo 1051º e artigo 1079º. ambos do Código Civil e n.º 1 do artigo 66º do Regime do Arrendamento Urbano - vigente à data dos factos), pelo que a relação arrendatícia não caduca com a venda do imóvel arrendado na acção executiva;

  3) Assim, deve entender-se que a regra emptio non tollit locatum estabelecida no art. 1057º do C. Civ. se aplica à locação quando registada ou constituída antes do registo da penhora, que é a situação dos autos;

  4) Não pode haver aplicação analógica do dispositivo do nº 2 do artigo 824º do Código Civil ao arrendamento por não haver qualquer lacuna a integrar e por não ser permitida tal analógica na óptica de uma interpretação sistemática do próprio Código Civil;

  5) O adquirente do bem sucede nos direitos e obrigações do locador (cfr. artigo 1057º CC) e passa a ter direito a receber a renda a qual constitui o preço pago pela limitação do direito de propriedade adquirido;

  6) E a Recorrida, na qualidade de credora hipotecária, não é terceiro para efeitos de registo predial, e por essa via não pode existir aquisição tabular pelo credor hipotecário;

  7) O Acórdão recorrido violou, assim, o disposto nos artigos 1051º, 1057º, e 10º, todos do Código Civil e nº 4 do artigo 5º do Código do Registo Predial;

  8) O acórdão recorrido contradiz, quanto à mesma questão fundamental de direito, no domínio da mesma legislação, o acórdão fundamento. Devendo, atentas as razões invocadas nas conclusões anteriores, optar-se pela doutrina deste;

  9) Para haver obrigação de indemnizar é necessário que exista ato ilícito.

Não é ilícita a ocupação de um imóvel por um arrendatário ao abrigo de um contrato de arrendamento cuja vigência está ainda em discussão;

  10) Ao condenar o Réu em indemnização, a decisão recorrida viola o art. 483.º do Código Civil”.

        

         A Recorrida não apresentou resposta.

         2. - As questões colocadas no recurso, como das conclusões emergem, poderão, então, assim enunciar-se:

   - Se o contrato de locação que tenha por objecto imóvel já onerado com hipoteca é oponível ao adquirente do bem em venda executiva, em virtude de, por força dessa venda, ocorrer a caducidade do contrato de arrendamento; e,

   - Se é ilícita, para efeito da obrigação de indemnizar, a ocupação de um imóvel, após a venda deste em processo de execução, pelo arrendatário, ao abrigo de um contrato de arrendamento cuja vigência opõe ao adquirente.

3. - Vem assente a factualidade que segue.

 

1. Pela ap. nº 30 de 1998/04/20 da ficha n.º …-AA da 8ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa acha-se registada a favor da Autora "(…) HIPOTECA VOLUNTÁRIA ( ... ) para "( ... ) Garantia de empréstimo sob a forma de abertura de crédito em conta corrente, concedido a CC Limitada (…)";

2. Em escrito datado de 1 de Janeiro de 2003 e encimado pela expressão "CONTRATO DE ARRENDAMENTO", "DD, Lda." aí "(…) representada pela sócia gerente EE ( ... )" e identificada como "Senhoria e Primeira Outorgante" e o Réu, aí identificado como "Inquilino e Segundo Outorgante", declararam "(…) é celebrado reciprocamente aceite e reduzido a escrito o presente contrato de arrendamento que se rege pelas cláusulas seguintes:

PRIMEIRA

A primeira Outorgante é dona e legítima possuidora do décimo segundo andar esquerdo do lote … correspondente à fracção "AA (…), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de ..., em Lisboa.

SEGUNDA

Por este contrato a Primeira Outorgante dá de arrendamento para habitação ao Segundo Outorgante o andar referido na cláusula anterior.

TERCEIRA

Este contrato vigora pelo prazo de seis meses, com início no dia 1/01/2003, findo o qual se considera automaticamente renovado por iguais e sucessivos períodos e nas demais condições nos termos do art. 1095º C. C.

QUARTA

O contrato é celebrado no regime da renda livre.

QUINTA

A renda estipulada é de €250 (duzentos e cinquenta euros) mensais e será actualizada anualmente de acordo com o coeficiente fixado em Portaria. ( ... ).

 SÉTIMA

O local arrendado destina-se a habitação exclusiva do inquilino e seu agregado familiar ( ... )";

3. O escrito reproduzido na resposta em 2. foi assinado em 1 de Janeiro de 2003;

4. A Autora é titular do direito de propriedade sobre fracção autónoma designada pelas letras “AA", correspondente ao décimo segundo andar esquerdo, com uso exclusivo dos estacionamentos nºs … e … e arrecadação com os nºs … e …, do prédio urbano designado por Lote ..., sito na Quinta …, Estrada … …, freguesia de S. ..., concelho de Lisboa, descrito na Oitava Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº … da freguesia de S. ..., inscrito na matriz da freguesia de ... sob o art. ...;

5. Tal direito de propriedade veio à titularidade da Autora por lhe ter sido adjudicado em 2007/04/16, através da venda judicial na modalidade de proposta em carta fechada, pelo valor de € 550.000,00, nos autos de execução ordinária nº 201/2002 que correram termos pela 8ª Vara Cível de Lisboa, 2ª Secção;

6. O processo referido em 5. entrou em juízo em 19 de Dezembro de 2002;

7. No âmbito deste processo, no acto de abertura de propostas, em 05.03.2007, foi proferido o seguinte despacho: "Vai aceite a proposta de maior preço, apresentada pela Caixa AA - Ao abrigo do disposto no artigo 887" do CPC vai a proponente I exequente dispensada de depositar o preço, apenas lhe cabendo garantir o pagamento das custas (art. 455º do CPC).Deverá proceder ao respectivo pagamento no prazo de 15 dias (art. 897º do CPC), após notificação do cálculo prévio dos autos (...)";

8. E nesse processo, datado de 16.04.2007, foi despachado: "Atento o pagamento das custas pela exequente proponente (fls. 165), que está isenta de pagamento do preço conforme despacho de fls. 151 e 152 dado assumir também a qualidade de reclamante, vai adjudicada à proponente Caixa AA, que está isenta de pagamento de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (art. 8º nº 1 do IMT), a fracção autónoma designadas pelas letras “AA” correspondente a habitação do 12° andar esquerdo (…). Passe o respectivo título de transmissão (art. 900° nº 2 do CPC).  Ordeno o cancelamento dos registos C1 ap. 9 de 1989/12/12, C1 ap. 13 de 1990/05128, C1 ap. 13 de 1994/11114, C1 ap. 30 de 1998/04120 e F2 ap. 40 de 2003111113, que incidem sobre a fracção autónoma designada pelas letras “AA” correspondente a habitação do 12° andar esquerdo (…) descrito na 8. Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº … da mesma freguesia e inscrito na matriz da freguesia de ... sob o artigo … (arts. 888° do CPC e 824° do CC). (...)";

9. A Autora registou a aludida aquisição a seu favor, pela inscrição G - AP. 19 de 2007/06/11;

10. A Autora adquiriu o imóvel em causa para ser paga do crédito que tinha sobre os executados;

11. A Autora ao adquirir o imóvel mencionado em 1. e 2., além de pagar o seu crédito, pretendia proceder à sua venda;

12. Este descrito prédio encontra-se ocupado pelo Réu, conforme a Autora veio posteriormente a constatar;

13. A Autora ainda não logrou fazer a venda devido à ocupação que o Réu vem fazendo;

         14. A Autora não aufere qualquer contrapartida pela ocupação pelo Réu e não pode realizar capital através da venda;

15. A Autora não pode investir capital proveniente da venda;

16. A autora dirigiu à "CC, Lda." para a AV. …, LOTE-…,-…° ANDAR ….-QUINTA …, 1…-…-LISBOA, datada de Algés, 21 Maio 2007, uma carta dizendo, entre o mais: "A Caixa AA adquiriu, através de venda judicial, livre de quaisquer ónus ou encargos, o imóvel sito na AV. …, LOTE-…, …° ANDAR … - QUINTA … - LISBOA. Dado que se tem conhecimento de que V. Exa. ocupa o referido imóvel, sem que para tal possua título que legitime tal ocupação, solicita-se que, num prazo máximo de 30 dias, a contar da presente data, nos devolva o imóvel mencionado totalmente devoluto de pessoas e bens, devendo as chaves ser entregues nesta Direcção … - Edifício …, Rua …, …, ..° …. -… - ... ou no nosso Balcão em MOSCAVIDE, AV. …, … A. Caso não sejam, por V. Exa., cumpridos os procedimentos acima referidos, até ao limite do prazo estabelecido, ver-nos-emos forçados e sem mais aviso a desencadear medidas judiciais por forma à tomada de posse efectiva do imóvel com o consequente ressarcimento, pela Caixa AA, dos danos emergentes e lucros cessantes causados desde 22-06-2007 ao dia em que se concretizar a efectiva e total desocupação do imóvel.";

17. O Réu enviou à autora a carta, datada de 04.06.2007, dizendo, no essencial: "Veio pelo correio uma destinada à CC, LDA, mas sou a informar que sou inquilino do respectivo andar, conforme o contrato que junto. Necessito saber onde faço o depósito referente à renda do mês de JULHO, valor 250, 00 Euros./ Aguardando que me informem ( ... )".

4. - Mérito do recurso.

4. 1. - Caducidade do contrato de arrendamento.

A primeira e principal questão reporta-se, como definido na decisão que admitiu o respectivo recurso e a enuncia o Recorrente, ao destino do contrato de arrendamento celebrado posteriormente ao registo de hipoteca, e antes da penhora, perante a venda executiva do imóvel objecto desse contrato, isto é, se contrato de locação caduca ou se se mantém oponível ao adquirente do imóvel.

Como nos autos se encontra abundantemente reflectido, quer por referência das Partes quer por via de citação nas decisões proferidas pelas Instâncias, a questão proposta não é inteiramente líquida, tanto na doutrina como na jurisprudência.

No Supremo Tribunal de Justiça, as decisões mais recentes (relativas, pelo menos, aos últimos 5-6 anos) vão, ao que se conhece, na generalidade no sentido de que a venda judicial do imóvel hipotecado faz caducar o contrato de arrendamento que tenha por objecto esse imóvel, por dever considerar-se abrangido pela norma do n.º 2 do art. 824º do Código Civil.

Esta Conferência posiciona-se também nesse entendimento (não sem que se diga que o ora relator já subscreveu, enquanto adjunto, diferente posição no acórdão de 27/3/2007, posição que, entretanto, reconsiderou tendo em atenção, que, não obstante manter o entendimento de que o arrendamento não assume a natureza de um direito real, a tese que então se acolheu, porventura mais fiel aos princípios e conceitos convocáveis, não é a que melhor responde às exigências de justiça nem aos interesses teleologicamente detectáveis no referido n.º 2 do art. 824º, cujo espírito ou ratio é a de os bens vendidos judicialmente serem transmitidos livres de quaisquer encargos (cfr., também agora neste sentido, P. ROMANO MARTINEZ, “Da Cessação do Contrato”, 321).         

         Assim sendo, ter-se-á por afastada a taxatividade das causas de caducidade do contrato de arrendamento com assento no art. 1051º C. Civil, considerando que o mesmo também pode caducar, entre outras causas – atente-se, v.g., no caso de impossibilidade da prestação (art. 795º CC), como apreciado no ac. desta Conferência de 08/5/2013 – proc. 9304/09.6YYPRT-A.P1.S1) -, por via da aplicação do art. 824º-2 citado, bem como a regra emptio non tollit locatum, que o art. 1057º, também do C. Civil, acolhe ao prever, ipso jure, a transmissão da posição jurídica do locador para o novo adquirente quando se transmita o bem com base no qual foi celebrado o contrato, inaplicável em caso de venda executiva.   

A hipoteca, não impedindo, embora, o poder de disposição dos bens, mediante alienação ou oneração, faculdades que decorrem da respectiva inoponibilidade ao credor hipotecário, na medida em que este goza da preferência que lhe é concedida pela prioridade do registo, não deixa de produzir limitações de vária ordem ao direito de propriedade do hipotecador a quem fica vedado praticar livremente actos que ponham em causa o valor da coisa hipotecada, estando limitado aos actos que caibam nos poderes de administração ordinária – arts. 686º, 695º, 700º e 701º C. Civil (vd. M. ISABEL H. MENÉRES CAMPOS, “Da Hipoteca – Caracterização, Constituição e Efeitos”, 232 e ss.).

A finalidade da hipoteca é, lembra-se, a garantia de um crédito em que o valor do imóvel é elemento fundamental na atribuição do empréstimo e na determinação do respectivo quantitativo, sendo que, como refere na obra acabada de citar, “as instituições de crédito, aquando da concessão, avaliam fundamentalmente o valor que, na venda em execução, pode alcançar o imóvel, e não há dúvidas que um dos factores que pode influir nesta avaliação é a situação arrendatícia da coisa. Um prédio arrendado tem um valor, um prédio devoluto tem outro.

Se o prédio está arrendado, o credor hipotecário não pode desconhecer esse facto, pelo que o mesmo é-lhe oponível. Pelo contrário, se a coisa que se hipoteca está livre, a existência de um arrendamento posterior coloca a difícil questão de harmonizar os distintos interesses em jogo (…)”, o do proprietário, o do arrendatário e o do credor, que se vê confrontado com uma desvalorização do imóvel decorrente do, entretanto celebrado sem a sua intervenção ou vontade, arrendamento que, por sua vez, o arrendatário sabe ou pode saber (desde logo pela publicidade registral) ter por objecto bem hipotecado sujeito a execução.   

Por isso, como se escreve na mesma obra (pg. 242), citando A. LUÍS GONÇALVES (“Arrendamento de prédio hipotecado. Caducidade do arrendamento”, RDES, ano XXXX (XII, da 2ª Série), n.º 1, pg. 98) e HENRIQUE MESQUITA (RLJ, A. 127º, 223), o contrato de arrendamento, “na medida em que sujeita o bem arrendado a uma situação fora da disponibilidade do proprietário devido ao seu carácter vinculístico, traduz-se num verdadeiro ónus e, como tal, deve estar sujeito à extinção por força da venda executiva. O arrendamento de que o senhorio não possa libertar-se a breve prazo é um ónus, não podendo sobrepor-se à hipoteca, porquanto origina a degradação do valor dado em garantia”.

Assim, por via da falada interpretação teleológica e com base em argumentos de analogia ou semelhança das situações de facto e consequências práticas, designadamente de natureza sócio-económica, que não, necessariamente, no sentido técnico-jurídico da integração de lacuna – art. 10º-1 C Civil; cfr. ac. STJ de 27/5/2010 - Proc. 5425/03.7TBSXL.S1 -, deverá entender-se que “a referida norma do art. 824º se aplica a todos os direitos de gozo, quer de natureza real quer pessoal, de que a coisa vendida seja objecto e que produzam efeitos em relação a terceiros. É que o arrendamento, dada a sua eficácia em relação a terceiros, deve ser para este efeito, equiparado a um direito real. De outra forma, pôr-se-ia em causa o escopo da lei, de que a venda em execução se faça pelo melhor preço possível”.

Não se trata, portanto, de estender, por via analógica, o efeito extintivo previsto no art. 824º-2 a direitos de crédito, naturalmente de eficácia relativa e, nessa medida, inoponíveis a terceiros, mas apenas de considerar aplicável esse efeito a direitos não reais relativamente aos quais, pela sua especificidade, “possam proceder as mesmas razões justificativas da extinção” (ANA CAROLINA S. SEQUEIRA, “A Extinção De Direitos Por Venda Executiva”, in “Garantias das Obrigações”, 23 e 43).

 

Sairá, assim, objectivamente penalizado o arrendatário, mas não pode esquecer-se que, como acima já notado, no jogo de interesses em confronto, fará menos sentido protegê-lo, em detrimento do credor hipotecário, tendo em consideração que ele não ignorava ou não devia ignorar a hipoteca que onerava o bem locado (vd. ac. STJ, de 02/02/98, BMJ 482º-224).

No caso, o arrendamento, embora anterior à penhora, não só é posterior ao registo da hipoteca, como, mesmo, à instauração da acção executiva hipotecária.

Consequentemente, face ao entendimento propugnado, não pode deixar de considerar-se que caducou, automaticamente, por aplicação do art. 824º-2 C. Civil, com a venda do imóvel arrendado na acção executiva.

4. 2. - Obrigação de indemnização.

O Recorrente insurge-se contra a condenação na reparação dos prejuízos, sofridos pela Recorrida, resultantes da privação do uso da fracção, argumentando não ser ilícita a ocupação do imóvel pelo arrendatário ao abrigo de um contrato de arrendamento cuja vigência está em discussão.

Como julgado em apreciação da questão anterior, o contrato de arrendamento caducou (automaticamente) com a venda do imóvel no processo de execução, sendo os respectivos efeitos inoponíveis ao adquirente, ou seja, à Autora-recorrida.

 

A caducidade, como facto jurídico extintivo de direitos, opera ope legis, resolvendo ou dissolvendo automaticamente o negócio, independentemente de qualquer manifestação de vontade das partes.

Com efeito, verificado o facto legal ou convencionalmente previsto como susceptível de dela ser fundamento, a caducidade surge e opera, dependendo de simples constatação desse evento impeditivo da eficácia.

Sendo o evento operante da caducidade superveniente, isto é, ocorrendo após o início da produção de efeitos do negócio, a ineficácia, traduzida na cessação de vigência, produz-se para futuro, ocorrendo a dissolução (cfr. ANÍBAL DE CASTRO, “A Caducidade”, 2ª ed., 216).

Ora, porque a partir da data da venda, o adquirente da coisa se torna seu proprietário, passando a ser detentor dos inerentes poderes de gozo, e o arrendatário, que vê a relação locatícia extinta, deixa de beneficiar de título de ocupação, torna-se ilegítima e, por isso, ilícita a ocupação que eventualmente mantenha do bem, cuja não restituição se verifique – arts. 879º, 1311º, 1038-i), todos do C. Civil.

Enquanto violação do direito de propriedade (art. 1311º), cujo titular fica impedido de exercer sobre a coisa os poderes que a ordem jurídica lhe confere, designadamente os direitos de uso ou utilização de que fica privado (aproveitamento dos frutos materiais e jurídicos), privação que, aos olhos da lei, não pode deixar de considerar-se uma “violação ilícita do direito de outrem”, ou seja, preenchido o pressuposto ilicitude, previsto e exigido pelo art. 483º C. C. entre os requisitos da responsabilidade civil. 

Não merece, assim, censura a decisão impugnada ao reconhecer à Recorrida, por julgar verificado o requisito ilicitude, o direito de ser indemnizada pelo dano de privação do uso do imóvel.

4. 3. - Em síntese final, pode responder-se às questões colocadas com as proposições que seguem.

A relação locatícia estabelecida após a constituição de hipoteca sobre o imóvel objecto desse contrato é inoponível ao adquirente do mesmo em venda executiva, caducando automaticamente por efeito dessa alienação.

A manutenção da ocupação dum imóvel após a extinção, por caducidade, decorrente da venda judicial, do contrato de arrendamento que a titulava, constitui violação do direito de propriedade do adquirente, integrando acto ilícito, pressuposto da obrigação de indemnizar.   

5. - Decisão.

De harmonia com o exposto, acorda-se em:

- Negar a revista;

- Confirmar as decisões impugnadas; e,

- Condenar o Recorrente nas custas.

                            Lisboa, 16 Setembro 2014

                            Alves Velho (relator)

                            Paulo Sá

                            Garcia Calejo