Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
167/07.7PBSNT. L1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: ARMINDO MONTEIRO
Descritores: IMPARCIALIDADE
INCIDENTES
DEVER DE VIGILÂNCIA
ANIMAL
RESPONSABILIDADE CIVIL EMERGENTE DE CRIME
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
PRESUNÇÕES
DANO MORTE
EQUIDADE
Data do Acordão: 05/24/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário : I -A imparcialidade do juiz, e de acordo com a jurisprudência do TEDH, é tanto a subjectiva, em que importa indagar se o juiz, no processo, deu mostras de um interesse pessoal no destino a dar à causa ou evidenciou preconceito, devendo, em princípio, presumir-se a sua isenção e rigor processual. Ao lado dessa modalidade coloca-se a objectiva que se propõe apurar se o comportamento do juiz, à luz do cidadão comum, pode exercitar a suspeita por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua seriedade na condução do processo.

II - O juiz decisor da matéria de facto é, na verdade, o mais importante narrador no processo; ele estabelece qual dentre as diversas narrativas dos factos é relativamente “melhor”, escolhendo uma delas ou outra original, se estiver convencido de que nenhuma lhe serve, e essa narrativa, no dizer de J. Hunter, Battling a Goog Story, 2007, pág. 272, citado por Michelle Tarufo, Narrativas Processuais, “Julgar”, n.º 13, Janeiro - Abril, 2011, pág. 131, comunga das seguintes características: é um acto locutório assertivo, neutral e não de uma parte; o juiz não tem ou não deve ter qualquer objectivo pessoal a prosseguir a não ser a descoberta da verdade. Ele não tem qualquer particular interesse pessoal a realizar ou pessoas a tutelar; a sua narração deve ser destacada da das partes; ele deve assumir-se numa posição de alteridade, de alienidade, para se dedicar em exclusivo a erigir uma narrativa verdadeira porque assente em provas elas verdadeiras.

III - A parcialidade do juiz ou suspeita dela, funda o motivo para incidente de recusa, nos termos do art. 43.º do CPP, mas não gera a nulidade da sentença, porque a imparcialidade atenta contra a ética de julgar e uma das qualidades que devem ornar o julgador e de que deve prezar-se a cada passo.

IV - O cão de raça rottweiller está rotulado na lista dos que se refere a al. b) do art. 2.º do DL 312/2003, de 17-12 e o anexo da Portaria 422/2004, de 24-04, de particularmente perigoso, ao proceder-se à distinção entre animais perigosos e potencialmente perigosos, dentre os animais de companhia.

V - Animal potencialmente perigoso é qualquer animal que, devido às características da espécie, comportamento agressivo, tamanho ou potência de mandíbula, possa causar lesão ou morte a pessoas ou outros animais, nomeadamente os cães pertencentes às raças que venham a ser incluídas em portaria, bem como os cruzamentos de primeira geração destas, os cruzamentos destas entre si ou cruzamentos destas com outras raças, obtendo assim uma tipologia semelhante a algumas das raças ali referidas.

VII - O detentor de um animal particularmente perigoso tem o dever especial de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e animais; a sua circulação não é livre na via pública ou em lugares públicos, devendo sempre ser conduzido por detentor maior de 16 anos, com meios de contenção adequados impeditivos de comer ou morder e, devidamente seguro com trela curta, até 1 m de comprimento e presa ao peito ou coleira.

VIII - A responsabilidade civil enxertada na acção penal, baseada em danos causados por animais tem por fundamento, desde logo, o preceituado no art. 493.º, n.º 1, do CC, que lança sobre o encarregado da vigilância de quaisquer animais, uma presunção de culpa, só ilidível pela prova de que nenhuma culpa houve da parte do agente ou que os danos sempre se teriam igualmente produzido ainda que houvesse culpa sua.

IX - Este normativo se situa no domínio da responsabilidade civil por facto ilícito, em sede de presunção de culpa, abrangendo ainda os que assumiram o encargo de vigilância, como o depositário, o tratador, o mandatário, o que experimenta o animal, o guardador. Por sua vez, o art. 502.º do CC, que regula a responsabilidade pelo risco é aplicável aos que utilizam o animal no seu próprio interesse, como o proprietário, o possuidor, o locatário, o comodatário estabelecendo um caso nítido de responsabilidade objectiva, abstraindo da culpa.

X - E quanto a estas últimas pessoas, escreve o Prof. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, pág. 526, é inteiramente pertinente a ideia de risco, pois quem retira proveito dos animais, como seres irracionais que são, quase sempre uma fonte de perigos, deve, pois, suportar a consequência do risco especial que acarreta a sua utilização; é a afirmação da prevalência da teoria do risco sobre a doutrina clássica da culpa.

XI - A presunção natural ou “hominis“ arranca das regras da experiência, daquilo que é normal acontecer na maior parte dos casos e por meio delas o juiz prevalece-se de um facto conhecido, o indício, e conclui um desconhecido; Essa inferência, citando o Ac. do STJ proferido no Proc. n.º 936/08 - 3.ª , permite a afirmação de que uma certa categoria de factos é, normalmente, acompanhada de outros, de certo tipo e categoria, o estabelecimento de um leque de factos em relação directa com outros.

XII - Essa inferência não é uma inabalável certeza, mas uma probabilidade forte; as regras da experiência são, no dizer do Prof. Castanheira Neves, “critérios generalizantes e tipificados de inferência factual”, “índices corrigíveis, critérios que definem conexões de relevância, orientam os caminhos de investigação e oferecem probabilidades conclusivas, mas apenas isso” – cf. Sumários de Processo Penal, 1967-1968, Princípios Fundamentais do Direito Processual Criminal, págs. 42 e ss..

XIII - As presunções repousam em indícios conhecidos para firmarem um facto desconhecido, desde que esses indícios sejam firmes, seguros, certos e convergentes ou concordantes, no sentido de se direccionarem no mesmo sentido.

XIV - E a prova indiciária é um meio de prova como outro, mais segura, por vezes, do que o testemunhal que se ancora na percepção sensorial, que pode ser deformada voluntariamente ou por défice de apreensão, enquanto que a prova indiciária parte de um processo lógico e dedutivo, de um facto ou conjunto de factos certos, para firmar outros ainda compreendidos e harmonizados com tal metodologia.

XV - O rottweiller é uma das raças caninas das mais antigas, remontando aos romanos onde era cão de guarda e de manadas de bois. Emigraram com as legiões romanas guardando os homens, prisioneiros e tocando os rebanhos, atenta a dificuldade em atravessar as regiões alpinas, continuando aquela função de cão de guarda de grandes animais e património dos seus donos, recebendo o nome em homenagem a antiga cidade de Rottweil (cidade vermelha), onde restou como resquício da ocupação romana.

XVI - Mais tarde, (1910) o 3 tornou-se um cão policial, usado pela forças alemãs, agindo com força, coragem, nervos firmes, grande esperteza, extremamente inteligente (9.º lugar entre os mais inteligentes), obedecendo em 95 % ao dono, amigo das crianças e do dono, com uma força de cerca de 200 kg por mandíbula. Mas, em meio exterior, fora de controle pelo dono, é potencialmente perigoso.

XVII - Uma matilha de cães, à solta, particularmente da raça rottweiler, sem açaime, esfaimados, são naturalmente, uma fonte de previsível perturbação e agressividade, para a pessoa e bens de terceiros, à luz das regras da experiência comum, ou seja de acordo com aquilo que é usual suceder, em termos de um juízo de normalidade, de prognose normal, típica.

XVIII - No caso, quer o recorrente, quer a sua mulher, detentores e proprietários dos canídeos, não podiam ignorar esta realidade, de todos conhecida, que não escapa ao homem médio, que lhe associa consequências típicas, por efeito directo e necessário da sua circulação sem controle, que, pela sua frequência, levou o legislador a intervir, estabelecendo, ainda, e complementarmente às já mencionadas, a obrigatoriedade de seguro de qualquer animal perigoso ou potencialmente perigoso, (art. 13.º do DL 312/2003) e impondo medidas de segurança reforçadas, relativamente aos seus alojamentos, não podendo permitir a sua fuga, por forma a acautelar de forma eficaz a segurança das pessoas, outros animais e bens.

XIX - Age com negligência, o arguido que detendo 4 canídeos rottweiller, apenas dispunha de seguro e licença camarária relativamente ao cão de nome “Átila”, e não curou de os manter fechados no canil que construiu para o efeito, antes os deixou à solta, em liberdade, pela parte vedada da sua propriedade por um muro em tijolo e rede metálica, em malha, com dois metros de altura, de estrutura pouco forte, sem resistência, por onde os animais lograram sair, no dia 20-03-2007, entre as 13 e as 20 h, devido ao mau estado da rede de arame, que se achava laça, no ponto de junção com o tubo vertical que a sustentava, a acrescer à sua natural fragilidade.

XX - Ainda que o recorrente tenha diligenciado pela localização dos canídeos nas imediações da sua propriedade, sem que tivesse comunicado à autoridade o seu desaparecimento, o resultado letal está causalmente ligado com uma omissão do dever de cuidado, imposto por normas jurídicas atinentes à posse de tais canídeos e por normas não jurídicas, prudenciais e usuais, visando a evitabilidade do resultado material (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, pág. 111), dever capaz de ser cumprido pelo recorrente e esposa, bastando para o efeito que, se não quisessem manter os canídeos presos no canil, dotassem a rede da resistência bastante para suster os animais no espaço vedado, fiscalizando o estado daquela rede, o que lhe era imposto pelas concretas circunstâncias do caso, face à perigosidade legalmente afirmada dos canídeos e às consequências que da sua fuga para o exterior poderiam derivar para as pessoas, bens e animais de terceiros, que lhe incumbiam prevenir, o que não sucedeu, vindo a vítima a sucumbir ao ataque conjunto, brutal e feroz de tais animais, que a esfacelaram, mordendo-a, em várias zonas corporais, dilacerando-lhe o corpo, com a morte por efeito directo.

XXI - A previsibilidade objectiva de realização do tipo de ilícito, enquanto configurando um crime cometido com negligência, exige que um homem comum, normalmente consciente e cuidadoso, (mas pertencente à mesma categoria, hoc sensu, do agente – cf. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, Comares, Granada, 1999, pág. 533) colocado na situação do agente, se tivesse podido aperceber do perigo de violação do bem jurídico pela conduta adoptada por este.

XXII - O dano da morte é o prejuízo supremo, que absorve todos os outros prejuízos não patrimoniais, pelo que o montante da sua indemnização deve ser superior à soma de todos os outros danos imagináveis, afirmação que, em nosso ver, conhece limitações nos casos em que o dano é a expressão de um estado de falência total da qualidade de vida, se protela por longo período, afectando não só a vítima mas a condição dos que com ela privam.

XXIII - Toda a indemnização visa remover o dano real à custa do lesante, restituindo-o à situação em que se acharia se não fosse a lesão, mas o princípio sofre limitações no âmbito dos direitos não patrimoniais, em que não estão em causa danos mensuráveis, quantitativamente determinados e exactos, por isso que o legislador faz intervir como critério orientador a equidade.

XXIV - Os interesses cuja lesão um dano patrimonial, como são os da supressão do direito à vida, os derivados do sofrimento advindo à vítima antes da morte, em nexo causal com o facto ou os desgostos que, a terceiros, com ela conviviam, por força de um vínculo legalmente pré-definido, são infungíveis, não podendo ser reintegrados mesmo por equivalente, mas à possível compensá-los com dinheiro dada a aptidão do dinheiro para realizar uma vasta gama de interesses, doutrina o Prof. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, pág. 86.

XXV - Por isso a compensação por danos não patrimoniais há-de partir de uma ponderação prudencial casuística, atravessada pelo bom senso, pela justa medida das coisas, situando-se o julgador dentro de uma margem de liberdade que não ceda nem a uma sensibilidade embotada ou a uma hipersensibilização, sempre sem desprezar os critérios jurisprudenciais que realizam a dinâmica do direito, numa visão actualista, e sem pôr em causa a segurança do direito e a critérios de igualdade. Nessa avaliação do pressuposto substancial da gravidade do dano, para os fins de indemnização, nos termos do 496.º, n.º 1, do CC, se traduz a equidade (cf. Prof. Antunes Varela, op. cit . pág. 486 e nota 3).

XXVI - Ocupando o topo da pirâmide dos direitos fundamentais, do qual derivam, deve abandonar-se um critério miserabilista, numa visão moderna e actualista (cf. Acs. deste STJ, de 06-02-96 e 23-04-98, BMJ, 454, pág. 695 e CJSTJ, II, Ano VI, 98, pág. 51) assumindo-se um que corresponda ao valor da vida posto em ênfase nos areópagos internacionais, ao valor que lhe é dedicado num Estado de direito, prestigiando-o por atribuição de adequada importância monetária ajustada a compensar o desgosto da sua supressão, pelo prazer que o dinheiro proporciona, de algum modo atenuando o sofrimento, além de que se não pode deixar de ter presente que a indemnização por facto ilícito se propõe sancionar no plano civilístico o facto, funcionando como uma sanção adicional, prevenindo e reprovando factos similares.

XXVII - O STJ tem vindo a ressarcir o dano da morte, necessariamente centrando-se nas circunstâncias do caso concreto, já que a vida na expressão lapidar de um dos seus Juízes, “não tem preço fixo” ideação de que o Ac. do STJ de 17-12-2009, Revista n.º 340/03.7PPNH.C1.S1 - 7.ª fez eco, citado no ainda mais recente Ac. do STJ, proferido no Proc. n.º 277/01.4PAPTS. L1.S1.

XXVIII - Fundando-se a indemnização na mera culpa, nos termos do art. 494.º do CC, pode o tribunal, em pura equidade, fixar indemnização em montante inferior aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a sua condição económica e a do lesado e as demais circunstâncias do caso a justifiquem, preceito este ditado por um exasperado princípio de proporcionalidade em ordem a evitar que um facto lesivo, em que a culpa do lesante é mínima, quase axiologicamente neutra, todavia os danos são avultados, usufruindo o lesado de uma boa condição económica, contrastante com a do lesante, caso em que se impõe aquela redução substancial. No caso concreto, estes parâmetros são em absoluto, de excluir porque a culpa do recorrente não pode reputar-se diminuta, levíssima, na distinção que o direito romano fazia entre culpa lata, leve e levíssima.

XXIX - Quanto à compensação pelo sofrimento antes da morte da vítima, hierarquizando, é certo, o grau de lesividade, situada num patamar ainda inferior ao do dano da própria morte, analisando todo o processo que a antecedeu, a coberto de um pânico indescritível, de uma violência sem limite, de uma angústia enorme, quadro necessariamente vivido por alguém que é atacado por quatro cães esfaimados, que o põem ao chão, o mordem no corpo e o pisam, o desnudam quase totalmente, numa situação de absoluta indefesa, apercebendo-se, pois, da sua morte, no meio de evidente, por notório e enorme, sofrimento, sentindo enquanto esteve consciente dores horríveis, como se deu como provado, esse dano próprio compensado com o quantum achado de € 30 000, é ajustado e não merece reparo, sobretudo se se analisa que a morte não foi imediata, desde o ataque até ao desenlace fatal, apercebendo-se a vítima, paulatinamente, do fim da sua vida, num clima extremamente doloroso, de atroz sofrimento.

XXX - Ao lado dos desgostos que a morte causa, deverá ponderar-se, ainda, no plano afectivo, a “falta” – cf. Prof. Antunes Varela, Obrigações em Geral, pág 494 – que causa ao familiar sobrevivo. No caso dos autos, o demandante sofreu com a morte da esposa, com quem viveu cerca de 7 anos em união de facto e 17 meses e 27 dias, após o seu casamento, relevando que a vítima apoiava o demandante, acompanhava-o, fazia-lhe as refeições e era o seu suporte emocional, tratando-se de um dano cuja, indiscutível gravidade merece a tutela do direito.
Decisão Texto Integral: Rec.º n.º  167/07.7PBSNT. L1.S1


Acordam em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça :

Em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, foi pronunciado o arguido AA, no 1.º Juízo da Comarca da Grande Lisboa –......... , .........   e a final condenado  como autor de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão ,que se suspendeu na sua  execução  pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses.
Mais foi condenado  como autor de três contra-ordenações p. e p. pelos arts. 17.º n.º 1, als. a), b) e d) do Decreto-Lei n.º 312/2003, de 17 de Dezembro de 2003, com referência ao disposto nos arts. 1.º n.º 1), 2.º, als. b) e d), 3.º, 6.º, 7.º, 8.º e 13.º do mesmo diploma legal (falta de licença; falta de seguro e falta de condições de segurança), na coima de € 1.000,00 (mil euros), por cada infracção.
 Em cúmulo jurídico foi  o arguido  condenado na coima única do montante de € 1.700,00 (mil e setecentos euros).

Decidiu-se, ainda :

1. Julgar parcialmente procedente o pedido cível deduzido pelo demandante BB e, consequentemente: 

a) Condenar-se os demandados “Companhia de Seguros NN, S.A.”, AA e sua mulher, CC, no pagamento solidário ao demandante da quantia de € 125.000,00 (cento e vinte e cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, sendo a co-responsabilidade da “Companhia de Seguros NN, S.A.” limitada a € 50.000,00 (cinquenta mil euros).
b) A quantia atribuída na alínea a), referentes a danos não patrimoniais, vence juros desde a data da prolação da presente sentença, até efectivo e integral pagamento.

I . Inconformados com a teor da decisão interpuseram recurso para a Relação o arguido e a seguradora , concedendo-lhes parcial provimento , alterando o montante indemnizatório para 30.000€ no que concerne ao dano não patrimonial sofrido pela vítima  no período que antecedeu a sua morte , mas , no mais , mantendo o decidido em 1.ª instância .


II . O arguido demandado interpôs recurso para este STJ,  concluindo que :

Não foi respeitado o espírito consagrado na Lei n.º 21/2000 , de 10de Agosto ,alterado pelo Dec.º -Lei n.º 305/2002 , de 13 de Dezembro ou seja  o princípio da competência reservada à PJ ,questão suscitada à Relação sobre que se não pronunciou , como suscitou a  violação do princípio da imparcialidade , a partir do facto de , em julgamento , a Sr.ª Juiz ter tecido  inoportunos  comentários , denotando total imparcialidade (?) em prejuízo do recorrente –cfr. Tempos de 14 a 16 m , declarações de DD , 02m23 a 03m13 e de 5m5 , de EE , de 9m20 a 10m15 e 11h14 a 11h15 , de FF e de 7m16 a 7m20 de GG .

Se os cães se evadiram da sua propriedade antes das 20 h do dia 20/3/2007 , não foi por culpa sua , sendo certo que procedeu à localização para captura , à ajuda de amigos , sendo certo que  um cidadão informou a PSP, mas  esta nada fez.

Se os cães  foram vistos junto a um corpo que jazia na estrada  apresentando-se um deles com uma mancha de sangue no focinho , se o corpo foi arrastado mais de 25 m , suscitam-se dúvidas sobre a morte da vítima , tanto mais que a morte da vítima  foi provocada por shock traumático,  importava fazer a autópsia aos cães para provar que comeram  a vítima .
Além disso o estômago da vítima estava vazio.    
Não inexiste sustentação científica  de que a vítima  sofreu dores durante 40 minutos .
Não é de excluir repartição de culpas pois não é de excluir que a vítima tenha transmitido sinal erroneamente interpretado pela  matilha .
A negligência com que actuou , deve dizer –se , à cautela , é inconsciente , pois jamais representou a possibilidade de fuga dos animais e menos consequência dessa evasão , ou que se evadissem ou alguém facilitasse a fuga .

O tribunal não teve em conta , para além do grau de culpabilidade do agente , a sua condição económica e a do lesado , bem como aos padrões usados na jurisprudência .

Os lesantes têm casa própria , a  que falta todo o interior , construída com a ajuda de amigos e familiares .

Os rendimentos seus  são os averbados na sentença .

A evasão deu-se em circunstâncias desconhecidas  e por mais cuidados que tivesse se terceiros concorreram para a fuga  , a sua culpa é levíssima .

A idade do lesado é uma circunstância a ter em conta na fixação do montante indemnizatório ou compensatório bem como a é não só a situação económica dos beneficiários como a sua  idade .
Assim verifica-se que o viúvo vivendo só com qualquer valor indemnizatório  não irá prover à sua vida na normalidade, tanto mais que , segundo alguns testemunhos , “ se  quando  estava casado não trabalhava todos os dias era devido ao seu problema de alcoolismo”   , não se perspectivando melhoras .

As vidas dos demandados , bem como do seu agregado familiar sofreriam forte revés uma vez que não possuem valores monetários ou patrimoniais de que terão de se desfazer , passando a viver em condições miseráveis . tanto mais que possuem duas crianças de tenra idade .

A perda do direito à vida deve ser fixada em 25.000 € .
A indemnização pelo dano moral  sofrido pela vítima ,  entre a agressão e a sua morte entende-se como justo e equitativo , mediando minutos , e a idade da vítima entende-se ser de estimar em 10.000 € .

A compensação pela perda do cônjuge , atendendo ao facto de terem vivido casados , 1 ano e 2 meses , a idade do lesado  e vítima e ausência constante desta em razão do trabalho , não deve exceder 5.000 €

Foi violada a Lei n.º 21/2000 , de 10/8 , o Dec.º Lei n.º 305/2002 , de 13/12 , o 10.º da DUDHC , n.º 1 , do art.º 6.º , da CEDH c) , art.º 379.º n.º 1 , do CPP e 494.º n.º 3 e  496.º , do CC.

Devem ser anulados  os presentes autos , ou , não se entendendo assim , reduzir-se o montante indemnizatório , considerando o seu grau de culpa , situação económica , a doutrina e a jurisprudência .           
 
III . Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:

1. O arguido AA era proprietário de uma família de 4 canídeos de raça rottweiller (progenitores e duas filhas), a saber: - HH (macho), nascido em ....-....-.......; - II (fêmea), nascida em ..... de .......; JJ (fêmea), nascida em ..... de .......; - KK (fêmea), nascida em ..... de ........

2. Destes, somente o canídeo HH tinha licença (n.º ..., registo n.º ....., válida de ....-....-....... a ....-....-.......), passada pela Junta de Freguesia de .............. em ....-....-........

3. Relativamente ao mesmo canídeo contratou o arguido AA um seguro de responsabilidade civil com a Companhia de Seguros NN, com o número ................, titulado pela apólice n.º......................, de vencimento anual, e em vigor por altura dos factos, em ....-....-....... (....-....-....... a ....-....-.......).

4. O arguido não licenciou nem segurou os restantes três canídeos que tinha à sua guarda e dos quais era proprietário.

5. Apesar de ter construído um canil totalmente vedado com rede metálica, destinado aos canídeos em causa, o arguido só muito raramente os prendia nesse espaço uma vez que eram dóceis e de trato fácil, quer com os elementos do seu agregado familiar, quer com terceiros.

6. Por esse motivo circulavam os canídeos dia e noite à vontade pela parte vedada do terreno do arguido, numa extensão de cerca de 3 mil metros dos 10 mil que integram a sua área total.

7. Essa parte da propriedade era vedada por muro em tijolo e rede metálica, em malha de arame, com cerca de 2 metros de altura, porém, de estrutura pouco resistente, devido ao seu reduzido diâmetro.

8. No dia .... de .......... de ......., a hora não apurada, mas situada entre as 13h00 e as 20h00, tendo, mais uma vez sido deixados à solta na parte vedada da propriedade, os quatro canídeos lograram daí evadir-se pela parte da vedação situada junto ao canil.

9. O que conseguiram devido ao mau estado que a rede de arame apresentava nesse local, que se encontrava laça no ponto de junção com o tubo vertical que a sustentava, a acrescer à sua fragilidade natural.

10. Pelas 20 horas do supra citado dia, logo que conhecida a fuga dos quatro canídeos, partiu o arguido em sua busca pelas imediações da propriedade, até cerca da 1 hora da madrugada do dia seguinte, sem qualquer resultado.

11. Apesar disso não alertou a autoridade policial, confiando que os canídeos regressariam à propriedade, tal como anteriormente haviam feito, pelo menos por uma vez.

12. No dia seguinte, apesar de ter constatado que os mesmos ainda não haviam regressado, não avisou a Autoridade.

13. Após a sua fuga deambularam os quatro canídeos a noite inteira pela mata situada nas imediações da propriedade do arguido, de onde se evadiram.

14. Entre as 6h50 e as 7h00 do dia .... de .......... de ......., já famintos, uma vez que tinham sido alimentados no início da manhã do dia anterior, os 4 canídeos surpreenderam LL que caminhava pela Rua ................, Casal da ......... (caminho isolado de terra batido), em direcção à .......... de .........., oriunda da Rua dos .................

15. Em circunstâncias não concretamente apuradas, adoptando um comportamento de matilha, atacaram LL, a quem deitaram ao chão e com os patas e dentes despojaram-na de toda a sua indumentária, com excepção das cuecas, esfacelando-a e mordendo-a a nível de toda a extensão corporal.

16. Em consequência directa e necessária do ataque dos canídeos LL sofreu na cabeça ferida com escalpe do couro cabeludo, nas regiões frontal, parietais e occipital, escoriações nas regiões frontal, dorso do nariz e regiões malares; no tronco escoriações em toda a face anterior do tórax e do abdómen, lineares confluentes nos quadrantes superiores da mama direita e na metade direita do abdómen, escoriações em toda a face dorsal do tronco e feridas nas regiões lombar e glúteas; nos membros superiores feridas com esfacelo dos tecidos moles dos braços e antebraços, feridas no dorso e na e na face palmar das mãos; nos membros inferiores feridas com esfacelo dos tecidos moles do terço médio da coxa esquerda, das pernas e dos tornozelos; escoriações “modeladas” de mordedura na face externa da coxa direita, na face externa da coxa esquerda e na face interna da perna esquerda, feridas no dorso e na face plantar dos pés.

 17. As descritas lesões foram causa directa e necessária da morte de LL, por “shock” consecutivo às graves lesões traumáticas dos membros superiores e inferiores.

18. O arguido ao deixar os seus cães à solta e devido à fragilidade da rede não podia deixar de prever que eles pudessem sair para o exterior da área vedada, não tendo previsto contudo a possibilidade de os seus cães atacarem mortalmente qualquer pessoa.

19. O arguido não agiu, assim, com o cuidado que se lhe impunha e de que estava ao seu alcance.

20. O arguido AA, enquanto proprietário e detentor dos canídeos estava especialmente obrigado a vigiá-los de forma a garantir que não se evadissem do recinto onde se encontravam, pois só assim acautelaria a segurança de terceiros e seus bens.

21. Para tanto, deveria tê-los mantido presos no canil fechado que edificou para o efeito, e zelar pela manutenção da vedação metálica, em rede de arame, em condições de segurança apropriada e eficaz, bem como diligenciar pela utilização de uma rede mais resistente na vedação que limitava o espaço fechado onde habitualmente os deixava à solta de forma a impedir a sua fuga, dever este que também especialmente lhe competia.

22. Ao não cumprir tais cuidados, a que se encontrava legalmente obrigado e que conhecia, viabilizou a evasão dos canídeos em questão para a via pública, o que deu causa ao ataque e morte de LL.

23. Agiu o arguido, nesta parte, de forma livre e consciente e, apesar de estar ciente das obrigações que lhe competiam, por imperativo legal, atendendo à qualidade de proprietário e detentor dos 4 canídeos de raça legalmente classificada como ‘’perigosa”, não lhes deu cumprimento.

24. Estava o arguido igualmente obrigado, por imperativo legal, a licenciar e a contratar seguro de responsabilidade civil para os outros três canídeos, obrigação legal essa que conhecia, tendo em conta a espécie e raça em questão, legalmente classificada como “perigosa”, nos termos da legislação vigente, o que não fez.

25. Agiu, nesta parte, de forma livre, voluntária e consciente, sabendo ser a sua conduta proibida por lei.
26. O arguido não averba qualquer condenação no seu Certificado de Registo Criminal.
27. Vive com a sua mulher e duas filhas menores de idade. Trabalha para o seu pai, o qual tem um negócio de venda de madeiras e aufere montante não apurado. Recebe subsídio de desemprego no montante de € 200,00 mensais da profissão que exercia como bate-chapas. A mulher, CC, exerce a profissão de contabilista e aufere mensalmente cerca de € 900,00 mensais. O casal reside em casa própria.
28. Tem como habilitações literárias nove anos de escolaridade.

Do pedido de indemnização civil:

29. Os quatro canídeos eram propriedade do arguido e de sua mulher, CC, e ambos sabiam que com estes cães tinham que ter cuidados especiais.

30. Quando CC, mulher do arguido, tomou conhecimento do desaparecimento dos seus 4 canídeos de raça Rottweiller, também não avisou as autoridades ou pediu qualquer apoio com competência para levar a efeito a recolha dos 4 cães.

31. CC podia ter agido de outro modo, com o cuidado exigível a uma proprietária de quatro rottweillers.

32. BB era casado com LL.

33. BB e LL, antes da celebração do seu casamento, em 23.01,2006, viveram cerca de 7 anos em união de facto.

34. O marido de LL nasceu em 10.10.1959 e com 50 anos de idade, é o único herdeiro desta, que não tinha pais, nem tinha filhos.

35. LL tinha 59 anos de idade, era dinâmica e activa e muito trabalhadora.

36. LL saía de casa todos os dias cerca da 7 horas da manhã, para entrar no trabalho às 8 horas da manhã, na empresa “MM, Lda.”, situada na ........., onde auferia mensalmente a quantia líquida de € 473,62.

37. Ocasionalmente, quando terminava o dia de trabalho na “MM”, LL prestava serviço doméstico em casa de duas senhoras, trabalhando até cerca das 21 horas, chegando a casa cerca das 22horas e deste trabalho auferia montante que não se logrou apurar.

38. Ocasionalmente LL trabalhava aos Sábados, durante todo o dia, efectuando limpezas e auferindo por esse trabalho montante que não se logrou apurar.

39. O Demandante exerce a profissão de pedreiro e as quantias que recebia entregava-as à mulher, dado que era esta que geria a casa.

40. A falecida era uma pessoa bem disposta, trabalhadora, possuindo alegria de viver aquando da sua morte.

41. LL era uma mulher forte, saudável, dinâmica, activa, trabalhadora, e sem qualquer aparente deformidade ou aleijão.

42. No campo familiar vivia harmonicamente com o seu marido.

43. Após ser atacada pelos canídeos LL esteve ainda com vida pelo menos durante 40 minutos.

44. A percepção da sua morte inevitável e o sentimento de impotência para a evitar, causou a LL momentos de sofrimento atroz.

45. Em consequência directa e necessária de ser atacada e mordida pelos canídeos LL enquanto permaneceu consciente padeceu enorme sofrimento físico, dores horríveis ("comida viva").

46. O marido de LL sofreu com a sua morte.

47. O demandante tinha carinho pela sua mulher.

48. LL apoiava o marido, acompanhava-o, fazia-lhe as refeições e era o seu suporte emocional.

49. Os 4 canídeos participaram na morte de LL.

50. O canídeo "HH" era o cão macho, progenitor, maior, de maior porte e mais agressivo, tendo sido o que mais participou activamente na morte de LL.

51. Através do seu comportamento mais agressivo e de “lider” da matilha, o cão “HH” contribuiu em 50% para o resultado morte de LL.

52. O demandante exerce a profissão de pedreiro e à data dos factos auferia € 50,00 por cada dia de trabalho.

53. Presentemente o demandante trabalha como pedreiro e aufere € 40,00 por dia.

54. O cão rottweiler de nome “HH”, estava seguro pela “Companhia de Seguros NN, SA”, através da apólice ............, sendo o capital seguro de € 50.000,00, havendo uma franquia de 10% sobre o valor do sinistro, no mínimo de € 50,00 e no máximo de € 1.250,00, da responsabilidade do segurado.


***

 Factos não provados:

1. LL realizava habitualmente horas extraordinárias na empresa MM, Lda., situada na ..........

2. Quando saia do MM, LL prestava sempre serviço doméstico em casa de duas senhoras, trabalhando sempre até às 21 horas, chegando a casa cerca das 22horas e deste trabalho auferia mensalmente cerca de € 220,00.

3. LL trabalhava todos os Sábados, durante todo o dia, a fazer limpeza auferindo por esse trabalho quantia não inferior a € 180,00 por mês.

4. O Demandante enquanto pedreiro apenas recebia, cerca de € 450,00 mensais e amealhava algumas economias numa conta sua e de LL.

5. LL levava para a economia familiar montante significativamente superior ao marido.

6. LL possuía um vínculo laboral estável.

7. Com a morte prematura da sua mulher, o demandante perdeu o gosto pela vida e perdeu a maior parte dos amigos.

8. Foi devido ao desgosto, desmotivação, acompanhamento constante das imagens da morte da sua companheira de mais de 9 anos e às dificuldades na área da construção que o demandante passou privações, vivendo mal e da ajuda alheia.

9. O demandante não tem qualquer trabalho.

10. Se LL não tivesse sido morta presentemente seria aquela a prestar alimentos ao demandante, proporcionando-lhe tudo o que lhe fosse indispensável ao sustento, habitação e vestuário.

11. O marido de LL amava-a.

12. LL lavava o marido e era o suporte económico do demandante.

13. Presentemente o demandante fica muitos dias profundamente perturbado do ponto de vista psicológico, não conseguindo obter explicação para a falta LL na sua vida.

14. É em consequência da morte de LL que o demandante passa muitos dias afastados de tudo e de todos.

***
             
IV . O recurso  interposto pelo demandado  é restrito à apreciação da  sua responsabilidade cível ,    e   , logo na primeiras conclusão   , o  recorrente AA   suscitou questão , à qual a Relação não dedicou espaço de reflexão ,  da nulidade   , por essa razão ,  da nulidade  do processo por violação do princípio da investigação , por   da competência da PJ e não da PSP ,  como sucedeu , a  investigação criminal , por isso   deficitária, por falta de aptidão , de conhecimentos técnicos e  científicos  dos seus  agentes , prejudicando  a obtenção de resultados materiais mais convincentes.

A competência da PJ  para a investigação criminal  é –lhe , em certos casos , expressamente reservada por via de lei , sem que ao M:º P.º seja retirado o poder de dirigir o inquérito , já que a  esse  órgão de polícia criminal , lhe incumbe assistir aquela autoridade judiciária , nos termos dos art.ºs 263 .º e 270 .º , do CPP .

A lei sobre a investigação criminal n.º 21/2000 , de 10/8 , na alteração trazida ao seu art.º 4.º a)  , pelo Dec.º-Lei n.º 305/2000 , de 13/12  (  diplomas revogados pela Lei n.º 49/2007 , de 27/8 ) , reservou competência à PJ para investigação do homicídio doloso e ofensas dolosas  à integridade física de  que venha a resultar a morte ,  pelo que indiciando-se , desde o primeiro momento do inquérito ,  a prática de uma conduta negligente, criminalmente punível, baseada na omissão do dever de vigilância   do dono dos animais , a competência investigatória estava  , legalmente , arredada  da PJ , atribuida quanto aos  crimes dolosos mencionados , pelo que a objecção da omissão de pronúncia , se é  exacta , é absolutamente inócua em termos de consequências jurídico- processuais .

E a caber a investigação criminal à PJ , em lugar da PSP , em usurpação de funções , sempre estaríamos em presença de uma nulidade processual , que , por não estar incluída no âmbito das nulidades insanáveis enumeradas no art.º 119.º, do CPP , se mostraria , de há muito sanada , nos termos do art.º 120.º n.º 1 e 3 c) , do CPP, além de que o M.º P.º , titular do exercício da acção penal  , conformando-se  com a investigação , terminaria por ratificar aquela intervenção . 

V. O recorrente invoca , ainda , a “ nulidade da sentença pela verificação da violação do princípio da imparcialidade “ , já que a Exm. ª Sr. ª Juiz teceu comentários em audiência de julgamento denotando que a mesma estava a decidir , imbuída de emotividade que , por ser contrária à razão , evidencia  uma tendência decisória  ; esses comentários eram despropositados e  desprestigiantes para o recorrente, afectando profundamente a a relação processual , implicando nulidade do processo ou da sentença .

A imparcialidade do juiz  , e de acordo com a jurisprudência do TEDH , é tanto a subjectiva ,em que importa indagar se o juiz , no processo , deu mostras de um interesse pessoal no destino a dar à causa ou evidenciou preconceito , devendo , em princípio , presumir-se a sua isenção e rigor processual  ; ao lado dessa modalidade coloca-se a objectiva que se propõe apurar se o comportamento do juiz , à luz do cidadão comum , pode ser risco de suspeita por existir motivo sério e grave , adequado a gerar desconfiança sobe a sua seriedade na condução do processo .

O juiz decisor da matéria de facto é , na verdade , o mais importante narrador no processo ; ele estabelece qual dentre as diversas narrativas dos factos é relativamente “ melhor “ , escolhendo  uma delas ou outra original , se estiver convencido de que nenhuma lhe serve , e essa narrativa , no dizer de J . Hunter , in Battling a Goog Story , 2007 , 272 , citado por Michelle Tarufo  , in Narrativas Processuais , artigo publicado na  “ Julgar “  ,  n.º 13 , Janeiro a Abril , 2011 , pág . 131 , comunga  das seguintes características : é um acto locutório assertivo , neutral  e não de uma parte ; o juiz não tem ou não deve ter qualquer objectivo pessoal a prosseguir a não ser a descoberta da verdade .

Ele não tem  qualquer particular interesse pessoal a realizar ou pessoas a tutelar ; a sua narração deve ser destacada da das partes ; ele deve assumir-se numa posição de alteridade , de alienidade  , para se dedicar em exclusivo a erigir uma narrativa verdadeira porque assente em  provas  elas verdadeiras .

A parcialidade do juiz ou suspeita dela funda motivo para  incidente de recusa , nos termos do art.º 43.º , do CPP , e não nulidade da sentença  , onde não está englobada , como , menos acertadamente , se defende e alega , alegação muito grave por banda do recorrente ,  para  com o julgador , porque  a imparcialidade atenta contra a ética de julgar e uma das qualidades que  devem ornar o julgador  e de que deve prezar-se a cada passo ,  alegação, aliás ,    sem qualquer consistência factual  , na conclusão n.º 2 , onde , de resto ,  se consigna que a M.ª juiz teceu comentários despiciendos,  mas  sem os concretizar .

E nem haveria lugar ao convite à integração dessa lacuna conclusiva  porque na motivação eles não figuram –art.º 417.º n.º 4 , do CPP . 

 O Tribunal da Relação,  que  lhe ordenou a apresentação de conclusões , ausentes na estruturação formal da   motivação de recurso , não se pronunciou sobre esta questão, que ,  por esvaziada de conteúdo factual , não repercute qualquer omissão relevante .

O recorrente isola o local onde figuram esses comentários despiciendos e indiciadores de parcialidade , por referência ao local das gravações de prova e a pessoas inquiridas , mas não vai além disso . 

Se , ainda , como diz , a M.ª Juiz teceu considerações desprestigiantes a seu respeito , inconsiderando a  sua pessoa , só lhe resta , por eventual  infracção ao dever de urbanidade, para com todos ,  comunicar à entidade que , sobre aquela , exerce poder disciplinar . E nada mais .

VI . Questiona , ainda , o montante indemnizatório atribuído  no acórdão condenatório da Relação , indemnização que tem por fonte a omissão do dever de vigilância que lhe incumbia, enquanto dono , com a mulher de  uma família de 4 canídeos de raça rottweiller (progenitores e duas filhas) , que tinham à sua guarda ,  somente o canídeo , macho , de nome  “  HH “  tendo licença (n.º ...., registo n.º ........, válida de ....-....-........ a ....-....-.........), passada pela Junta de Freguesia de ......... em ....-....-..........

Apesar de ter construído um canil totalmente vedado com rede metálica, destinado aos canídeos em causa, o arguido só muito raramente os prendia nesse espaço uma vez que eram dóceis e de trato fácil, quer com os elementos do seu agregado familiar, quer com terceiros.

Por esse motivo circulavam os canídeos dia e noite à vontade pela parte vedada do terreno do arguido, numa extensão de cerca de 3 mil metros , dos 10 mil que integram a sua área total.

Essa parte da propriedade era vedada por muro em tijolo e rede metálica, em malha de arame, com cerca de 2 metros de altura, porém, de estrutura pouco resistente, devido ao seu reduzido diâmetro.

No dia .... de ........... de........, a hora não apurada, mas situada entre as 13h00 e as 20h00, tendo, mais uma vez sido deixados à solta na parte vedada da propriedade, os quatro canídeos lograram daí evadir-se pela parte da vedação situada junto ao canil.

Devido ao mau estado que a rede de arame apresentava nesse local, que se encontrava laça no ponto de junção com o tubo vertical que a sustentava, a acrescer à sua fragilidade natural, conseguiram fugir.  

Pelas 20 horas do supra citado dia, logo que conhecida a fuga dos quatro canídeos, partiu o arguido em sua busca pelas imediações da propriedade, até cerca da 1 hora da madrugada do dia seguinte, sem qualquer resultado , mas  não alertou nesse dia e seguinte  a autoridade policial, confiando que os canídeos regressariam à propriedade, tal como anteriormente haviam feito, pelo menos por uma vez.

 Após a sua fuga deambularam os quatro canídeos a noite inteira pela mata situada nas imediações da propriedade do arguido, de onde se evadiram.

 Entre as 6h50 e as 7h00 do dia .... de .......... de ......, já famintos, uma vez que tinham sido alimentados no início da manhã do dia anterior, os 4 canídeos surpreenderam LL que caminhava pela Rua .................., Casal da .............. , por um caminho isolado de terra batida ,  em direcção à ......................., oriunda da Rua ......................

Em circunstâncias não concretamente apuradas, adoptando um comportamento de matilha, atacaram LL, a quem deitaram ao chão e com os patas e dentes despojaram-na de toda a sua indumentária, com excepção das cuecas, esfacelando-a e mordendo-a a nível de toda a extensão corporal.

Em consequência directa e necessária do ataque dos canídeos LL sofreu na cabeça ferida com escalpe do couro cabeludo, nas regiões frontal, parietais e occipital, escoriações nas regiões frontal, dorso do nariz e regiões malares; no tronco escoriações em toda a face anterior do tórax e do abdómen, lineares confluentes nos quadrantes superiores da mama direita e na metade direita do abdómen, escoriações em toda a face dorsal do tronco e feridas nas regiões lombar e glúteas; nos membros superiores feridas com esfacelo dos tecidos moles dos braços e antebraços, feridas no dorso e na e na face palmar das mãos; nos membros inferiores feridas com esfacelo dos tecidos moles do terço médio da coxa esquerda, das pernas e dos tornozelos; escoriações “modeladas” de mordedura na face externa da coxa direita, na face externa da coxa esquerda e na face interna da perna esquerda, feridas no dorso e na face plantar dos pés.

  As descritas lesões foram causa directa e necessária da morte de LL, por “shock” consecutivo às graves lesões traumáticas dos membros superiores e inferiores.

O cão de raça “ rottweiller ““está rotulado na lista  dos  que se refere a alínea b) do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 312/2003, de 17 de Dezembro e   o  anexo da Portaria n.º 422/2004,  de 24 de Abril  , de  particularmente perigoso, ao proceder-se  à distinção entre animais perigosos e potencialmente perigosos , dentre os   animais de companhia.
Animal potencialmente perigoso, para os fins do  citado art.º 2.º  , é  qualquer animal que, devido às características da espécie, comportamento agressivo, tamanho ou potência de mandíbula, possa causar lesão ou morte a pessoas ou outros animais, nomeadamente os cães pertencentes às raças que venham a ser incluídas em portaria do Ministro da Agricultura, Desenvolvimento Rural e Pescas, bem como os cruzamentos de primeira geração destas, os cruzamentos destas entre si ou cruzamentos destas com outras raças, obtendo assim uma tipologia semelhante a algumas das raças ali referidas.

O art.º 6.º,  do Dec.º -Lei n.º 312/2003,  impõe ao detentor do animal o dever especial de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e animais; a sua circulação  não é livre  na via pública ou em lugares públicos, devendo sempre ser conduzido por detentor maior de 16 anos, com meios de contenção adequados impeditivos  de comer  ou morder e,  devidamente seguro com trela   curta ,  até 1  m de comprimento  e presa ao peito ou coleira ( art.º 8.º n.ºs 1 e 2  ) .

VII . A responsabilidade civil enxertada na acção penal , que conduziu à condenação penal e contraordenacional do recorrente , baseada  em  danos causados por animais tem por fundamento , desde logo , o preceituado no art.º 493.º , n.º 1 , do CC , que lança sobre o encarregado da vigilância de quaisquer animais  ,   uma presunção de culpa , só ilidível pela prova de que nenhuma culpa houve da  sua parte ou que os danos sempre se teriam igualmente produzido ainda que houvesse culpa sua . 

Aplicável , ainda , o art.º 502 .º , do CC, preceito inscrito na sistemática do CC , atinente à responsabilidade pelo risco , enquanto o art.º 493.º, citado,  se situa no domínio da responsabilidade civil por facto ilícito , em sede de presunção de culpa , abrangendo aquele os que assumiram o encargo de vigilância , como o depositário , o tratador , o mandatário , o que experimenta o animal , o guardador ,  etc. ,  já o preceito do art.º 502 .º é aplicável aos que utilizam o animal no seu próprio interesse , como o proprietário , o possuidor , o locatário , o comodatário , etc . , estabelecendo um caso nítido de responsabilidade objectiva , abstraindo da culpa .

E quanto a estas  últimas pessoas , escreve o Prof. Antunes Varela , in Das Obrigações em Geral , I , pág.  526 , é inteiramente pertinente a ideia de risco , pois quem retira proveito dos animais , como seres irracionais que são , são quase sempre uma fonte de perigos , devendo , pois , suportar a consequência do risco especial que acarreta a sua utilização; é a afirmação da prevalência da teoria do risco  sobre a doutrina clássica da culpa .   

A presunção natural ou “ hominis “  arranca das regras da experiência , daquilo que é normal acontecer na maior parte dos casos  e por meio delas o juiz prevalece-se de um facto conhecido , o indício ,  e conclui um desconhecido ;essa inferência ,citando o AC. proferido no P.º n. º 936/08, de 7/4 , 3.ª Sec. ,  permite a afirmação de que uma certa categoria de factos é ,normalmente , acompanha de outros de certo tipo e categoria , o estabelecimento de um leque de factos em relação  directa com outros .

Essa inferência não é uma inabalável certeza, mas uma probabilidade forte ; as regras da experiência são , no dizer do Prof. Castanheira Neves , “ critérios generalizantes e tipificados de inferência factual “ , “ indices corrigíveis , critérios que definem conexões de relevância ,orientam os caminhos de investigação e oferecem probabilidades , conclusivas ,mas apenas isso . “ –Cfr. Sumários de Processo Penal , ,1967-1968 ,Princípios Fundamentais do Direito Processual Criminal ,págs . 42 e segs .

As presunções repousam em indícios conhecidos para firmarem um facto desconhecido , desde que esses indícios sejam firmes , seguros , certos e convergentes ou concordantes , no sentido de se direccionarem no mesmo sentido.

E a prova indiciária é um meio de prova como outro , mais segura, por vezes ,  do que o testemunhal  que se ancora na percepção sensorial , que pode ser deformada voluntariamente ou por défice  de apreensão , enquanto que a prova indiciária parte de um processo lógico –dedutivo , de um facto ou conjunto de factos certos , para firmar outros ainda compreendidos  e harmonizados com tal metodologia .      

VIII . O rottweiller o que é uma das raças das mais antigas , remontando aos romanos onde era cão de guarda e de manadas de bois , os quais emigraram com as legiões romanas guardando os homens , prisioneiros  e tocando os rebanhos , atenta a dificuldade em atravessar as regiões alpinas , continuando aquela função de cão de guarda de grandes animais e património dos seus donos,  recebendo  o nome em homenagem a antiga cidade de Rottweil ( cidade vermelha ) , onde restou como resquício da ocupação romana.  

  Mais tarde  ( 1910) tornou-se um cão policial ,usado pela forças alemãs como tal ,  agindo com força , coragem , nervos firmes , grande esperteza , extremamente inteligente  (  9.º lugar entre os mais inteligentes )   ,  obedecendo  em 95 % ao dono , amigo das crianças e do dono , com uma força de cerca de 200  kgs.  por mandíbula .  Mas , em meio exterior ,  fora de controle pelo dono ,  é potencialmente perigoso .  

Uma matilha de cães , à solta , particularmente da raça “ rottweiler “ , sem açaime , esfaimados ,   são , naturalmente , uma fonte de previsível perturbação e agressividade , para a pessoa e bens de  terceiros ,  à luz das regras da experiência comum , ou seja de acordo com aquilo que é usual suceder , em termos de  um  juízo de normalidade , de prognose normal , típica.  

O recorrente , como a mulher , detentores  e proprietários dos canídeos , não podiam ignorar esta realidade , de todos conhecida, que não escapa ao homem médio , que lhe associa consequências típicas , por efeito directo e necessário da sua circulação sem controle , que ,  pela sua frequência , levou o legislador a intervir , estabelecendo , ainda , e complementarmente às já mencionadas , a obrigatoriedade de seguro de qualquer animal perigoso ou potencialmente perigoso ( art.º 13.º , do Dec.º-Lei n.º 312/2003) , e impondo  medidas de segurança reforçadas , relativamente aos seus  alojamentos , não podendo permitir  a sua fuga ,   por forma a “ acautelar de forma eficaz a segurança das pessoas , outros animais e bens “ , nos termos do art.º 7.º daquele diploma .

Adita  o artigo 6.º, com a epígrafe “Dever especial de vigilância”:

“Incumbe ao detentor do animal o dever especial de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e animais”.

O arguido  apenas  dispunha de seguro e licença camarária  relativamente ao cão de nome “ HH  “ , e , vista a matéria de facto provada , insindicável por este STJ , que a aceita sem reservas , nos termos do art.º 434.º , do CPP , não curou de os manter fechados no canil que construiu para o efeito , antes os deixou à solta , em liberdade ,  pela parte  vedada da sua propriedade  por um muro em tijolo e rede metálica , em malha,  com dois metros de altura , de estrutura pouco forte ,  sem resistência  , logrando sair por aí , no dia ....-....-......... , entre as 13 e as 20 horas , devido ao mau estado da rede de arame , que se achava “  laça “  no ponto de junção com o tubo vertical que a sustentava  , a acrescer à sua natural fragilidade .

O recorrente diligenciou, ainda , pela localização dos canídeos nas imediações da sua propriedade , mas nunca  comunicou  à autoridade o seu desaparecimento .

O resultado letal  está  causalmente ligado com uma  omissão do dever de cuidado pelos demandados, imposto por normas jurídicas atinentes à posse de tais canídeos e por normas não jurídicas ,  prudenciais e usuais , visando a evitabilidade do resultado material ( cfr. Paulo Pinto de Albuquerque , Comentário do Código Penal , pág.  111)  , dever capaz de ser cumprido pelo recorrente  e esposa , bastando para o efeito que  , se não quisessem  manter os canídeos presos no canil ,  dotassem  a rede da resistência bastante para suster os animais no espaço vedado ,   fiscalizando   o estado daquela rede  , o que lhe era    imposto pelas concretas circunstâncias do caso , face à perigosidade legalmente afirmada  dos canídeos e às consequências que da sua fuga para o exterior poderiam derivar para as pessoas , bens e animais de terceiros , que lhe incumbiam prevenir  , o que não sucedeu , vindo a vítima    a sucumbir ao ataque  conjunto ,  brutal  e feroz de tais animais , que a esfacelaram ,  mordendo-a , em várias zonas corporais ,  dilacerando-lhe o corpo , com a morte por efeito directo .

A omissão desse dever de cuidado tipifica negligência , pese embora o recorrente continue a questioná-la , quando suscita a hipótese , na 5 .ª  conclusão , de não ter sido por culpa sua que os 4 canídeos se evadiram, não levando em apreço que a matéria de facto atinente à sua culpa está amplamente demonstrada a nível das instâncias , formulando-lhe   em exclusivo um juízo de reprovação,  recusando atribui-la  a terceiros , que também não indica, matéria de facto que este STJ , como tribunal de revista –art.º 432.º , do CPP - só excepcionalmente sindica ,  mas em ordem a firmar uma decisão coerente e harmónica entre as premissas e o juízo conclusivo nelas assente .

E em pura sede especulativa ,   não passando  sequer  disso , o recorrente ainda coloca a hipótese de a infeliz vítima , ainda que inconscientemente , ter concorrido para o resultado transmitido sinal de sentido erróneo aos animais , mas  admitindo que assim haja sucedido essa hipotética ordem jamais fundaria corresponsabilidade , como é bem de ver , porque a causa do homicídio repousa em conduta  puramente descuidada do recorrente , que devia ,  em primeiro lugar , manter os animais fechados  no canil , ou , em alternativa ,  fora dele ,    por forma  a   impedir  a saída pela rede ,  que devia ser mais resistente , vigiando , ainda , pelo seu estado , o que não fez .

A rede estava “ laça “  no ponto de junção com o tubo vertical que a sustentava , além de ser frágil , condicionalismo que lhe não devia passar despercebido, como não passaria a qualquer pessoa minimamente diligente .   

A previsibilidade objectiva de realização do tipo de ilícito,  enquanto configurando um crime cometido com negligência ,  exige que um homem comum – normalmente consciente e cuidadoso (mas pertencente à mesma categoria, hoc sensu, do agente; Cfr. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, Comares, Granada, 1999, p. 533) – colocado na situação do agente, se tivesse podido aperceber do perigo de violação do bem jurídico pela conduta adoptada por este.

 O recorrente  sequer pode alegar desconhecimento da necessidade do cumprimento desse dever , em primeiro lugar devido ao número dos animais ,  à sua  natural perigosidade de que os meios de comunicação social se tem feito eco com relação  aos maus resultados que certas espécies  caninas tem trazido à comunidade , só assim se justificando aquela legislação preventiva e repressiva que , penal e contraordenacionalmente , lhe foi aplicada .

 Aliás, pode constatar-se um reflexo do sentimento de insegurança e preocupação que os canídeos, sobretudo os potencialmente perigosos, têm vindo a causar nos cidadãos, a previsão do artigo 33.º da Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro, que veio tipificar como crime de ofensa à integridade física negligente, punido pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, a conduta de quem, por não observar deveres de cuidado ou vigilância, der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas graves à integridade. 

Não se provou que  o recorrente  solicitou a sua  captura a amigos  ou que um terceiro comunicou à PSP , que manteve inerte , pois ficou demonstrado que se limitou  a procurar os animais na propriedade , devendo admitir como normal que  atingissem o exterior da mata situada nas imediações da sua  propriedade  

   A  necessidade de necrópsia aos cães, enquanto diligência essencial para demonstrar que detinham fragmentos  do corpo da vítima no estômago , é alegação absolutamente irrelevante , que não foi tida por essencial à descoberta da verdade dos factos pelo tribunal, tanto mais que apenas se provou que os cães deitaram ao chão a vítima e com as patas e os dentes a despojaram do vestuário que trajava , com excepção das cuecas , esfacelando-a , mordendo-a e , naturalmente , pisando-a

O tribunal não deu como provado que os canídeos devoraram o corpo da vítima ,embora famintos ,  donde a desnecessidade e inoportunidade  de tal diligência da qual o juiz é verdadeiro árbitro , sem embargo de , nos termos do  art.º 340.º , do CPP , o arguido a poder requerer  , o que não fez .

O processo desencadeado conducente à morte da vítima é sobejamente claro , ficando sem se perceber a alegação de desconhecimento do “ modus operandi “ dos animais , como incompreensível a alegação de que inexiste prova  científica  de que a  vítima sofreu dores  durante 40 minutos , se atentarmos que o que se deu como provado , e diferentemente , foi que  após o ataque dos cães ainda esteve com vida por 40  minutos e que , enquanto permaneceu consciente  , padeceu enorme sofrimento físico e dores  horríveis  .  

 A sentença responde, por si só , suficiente e claramente ,   sem necessidade de recurso a quaisquer outras diligências de prova  ou da indagação de um leque mais alongado de factos , mostrando-se injustificada censura que se lhe endereça .

IX. A conduta do recorrente  é negligente,  e a negligência é a mera culpa , pressuposto da obrigação de indemnizar  por facto ilícito, nos termos termos do art.º 483 .º , n.º 1 ,  do CC .. 

A lei ordinária e constitucional  protege a integridade física das pessoas –art.ºs  70.º , do CC e 24 .º , da CRP ; o direito à vida é um direito absoluto ,  “ erga omnes  “ , já que impõe um comportamento negativo dos outros , de respeito absoluto , na citação do Prof. Leite de Campos , in A Vida , Morte e sua Indemnização , BMJ 365 e segs .

O dano da morte é o prejuízo supremo , diz  , que absorve todos os outros prejuízos não patrimoniais , pelo que o montante da sua indemnização deve ser superior à soma de todos os outros danos  imagináveis , afirmação que , em nosso ver ,  conhece limitações nos  casos em que o dano é a expressão de um estado de falência total da qualidade de vida , se protela por longo período , afectando não só a vítima mas a condição dos que com ela privam .

Ninguém tem o direito de ser morto , direito que se impõe ao Estado e a terceiros e assim o Estado não pode dispor de qualquer pessoa a seu belprazer devendo-lhe a protecção contra ataques de terceiros e se abstenha de acções ou da utilização de meios que  criem um perigo desnecessário ou desproporcionado  aos seus cidadãos  -cfr. Profs .  Vital Moreira e Gomes Canotilho , in Constituição Anotada , Coimbra Ed. , em comentário ao art.º 24 .º .

Toda a indemnização visa remover o dano real à custa do lesante , restituindo-o à situação em que se acharia se não fosse a lesão, mas o princípio sofre limitações no âmbito dos direitos não patrimoniais , em que não estão em causa danos mensuráveis , quantitativamente determinados e exactos ,  por isso que o legislador faz intervir como critério orientador a equidade .  

Os interesses  cuja lesão um dano patrimonial , como são  os  da supressão do direito à vida , os derivados do sofrimento advindo à vítima antes da morte , em nexo causal com o facto ou os desgostos que  , a terceiros , com ela conviviam , por força de  um vínculo legalmente prédefinido  , são infungíveis , não podendo ser reintegrados mesmo por equivalente , mas à possível compensá-los com dinheiro dada a aptidão do dinheiro para realizar uma vasta gama de interesses, doutrina o Prof. Mota Pinto , in Teoria Geral do direito Civil , pág. 86 .

Por isso a compensação  por danos não patrimoniais  há-de partir de uma ponderação prudencial casuística , atravessada pelo bom senso , pela justa medida das coisas  , situando-se o julgador dentro de uma margem de liberdade que não ceda nem  a uma sensibilidade embotada ou a uma hipersensibilização  , sempre sem desprezar os critérios jurisprudenciais que  realizam a dinâmica do direito , numa visão actualista , mas sem põr em causa a segurança do direito e a critérios de igualdade . Nessa avaliação  do  pressuposto substancial  da gravidade do dano , para os fins de indemnização , nos termos do 496.º n.º 1 , do CC ,   se traduz a equidade  ( cfr. Prof. Antunes Varela , op . cit . pág. 486 e  nota 3 ) .    

Ocupando o topo  da pirâmide dos direitos fundamentais , do qual derivam , deve abandonar –se um critério miserabilista ,  numa visão moderna e actualista ( cfr. Acs . deste STJ , de 6.2.96 , BMJ 454, pág. 695 e de 23.4.98 , CJ , STJ , II , Ano VI , 98 , pág. 51 )   assumindo-se um que  corresponda ao valor da vida posto em ênfase nos areópagos internacionais , ao valor que lhe é dedicado num Estado de direito, prestigiando –o por atribuição de  adequada  importância monetária ajustada a  compensar o desgosto da sua supressão  , pelo prazer que  o dinheiro proporciona , de algum modo atenuando o sofrimento , além de que se não pode deixar de ter presente que a indemnização por facto ilícito se propõe sancionar no plano civilístico o facto , funcionando como uma sanção adicional, prevenindo e reprovando factos similares. 

Este STJ tem vindo a ressarcir o dano da morte  , necessariamente centrando-se nas circunstâncias do caso concreto , já que a vida na expressão lapidar de um dos seus Juízes , “ não tem preço fixo “  ,  ideação de que o  Ac.  recente  deste STJ de 17.12.2009 , in Revista n.º 340/03.7PPNH.C1.S1-7.ª Sec.) se fez eco ,  citado no ainda mais   recente Ac. deste STJ , proferido no Rec.º n.º 277/01.4PAPTS. L1.S1,  convindo   ter  em conta a idade da vítima ( 59  anos à data dos factos , já vão decorridos mais de 4 anos sobre o seu homicídio  ) aditando-se que era uma pessoa forte e  saudável , além de trabalhadora,    pelo que  a sua expectativa de vida  ultrapassara sempre mais de 70 anos  .

Fundando-se a indemnização na mera culpa , nos termos do art.º 494.º , do CC ,  pode o tribunal , em pura equidade , fixar indemnização em montante inferior aos danos causados  , desde que o grau de culpabilidade do agente , a sua condição económica  e a do lesado  e as demais circunstâncias do caso a justifiquem , preceito este ditado por um exasperado  princípio de proporcionalidade   em ordem a evitar que um facto lesivo , em que a culpa do lesante é mínima ,  quase axiologicamente neutra,  todavia os danos são avultados , usufruindo o lesado de uma boa condição económica , contrastante com a do lesante , caso em que se impõe aquela redução substancial .

Mas estes parâmetros são , em absoluto ,  de excluir porque a culpa do recorrente não pode reputar-se diminuta , levíssima  , na distinção que o direito romano fazia entre culpa lata , leve e levíssima ,  pelas já descritas razões  , em que avulta o seu  desleixo  em verificar  o estado da rede , a sua debilidade    e tê-la substituido por outra , de maior resistência ; sobre ele   impendia o   dever de  prever  o resultado da fuga e da morte  de terceiros  nessas condições , fora da cerca onde livremente  deambulavam  ; a indesculpável  imprevisão  em que incorreu  é muito  mais do que  uma simples omissão que só em circunstâncias muito  excepcionais poderia ser génese de um resultado tão trágico,  como o foi .

 Invoca o recorrente que agiu com negligência inconsciente –art.º 15.º b) , do CP -, não chegou a representar sequer como possível a fuga dos animais ,   alegação que ainda torna mais censurável o seu grau  de culpa , grave , de resto .  

A sua situação económica  não é tão miserabilista –pelo contrário -e nem tão abastada a do demandante quanto se intenta fazer crer ; desempregado é certo ,  usufruindo de um subsídio de 200 € mensais  , mas aufere  um vencimento do pai , com um negócio de ......... ; a esposa aufere   900 € mensais de vencimento ; o casal reside em casa própria que tem adjacente   um terreno de 3.000 m2 onde , à vontade,  circulavam os cães , que integra uma propriedade de 10.000 m2 , possuem casa própria e não consta que paguem prestações de empréstimo , sendo não provado que esteja por concluir , e que tenha sido erigida  à custa dos pais e amigos ,  dependendo de ambos duas filhas de menor idade ; o demandante é um pedreiro que usufrui 40 € por dia  .

Nada justifica , pois , redução da compensação peticionada por razões de equidade , à luz do art.º 494.º , do CC .

 Por isso se acha justa a indemnização pela supressão do direito à  vida , que não deve ser a resultante de uma visão estática daquela  , mas actualista dos direitos e potencialidades  que engloba  e  a cuja tutela se destina .

Quanto à compensação pelo sofrimento antes da morte da vítima , hierarquizando , é certo , o grau de lesividade , situada num patamar  ainda inferior ao do dano da própria morte , analisando todo o processo que a  antecedeu  , a coberto de um pânico indescritível , de uma violência sem limite , de uma angústia enorme , quadro necessariamente  vivido por alguém que é atacado por quatro cães esfaimados,  que a põem ao chão , a mordem no corpo  e a pisam , a desnudam quase totalmente , numa situação de absoluta indefesa  , apercebendo-se , pois , da sua morte , no meio de evidente , por notório e enorme,   sofrimento , sentindo enquanto esteve consciente  “ dores horríveis “ , como se deu como provado , esse dano próprio compensado com  o “quantum “ achado de 30.000 € , é ajustado e não merece reparo .  

E mais ajustado quanto se analisa que a morte não foi imediata , desde  o ataque até ao desenlace fatal , por “schock “ traumático ; a vítima foi-se apercebendo , paulatinamente , do fim da sua vida , num clima  extremamente  doloroso , de atroz sofrimento .

X. Resta , agora , ponderar a indemnização peticionada pelo marido , mercê do desgosto que a morte da vítima , sua esposa lhe causou, cujo montante é contestado pelo recorrente   :
Ao lado dos desgostos que a morte causa , deverá ponderar-se , ainda , no plano afectivo , a  “ falta “  ( cfr. Prof . Antunes Varela , Obrigações em Geral , pág 494 )   que causa ao familiar sobrevivo,  “in casu “ ele  sofreu com a morte da esposa , com quem viveu cerca de 7 anos em união de facto  e 17 meses   e 27 dias , após o seu casamento, relevando que  a vítima apoiava o demandante ,  acompanhava-o , fazia-lhe as refeições e era o seu suporte emocional , tratando-se de um dano cuja, indiscutível  gravidade merece a tutela do direito .
Natural , pois , que sentisse e sinta  a sua falta , pelo que também não repugna fixar a indemnização no montante advindo das instâncias .

Pela indemnização são responsáveis , como resulta do antes exposto , o casal AA e esposa CC  e a seguradora Companhia de Seguros NN  ,  SA ,  solidariamente , mas a seguradora até ao limite de 50.000 € , por força  do contrato de seguro .  

XI .  Nega-se , pois , provimento recurso.

Custas pelo demandado, decorrente.

Lisboa, 24 de Maio de 2011


Armindo Monteiro (relator)

Santos Cabral