Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2478/16.1T8GMR.G1.S2
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: ARRENDAMENTO RURAL
CADUCIDADE
REGIME APLICÁVEL
APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO
Data do Acordão: 11/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – LEIS, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO / VIGÊNCIA, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DAS LEIS – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / LOCAÇÃO / RESOLUÇÃO E CADUCIDADE DO CONTRATO / CADUCIDADE.
Doutrina:
- Aragão Seia e Outros, Arrendamento Rural, 4.ª Edição, Almedina, 2003, p. 157-159;
- Nuno de Salter Cid, A Protecção da Casa de Morada de Família no Direito Português, Almedina, 1996, p. 220 e ss.;
- P. Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, 4.ª Edição, p. 456.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 12.º, N.º 2 E 1051.º, N.º 2.
NOVO REGIME DO ARRENDAMENTO RURAL (NRAR), APROVADO PELO DL N.º 294/09, 13-10: - ARTIGO 39.º.
REGIME DE ARRENDAMENTO URBANO (RAU), APROVADO PELO DL N.º 321-B/90, DE 15-10: - ARTIGO 5.º, N.º 2.
ARRENDAMENTO RURAL, APROVADO PELO DL N.º 385/88, DE 25-10: - ARTIGO 22.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 23-05-1995, PROCESSO N.º 086806;
- DE 08-02-2011, PROCESSO N.º 12/09 9T2STC.E1.S1.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL RELAÇÃO DE COIMBRA:

- DE 28-03-2017, PROCESSO N.º 51/14.8TBSJP.C1.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL RELAÇÃO DO PORTO:

- DE 22-06-1992, PROCESSO N.º 9140803;
- DE 11-01-1993, PROCESSO N.º 9210735;
- DE 18-11-1996, PROCESSO N.º 9650199;
- DE 26-04-2010, PROCESSO N.º 3798/06.9TBPRD.P1.
Sumário :

I - O regime de caducidade do arrendamento é o vigente à data do facto que o determine, ex vi art. 12.º, n.º 2, do CC – ou seja, na situação em apreço nestes autos, à data do falecimento da locadora-usufrutuária – e, por outro lado, o novo regime do arrendamento rural (NRAR), aprovado pelo DL 294/09, 13-10, é aplicável a contratos de arrendamento rurais existentes à data da sua entrada em vigor (13-10-2010), mas somente a partir do fim dos respectivos prazo ou renovação em curso (art. 39.º do diploma).
II - Devendo ser aplicado ao caso o art. 22.º do regime do arrendamento rural plasmado no DL 385/88, de 25-10, deve ser entendida como «material» a remissão que essa norma efectuava para a do art. 1051.º, n.º 2 do CC, então vigente, pelo que a revogação deste último preceito pelo art. 5.º, n.º 2, do DL 321-B/90, de 15-10 (que aprovou o RAU), não se estendeu ao arrendamento rural, continuando a vigorar para os contratos celebrados no âmbito deste.

Decisão Texto Integral:                                                                        

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
           


AA propôs a presente acção de despejo contra BB, pedindo a condenação deste a restituir-lhe imediatamente o seu prédio cujo gozo lhe havia sido cedido mediante contrato de arrendamento rural ao agricultor autónomo (e de parceria agrícola), invocando, para tanto, a caducidade desse contrato, com o falecimento da usufrutuária, em 9-12-2009, que o celebrara (em 31‑03-1990).
Na contestação, o R alegou ter comunicado ao A o seu interesse na manutenção do contrato, nos termos do art. 1051º nº 2 do CC.

Foi proferida sentença, absolvendo o R do pedido, que a Relação confirmou, sem voto de vencido e com fundamentação essencialmente concordante.  

O A interpôs revista desse acórdão, admitida pela competente Formação, tendo delimitado o objecto do recurso com conclusões em que (re)coloca a questão de saber se o invocado contrato caducou na data (9-12-2009) da morte da locadora Ana Leite, nos termos do art. 1051º, c), do CC, por não ser aplicável ao arrendamento rural a faculdade de o arrendatário obviar à caducidade do contrato por morte da usufrutária comunicando ao senhorio o interesse na sua manutenção, sendo despiciendo tudo o demais alegado pelo recorrente quanto à pretendida cessação do contrato por via da resolução, não só porque não se provaram os factos em que o mesmo estribava esse direito como a admissão do recurso não se poderia estender a tal fundamento.
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Importa apreciar a enunciada questão da caducidade, para o que deve atender-se ao antecedentemente relatado e aos factos (com relevo para o conhecimento do recurso) definitivamente fixados na decisão recorrida e que ora se nos impõem.
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Em 31-03-1990, foi cedido ao R o gozo dos prédios identificados nos autos, mediante “contrato de arrendamento rural”, com início no dia 1 de Abril de 1990 e pelo prazo de treze anos, celebrado pela usufrutuária de tais prédios, que veio a falecer em 9‑12‑2009.
 Por cartas registadas de Fevereiro e Março de 2010, o A comunicou ao R o facto com que invocou a cessação do contrato e este, através de notificação judicial avulsa, comunicou àquele, no dia 15-03-2010, o seu interesse na manutenção do contrato.
Tal contrato era regulado, na data da sua celebração, pelo DL 385/88, de 25/10, cujo art. 22º preceituava que o arrendamento não caducaria por morte do senhorio nem pela transmissão do prédio e que, quando cessasse o direito ou findassem os poderes de administração com base nos quais o contrato fora celebrado, observar-se-ia o disposto no nº 2 do art. 1051º do CC, que, então, dispunha: «No arrendamento urbano, o contrato não caduca pela verificação dos factos previstos na alínea c) do número anterior [“Quando cesse o direito ou findem os poderes legais de administração com base nos quais o contrato foi celebrado”], se o arrendatário, no prazo de 180 dias após o seu conhecimento, comunicar ao senhorio, por notificação judicial, que pretende manter a sua posição contratual».
Aquele diploma, entretanto, foi expressamente revogado pelo DL 294/09, de 13/10, que aprovou o novo regime do arrendamento rural (NRAR), cujo art. 20º, nº 1, estabelece a regra geral de que o arrendamento não caduca por morte do senhorio nem pela transmissão do prédio, mas o seu 18º prevê a caducidade do contrato de arrendamento quando, designadamente, cesse o direito ou findem os poderes legais de administração com base nos quais o contrato tenha sido celebrado, sem prejuízo do disposto no artigo 1052º do CC (cuja norma não relevaria para este caso).
Porém, por um lado, o regime de caducidade do arrendamento é o vigente à data do facto que o determine, ex vi art. 12º, nº 2, do CC ([1]), e, por outro, o novo regime é aplicável a contratos de arrendamento existentes à data da sua entrada em vigor (13‑01‑2010), mas somente a partir do fim dos respectivos prazo ou renovação em curso (cf. art. 39º do diploma).
Ora, no caso em apreço, não só ocorreu em 9-12-2009 o facto em abstracto idóneo a desencadear a caducidade do contrato, o falecimento da locadora-usufrutuária – portanto, antes da vigência daquele novo regime –, como o termo da renovação contratual em curso apenas surgiria em 1‑04-2016.
 Razão pela qual entendemos, tal como a Relação, que deve ser aplicado ao caso o citado art. 22º do regime jurídico do arrendamento rural plasmado no DL 385/88.
Como já se disse, tal norma previa que, quando cessasse o direito ou findassem os poderes de administração com base nos quais o contrato de arrendamento rural fora celebrado, se deveria observar o disposto no nº 2 do art. 1051º do CC, norma que, em caso de morte do locador-usufrutuário, conferia – por remissão – também ao arrendatário rural a faculdade de comunicar ao senhorio o seu interesse na manutenção do contrato, assim evitando a sua caducidade, à semelhança do previsto para o arrendamento urbano.
Mas, como se sabe, esta última disposição sobre o arrendamento urbano, mandada aplicar remissivamente também ao arrendamento rural, foi subsequentemente revogada pelo art. 5º, nº 2, do DL 321-B/90, de 15/10, que aprovou o RAU (“Regime do Arrendamento Urbano”), o qual, no seu art. 66º, reconfigurou a faculdade de o arrendatário (urbano) obviar aos efeitos da caducidade do contrato de arrendamento pela morte do locador usufrutuário, conferindo-lhe o direito a um novo arrendamento (nos termos do artigo 90º).
A decisão recorrida – tal como a sentença por ela confirmada – enunciou de modo bastante as três propostas de interpretação que a jurisprudência ofereceu para solucionar o aparente vazio normativo gerado (apenas) em relação ao arrendamento rural pela revogação do nº 2 do art. 1051º do CC:
- A sustentada no acórdão invocado como fundamento para a admissibilidade deste recurso ([2]), apontando para a ideia de que, com a aludida supressão, ficaria sem conteúdo útil a remissão que para este era feita pelo RAR e, por isso, caducaria o contrato de arrendamento rural com a morte do locador-usufrutuário, como qualquer outro contrato de locação em geral;
- Uma segunda, defendendo que da dita revogação resultaria a aplicação do RAU e, por conseguinte, o direito à celebração de um novo arrendamento, nas condições neste consagradas ([3]);
- E uma terceira, sustentando que a revogação pelo RAU do art. 1051º nº 2 do CC apenas operou em relação ao arrendamento urbano, mantendo-se o seu conteúdo em vigor para o arrendamento rural e, por isso, a possibilidade de o arrendatário rural, em caso de falecimento do locador-usufrutuário, obstar à caducidade do contrato, comunicando ao senhorio a pretensão de manter a sua posição contratual, no prazo de 180 dias após o conhecimento desse falecimento ([4]).
Aderimos, firmemente, a esta terceira proposta interpretativa, sustentada no acórdão recorrido, por ser a que, de acordo com o que pensamos serem os melhores cânones da hermenêutica, se conforma com o que se extrai ser imposto pela unidade do sistema jurídico e pelas especificidades do arrendamento rural, no confronto com a locação em geral e, até, com o próprio arrendamento urbano.
Realmente, uma vez que «o arrendamento rural está delineado no sentido de lograr um regime de protecção ao rendeiro, por economicamente dependente da exploração da terra» ([5]), não só o arrendamento rural não se harmoniza com o regime do contrato de duração limitada, com renda condicionada, como também não se vislumbra qualquer razão para o legislador ter prosseguido o desígnio de não conferir ao arrendatário rural a faculdade de manter o contrato, tal como sucedia então no arrendamento urbano.
Buscando, pois, a solução que alcançaria o maior equilíbrio entre as posições de ambos os interesses em conflito, deve entender-se o RAR (DL 385/88), como tendo conservado a possibilidade de o arrendatário rural obstar à caducidade do contrato, mantendo-o mediante a comunicação ao senhorio dessa sua vontade, no prazo de 180 dias, desde o conhecimento da morte do locador-usufrutuário.
Tal como propôs o Conselheiro Aragão Seia e Outros (in “Arrendamento Rural”, 4ª ed., Almedina, 2003, pp. 157-159), em anotação ao citado art. 22º, sob pena de a unidade do sistema jurídico sair afectada, «[n]ão faria sentido que a revogação [do art. 1051º, nº 2, do CC] «fosse extensiva ao arrendamento rural porque se tal sucedesse criar-se-ia uma lacuna», pelo que a mesma «tem de ser entendida com efeitos restritivos ao arrendamento urbano, que, pela nova legislação, passou a ter um regime substitutivo» (arts. 66º nº 2 e 90º e ss do RAU), o que não se verificaria quanto ao arrendamento rural. Assim, deve ser entendida como «remissão material» aquela que o referido art. 22º efectuava para a norma do art. 1051º, nº 2, do CC, tendo em atenção o conteúdo desta: «(…) deve ser entendida como uma remissão material, que provocou a sua apropriação ou incorporação no n.º 2 do art. 22.º, continuando, por isso, a vigorar o preceito. Será um caso de supervivência ou de sobrevigência da lei remetida, para o estrito efeito de integrar as normas de reenvio da lei do arrendamento rural, que têm jurisdicidade e vigência próprias» ([6]).
 
Por conseguinte, improcede o recurso.

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Síntese conclusiva:
1. O regime de caducidade do arrendamento é o vigente à data do facto que o determine, ex vi art. 12º, nº 2, do CC – ou seja, na situação em apreço nestes autos, à data do falecimento da locadora-usufrutuária – e, por outro lado, o novo regime do arrendamento rural (NRAR), aprovado pelo DL 294/09, de 13/10, é aplicável a contratos de arrendamento rurais existentes à data da sua entrada em vigor (13-01-2010), mas somente a partir do fim dos respectivos prazo ou renovação em curso (art. 39º do diploma).
2. Devendo ser aplicado ao caso o art. 22º do regime do arrendamento rural plasmado no DL 385/88, de 25/10, deve ser entendida como «material» a remissão que essa norma efectuava para a do art. 1051º, nº 2, do CC, então vigente, pelo que a revogação deste último preceito pelo art. 5º, nº 2, do DL 321-B/90, de 15/10 (que aprovou o RAU), não se estendeu ao arrendamento rural, continuando a vigorar para os contratos celebrados no âmbito deste.

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Decisão:

Pelo exposto, negando a revista, acorda-se em confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 27/11/2018

Alexandre Reis

Lima Gonçalves

Cabral Tavares

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[1] Não é aplicável a lei nova que não dispõe directamente sobre o conteúdo de uma certa relação jurídica mas sobre os efeitos de determinado facto – como, no caso, sucede com a norma sobre a caducidade decorrente do decesso da usufrutária –, sendo chamada a intervir a lei vigente ao tempo da ocorrência de tal facto. Cf., neste sentido, p. ex., o acórdão desta Secção de 8-02-2011 (p. 12/09 9T2STC.E1.S1).
[2] Acórdão da RP de 22-06-1992 (p. 9140803).
[3] Neste sentido, os acórdãos deste Supremo de 23-05-1995 (p. 086806) e da RP de 18-11-1996 (p. 9650199.
[4] Cf., neste sentido, para que já apontara o acórdão da RP de 11-01-1993 (p. 9210735), p. ex., os acórdãos da RC de 28-03-2017 (p. 51/14.8TBSJP.C1) e da RP de 26-04-2010 (p. 3798/06.9TBPRD.P1), para além das decisões proferidas nestes autos em ambas as instâncias, naturalmente.
[5] Acórdão desta Secção de 8-02-2011, já citado.
[6] É o que também defende Nuno de Salter Cid (“A Protecção da Casa de Morada de Família no Direito Português”, Almedina, 1996, pp. 220 e s), citando Castro Mendes – segundo o qual, «a remissão material é a remissão para certa norma, em atenção ao seu conteúdo» – e lembrando, muito pertinentemente – como, aliás, o fazem Aragão Seia e Outros na referenciada obra –, que «a autorização legislativa ao abrigo da qual foi emitido o R.A.U. – Lei n.º 42/90, de 10 de Agosto – não contemplou a possibilidade de ser alterado o regime do arrendamento rural, alteração esta que a opção pela caducidade necessariamente envolve». P. Lima e A. Varela (Código Civil Anot., 4.ª ed. p. 456) sustentam, identicamente, a continuação em vigor da aludida remissão.