Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
822/06.9TBVCT.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: CONSUMIDOR
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
DIREITO A REPARAÇÃO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
PEDIDO SUBSIDIÁRIO
PEDIDO ALTERNATIVO
Data do Acordão: 09/30/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: PROVIDA PARCIALMENTE
Sumário :

1. Em caso de desconformidade entre a coisa entregue e a coisa comprada, o Decreto-Lei nº 67/2003 concede ao consumidor, expressamente, o direito de exigir a reparação ou de resolver o contrato, sem estabelecer qualquer precedência entre os dois.
2. O exercício do direito de resolução está condicionado pela verificação dos respectivos requisitos e limitado pelo abuso de direito.
3. A reparação a que o consumidor tem direito, baseada tão somente na “falta de conformidade do bem com o contrato”, é a que se destina a repor essa conformidade.
4. Provada a desconformidade e exercido o direito à reparação, o autor tem direito ao custo correspondente; não existindo elementos para o fixar, há que remeter para liquidação a determinação do custo.
5. A regra de que a resolução tem eficácia retroactiva, sendo equiparada, quanto aos efeitos, à nulidade ou anulabilidade, tem de ser conjugada com diversos preceitos que se destinam justamente a evitar que, por essa via, uma das partes enriqueça, injustificadamente, à custa da outra; e não impede que, sendo caso disso, a parte que a invoca tenha o direito a ser indemnizada pelos prejuízos sofridos.
6. A prova da falta de culpa afasta a presunção que vale na responsabilidade contratual.

Decisão Texto Integral:



Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:



1. AA instaurou contra A...-V..., Lda. e S...H...de Automóveis , S.A. (S..., SA) pedindo:
– Contra a primeira ré, a sua condenação no pagamento de € 4.500,00, acrescidos de IVA e de juros, contados à taxa legal desde Janeiro de 2006, “tudo em virtude da reparação do veículo” de matrícula ...-...-OX que lhe vendeu no dia 7 de Maio de 2004, usado, e de € 3.000,00 “pela deterioração e perda de valor” do mesmo; “em alternativa”, a declaração de resolução do contrato de compra e venda, sendo a ré condenada a restituir o preço pago, € 12.5000,00; a condenação no pagamento dos juros vencidos sobre essa quantia (€ 875 à data da propositura da acção), com juros que se vencerem até efectivo e integral pagamento; “em qualquer dos casos”, a condenação no pagamento de € 2.700,00, “pelos prejuízos causados pela paralisação” do veículo e de € 2.5000,00 por danos morais.
– Contra a segunda, representante em Portugal da S..., que produziu o automóvel, “na eventualidade de se vir a apurar que as desconformidades verificadas (…) constituem defeitos de fabrico ou origem”, a sua condenação no pagamento de € 4.500,00, acrescidos de IVA e de juros, contados à taxa legal, desde o mês de Janeiro de 2006, “tudo em virtude da reparação do veículo” de matrícula ...-...-OX, no pagamento de € 2.700,00 “pelos prejuízos causados pela paralisação” do veículo e de € 2.5000,00 por danos morais.
Em síntese, alegou que não tinha sido estipulado qualquer prazo de garantia; que o veículo tinha sofrido, no mês de Setembro de 2005, “uma avaria que se traduziu numa paragem do motor”, causada pela desconformidade que só então descobriu, e que consiste em “que o motor que está montado na viatura não corresponde ao tipo de motor descrito no contrato de compra e venda, nem ao tipo de motor que equipa os veículos de igual marca, modelo e categoria”, tal como sucede com “outro material mecânico”, sendo de inferior qualidade; que denunciou os defeitos à primeira ré, por carta de 22 de Dezembro de 2005, recebida a 27, fixando um prazo de quinze dias para a reparação; que teve de suportar os custos correspondentes, € 4.5000,00 + IVA; que o veículo esteve impossibilitado de circular durante noventa dias, causando-lhe um dano nunca inferior a € 30,00 por dia; que a reparação e a imobilização diminuíram pelo menos em € 3.000,00 o valor do carro; e que sofreu “desgosto, tristeza e angústia” com a verificação dos defeitos e com a necessidade de recorrer a tribunal, devendo por isso ser indemnizado em quantia não inferior a € 2.500,00.
Ambas as rés contestaram.
A ré S...H...de Automóveisde alegou desconhecer os factos alegados e afirmou que o veículo havia sido vendido ao concessionário com o motor TDI de origem.
A ré A...-V... invocou a caducidade do direito de propor a acção, por não ter havido denúncia do defeito no prazo de seis meses (nº 2 o artigo 916º e artigo 917º do Código Civil), e ainda: que foi expressamente acordada a inexistência de garantia, como contrapartida do preço fixado; que o autor conhecia o estado do veículo quando o comprou; que desconhecia as viciações apontadas pelo autor; que o autor apenas esporadicamente utilizava o automóvel; e requereu a intervenção principal de Farmácia P...C..., Lda., a quem comprara o carro, invocando ter sobre ela direito de regresso. Alegou ainda litigância de má fé do autor.
O autor replicou e opôs-se à intervenção, que veio a ser indeferida.
Pela sentença de fls. 647, a acção foi julgada parcialmente procedente. O contrato de compra e venda foi declarado resolvido e a ré A...-V... foi condenada a restituir ao autor o preço de € 12.500,00 bem como a pagar-lhe uma indemnização de € 1.000,00, por danos patrimoniais e não patrimoniais.
A sentença excluiu o direito à reparação por considerar provada a falta de culpa da ré no desconhecimento do vício (artigo 914º do Código Civil).

2. Recorreram o autor e a ré A...-V....
Por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de fls.788, foi negado provimento ao recurso da ré e concedido provimento parcial ao recurso do autor. A Relação decidiu condenar a ré a pagar a quantia de € 4.500,00, correspondente aos custos da reparação, acrescida do IVA que tiver sido pago e de juros de mora “ou, em alternativa”, “declarar resolvido o contrato”, condenando a ré a restituir o preço de € 12.500,00.
E foi ainda decidido, “em qualquer dos termos da alternativa que o autor venha a escolher, condenar a primeira ré a pagar-lhe” € 900,00 por “danos patrimoniais decorrentes da privação do uso do veículo” e € 750,00 como indemnização por danos não patrimoniais.
A...-V... recorreu para o Supremo Tribunal da Justiça; o recurso, ao qual não são aplicáveis as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, foi admitido como revista, com efeito devolutivo.
Nas alegações que apresentou, a recorrente formulou as seguintes conclusões:

“1.a .. A recorrente vendeu ao recorrido o veículo no exacto estado em que o recebeu da anterior proprietária e por isso não pode ser responsabilizada pela desconformidade existente já então dentro do motor
- vd. art.º 483.° CC
2.a .. A recorrente não pode ser de modo algum responsabilizada, uma vez que desconhecia em absoluto a desconformidade dentro do motor do veículo, que, para além de não ser perceptível, não podia sequer supor que existisse
- vd. 2.a p/te art.º 914.° e art.º 915.° CC
3.a .. Ainda que se entenda que a recorrente deve ser responsabilizada, tê-lo­-ia que ser a título de pagamento pela reparação do veículo e nunca declarando-se a resolução do contrato pois que tal desrespeita a hierarquia dos deveres do vendedor - vd. art.ºs 914.° e 905.° CC
4.a .. Nunca se justificaria a condenação da recorrente no pagamento de juros de mora sobre o valor da reparação, uma vez que está provado que o recorrido ainda não pagou o preço da mesma, nem foi emitida ainda qualquer factura
- cfr. ponto 22.° factos provados e n.º 1 art.º 805.° CC
5.a .. Os pedidos deduzidos pelo recorrido são na realidade subsidiários e por isso qualquer que seja o entendimento só poderia proceder o pedido de pagamento do custo de reparação do veículo
- vd. art.ºs 468.° e 469.° CPC
6.a .. Não pode proceder o pedido de resolução do contrato por se mostrar excessivamente oneroso para a recorrente
- vd. n.º 1 art.º 566.° CC
7.a .. O recorrido não provou a relação causa/efeito entre a avaria do veículo e a desconformidade no motor e por isso não tem direito a reclamar o custo da reparação, nem a resolução do contrato
- vd. art.ºs 483.° e 563.° CC
8.a .. Não pode manter-se a indemnização por danos patrimoniais no valor de € 900,00, pois que o recorrido não provou em concreto danos decorrentes da privação do veículo
- vd. art.º 562.° CC
9.a .. Não pode também manter-se a indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 750,00, pois que não está provado que a tristeza sentida pelo recorrido fosse suficientemente intensa que justificasse a protecção da lei
- vd. art.º 496.° CC
10.a .. Ainda que se entendesse que o recorrido deveria ser compensado por danos patrimoniais e não patrimoniais, os valores dessas compensações nunca poderiam exceder € 250,00 e € 150,00, respectivamente
- vd. n.º 3 art.º 566.° CC”.

O recorrido contra-alegou, concluindo desta forma:

a) - À situação em litígio é aplicável o D,L. n.o 67/2003, de 8 de Abril.
b) - De acordo com o artigo 3°, n. 1 do D.L. n.º 67/2003, o vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem é entregue.
c) - A expressão "qualquer falta de conformidade” indica-nos que é indiferente que o defeito seja oculto ou aparente.
d) - O desconhecimento do vício por parte do vendedor em nada afecta os direitos à reparação e à resolução que assistem ao consumidor, isto porque o D.L. n.o 67/2003 consagra a responsabilidade objectiva daquele.
e) - O D.L. 5712003, como decorre do seu artigo 4°, n.º 5, não estabelece qualquer hierarquia dos direitos que assistem ao comprador.
f) - Os juros devem ser calculados desde a data da reparação, pois é nesse momento que se vence a obrigação de pagar o preço.
g) - O A. deduziu pedidos alternativos e não subsidiários.
h) - A excessiva onerosidade da resolução não constitui fundamento para se obstar à mesma.
i) A pretensão do A. baseia-se na existência de desconformidade entre o bem e o contrato e é esse o fundamento da responsabilidade do vendedor, nos termos do artigo 3º, nº 1 do D.L. nº 67/2003.
j) Não assiste razão à Recorrente na parte respeitante à indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais.
k) Desta sorte, deve ser mantida a decisão recorrida, com todos os inerente direitos nela reconhecidos ao Recorrido.”

3. Vem provada a seguinte matéria de facto:

1. A 1ª ré é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à actividade de venda e reparação de veículos automóveis – A);
2. No âmbito da sua actividade, a 1ª ré, no dia 7 de Maio de 2004, vendeu ao autor um automóvel ligeiro de mercadorias, de marca S..., modelo I... 1.9 TDI VAN, portador da matrícula ...-...-OX, cor preta, categoria ligeiro, tipo mercadorias, com chassis n.º VSSZZZ6KZYRO9O959, cilindrada de 1896 cc, de 2 lugares e abastecido a gasóleo – B);
3. Tratava-se de um veículo usado, com data de primeira matrícula de 28 de Janeiro de 2000 – C);
4. O preço acordado para o negócio foi de 12.500,00 € - D);
5. Em consequência do contrato celebrado, a 1ª ré entregou o automóvel ao autor – E);
6. Este pagou o preço estipulado e a 1ª ré recebeu-o – F);
7. O autor tomou posse do veículo em questão, efectuando o competente registo – G);
8. A 1 ª ré recebeu uma carta registada, com aviso de recepção, enviada pelo mandatário do autor, datada de 22.12.2005, tendo assinado o respectivo aviso de recepção, no dia 27 de Dezembro de 2005, carta essa a que a ré respondeu, em 03.01.2006, por fax do seu mandatário – H);
9. A 2ª ré exerce a actividade de importação e comercialização de veículos automóveis, suas peças e acessórios, tendo sido, até ao dia 30 de Setembro de 2003, importador exclusivo para Portugal dos veículos automóveis da marca S... – I);
10. No exercício da sua actividade, a 2ª ré adquiriu à S... – Sociedad Espanõla de Automoviles de Turismo, S. A., fabricante da marca S..., o veículo automóvel dos autos, modelo I... 1.9 TDI – 110 cv, com o chassis nº (VSSZZZ6K) ZYR090959, ao qual foi posteriormente atribuída a matricula ...-...OX, e promoveu a sua importação para território português – J);
11. No mês de Setembro de 2005, quando o autor se deslocava para Lisboa no OX, este sofreu uma avaria que se traduziu numa paragem do motor – quesito 1º;
12. Na sequência desta avaria, o veículo foi rebocado para as instalações da 1ª ré – quesito 2º;
13. Três semanas depois, após analisarem a situação do OX, os serviços da 1ª ré comunicaram ao autor que o orçamento para reparação do OX era de 4.500,00 € – quesito 3º;
14. Tendo o autor invocado a existência da garantia, a 1ª ré respondeu que a mesma não cobria a avaria surgida – quesito 4º;
15. O autor retirou então o veículo das instalações da 1ª ré – quesito 5º;
16. Durante o mês de Dezembro 2005, o autor verificou que o bloco do motor existente no OX é referente ao motor SDI, de 100 cv – quesito 6º;
17. O contrato celebrado entre o autor e a 1ª ré estipula que o veículo objecto do mesmo está equipado com um motor TDI, de 110 cv – quesito 7º;
18. O motor SDI, de 100 cv, que o autor verificou existir no OX, bem como os pistões, bielas e cambota, não correspondem àqueles que equipam o “S... I... 1.9 TDI Van” – quesito 8º;
19. O motor do OX é de qualidade inferior ao motor TDI de 110 cv – quesito 9º;
20. O bloco do motor do OX não apresenta código de identificação – quesito 10º;
21. A carta referida na alínea H) - cfr. o nº 8, supra - tem o teor do documento junto pelo autor na audiência preliminar – quesito 14º;
22. A avaria foi reparada na oficina de “ JM B..., Lda.”, sita no lugar de Monte Branco, freguesia de Forjães, concelho de Esposende, tendo-se o respectivo custo cifrado em 4.500,00 € acrescido de IVA, e ainda não se encontra liquidado o preço, na sua totalidade – quesito 15º;
23. Durante 90 dias, contados desde o mês em que se deu a avaria até à data da sua reparação, o OX esteve impossibilitado de circular – quesito 16º;
24. O autor utilizava o OX, esporadicamente, para se deslocar para o seu posto de trabalho, em Lisboa, percorrendo semanalmente, quando o usava, cerca de 1.000 quilómetros – quesito 17º;
25. O autor utilizava o veículo, esporadicamente, para os demais afazeres domésticos, designadamente para ir às compras e para passear aos fins-de-semana – quesito 18º;
26. A verificação dos defeitos no OX provocou tristeza ao autor – quesito 22º;
27. O processo judicial que o autor se vê obrigado a intentar acarreta-lhe incómodos, incerteza e despesas – quesito 23º;
28. O OX foi entregue nas instalações da 2ª ré, onde foi devidamente inspeccionado e preparado por técnicos especializados que verificaram a presença e o bom funcionamento dos seus componentes mecânicos, bem como a sua correspondência com as especificações da viatura encomendada – quesito 24º;
29. O veículo dos autos foi vendido pela 2ª ré ao seu concessionário “B...& O..., Lda”, com sede na Rua ..., 23, 4490 Póvoa de Varzim, no dia 27-01-2000, que lhe pagou o respectivo preço – quesito 25º;
30. O veículo S... I... TDI, com a matrícula ...-...-OX, foi adquirido ao fabricante e depois vendido ao mencionado concessionário “B...& O..., Lda”, com o motor TDI de origem – quesito 26º;
31. No dia 10-02-2004, a 1ª ré negociou com a sociedade “Farmácia P...C..., Lda”, (com sede no lugar da Breia, freguesia de Fragoso, concelho de Barcelos), um “contrato de compra e venda de automóvel”, nestes termos:
a) A ré vendia a essa sociedade um veículo novo marca “Audi A2 1.4TDI”;
b) Para pagamento parcial do respectivo preço, a ré recebia dessa sociedade o veículo usado da marca “S... I...” de matrícula ...-...-OX – quesito 27º;
32. Nesse contrato, essa sociedade foi representada pela sua sócia BB e a 1ª ré pelo seu vendedor CC, tendo ambos fixado o preço para a retoma daquele veículo usado em 12.469,00 € – quesito 28º;
33. Na concretização deste negócio, a referida “Farmácia P...C..., Lda”, fez entrega à 1ª ré desse veículo usado, que se apresentava então com 90.000 km, com a revisão feita pelo concessionário “S...” e sem qualquer problema – quesito 29º;
34. Por alturas do referido dia 10-02-2004, o citado vendedor da ré comentou com DD (que é tio do autor e se dedica à compra e venda de automóveis) que a contestante ia receber de retoma o referido veículo – quesito 30º;
35. DD conhecia o veículo e a BB, sua anterior condutora habitual – quesito 31º;
36. Pouco tempo depois, o autor apareceu nas instalações da 1ª ré, acompanhado do DD, tendo o vendedor mostrado o automóvel, o respectivo livrete, o título de registo e o livro de revisões da “S...” – quesito 32º;
37. O vendedor da 1ª ré insistiu com o autor para que experimentasse o veículo, o que ele fez, na companhia do DD, saindo para fora das instalações da 1ª ré e dando a volta que quis – quesito 33º;
38. A 1ª ré vendeu ao autor tal veículo pelo preço de 12.350,00 € – quesito 36º;
39. As viciações referidas no nº 18, supra, só podem ser detectadas com a abertura do motor – quesito 37º;
40. O “bloco do motor” é (aparentemente) igual nos modelos SDI e TDI e só no seu interior é que podem verificar-se as diferenças – quesito 38º;
41. A 1ª ré desconhecia qualquer anomalia no OX – quesito 41º.

4. Estão em causa neste recurso, nos termos resultantes do disposto no nº 3 do artigo 684º do Código de Processo Civil, as seguintes questões:
– ausência de responsabilidade da recorrente pela desconformidade verificada;
– impossibilidade de resolução, quer por criar grave desequilíbrio entre as prestações das partes, quer em resultado da hierarquia estabelecida pelo artigo 913º do Código Civil, quer por ter de ser apreciada apenas a título subsidiário;
– falta de fundamento na condenação no pagamento de juros de mora sobre o custo da reparação;
– inexistência de nexo de causal entre a avaria sofrida e a desconformidade verificada no motor;
– ressarcibilidade do dano de privação do veículo e dos danos não patrimoniais.

5. Antes de mais, cumpre ter presente que está assente:
– que o veículo foi comprado pelo autor para uso não profissional (pontos 21º e 25º da matéria de facto) e vendido no âmbito da actividade de venda e reparação de veículos automóveis pela recorrente (pontos 1º e 2º), o que permite aplicar as regras de protecção do consumidor. Interessam agora especialmente a Lei nº 24/96, de 31 de Julho e o Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril, na versão vigente à data da celebração do contrato (7 de Maio de 2004 – ponto 2);
– a desconformidade entre o veículo que foi entregue ao autor e o contrato de compra e venda relativamente ao motor, pistões, bielas e cambota – pontos 2, 5, 17, 18; para esta conclusão há também que ter em conta que, provada a desconformidade manifestada dentro do prazo de dois anos a contar da data da entrega, como aqui se verificou, presume-se que já existia no momento relevante, que é o dessa mesma entrega (nº 2 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 67/2003); tal presunção não foi ilidida;
– que se trata de “viciações” que só com a abertura do motor podem ser detectadas – ponto 39,
– sendo o motor de qualidade inferior ao que corresponde ao modelo constante do contrato – ponto 19;
– que a recorrente desconhecia, sem culpa, “qualquer anomalia” no automóvel – ponto 41 e respostas de “não provado” aos quesitos 12º, 13º. Com efeito, ficou provado o desconhecimento e, no entender das instâncias a inexistência de culpa. A sentença considerou ilidida a presunção constante do nº 2 do artigo 914º do Código Civil, em juízo não censurado pela Relação e insindicável pelo Supremo Tribunal da Justiça, como se pode ver, por todos, no acórdão deste Supremo Tribunal de 10 de Setembro de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 376/09.4YFLSB;
– e que em Setembro de 2005, o automóvel “sofreu uma avaria que se traduziu numa paragem do motor” (ponto 11), que veio a ser reparado pelo preço de € 4.500,00, não totalmente pago (ponto 22.
Não ficou provado, nem que o motor tenha partido “em virtude das adulterações” provadas (resposta de “não provado” ao quesito 11º), nem que a reparação efectuada na sequência da avaria corresponda à eliminação das desconformidades referidas, nem que tivesse sido acordada qualquer garantia de bom funcionamento do veículo.

6. Cabe começar por determinar se os pedidos de reparação e de resolução podem ser ambos apreciados.
Tal como a acção foi proposta, os pedidos formulados assentam nas “desconformidades do automóvel com o contrato”, na adulteração da “parte mecânica” do veículo (artigo 26º da petição inicial), em consequência da qual “o motor partiu” (artigo 27º).
O autor sustenta que a recorrente lhe vendeu um automóvel “com clara falta de conformidade com o contratado” (artigo 38º) e que, por isso, tem direito a que o repare,” substituindo o motor SDI de 100 cv por um motor TDI de 110 cv sem qualquer custo” (e, portanto, a pagar-lhe a reparação que se viu obrigada a mandar efectuar), ou a resolver o contrato, “em alternativa” (artigo 55º da petição inicial).
Consequentemente, conclui a petição inicial pedindo a condenação no pagamento e “em alternativa”, a declaração de resolução do contrato.
Tanto basta para afastar a alegação de que se trata de pedidos subsidiários, e que o segundo pedido só pode ser apreciado se o primeiro improceder, por não ter qualquer correspondência com o conteúdo da petição inicial. A aplicabilidade do regime definido pelos artigos 913º e segs. do Código Civil e da “hierarquia nos direitos do comprador” que a recorrente refere não permite transformar em subsidiários (ou aparentemente alternativos) pedidos formulados em alternativa real. Poderia conduzir a decisão diversa da recorrida, mas por ser hipoteticamente improcedente o pedido de resolução.
Também não procede a observação de que “os pedidos são absolutamente divergentes e até incompatíveis e por isso não podem ser alternativos” e que um deles é excessivamente oneroso para a recorrente. Por um lado, os requisitos de admissibilidade dos pedidos alternativos constam do artigo 468º do Código de Processo Civil, que não exige a sua compatibilidade; por outro, os nºs 1 e 5 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 67/2003 admitem expressamente que o consumidor possa exercer, quer o direito de exigir a reparação, quer o de resolver o contrato, sem estabelecer qualquer precedência entre eles.
Com efeito, a lei portuguesa optou por consagrar no Decreto-Lei nº 67/2003, que a transpôs, um regime de princípio mais favorável ao consumidor do que o que lhe era imposto pela directiva nº 1999/94/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, cujo artigo 3º define uma hierarquia entre o direito à reparação e à substituição, por um lado, e o direito à redução do preço ou à rescisão (resolução) do contrato, por outro.
No entanto, há que não esquecer que a opção do consumidor está sempre limitada, no que ao direito de resolução se refere, quer pelo abuso de direito – artigos 4º, nº 5 do Decreto-Lei nº 67/2003 e 334º do Código Civil –, quer pelas exigências gerais relativas ao exercício deste direito (nomeadamente, pelo nº 2 do artigo 432º, pelo nº 2 do artigo 793º e pelo nº 2 do artigo 802º); neste sentido, expressamente, João Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo, comentário, 3ª edição, Coimbra, 2006, pág.79 e segs.).
Questão diferente é a de saber se procedem ambos os pedidos.

7. A recorrente sustenta que desconhecia, sem culpa, as desconformidades provadas e que, portanto, está excluída a obrigação de proceder à reparação, nos termos pretendidos pelo autor. Baseia-se, para o efeito, no disposto na parte final do artigo 914º do Código Civil.
Não se levantam dúvidas de que é aplicável ao presente litígio o regime definido pelo Decreto-Lei nº 67/2003, por estar provada uma desconformidade relevante, nos termos dos seus artigos 2º e 3º, nº 1; e que o regime nele definido deve ser harmonizado, no caso, com as regras definidas pelo Código Civil para a venda de coisas defeituosas (artigos 913º do Código Civil), desde logo por estar assente a ocorrência de um vício que desvaloriza a coisa vendida.
Ora, contrariamente ao que consta do citado artigo 914º do Código Civil, para o Decreto-Lei nº 67/2003 o desconhecimento, “sem culpa”, do “vício ou falta de qualidade de que a coisa padece” não afasta a correspondente responsabilidade do vendedor (artigos 2º, nº 1 e nº 3º).
A prova do desconhecimento e, no entender das instâncias, da inexistência de culpa não levam. assim à improcedência do pedido de condenação.

8. No entanto, a reparação a que o consumidor tem direito, baseada tão somente na “falta de conformidade do bem com o contrato”, é a que se destina a repor essa conformidade (nº1 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 67/2003 e nº1 do artigo 913º e artigo 914º do Código Civil).
Isto significa, desde já, que a condenação da ré no cumprimento do dever correspondente não tem necessariamente por medida o preço da reparação que o autor mandou realizar: não resulta da prova que a reparação efectuada, e que se tornou necessária em virtude de o motor ter partido, se traduziu na eliminação correspondente.
Provada a desconformidade e exercido o direito à reparação, o autor tem direito ao custo correspondente; não existindo elementos para o fixar, há que remeter para liquidação (nº 2 do artigo 661º do Código de Processo Civil) a determinação do custo de substituição das partes do automóvel referidas no ponto 18 da matéria de facto provada, por aquelas que correspondem às características definidas no contrato, por referência à data da em que foi recebida a carta a que se refere o ponto 8 da lista de factos provados (27 de Dezembro de 2005) e tendo em conta que se tratava de um automóvel com data de primeira matrícula de Janeiro de 2000. Sobre tal quantia, que, tendo em conta a limitação decorrente do nº 1 do artigo 661º citado, não pode exceder os € 4.500,00 que foram pedidos, deverão incidir juros de mora, à taxa legal, “calculados desde o mês de Janeiro de 2006” (petição inicial).
Tenha-se em conta que o custo de substituição inclui todas as “despesas necessárias para repor o bem em conformidade com o contrato, incluindo, designadamente, as despesas de transporte, de mão-de-obra e material”, nos termos do nº 3 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 67/2003.
Note-se, a este propósito, que é efectivamente relevante a falta de prova do nexo de causalidade entre a desconformidade e a avaria. A ter ficado provada a causalidade, o autor teria direito a ser indemnizado no correspondente montante, nos termos gerais da responsabilidade contratual (artigo 798º do Código Civil).
Recorde-se que a causa de pedir é a desconformidade entre o veículo entregue e o contrato.
Resolvido este ponto, não carece de ser apreciada a questão relativa aos juros de mora relativos ao valor da reparação da avaria, que a recorrente discute com o fundamento de a mesma não ter sido paga pelo autor (embora apenas tenha ficado provado que não foi paga na sua totalidade).

9. Para sustentar a impossibilidade de declaração de resolução do contrato, e para além da questão, já apreciada, da relação (substantiva e processual) entre o correspondente pedido e o de reparação, a recorrente apresenta as seguintes razões:
– não existindo a obrigação de reparar o vício, por ser oculto (no sentido de desconhecido, sem culpa, pelo vendedor), como resultaria da parte final do artigo 914º, “naturalmente que [o legislador] também não o quis obrigar a suportar a resolução do contrato com a consequente obrigação de restituição do preço”;
– desproporção criada entre as partes se o vendedor tivesse de suportar a resolução: “é absolutamente desproporcionado que o comprador, depois de circular com o veículo durante 6 anos consecutivos, o possa agora entregar ao vendedor no estado manifestamente desgastado em que se encontra, e ainda por cima receber de volta o valor que pagou por esse veículo no já distante ano de 2004”: a resolução é “excessivamente onerosa”.
A primeira observação está já analisada.
Quanto à segunda, a recorrente não tem razão. A desproporção só existiria se o regime aplicável aos efeitos da resolução do contrato não permitisse respeitar o “princípio da justiça comutativa subjacente a todos os contratos onerosos, em geral, e à compra e venda, em especial” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 4ª ed., Coimbra, 1997, pág. 206), princípio manifestamente prosseguido pelas regras aplicáveis à venda de bens defeituosos.
E a verdade é que a regra de que a resolução tem eficácia retroactiva (nº 1 do artigo 434º), sendo equiparada, quanto aos efeitos, à nulidade ou anulabilidade (artigo 433º), tem de ser conjugada com diversos preceitos que se destinam justamente a evitar que, por essa via, uma das partes enriqueça, injustificadamente, à custa da outra; e, note-se, não impede que, sendo caso disso, a parte que a invoca tenha o direito a ser indemnizada pelos prejuízos sofridos (pelo menos, pelos que não teria sofrido se não tivesse celebrado o contrato).
Assim resulta, por exemplo, do disposto no nº 2 do artigo 432º, do nº 2 do artigo 434º (cujo espírito, segundo Calvão da Silva – op. cit., pág. 85 – pode justificar a redução do valor a restituir por força da resolução, em caso de utilização do bem pelo consumidor) ou nos nºs 1 e 3 do artigo 289º e no artigo 290º.
Nestes termos, não havendo elementos que permitam considerar abusivo o exercício do direito de resolução (nº 5 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 67/2003 e artigo 334º do Código Civil), e estando preenchidos os requisitos exigidos pelos artigos 2º (al. a) do nº 2), 3º e 4º do DL 67/2003, procede o pedido de resolução.
No entanto, não sendo possível ao autor restituir o automóvel tal como lhe foi entregue (nº 1 do artigo 289º do Código Civil), a recorrente só pode ser condenada a restituir o valor que o veículo tiver à data do trânsito em julgado desta decisão, cuja determinação igualmente se remete para liquidação, conforme o disposto no nº 2 do artigo 661º do Código de Processo Civil, até ao limite dos € 12.5000,00 pedidos, acrescido dos juros, à taxa legal, que se vencerem até efectivo e integral pagamento.

10. Finalmente, cumpre apreciar as questões colocadas pela recorrente no que respeita à indemnização de € 900,00 por danos patrimoniais e de € 750,00 por danos não patrimoniais.
Ora, não estando provado o nexo de causalidade entre a desconformidade e a avaria, por um lado, e estando provada a ausência de culpa da recorrente, por outro, não pode esta ser condenada a indemnizar danos imputados pelo autor a essa desconformidade, juntamente com a avaria (artigo 12º, nº 1, da Lei nº 24/96 e artigos 798º, 799º e 563º do Código Civil).
Esta observação exclui seguramente a indemnização pelos danos decorrentes da imobilização do automóvel, por faltarem ambos os pressupostos (causalidade e culpa).
Já quanto aos danos não patrimoniais, atribuídos directamente aos defeitos e à necessidade de recorrer a tribunal (pontos 26 e 27 da lista de factos provados), se não se levanta o obstáculo da falta de causalidade, sempre subsiste a prova de ausência de culpa.
Note-se, a terminar, que a prova da falta de culpa afasta a presunção que valeria, por se tratar de responsabilidade contratual (nº 1 do citado artigo 799º), não havendo aqui responsabilidade independente de culpa. Com efeito, o Decreto-Lei nº 67/2003, nem directamente, nem através das alterações que introduziu na Lei nº 24/96, estabeleceu tal regime.

11. Nestes termos, concede-se provimento parcial à revista, decidindo:
a) Revogar o acórdão recorrido;
b) Condenar a ré A...-V..., Lda, a pagar ao autor o custo de substituição do motor SDI, de 100cv, dos pistões, das bielas e da cambota por um motor e pelas demais peças correspondentes a um automóvel S... I... 1.9 TDI Van com data de primeira matrícula de Janeiro de 2000, a liquidar, com referência a Dezembro de 2005, até ao montante de € 4.500,00, acrescido dos juros de mora, à taxa legal, contados desde Janeiro de 2006 até efectivo e integral pagamento;
c) Ou, em alternativa, declarar resolvido o contrato de compra e venda, condenando a ré A...-V..., Lda. a pagar ao autor o valor que o automóvel tiver à data do trânsito em julgado desta decisão, a liquidar, até ao montante de € 12.500,00, acrescido dos juros de mora, à taxa legal, contados até efectivo e integral pagamento;
d) Absolver a ré A...-V..., Lda. dos demais pedidos.

Custas por recorrente e recorrido, na proporção do decaimento que, a final, vier a apurar-se.

Supremo Tribunal de Justiça, 30 de Setembro de 2010
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)
Lopes do Rego
Barreto Nunes