Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08S3257
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUSA PEIXOTO
Descritores: SOCIEDADE UNIPESSOAL
MORTE DE SÓCIO
EXTINÇÃO DE SOCIEDADE
RESPONSABILIDADE DOS HERDEIROS
CONDENAÇÃO CONDICIONAL
Nº do Documento: SJ20090507032574
Data do Acordão: 05/07/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
1. Os herdeiros do sócio de uma sociedade unipessoal, por eles, entretanto, extinta, não podem ser directamente condenados, ao abrigo do disposto no art.º 163.º, n.º 1, do CSC, a pagar as dívidas da sociedade, por, após o falecimento do sócio, não terem passado automaticamente a ser os titulares da quota do falecido.
2. Com efeito, com a morte do sócio, o titular da quota passou a ser a respectiva herança indivisa e os recorrentes passaram a ser, apenas, herdeiros da universalidade dos bens que integravam o acervo da herança, neste se incluindo a quota que o falecido detinha na sociedade.
3. Deste modo, a responsabilidade pelas dívidas da sociedade recai sobre a própria herança e não sobre os herdeiros, sendo embora limitada ao montante que a herança eventualmente tenha recebido na partilha dos bens da sociedade (art.º 163.º, n.º 1, do CSC).
4. Tal não significa, porém, que os herdeiros do sócio não possam ser responsáveis pelas dívidas da sociedade extinta, mas, para fazer accionar essa responsabilidade, é necessário alegar e provar que a sociedade extinta tinha bens, que, em consequência da sua dissolução e extinção, esses bens ou alguns desses bens tinham revertido para a herança do sócio, e que a herança deste tinha sido já partilhada pelos recorrentes, competindo o ónus de alegação e prova de tais factos ao autor/credor da sociedade extinta.
5. Não tendo sido alegados nem provados os aludidos factos, os herdeiros do sócio não podem ser condenados a pagar à autora/trabalhadora da sociedade os créditos salariais de que esta lhe era devedora, mesmo que tal condenação fosse restrita ao montante que eles, “porventura, hajam recebido em partilha” da sociedade, uma vez que a lei adjectiva não admite condenações condicionais.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

1. Relatório
AApropôs a presente acção, no Tribunal do Trabalho do Funchal, contra BB, CC, DD e EE, respectivamente viúva e filhos do Dr. GG, e contra FF – Serviços Médicos, Sociedade Unipessoal, L.da, pedindo que os quatro primeiros réus fossem solidariamente condenados a pagar-lhe a quantia de € 19.815,74, acrescida dos respectivos juros de mora, vencidos e vincendos, contados a partir de 2.10.2006 e até efectivo e integral pagamento, atingindo os primeiros o montante de € 227,85, e que, subsidiariamente, a 5.ª ré fosse condenada a pagar-lhe aquela importância, acrescida dos juros de mora nos termos referidos.

Em resumo, a autora alegou que foi admitida ao serviço do Dr. GG, em 1.9.1975, para exercer as funções de assistente de consultório médico, a tempo inteiro e mediante remuneração, actividade essa que sempre exerceu no mesmo local até à data em que o Dr. GG morreu, em 22.7.2006; o Dr. GG sempre pagou pontualmente a remuneração da autora e, até finais de 2005, fê-lo sempre em numerário, passando depois a fazê-lo por meio de cheque emitido em nome da sociedade ré, que havia sido constituída em 5.1.2002, de que aquele era o único sócio e gerente; todavia, a autora continuou a prestar a sua actividade ao próprio Dr. GG, nos mesmos moldes em que o vinha fazendo e sempre no mesmo local, sendo que nunca houve qualquer acordo verbal ou escrito de cessação da relação laboral entre a autora e o referido Dr. GG e nunca à autora foi comunicada a razão pela qual os recibos de vencimento passaram a ser emitidos em nome da sociedade ré; o Dr. GG deixou como herdeiros os quatro primeiros réus, como tal devidamente habilitados por escritura de 15.9.2006, os quais passaram a ser representados junto da autora pelo segundo réu, o Dr. CC, por indicação de quem a autora continuou a prestar a sua actividade laboral no referido consultório, tendo-lhe sido pagos os vencimentos de Julho e de Agosto de 2006; no início de Setembro de 2006, a autora, de acordo com o que já estava previamente acordado, gozou oito dias de férias e quando se apresentou ao trabalho, na segunda semana daquele mês, o segundo réu disse-lhe que continuasse de férias enquanto decidiam da situação criada pelo falecimento de seu pai, o que autora aceitou; na terceira semana de Setembro de 2006, a autora apresentou-se novamente ao trabalho, tendo-se dedicado, tal como vinha fazendo desde o falecimento do Dr. GG e por instruções do segundo réu, a tirar e a entregar fotocópias das fichas de alguns pacientes que as solicitavam; no final do mês de Setembro de 2006, o segundo réu, em nome de todos os herdeiros, comunicou à autora a intenção de encerrar o consultório no final do mês de Setembro de 2006, entregando-lhe, para o efeito, uma carta datada de 28.9.2006, informando-a de que o seu contrato de trabalho tinha caducado com a morte do Dr. GG, dado que nenhum dos herdeiros era médico, não podendo, por isso, continuar a exercer a actividade que por aquele era levada a cabo, e o estabelecimento não foi nem seria transmitido, e de que todos os valores que lhe eram devidos pela caducidade do contrato se encontravam já na posse do segundo réu, disponíveis para pagamento, bem como o documento necessário para requerer a atribuição do subsídio de desemprego; os herdeiros do falecido computaram os ditos valores em € 19.815,74 líquidos e lançaram-nos em recibo de vencimento da sociedade ré, datado de 31.8.2006, que então foi entregue à autora, juntamente com a declaração para efeitos do subsídio de desemprego e com a declaração de quitação integral para ela assinar, logo que aquela quantia lhe fosse paga; atentas as boas relações que mantinha com o falecido e com o segundo réu e demais herdeiros, a autora nem sequer questionou os valores apurados e aceitou-os como tal, tendo continuado a prestar a sua actividade até ao dia 29.9.2006, sexta-feira, inclusive, combinando com o segundo réu passar pelo local de trabalho no dia 2.10.2006, a fim de receber a referida indemnização; na manhã desse referido dia, a autora compareceu no local de trabalho, mas o segundo réu não compareceu nem tão pouco atendeu as chamadas telefónicas feitas pela autora; dias depois, a autora conseguiu entrar em contacto telefónico com o segundo réu, com o qual se veio a encontrar, no local de trabalho, no dia 16.10.2006, a fim de este proceder ao pagamento da quantia acordada; nesse dia, porém, o segundo réu, em nome de todos os herdeiros, limitou-se a informar a autora de que não tinha dinheiro para lhe pagar, aconselhando-a a pedir a demissão, o que esta não fez; apesar das diversas insistências da autora junto dos referidos herdeiros, a quantia acordada não lhe foi paga, o mesmo acontecendo com o vencimento do mês de Setembro de 2006; os quatro primeiros réus não renunciaram à herança do falecido Dr. GG, antes a aceitaram, assumindo a sua qualidade de herdeiros, sendo que tal herança se afigurava superavitária, em montante muito superior ao agora reclamado pela autora; em 28.12.2006, os quatro primeiros réus deliberaram dissolver e extinguir a sociedade ré, tendo declarado que não havia lugar a liquidação nem a partilha, por inexistência de bens, o que não correspondia à verdade; desde 1975 até ao óbito do Dr. GG, este e a autora estiveram mutuamente vinculados por contrato individual de trabalho, como, aliás, foi reconhecido pelos quatro primeiros réus, designadamente ao invocarem a caducidade do referido contrato, por força do referido óbito; não tendo os quatro primeiros réus repudiado a herança, antes a tendo expressamente aceitado, são eles os responsáveis solidários pelo pagamento da indemnização devida à autora, sendo que os bens da dita herança excedem largamente os respectivos encargos; sem conceder e admitindo, por hipótese, que a relação laboral se tivesse de algum modo transmitido para a sociedade ré, então a actuação dos quatro primeiros réus configura, a todos os títulos, uma situação de despedimento sem justa causa, porque não sedimentada na extinção daquela sociedade, a qual, aliás, só veio a ocorrer sensivelmente três meses depois (de 28.9.2006, data da invocação da caducidade do contrato de trabalho por óbito do Dr. GG, até 28.12.2006, data da acta de dissolução da sociedade), e, nesta hipótese, a responsabilidade dos quatro primeiros réus perante a autora é igualmente solidária, uma vez que procederam à alienação do activo da sociedade ré, que era superior ao montante agora peticionado, sem assegurar o pagamento do mesmo, dando, pelo contrário, como desnecessária a liquidação subsequente à dissolução; nesta sequência, o facto de se demandar aqui a sociedade ré, já dissolvida e considerada extinta por desnecessidade de liquidação, decorre, à cautela e subsidiariamente, da hipotética invalidade da respectiva dissolução e falta de liquidação.

Frustrada a tentativa de conciliação realizada na audiência de partes, os quatro primeiros réus apresentaram a sua contestação, defendendo-se por excepção e por impugnação.

Em matéria de excepção, os referidos réus invocaram a sua ilegitimidade alegando que, em 5 de Abril de 2002, o Dr. GG, ao serviço subordinado do qual a autora se encontrava desde 1 de Setembro de 1975, constituiu uma sociedade unipessoal de responsabilidade limitada, que adoptou a firma “FF – Serviços Médicos, Sociedade Unipessoal, L.da”, que teve por objecto a prestação de serviços médicos, a qual incorporou todo o material de escritório existente na altura e passou a assumir, como clientes, fornecedores ou nas relações com outros terceiros, as obrigações e responsabilidades cíveis decorrentes do exercício da actividade clínica do Dr. GG; foi neste contexto e na continuidade e dentro do processo lógico que levou à criação da sociedade em causa que o Dr. GG transferiu, com a concordância da própria autora, o vínculo laboral entre ambos existente, com todos os direitos e obrigações dele decorrentes, para a referida sociedade, tendo sido esta, por isso, até à data da sua dissolução e extinção, ocorrida em 28 de Dezembro de 2006, a última entidade patronal da autora, daí decorrendo a ilegitimidade dos réus contestantes, uma vez que não são, nem nunca foram, em circunstância alguma, entidade patronal da autora.

Em matéria de impugnação, os contestantes alegaram que na carta entregue à autora nunca confessaram que o Dr. GG tinha sido, até à data do seu falecimento, a entidade patronal da autora, até porque, em momento posterior ao da feitura daquela carta, o segundo réu, em nome da sociedade unipessoal, de que seu pai era o único sócio e gerente, emitiu e entregou à autora, que a aceitou, a “Declaração de Situação de Desemprego”; o que aconteceu foi que, após a morte do Dr. GG, a sociedade perdeu a sua única fonte de rendimentos, que era constituída pelos proventos oriundos dos serviços prestados por aquele clínico no exercício da sua profissão de médico, não tendo deixado, todavia, pelo menos até à sua dissolução, de ter de pagar as remunerações das duas trabalhadoras, a renda e os custos financeiros do investimento inicial; foi precisamente por causa dessa premente necessidade de eliminar os custos e os encargos, que começavam a criar uma situação de dificuldade financeira grave à sociedade, que o segundo réu enceta negociações com as duas trabalhadoras existentes na altura; tendo resolvido a situação laboral da trabalhadora HH; porém, a autora só aceitava a rescisão do contrato de trabalho se, para além de todas as remunerações devidas, lhe fosse entregue a “Declaração de Situação de Desemprego” com justificação legal suficiente para que ela pudesse auferir subsídio de desemprego e a única maneira de o fazer era declarar-se, ficticiamente, que a autora era trabalhadora do Dr. GG e não da sociedade ré; na sequência das negociações então havidas entre a autora e o representante da sociedade, o Dr. CC ainda ponderou fortemente a ideia de os herdeiros pagarem a dívida da sociedade, chegando, para isso, a emitir o recibo, mas tal atitude não mereceu a aprovação dos restantes herdeiros, razão pela qual acabaram por nada pagarem à autora do seu bolso, sendo que não estavam legalmente obrigados a fazê-lo; os réus não aceitam, de modo nenhum, que as quantias devidas pela sociedade à autora sejam os que por esta são peticionados e o seu chamamento à demanda não passa de uma tentativa desesperada da autora de, por qualquer meio, se fazer pagar do montante que, como ela perfeitamente sabe, só lhe é devido pela sociedade ré, por ter percebido que a sociedade já não lhe podia pagar e por saber que os réus estavam em condições de o fazer, por serem possuidores de algum património, mesmo que a tal não estivessem legalmente obrigados.


A autora respondeu à contestação, reafirmando a posição assumida no seu articulado inicial, e, no despacho saneador, a M.ma Juíza julgou improcedente a excepção deduzida pelos quatro primeiros réus, indeferiu o depoimento de parte dos mesmos réus e o exame pericial à contabilidade da sociedade ré, requeridos na resposta à contestação, e dispensou a elaboração da base instrutória.
A autora interpôs recurso daquele despacho, na parte em que indeferiu o exame pericial à contabilidade da sociedade ré, e, realizado o julgamento, com gravação da prova, e decidida a matéria de facto, foi proferida sentença, absolvendo a 5.ª ré da instância, com o fundamento de que a mesma não tinha personalidade jurídica, por, à data da propositura da acção, já se encontrar dissolvida e extinta, conforme registo de 13.1.2007, e condenando os quatro primeiros réus, na qualidade de antigos sócios da sociedade FF – Serviços Médicos, Unipessoal, L.da e ao abrigo do disposto no art.º 163.º, n.º 1, do CSC, a pagar à autora, a título de compensação pela cessação do contrato de trabalho, o correspondente a um mês de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo de antiguidade que deve ser calculado proporcionalmente no caso de fracção inferior de ano, bem como o vencimento relativo ao mês de Setembro de 2006, as férias vencidas em 1.1.2006 e não gozadas e respectivo subsídio de férias e os proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal do ano da cessação do contrato de trabalho.


E, para decidir daquela forma, a M.ma Juíza considerou, em resumo, que o estabelecimento/consultório médico – onde o Dr. GG exercia a sua profissão de médico e onde a autora, subordinadamente a este, prestava a sua actividade de assistente de consultório, desde 1.9.1975 –, tinha sido transmitido para a sociedade FF – Serviços Médicos Unipessoal, L.da que por aquele havia sido constituída em 2.10.2002 e que, por via dessa transmissão e do disposto no art.º 37.º da LCT, a sua posição de empregador tinha passado para a titularidade da referida sociedade e que os quatro primeiros réus, agindo na qualidade de titulares, via sucessória, da única quota da sociedade, tinham feito cessar o contrato de trabalho que a autora mantinha com a dita sociedade com o fundamento de que o consultório teria de ser encerrado e não com fundamento na morte do Dr. GG, apesar de na carta que foi entregue à autora se ter feito alusão à morte daquele.

E mais considerou a M.ma Juíza que o encerramento da sociedade determinava a caducidade do contrato de trabalho, conferindo, todavia, à autora o direito à compensação prevista no art.º 390.º, n.º 5, do Código do Trabalho/2003 e que, nos termos do art.º 163.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, os primeiros quatro réus eram os responsáveis pelo pagamento da referida compensação, na qualidade de sócios da mencionada sociedade e até ao montante que desta receberam em partilha, e que o facto dos ditos sócios terem declarado no acto da dissolução da sociedade que esta não tinha bens a partilhar e de não se poder afirmar que eles tivessem recebido quaisquer bens em espécie ou em dinheiro não obstava a que o direito da autora fosse reconhecido e que os ditos réus fossem condenados como responsáveis pelo pagamento das quantias devidas à autora, até ao montante que tenham recebido em partilha, “independentemente de, posteriormente, se confirmar a inexistência de qualquer valor que possa satisfazer tal montante, sem prejuízo de, sendo esse o caso, e sabendo-se que existiam bens da sociedade que por eles foram alienados, seja intentada a competente acção que possibilite o pagamento efectivo do valor em referência”.

Inconformados com a decisão da 1.ª instância, dela recorreram os quatro primeiros réus e a autora, todos a título principal.

Os quatro primeiros réus, por entenderem que a sua condenação, ao abrigo do disposto no art.º 163.º, n.º 1, do CSC, não fazia qualquer sentido: por não poderem ser considerados sócios da sociedade; por não ter havido partilha; por não estar provado que tivessem recebido quaisquer bens da sociedade, em partilha; porque a possibilidade avançada pela M.ma Juíza de que eles poderiam, posteriormente, tentar provar a inexistência da qualquer valor que possa satisfazer o pagamento à autora, é uma inversão intolerável do ónus da prova, que na presente acção competia à autora e agora passaria a pertencer a eles; porque, mesmo que assim não fosse, dar duas possibilidades à autora de fazer a prova de factos que em sede própria não quis ou não soube fazer equivalia a colocar as partes numa posição intolerável de desequilíbrio processual que não tem razão de existir; porque não se descortina como é que os recorrentes se poderiam opor a uma execução baseada numa sentença de condenação em quantia certa, quando, nestes casos, o executado só pode lançar mão da oposição alegando circunstâncias que infirmem a penhora (art.º 91., n.º 2, do CPT) ou com os fundamentos previstos no art.º 814.º do CPC, não podendo, por isso, discutir se recebeu ou não e, se recebeu, quais os montantes recebidos em virtude de uma hipotética partilha.

A autora, por entender que a sua relação laboral com o Dr. GG se tinha mantido até à data da sua morte e que, a admitir-se, por hipótese, que a posição de empregador tinha sido transmitida para a sociedade ré, o negócio celebrado entre o Dr. GG e aquela ré sempre teria de ser considerado nulo, por violação do disposto no art.º 270.º-F do CSC, e por entender que os documentos juntos aos autos atestavam que os réus tinham reconhecido e acordado pagar à autora a quantia de € 19.815,74.

Conhecendo das duas apelações e do recurso de agravo que a autora havia interposto do despacho saneador, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao agravo, julgou improcedente a apelação da ré e parcialmente procedente a da autora e, consequentemente, alterou a sentença da 1.ª instância, condenando os quatro primeiros réus, na qualidade de sócios da 5.ª ré, a pagar à autora a importância global de € 19.815,74, acrescida de juros de mora desde 2.10.2006 até integral pagamento.

Mais concretamente, a Relação considerou que tinha havido transmissão do estabelecimento/consultório, onde a autora trabalhava, para a sociedade ré; que, por via dessa transmissão, a sociedade tinha passado a ser a entidade empregadora da autora; que, não estando demonstrada a existência de qualquer negócio tendo por objecto a relação laboral em causa, não fazia sentido colocar-se a questão da invalidade do mesmo; que os quatro primeiros réus eram os responsáveis pelo pagamento dos créditos devidos à autora, “até ao montante que, porventura, hajam recebido em partilha” da sociedade dissolvida, pelas razões aduzidas na sentença da 1.ª instância; que a importância devida à autora era efectivamente de € 19.815,74.

Mantendo o seu inconformismo, os quatro primeiros réus interpuseram recurso de revista, concluindo as respectivas alegações da seguinte forma:
I. O Tribunal da Relação condenou os Recorrentes a pagar à Recorrida a quantia de € 19.815,74, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 02/1012006, até integral pagamento, lançando mão do art.º 163.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, tendo-o feito, porém, a nosso ver, erradamente, por várias ordens de razões, que passaremos a explicar, nunca se podendo perder de vista, para a avaliação das suas maiores ou menores pertinências, o facto da 5.ª Ré, a sociedade “FF – Serviços Médicos, Sociedade Unipessoal, L.da”, ter sido, como o próprio nome revela, uma sociedade unipessoal por quotas de responsabilidade limitada.
II. E equivocou-se por quatro ordens de razões:
III. Em primeiro lugar, porque os quatro primeiros RR., ora Recorrentes, nunca foram, na verdadeira acepção da palavra, "sócios" da referida sociedade. Foram, isso sim, herdeiros, sem determinação de parte ou direito, de uma universalidade de bens deixados por óbito do médico Dr. GG, entre os quais se incluía a quota da "FF ­Serviços Médicos – Sociedade Unipessoal, L.da". E isto é, de um ponto de vista rigoroso, uma realidade jurídica completamente diferente. Se a norma quisesse abranger os herdeiros de sócios tê-lo-ia dito expressamente, à semelhança do que o faz, a propósito de outros tantos assuntos um pouco por toda a parte do diploma.
IV. Em segundo lugar e terceiro lugar, porque a sociedade, entidade patronal da Recorrida, foi dissolvida, ou seja, extinguiu-se (acabando inclusivamente a sua matricula por ser cancelada, conforme documento número 5, não impugnado, que se juntou ao requerimento datado de 21 de Maio de 2007), não tendo havido liquidação nem, consequentemente, quaisquer bens a partilhar, consumindo-se o próprio capital na sua gestão social (ponto 27). Como aliás se pode inferir do próprio teor da sentença do tribunal de ingresso quando diz: "...não se possa afirmar que os réus receberam qualquer bem em espécie ou dinheiro por força da partilha, posto que esta não existiu,..."
V. Não existiu portanto partilha.
Assim sendo, não se encontram preenchidos, logo à partida, três dos requisitos necessários para a aplicabilidade desta norma ao caso concreto, a saber: serem sócios, ter existido liquidação, e ter havido partilha subsequente, ou seja, relativamente a esta última, de ter sido levado a cabo uma distribuição de determinadas importâncias, quer tenham sido em espécie, quer tenham sido feitas em dinheiro.
VI. Não foi alegado nem ficou provado que os Réus, ora Reclamantes tivessem, em virtude da liquidação efectuada, recebido qualquer tipo de montante, e o ónus dessa prova pertencia à Recorrida.
VII. O Acórdão do Tribunal da Relação responsabiliza os Recorrentes pelo pagamento de uma determinada verba à Recorrida, apenas porque à data do falecimento do Dr. GG existia um automóvel da marca Suzuki e parte dos equipamentos e stock do consultório médico, bens que, até à data da dissolução da sociedade, foram alienados por aqueles.
VIII. Mas tal alienação não resultou da partilha efectuada em sede da dissolução da sociedade, mas de actos anteriores, apenas e tão só para fazer face às despesas ordinárias, de água, electricidade, pagamento de renda, e salários, e extraordinárias, como a indemnização que puderam assumir perante uma das outras trabalhadoras do consultório, como resulta de documentos apresentados no requerimento que deu entrada no dia 10 de Abril de 2007, e dos factos 31 e 35, uma vez que por virtude do falecimento do médico, o referido Dr. GG, o consultório deixou de produzir qualquer tipo de receita, tendo no entanto, que continuar a honrar liquidações de compromissos e dívidas que, de forma natural, continuaram a surgir.
IX. A A., ora Recorrida, não alegou, ou, por maioria de razão, não logrou provar, por esquecimento ou pura inércia, nem resultou dos autos por qualquer mera casualidade, os valores pelos quais esses bens foram efectivamente alienados. E o ónus dessa prova também lhe pertencia.
X. Em virtude e na sequência do que ficou dito, chegamos então à quarta razão pela qual tal acórdão desfavorável aos Recorrentes não deveria ter sido proferido, é que, mesmo realizando um esforço de raciocínio francamente imaginativo, considerando-se, portanto, que existiu a partilha à qual o art.º 163.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais se refere, ao contrário do que ficou realmente apurado pelo tribunal de ingresso, a verdade é nunca foram descobertos quais os montantes pelos quais aqueles bens foram vendidos, a fim de se saber, se o passivo social fica aquém ou vai além do que hipoteticamente aqueles haveriam recebido, cobrindo ou não, neste caso concreto, o montante peticionado pela A., ora Recorrida.
XI. O que, salvo o devido respeito, nos faz considerar aberrante o fundamento com o qual o Tribunal "a quo" utilizou para condenar a Recorrente, e que passamos a transcrever: "Deste modo e tal como se concluiu na sentença recorrida, não obstante não se poder concluir que os quatro primeiros Réus, enquanto herdeiros do único sócio da mencionada sociedade comercial, receberam bens ou dinheiro desta por partilha, tal não obsta ao reconhecimento de que aqueles são efectivamente responsáveis pelo pagamento dos direitos da Autora decorrentes da cessação do respectivo contrato de trabalho nos termos em que a mesma se verificou e até ao montante que, porventura, hajam recebido na partilha".
Toda esta fundamentação, baseando-se no art.º 163.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, é contrária à própria norma, e é um contra-senso nos seus próprios termos, e que não pode conduzir, a nosso ver, de modo nenhum, ao Acórdão que, estamos em crer, de forma manifestamente infeliz, se acabou realmente por proferir. É porque se diz em tal aresto:
- " ... não obstante não se poder concluir ... receberam dinheiro ou bens dessa partilha, tal não obsta ao reconhecimento de que aqueles são efectivamente responsáveis pelo pagamento dos direitos da Autora..." - obsta sim. Se não houve partilha, não pode haver aplicação daquele preceito, uma vez que, como já se referiu, esse é um elemento essencial da sua aplicabilidade.
- "... e até ao montante que hajam recebido na partilha" – Não houve partilha, e, a ter efectivamente existido, o que por mera hipótese académica se coloca, nem sequer ficaram apurados quais ao valores pelos quais o veículo Suzuki bem como parte dos equipamentos e stock do consultório médico foram alienados meses antes, não se podendo apurar, portanto, se esses valores excederam ou não a quantia peticionada pela Recorrida, por forma a não condenar os Recorrentes em valores superiores pelos quais seriam legalmente responsáveis. Esta condenação, assim feita, sem este apuramento, não só é ilegal como arrisca obrigar estes a pagar valores que efectivamente não receberam e/ou para além do que receberam, o que nos parece, de todo, inadmissível!
XII. De tudo o que ficou dito e dos factos que resultaram provados resulta claro, a nosso ver, que há erro na interpretação e aplicação do art.º 163.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, e que a sua utilização, a este caso concreto, não pode levar nunca à condenação dos Recorrentes tal como o fez o Tribunal da Relação de Lisboa.

A autora contra alegou, defendendo a confirmação do julgado e, neste Supremo Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral-Adjunta emitiu parecer, a que as partes não reagiram, pronunciando-se pela concessão parcial da revista, por entender que o montante da compensação devida à autora devia ser relegado para liquidação de sentença, uma vez que não estava provado o valor dos bens que os recorrentes receberam com a liquidação da 5.ª ré.

Corridos os vistos dos adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

2. Os factos
Os factos que, sem qualquer impugnação, vêm dados como provados desde a 1.ª instância são os seguintes:
1. A A. entrou ao serviço do Dr.GG, médico, mediante a celebração de um contrato verbal, em 1.09.1975, para exercer as funções de assistente de consultório, a tempo inteiro, sob a direcção e autoridade daquele.
2. Inicialmente, o horário de trabalho era das 10 às 13 horas e das 14h30 às 19h30, sendo o período de almoço entre as 13 horas e as 14h30.
3. O horário referido em 2. foi sendo alterado ao longo dos anos e, por determinação do Dr. GG, era, ultimamente, o seguinte: segundas, quartas e sextas-feiras, das 14h30 às 21 horas; terças e quintas-feiras, das 8h30 às 14h30.
4. A A. exerceu a actividade de assistente de consultório sempre no mesmo local, ou seja, na Rua do ..., n.º 00, 2.º Dto., Funchal, onde se situava o consultório do médico Dr. GG.
5. O vencimento mensal da A. era inicialmente de 3 300$00.
6. À data da cessação do contrato, o vencimento base mensal da A. era de € 521,00, acrescido de € 62,00 de diuturnidades e de € 5,20 de subsídio de alimentação por cada dia de trabalho.
7. O Dr. GG faleceu no dia 22 de Julho de 2006.
8. Até à data da sua morte, o Dr. GG sempre pagou a remuneração à A. e, até finais do ano de 2005, fazia-o por entrega de numerário.
9. A partir da data referida em 8., o pagamento da remuneração era feito, por norma, por meio de cheques emitidos em nome da quinta ré.
10. Em 2 de Outubro de 2002, o Dr. GG constituiu uma sociedade comercial e unipessoal por quotas que adoptou a firma “FF – Serviços Médicos, Sociedade Unipessoal L.da” tendo por objecto a prestação de serviços médicos, registada na Conservatória do Registo Comercial do Funchal sob o número 09273/021105, figurando aquele como único gerente.
11. A partir de data não apurada, mas, pelo menos, desde Dezembro de 2005, os recibos de vencimento da A. passaram a ser emitidos em nome da sociedade referida em 10.
12. Após a constituição da sociedade referida em 10., a A. continuou a prestar a sua actividade ao Dr. GG da forma como vinha fazendo desde a data da sua admissão.
13. Por escritura de habilitação, com data de 15.09.2006, lavrada no livro n.º 84-A, a fls. 50 a 50 verso do Cartório Notarial do Licenciado ..., BB, viúva, declarou ser cabeça-de-casal da herança deixada por óbito de seu marido, Dr. GG, sendo únicos herdeiros, a própria outorgante e três filhos que são CC, DD e EE .
14. Os quatro primeiros réus, enquanto herdeiros do Dr. GG, passaram a ser representados junto da A. pelo Dr. CC.
15. Por indicação do segundo réu, a A. continuou a prestar a sua actividade no consultório referido em 4., tendo-lhe sido pagas as remunerações relativas aos meses de Julho e Agosto de 2006.
16. No início de Setembro de 2006, conforme combinado primeiramente com o Dr. GG e depois com o segundo réu, a A. gozou oito dias de férias, tendo-se apresentado ao trabalho na segunda semana de Setembro de 2006, altura em que este lhe transmitiu que, enquanto decidiam da situação decorrente do falecimento do Dr. GG, deveria a A. continuar de férias por mais uma semana, o que esta fez.
17. Na terceira semana de Setembro de 2006, a A. apresentou-se ao trabalho, procedendo à abertura das portas do consultório e entregando fotocópias das fichas de alguns pacientes quando solicitadas.
18. O segundo réu entregou à A. uma carta, com data de 28 de Setembro de 2006, assinada por aquele, dando-lhe conta, entre o mais, que na sequência do falecimento do Dr. GG, “uma vez que nenhum dos seus sucessores são médicos, nem sequer licenciados em medicina, não podendo por esse mesmo motivo continuar aquela actividade, e o estabelecimento não foi nem será transmitido, o contrato de trabalho que havia celebrado com o Dr. GG caducou com o falecimento deste, sendo intenção dos herdeiros encerrar o consultório no final do presente mês de Setembro de 2006”.
19. Juntamente com essa carta, o segundo réu entregou um recibo de vencimento emitido em nome da quinta ré, onde constam os valores apurados como sendo os devidos à A. por força da cessação do contrato de trabalho, no montante global líquido de € 19 815,74.
20. Também lhe foi entregue, na mesma altura, a Declaração de Situação de Desemprego emitida em nome da quinta ré, com data de 15.09.2006.
21. Foi-lhe também entregue um documento intitulado “Declaração de Quitação” que deveria assinar após o recebimento da quantia referida em 19.
22. A A. continuou a prestar a sua actividade até ao dia 29.09.2006 e combinou com o segundo réu que este, durante a manhã do dia 2.10.2006, deveria comparecer no local de trabalho para pagar o montante referido.
23. O segundo réu não compareceu e, mais tarde, foi acordado que o mesmo se encontraria com a A. no dia 16.10.2006 para efectuar o pagamento.
24. Na data referida em 23., o segundo réu não procedeu ao pagamento e informou a A., em nome dos herdeiros do Dr. GG, que não tinha dinheiro para lhe pagar.
25. Em 27.10.2006, a A. enviou uma carta registada com aviso de recepção aos herdeiros do Dr. GG, dirigida para a Rua ..., n.º 0, 3.ª Casa, Funchal, solicitando o pagamento dos valores que lhe eram devidos, carta esta que foi devolvida com a menção «não reclamado».
26. Na herança aberta por óbito do Dr. GG integram-se, pelo menos, os bens identificados nos documentos de fls. 85 a 96 dos autos.
27. Os quatro primeiros réus subscreveram a acta número sete, com data de 28 de Dezembro de 2006, onde se refere que são “titulares em comum e sem determinação de parte ou direito de uma quota no valor nominal de cinco mil euros, que pertencia ao falecido sócio GG, e, consequentemente representado todo o capital social que é de cinco mil euros, resolveram reunir-se em assembleia geral universal, com dispensa de convocação prévia, acordando sobre a matéria da ordem do dia: Um – Aprovação das contas do exercício do ano 2006. Dois – Dissolução da sociedade e consequente extinção por não haver lugar a liquidação e partilha. (…) Trocadas impressões a propósito, foi assente que tendo falecido o sócio GG, deliberaram por unanimidade aprovar o balanço do último exercício do ano 2006 e dissolver de imediato a sociedade FF – Serviços Médicos, Sociedade Unipessoal, L.da, não havendo bens a liquidar, nem a partilhar, considerando-se extinta a sociedade, tendo-se consumido o próprio capital na gestão social”.
28. À data do falecimento do Dr. GG, a quinta ré possuía um veículo de marca Suzuki, bem como parte dos equipamentos e stock do consultório referido em 4., bens que foram alienados pelos quatro primeiros réus.
29. Em 2005, conforme contas depositadas na Conservatória do Registo Comercial do Funchal, em 20.10.2006, sob o n.º PT2873/2006, haviam transitado € 10 231,64 do exercício dos anos anteriores, e nesse ano foi obtida a quantia de € 34 189,58 de proveitos.
30. A sociedade referida em 10. incorporou todo o material de escritório existente no consultório do Dr. GG, na altura da sua constituição.
31. Entre a Companhia de Seguros Fidelidade – Mundial, S. A., como primeiro outorgante e na qualidade de proprietária, GG – Serviços Médicos Unipessoal, L.da, na qualidade de locatário e GG, na qualidade de fiador, foi celebrado um contrato promessa de arrendamento de acordo com o qual a primeira declarou ser legítima proprietária do imóvel sito na Rua ..., 00-00, no Funchal, freguesia da Sé, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo n.º 1067 e dar de arrendamento ao segundo outorgante o 2.º andar daquele imóvel, pelo prazo de duração de um ano, com início em 1 de Janeiro de 2003, mediante a renda mensal de € 300,00, destinando-se o local arrendado a consultório médico.
32. A sociedade GG – Serviços Médicos, Sociedade Unipessoal, L.da passou a pagar os montantes relativos aos descontos para a Segurança Social devidos por parte da entidade patronal pelo trabalho prestado pela autora.
33. A A. nunca colocou qualquer dúvida sobre o facto de os pagamentos da remuneração serem efectuados por cheques emitidos pela quinta ré ou pelo facto de os recibos de vencimento serem emitidos em nome desta.
34. A única actividade da sociedade referida em 10. era constituída pelos serviços prestados pelo médico Dr. GG.
35. A relação laboral que a quinta ré mantinha com uma outra trabalhadora foi resolvida após o falecimento do Dr. GG tendo a mesma recebido valores não apurados.
36. Até à data do falecimento, o Dr. GG exercia a sua actividade profissional sendo que emitia recibos pela prestação de tais serviços quer em nome individual, quer em nome da sociedade referida em 10.

Como já foi dito, a factualidade referida não foi objecto de impugnação e não se vislumbra que ocorra alguma das situações que, nos termos do art.º 729.º, n.º 3, do CPC, poderia levar o Supremo a, oficiosamente, remeter o processo ao tribunal recorrido, para os fins aí consignados. Será, pois, com base nos factos materiais assim fixados pelas instâncias que as questões suscitadas pelos recorrentes hão-de ser resolvidas.

3. O direito
Como decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, o objecto do recurso restringe-se à questão de saber se eles são responsáveis pelo pagamento dos créditos salariais que, nas instâncias, foram reconhecidos à autora.

Na verdade, como se constata do relato feito em 1., as demais questões que integravam o objecto do litígio (saber quem era, ultimamente, a entidade empregadora da autora, por que forma tinha cessado o seu contrato de trabalho, qual o montante dos créditos a que a mesma tinha direito, a extinção da sociedade ré e a sua absolvição da instância) mostram-se já decididas com trânsito em julgado, sendo, por isso, absolutamente descabidas as considerações que a recorrida faz nas suas contra-alegações a respeito de algumas dessas questões, uma vez que não requereu a ampliação do objecto do recurso, como podia ter feito, ao abrigo do disposto no art.º 684.º-A, n.º 1, do CPC, relativamente aos fundamentos em que, no recurso de apelação, ficou vencida.

Definido que está o objecto do recurso, vejamos, então, se os factos dados como provados são suficientes para responsabilizar os recorrentes pelo pagamento dos créditos devidos à autora.

Na decisão recorrida, tal como na sentença da 1.ª instância, entendeu-se que a responsável pelos créditos reconhecidos à autora seria a ré sociedade “FF – Serviços Médicos, Sociedade Unipessoal, L.da”, mas que essa responsabilidade passava a recair sobre os quatro primeiros réus, os ora recorrentes, nos termos do art.º 163.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, devido ao facto daquela sociedade se encontrar extinta e de eles terem sido os herdeiros da quota que pertencia ao Dr. GG, único sócio da dita sociedade. E mais se entendeu que a responsabilidade dos recorrentes era limitada ao montante daquilo que, eventualmente, tivessem recebido na partilha dos bens da sociedade.

Os recorrentes discordam da decisão recorrida, por entenderem que não se mostram preenchidos os requisitos de que depende a aplicação do disposto no art.º 163.º, n.º 1, do CSC, alegando, em resumo, que:
- em bom rigor, nunca foram antigos sócios da sociedade “FF – Serviços Médicos, Sociedade Unipessoal, L.da”, qualidade jurídica essa que apenas foi detida pelo Dr. GG;
- foram, isso sim, após o falecimento deste, herdeiros, em comum e sem determinação de parte ou direito, de uma universalidade de bens, entre os quais figurava a quota que aquele detinha da referida sociedade;
- apesar da sociedade, entidade patronal da recorrida, ter sido dissolvida, não houve liquidação nem partilha, por inexistência de bens;
- o facto de, à data da morte do Dr. GG, ocorrida cerca de cinco meses antes da extinção da sociedade, esta possuir um veículo de marca Suzuki e parte dos equipamentos e stock do consultório médico não significa, como parece ter sido o entendimento do acórdão recorrido, que tenha havido liquidação e/ou partilha;
- mesmo que tivesse havido partilha, o que não ficou provado, também não ficou provado que os recorrentes tivessem recebido quaisquer bens.

Vejamos se os recorrentes têm razão.

Como já foi dito, a condenação dos recorrentes estribou-se no disposto no art.º 163.º, n.º 1, do CSC, cujo teor é o seguinte:
1. Encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha, sem prejuízo do disposto quanto aos sócios de responsabilidade ilimitada.

Como decorre do elemento literal do normativo transcrito, o mesmo só se aplica aos antigos sócios da sociedade extinta. Os recorrentes alegam que nunca foram sócios da sociedade “FF – Serviços Médicos, Sociedade Unipessoal L.da”, tendo sido apenas herdeiros de uma universalidade de bens, entre os quais figurava a quota que o Dr. GG detinha da referida sociedade, de que era o único sócio. E, perante os factos dados como provados, temos de reconhecer que os recorrentes têm razão.

Na verdade, embora nos autos não se discuta que os recorrentes eram os únicos herdeiros do falecido Dr. GG, sendo que eles próprios como tal se assumiram na escritura de habilitação de herdeiros referida no n.º 13 da matéria de facto, o certo é que, após a morte do Dr. GG, os recorrentes não passaram a ser automaticamente titulares da quota que aquele detinha na aludida sociedade. Titular da quota passou a ser a herança indivisa do falecido. Os recorrentes só passariam a ser titulares da quota, se a mesma lhes viesse a ser adjudicada na partilha da herança por morte do Dr. GG, marido e pai dos recorrentes.

Não há notícia, nos autos, de que aquela partilha tenha sido efectuada. Pelo contrário, do teor da acta referida no n.º 27 da matéria de facto, tudo indicia que tal ainda não tinha sucedido quando os recorrentes deliberaram dissolver a sociedade.

E, sendo assim, é óbvio que os recorrentes não podiam ser condenados, ao abrigo do disposto no art.º 163.º, n.º 1, do CSC, a pagar à autora os créditos salariais que lhe foram reconhecidos, uma vez que tal responsabilidade era da herança, pois esta é que tinha sido sócia da sociedade. Era sobre a herança que recaía, pois, nos termos do citado normativo, a responsabilidade pelo pagamento dos créditos que a autora detinha sobre a sociedade, embora essa responsabilidade fosse limitada ao montante que eventualmente tivesse recebido na partilha dos bens da sociedade.

Tal não significa, porém, que os recorrentes não possam ser responsáveis pelas dívidas da sociedade extinta, na qualidade de herdeiros do titular da quota, o falecido Dr. GG, pois tem de entender-se, nos termos do art.º 2056.º do Código Civil, que os recorrentes, ao terem lavrado a escritura de habilitação de herdeiros e ao terem decidido, nessa qualidade, dissolver e extinguir a sociedade, aceitaram a herança do aludido sócio, passando, por isso, a ser responsáveis pelas dívidas da herança, nos termos do art.º 2071.º do C.C., embora essa responsabilidade, no que toca às dívidas da sociedade, seja limitada ao montante que a herança do falecido Dr. GG, tivesse recebido na partilha da sociedade.

Todavia, para fazer accionar aquela responsabilidade, era necessário que se tivesse provado que a sociedade tinha bens e que, em consequência da sua dissolução e extinção, esses bens, ou alguns desses bens, tinham revertido para a herança do Dr. GG e que esta herança tinha sido já partilhada pelos recorrentes, sendo que o ónus de alegação e prova destes factos recaía sobre a autora, nos termos do disposto no art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil.

Ora, como dos factos provados se constata, essa prova não foi feita, sucedendo, até, que os factos em questão nem sequer foram alegados pela autora, o que inteiramente se compreende, uma vez que a tese por ela sustentada, na acção, foi a de que a sua entidade empregadora sempre tinha sido o Dr. GG e não a sociedade “FF – Serviços Médicos, Sociedade Unipessoal L.da”.

Provou, é certo, que, à data da morte do Dr. GG, a sociedade possuía um veículo de marca Suzuki, bem como parte dos equipamentos e stock do consultório e que esses bens foram alienados pelos recorrentes (facto n.º 28), mas não se provou que o produto dessa alienação tivesse revertido em favor da herança do falecido.

E, sendo assim, torna-se evidente que os recorrentes não podiam ser condenados a pagar à autora a quantia de € 19.815,74 de que era credora da sociedade. E mesmo que se interprete o segmento decisório com o sentido de que a responsabilidade dos recorrentes é restrita ao montante que eles, “porventura, hajam recebido em partilha”, como inequivocamente decorre da fundamentação do acórdão recorrido, a verdade é que, mesmo assim, tal condenação não podia subsistir, por se tratar de uma condenação condicional que a lei adjectiva não admite.

4. Decisão
Nos termos expostos, decide-se julgar procedente o recurso e, consequentemente, revogar a decisão recorrida e absolver os recorrentes do pedido.
Custas, nas instâncias e no Supremo, a cargo da autora, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.

LISBOA, 7 de Maio de 2009


Sousa Peixoto (relator)
Sousa Grandão
Pinto Hespanhol