Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B3758
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARAÚJO BARROS
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
CAUSA DE PEDIR
DIREITO DE FAMÍLIA
REGULAÇÃO DO PODER PATERNAL
INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
INCOMPETÊNCIA RELATIVA
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE
PRESUNÇÃO DE PATERNIDADE
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: SJ200411250037587
Data do Acordão: 11/25/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 314/04
Data: 05/05/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : 1. A competência internacional é um pressuposto processual, isto é, uma condição necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa, e afere-se pelo objecto apresentado pelo autor na petição inicial.
2. As normas que definem a competência dos Estados Comunitários, constantes do Regulamento nº 44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000 (o qual substituiu entre os Estado-Membros as Convenções de Bruxelas e de Lugano - art. 68º, nº 1), que prevalecem sobre as normas internas do Estado Português, não abrangem as questões relativas ao estado das pessoas singulares.

3. As normas do Regulamento nº 1347/2000, do Conselho, de 29 de Maio de 2000, apenas relativas à competência em matéria matrimonial e de regulação do poder paternal em relação aos filhos comuns do casal, não são aplicáveis à competência para a tramitação e julgamento de acções de investigação de paternidade.

4. Cada um dos factores atributivos de competência, prevenidos no artigo 65º do C.Proc.Civil, tem valor autónomo, pelo que basta a verificação de um deles para que os tribunais portugueses sejam competentes, ou seja, uma vez verificada qualquer das circunstâncias enumeradas nessas alíneas, tem-se desde logo como reconhecida a competência internacional dos tribunais portugueses.

5. Pelo critério da causalidade (alínea c) do nº 1 do citado preceito) a acção pode ser instaurada nos tribunais portugueses quando o facto que integra a causa de pedir foi praticado em território português, sendo ainda que, se a causa de pedir for complexa, basta que tenha ocorrido em Portugal qualquer dos factos que a integram.

6. Nas acções de investigação de paternidade em que o autor afirme a existência de alguma das presunções destacadas no artigo 1871º, cabe a ele apenas o ónus de alegar (e provar) os factos correspondentes à presunção especificamente invocada, incumbindo, por seu turno, ao réu alegar e provar que, não obstante a verificação dos factos concretos, que constitui a base de presunção legal (a posse de estado, o concubinato duradouro, o escrito do pai...), o investigado não teve relações com a mãe do investigante no período da concepção ou que, tendo-as tido, não foram elas a causa geradora da procriação.

7. Apesar de se dever entender que o facto jurídico procriador (relação sexual fecundante) constitui a causa de pedir nas acções de investigação de paternidade apenas fundadas nas relações sexuais exclusivas entre a mãe e o pretenso pai, durante o período da concepção, nas acções em que se alegam e invocam factos constitutivos das presunções legais do artigo 1781º do Código Civil, a presunção ou presunções em que o autor se funda integram-se na causa de pedir, dela fazendo também parte.

8. Tendo a autora situado em Portugal, quer parte da convivência more uxorio entre a sua mãe e o pretenso pai, bem como tendo indicado a Paróquia de Gavieira, concelho de Arcos de Valdevez, como o local onde pelo mesmo foi assinado o seu assento de baptismo com a declaração de que era seu pai, tem que se concluir, através da aplicação do critério da causalidade, que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para a tramitação e o julgamento da causa.

9. A interpretação do artigo 65º, nº 1, al. c), do C.Proc.Civil no sentido de, através do princípio da causalidade, considerar competentes internacionalmente os tribunais portugueses não viola os princípios consagrados nos artigos 13º e 20º da Constituição, pelo que não enferma de inconstitucionalidade.

10. Não pode conhecer-se, em recurso de agravo da 2ª instância, por força do nº 2 do art. 754º do C.Proc.Civil, da impugnação pelas recorrentes do acórdão da Relação que confirmou o despacho saneador que julgou improcedente a excepção da incompetência territorial.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A", representada por sua mãe B, intentou, no Tribunal Judicial de Melgaço, acção de investigação de paternidade contra C, D e E, pedindo que seja reconhecida como filha de F (marido e pai das rés).

As rés contestaram e, por excepção, suscitaram a questão da incompetência territorial do tribunal e a excepção absoluta de incompetência, entendendo que o tribunal português é internacionalmente incompetente para julgar a acção.

Na réplica defendeu a autora a competência territorial, não só do Tribunal de Melgaço, mas também a competência internacional dos tribunais portugueses.

No despacho saneador, foram julgadas improcedentes ambas as excepções.

Agravaram as rés desse despacho, sem êxito embora, uma vez que o Tribunal da Relação de Guimarães, em acórdão de 5 de Maio de 2004, decidiu negar provimento ao recurso e manter o despacho recorrido.

De novo as rés agravaram, agora da 2ª instância, pretendendo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que considere os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para a presente acção, ou quando assim se não entender, julgue territorialmente competente o tribunal de Lisboa.

Em contra-alegações pugnou a recorrida pela manutenção do decidido.
Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, corridos os vistos, cumpre decidir.
Nas alegações da revista formularam as recorrentes as conclusões seguintes (sendo, em princípio, pelo seu teor que se delimitam as questões a apreciar - arts. 690º, nº 1 e 684º, nº 3, do C.Proc.Civil):
1. O investigado F cujo óbito ocorreu em 27/08/2002, residia em França juntamente com as rés, aqui recorrentes, onde tinha a sua residência em 68 Rue de la Procession, 94470 Boissy, St. Léger, France.

2. A Autora juntamente com sua mãe, desde Maio de 1998, residem em França, em Bonneuil-Sur-Marne (Val de la Marne) na Rua Arthur Honneger, 3, pois aí tem a sua vida organizada.

3. A Autora foi concebida biologicamente em França, aí nasceu, aí foi registada na conservatória do registo civil, e aí passou a residir.

4. A causa de pedir nesta acção é única e simples, ou seja, consiste no facto naturalístico da procriação biológica da menor pelo réu a quem a paternidade é imputada.

5. O tribunal recorrido, ao considerar-se competente para a acção, violou de modo flagrante o comando ínsito no art. 65º, n° 1, alínea c), do C.Proc.Civil.

6. Caso se admita que os tribunais portugueses são competentes para julgar esta acção, hipótese que se admite sem conceder, a acção terá que tramitar pelo tribunal de Lisboa, pois quer a autora quer as rés têm domicílio e residência em França.

7. O tribunal a quo, ao considerar competente para a acção o Tribunal de Melgaço, violou o comando do art. 85º, nº 3, do CPC.

8. A interpretação dada pelo tribunal a quo ao art. 65°, n° 3, alínea c), do CPC, viola os arts. 13° e 20º da Constituição.

Constitui, em primeira análise, o objecto do recurso, averiguar se, atentas as regras de competência internacional, são ou não os tribunais portugueses competentes para o julgamento desta acção.

Ora, "a competência jurisdicional é um pressuposto processual, isto é, uma condição necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa através de uma decisão de procedência ou de improcedência. Como qualquer outro pressuposto processual, a competência é aferida em relação ao objecto apresentado pelo autor". (1)

Dir-se-á, antes de mais, que depois das Convenções de Bruxelas e de Lugano de 16 de Setembro de 1988 (esta complementar daquela) (2), surgiu o Regulamento nº 44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000 (3), o qual substituiu entre os Estado-Membros aquelas Convenções (art. 68º, nº 1), e que, de igual modo, contém normas que definem a competência dos tribunais dos Estados comunitários, constituindo uma lei especial perante as normas reguladoras da competência internacional previstas nas leis internas: assim, sempre que o caso concreto cabe no âmbito de aplicação do citado Regulamento, as respectivas normas prevalecem sobre a regulamentação geral interna de cada Estado. Não sendo esse o caso, as normas nacionais mantêm a sua plena vigência (cfr. art. 4º da anterior Convenção de Bruxelas).

Todavia, o âmbito de aplicação do Regulamento nº 44/2001 que, no "art. 1º reproduz o preceito correspondente da Convenção de Bruxelas (e de Lugano) quanto ao campo material de aplicação" (4), é delimitado em função da matéria, dos sujeitos e do objecto, aplicando-se em matéria civil e comercial, com excepção, além do mais, das questões relativas ao estado e à capacidade das pessoas singulares (al. a) do nº 2 do art. 1º).

Uma vez que a presente acção se reporta, como é visível, ao estado das pessoas singulares - relação de filiação - está afastada da estatuição daquele Regulamento.

Certo que o Regulamento nº 1347/2000, do Conselho, de 29 de Maio de 2000 (5) veio estabelecer no âmbito comunitário certas regras de competência em mataria atinente às relações de família. No entanto, apenas é aplicável "aos processos cíveis relativos ao divórcio, separação de pessoas e bens ou anulação de casamento, bem como aos processos cíveis relativos ao poder paternal em relação aos filhos menores do casal por ocasião daquelas acções matrimoniais (art. 1º, nº 1).

Estando, por isso, obviamente fora do seu âmbito de aplicação as acções de investigação de paternidade (como é o caso), haverá que determinar a competência internacional dos tribunais portugueses através dos preceitos da ordem jurídica nacional que a disciplinam. (6)

Ora, o artigo 61º do C.Proc.Civil estabelece que "os tribunais portugueses têm competência internacional quando se verifique alguma das circunstâncias mencionadas no artigo 65º".
O qual, por sua vez, determina, no seu nº 1, que "a competência dos tribunais portugueses depende da verificação de alguma das seguintes circunstâncias: a) ter o réu ou algum dos réus domicílio em território português, salvo tratando-se de acções relativas a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis sitos em país estrangeiro; b) dever a acção ser proposta em Portugal, segundo as regras da competência territorial estabelecidas nas leis portuguesas; c) ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram; d) não poder o direito invocado tornar-se objecto efectivo senão por meio de acção proposta em território português, ou não puder ser exigível ao autor a sua propositura no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica nacional haja algum elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real".

"Estes critérios (da coincidência, da causalidade, da reciprocidade e da necessidade, indicados segundo uma ordem decrescente de aplicação prática) apresentam, em medida variável, uma conjugação de diversos interesses. As regras sobre a competência internacional directa devem dar expressão aos interesses do Estado no julgamento, pelos seus tribunais, das questões que apresentam com ele uma conexão relevante, mas também devem respeitar os interesses dos indivíduos na proximidade da justiça e ainda os interesses da comunidade internacional numa distribuição harmoniosa da competência dos tribunais estaduais". (7)

E convém sublinhar que "cada um dos factores atributivos de competência tem valor autónomo, pelo que basta a verificação de um deles para que os tribunais portugueses sejam competentes".

(8) Ou seja, "uma vez verificada qualquer das circunstâncias enumeradas nessas alíneas, tem-se desde logo como reconhecida a competência internacional dos tribunais portugueses". (9)

Deixando, também por isso, os demais critérios enunciados no art. 65º, pode dizer-se que, pelo critério da causalidade (al. c) do nº 1 do citado preceito) a acção pode ser instaurada nos tribunais portugueses quando o facto que integra a causa de pedir foi praticado em território português, sendo ainda que, se a causa de pedir for complexa, basta que tenha ocorrido em Portugal qualquer dos factos que a integram. (10)

Na petição inicial a autora, invocando que nasceu, em 5 de Setembro de 1999, das relações sexuais havidas entre sua mãe e o falecido F, alegou, além do mais, como fundamentos da sua pretensão, que desde Maio de 1998 a mãe dela e o presumido pai "passaram a viver maritalmente, tal-qualmente de marido e mulher se tratasse, em plena comunhão de cama, mesa e habitação, quer em França, quer em Lamas de Mouro, quer nos Arcos de Valdevez, onde os mesmos possuíam moradias, o que se verificou de forma contínua, ininterruptamente, até ao decesso do F, em 27/08/2002" (artigos 24º e 25º), e que "o reconhecimento, tratamento e reputação como filha sua por parte do dito F relativamente à autora ficou bem vincado aquando da celebração do Baptismo da mesma, que ocorreu no Santuário de Nossa Senhora da Peneda, paróquia da Gavieira, concelho de Arcos de Valdevez, no dia 16 de Agosto de 2000 (...) reconhecimento de paternidade que não pôde expressar de forma mais clara e inequívoca do que com as assinaturas que apôs no assento de baptismo, na qualidade de pai" (artigos 54º a 56º).

É sabido que o Código Civil, na sua inicial redacção, estabelecia no art. 1860º que "a acção de investigação de paternidade ilegítima só é admitida nos seguintes casos: a) encontrando-se o investigante na posse do estado de filho ilegítimo; b) existindo carta ou outro escrito no qual o pretenso pai declare inequivocamente a sua paternidade; c) tendo havido convivência notória da mãe e do pretenso pai no período legal da concepção; d) tendo havido violência exercida pelo pretenso pai contra a mãe no mesmo período; e) tendo havido sedução da mãe no período legal da concepção".

Este sistema, em que os casos previstos no art. 1860º constituíam verdadeiras condições de admissibilidade da acção de investigação de paternidade (não oficiosa) fora do casamento, veio, no entanto, a ser abandonado pela Reforma de 1977 (11), passando então a permitir-se "que a acção seja livremente instaurada contra quem quer que o investigante presuma (ou afirme presumir) que seja o seu progenitor. Por outro lado, mantiveram-se com ligeiras alterações as antigas presunções de paternidade (agora no art. 1871º) alicerçadas nas mesmas bases típicas de facto, retirando-lhes apenas o carisma e a força de pressupostos condicionantes da acção. Acrescentou-se, entretanto, que as presunções estabelecidas na lei (só) se consideram ilididas quando existam dúvidas sérias sobre a paternidade do investigado".(12)

Assim, com aquela Reforma "ficou existindo dentro do sistema constituído, um tríplice modelo de acções de investigação: as acções de investigação oficiosa, sob a iniciativa do Ministério Público (art. 1865º, nº 5, do C.Civil); as acções de investigação apoiadas nas presunções legais de paternidade (art. 1871º do mesmo Código); e as acções de investigação lançadas a céu aberto, sem terem apoio em qualquer presunção de paternidade prevista na lei e que apenas se baseiam na simples paternidade biológica". (13)

E se é certo que, na redacção inicial do art. 1860º do C.Civil dúvidas se não colocavam, no respeitante às acções propostas com base na verificação de qualquer dos pressupostos ali exigidos, de que todos os factos atinentes à sua verificação integravam a causa de pedir da acção de investigação, a qual, assim, era complexa, existe hoje clara semelhança entre o art. 1860º revogado e o art. 1871º porquanto "os casos em que funcionam presunções legais são aqueles em que o autor consegue provar (para isso tem, previamente, de alegar) uma das circunstâncias previstas nas várias alíneas do nº 1 deste artigo 1871º. Estas circunstâncias têm, pois, o valor técnico-jurídico de factos-operativos de presunções legais de paternidade". (14)

Ademais, a acção de investigação de paternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação (arts. 1817º, nº 1 e 1873º, do mesmo diploma) com ressalva das situações especiais previstas nos nºs 2, 3, 4 e 5 do mesmo art. 1817º, na redacção introduzida pela Lei nº 21/98, de 12 de Maio. Assim, se o investigante for tratado como filho pelo pretenso pai, a acção de investigação só pode ser proposta dentro de um ano, a contar da data em que tal tratamento tiver cessado (nº 4) assim como se a acção se fundar em escrito no qual o pretenso pai declare a paternidade só pode ser instaurada nos seis meses posteriores à data em que o autor conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito (nº 3). (15)

Do acima exposto resulta claramente que "nas acções de investigação em que o autor afirme a existência de alguma das presunções destacadas no artigo 1871º, cabe a ele apenas o ónus de alegar (e provar) os factos correspondentes à presunção especificamente invocada, de acordo com os ensinamentos da teoria rosenberguiana da norma sobre o ónus probandi. Ao réu caberá, por seu turno, alegar e provar que, não obstante a verificação dos factos concretos, que constitui a base de presunção legal (a posse de estado, o concubinato duradouro, o escrito do pai...), o investigado não teve relações com a mãe do investigante no período da concepção ou que, tendo-as tido, não foram elas a causa geradora da procriação ou da fecundação do óvulo materno (que a coabitação não foi causal). (16)
Em suma, hoje reconhece-se, em qualquer caso, o direito do filho ao estabelecimento da paternidade por via da acção judicial, mas "em certos casos, mais do que admitir livremente a prova da filiação biológica, a lei dispensa o autor de provar o facto constitutivo, ou seja, o vínculo biológico, ou, por outras palavras, a lei inverte o ónus da prova, dá como provada a filiação biológica, e é o réu que tem de ilidir a presunção favorável ao autor. (17)

Isto é, permite-se que o investigante se limite a alegar e provar um comportamento do pretenso pai que exteriormente criou uma aparência da filiação biológica para, caso não seja ilidida tal presunção, criando o investigado no espírito do julgador dúvidas sérias sobre a paternidade (nº 2 do art. 1871º) ser reconhecido como filho deste.

Sem pôr em causa que, até certo ponto, se pode afirmar que "a causa de pedir nas acções de investigação de paternidade, o facto jurídico donde emerge o direito do filho a ver estabelecida a sua paternidade jurídica, é a paternidade biológica ou natural" (18), não podemos esquecer que no caso do art. 1781º do C.Civil "substituiu-se na lei a prova da coabitação causal exclusiva, isto é, dos factos donde resulte que o pretenso pai e a mãe do investigando tiveram relações sexuais de cópula fecundantes no período da concepção e que esta, no mesmo período, não teve relações dessa natureza com nenhum outro homem, pela prova das presunções, isto é, pela prova dos factos integrantes de uma qualquer das presunções estabelecidas no nº 1 do art. 1871º. Significa isto que, provada a coabitação causal exclusiva ou qualquer das presunções legais, o resultado é o mesmo: deduz-se que o pretenso pai é o pai natural". (19)

E, sobretudo, não pode olvidar-se que "a causa de pedir, o facto jurídico que está na base da pretensão (...) nos aparece como o elemento causal do poder de acção e, ao mesmo tempo, como algo de composto, na medida em que concorrem para a sua integração elementos diversos". (20)
Consequentemente, sem deixarmos de convir que o facto jurídico procriador (relação sexual fecundante) constitui a causa de pedir nas acções de investigação de paternidade apenas fundadas nas relações sexuais exclusivas entre a mãe e o pretenso pai (21), durante o período da concepção, teremos que encarar, de modo diverso, a causa de pedir nas acções em que se alegam e invocam factos constitutivos das presunções legais do art. 1781º: nesse caso, indubitavelmente a presunção ou presunções em que o autor se funda integram-se na causa de pedir, dela fazendo também parte.(22)

Assim, sem qualquer dúvida, há-de entender-se que, nesta acção, tendo a autora situado em Portugal, quer parte da convivência more uxorio entre a sua mãe e o pretenso pai, bem como tendo indicado a Paróquia de Gavieira como o local onde pelo mesmo foi assinado o seu assento de baptismo com a declaração de que era seu pai, sustentou terem-se praticado no nosso país alguns dos factos que integram a causa de pedir em que se baseou para deduzir o pedido de reconhecimento da paternidade.
E é quanto basta para se poder concluir que, nos termos do art. 65º, nº 1, al. c), do C.Proc.Civil, se radica nos tribunais portugueses a competência para o julgamento da acção.

Uma curta referência se impõe fazer, ainda, quanto à invocação pelas recorrentes de que esta interpretação do art. 65°, n° 3, alínea c), do CPC, viola os arts. 13° e 20º da Constituição.

Breve, naturalmente, porque essa invocação não tem qualquer razoabilidade. (23)

De facto, não há na conclusão interpretativa de que os tribunais portugueses são competentes para a acção qualquer tratamento desigual das partes, antes fácil é de constatar que a serem as recorrentes a intervirem como autoras, nas mesmas condições, veriam o litígio ser resolvido - e note-se que apenas em termos formais - da mesma forma.

Não ocorre, doutro passo, qualquer discriminação das recorrentes, antes a solução adoptada resulta, pura e simplesmente, da interpretação mais adequada da norma aplicável, tendo, ademais, em consideração os superiores interesses do Estado em avocar a si o julgamento das causas que se conexionam com a sua área de intervenção.

Muito menos ainda é aceitável que, pelo simples facto de se considerarem os tribunais portugueses competentes para o julgamento de determinada acção (nesse sentido interpretada a norma do art. 65º, nº 1, al. c), do C.Proc.Civil) se possa visionar uma violação do princípio do livre acesso dos cidadãos à justiça e ao direito.

Soçobra, assim, a pretensão de inconstitucionalidade sustentada pelas recorrentes.

Restaria analisar a impugnação da decisão recorrida na parte em que concluiu, no âmbito da competência territorial interna, que o Tribunal de Melgaço é o competente para a tramitação e julgamento da acção.

Porque a acção em apreço foi instaurada em 10 de Março de 2003, é aplicável o art. 754º, nº 2, do C.Proc.Civil, na redacção que lhe foi dada pelo Dec.lei nº 375-A/99, de 20 de Setembro, nos termos do qual "não é admitido recurso do acórdão da Relação sobre decisão da 1ª instância, salvo se o acórdão estiver em oposição com outro, proferido no domínio da mesma legislação pelo Supremo Tribunal de Justiça ou por qualquer Relação, e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 732º-A e 732º-B, jurisprudência com ele conforme".

Apenas com a excepção dos casos preceituados no respectivo nº 3 (tenha o recurso fundamento na violação das regras de competência internacional, em razão da matéria ou da hierarquia ou a ofensa de caso julgado - art. 678º, nº 2 - ou haja sido interposto de decisão que tenha posto termo ao processo - al. a) do nº 1 do art. 734º) em que é sempre admissível o recurso de agravo em 2ª instância.
É, no entanto, evidente que nenhuma das excepções previstas no nº 3 do art. 754º se verifica. O despacho que decidiu da competência territorial é meramente interlocutório e, ao contrário da parte em que decidiu da competência internacional, não se encontra abrangido pelo art. 678º, nº 2.
E, assim sendo, caindo na regra geral do nº 2 do art. 754º, não se pode conhecer, no âmbito deste recurso, da questão respeitante à competência territorial interna.
Motivo por que o recurso improcede na totalidade.
Atento o exposto, decide-se:
a) - negar provimento ao recurso de agravo interposto pelas rés C, D e E;
b) - confirmar o acórdão recorrido;
c) - condenar as agravantes nas custas do recurso.

Lisboa, 25 de Novembro de 2004
Araújo Barros
OLiveira Barros
Salvador da Costa
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(1) Miguel Teixeira de Sousa, "A Competência Declarativa dos Tribunais Comuns", Lisboa, 1994, pag. 36.
(2) Aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República nº 33/91, publicada no DR IS-A de 30/10/91, e em vigor no nosso país desde 1 de Julho de 1992 (Aviso nº 4/92, publicado no DR IS-A de 10/07/92).
(3) Publicado no J.O.C. nº L 12, de 16 de Janeiro de 2001.
(4) Conselheiro Neves Ribeiro, "Processo Civil da União Europeia", Coimbra, 2002, pag. 56.
(5) Publicado no J.O.C. nº L 60, de 30 de Junho de 2000.
(6) Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, obra citada, pags. 67 e 69.
(7) Miguel Teixeira de Sousa, obra citada, pag. 47.
(8) José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, "Código de Processo Civil Anotado" vol. 1º, Coimbra, 1999, pag. 131. Cfr. Ac. STJ de 04/12/2002, no Proc. 3074/02 da 4ª secção (relator Mário Torres).
(9) Rodrigues Bastos, "Notas ao Código de Processo Civil" vol. I, 3ª edição, Lisboa, 1999, pag. 124.
(10) Acs. STJ de 19/04/79, in BMJ nº 286, pag. 222 (relator Santos Victor); de 30/08/87, no Proc. 74177 da 2ª secção (relator José Domingues); de 21/01/88, no Proc. 75587 da 2ª secção (relator Frederico Baptista); de 14/01/93, in CJSTJ Ano I, 1, pag. 57 (relator Roger Lopes); e de 14/05/98, no Proc. 292/98 da 2ª secção (relator Miranda Gusmão).
(11) Dec.lei nº 496/77, de 25vde Novembro.
(12)Antunes Varela, in RLJ Ano 117º, pags. 54 e 55.
(13) Ac. STJ de 12/12/2002, no Proc. 3880/02, da 6ª secção (relator Azevedo Ramos). Ver Antunes Varela, citada pag. 55.
(14) Guilherme de Oliveira, "Estabelecimento da Filiação", Coimbra, 1995, pag. 155.
(15) Trata-se, manifestamente, de situações em que, a não serem cumpridos os prazos legalmente impostos, não pode sequer obter-se o reconhecimento da paternidade com base no acto procriador, na filiação biológica (aqui a caducidade é de conhecimento oficioso, nos termos do art. 333º, nº 1, do C.Civil).
(16) Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil Anotado", vol. V, Coimbra, 1995, pag. 305. Ac. STJ de 06/05/97, in BMJ nº 467, pag. 588 (relator Fernandes Magalhães).
(17) Guilherme de Oliveira, obra citada pag. 153.
(18) F. Brandão Ferreira Pinto, "Filiação Natural", Coimbra, 1983, pag. 322.
(19) Ibidem, pag. 328.
(20) Artur Anselmo de Castro, "Lições de Processo Civil", coligidas e publicadas por Abílio Neto, vol. I (Reimpressão), Coimbra, 1970, pags. 355 e 356.
(21) Acs. STJ de 17/06/87, no Proc. 75116 da 2ª secção (relator Lima Cluny); de 19/01/93, in BMJ nº 423, pag. 535 (relator Martins da Costa); de 24/09/96, in BMJ nº 459, pag. 543 (relator Torres Paulo); e de 11/05/99, no Proc. 322/99 da 2ª secção (relator Aragão Seia).
(22) Ac. STJ de 26/01/99, no Proc. 1126/98 da 1ª secção (relator Francisco Lourenço).
(23) A questão da inconstitucionalidade foi suscitada, pela primeira vez, nas alegações desta revista, sem que o acórdão recorrido tivesse sido chamado a sobre ela se pronunciar, quiçá na mira de um possível recurso para o Tribunal Constitucional.