Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2190/09.8TBEVR.E1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: CONTRATO - PROMESSA DE COMPRA E VENDA
ÓNUS E ENCARGOS
INCUMPRIMENTO
Data do Acordão: 01/22/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS - CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES - CONTRATOS EM ESPECIAL / COMPRA E VENDA.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 405.º, 406.º, 799.º, N.º1, 808.º, 879º, AL. A), 905.º E SS..
Sumário :
1. Cumpre ao promitente-vendedor demonstrar o cancelamento de eventuais inscrições de ónus e encargos que incidam sobre o prédio sobre que incide a promessa de venda, tal como sucede com o registo de um “pacto de preferência” a favor da Cooperativa que construiu o edifício ou com o registo de uma “taxa de construção” a favor da mesma Cooperativa para a eventualidade de não vir a exercer o direito de preferência.

2. Nas relações com o promitente-comprador, o promitente-vendedor não pode invocar eventuais divergências com terceiros a respeito da validade ou da caducidade das inscrições prediais ou dos negócios jurídicos subjacentes às mesmas.

3. Na medida em que a manutenção das inscrições predais relativas a “ónus e encargos” possa afectar os interesses patrimoniais do promitente-comprador ou seja susceptível de gerar uma situação de insegurança ou de incerteza quanto aos limites ou conteúdo do direito de propriedade sobre o prédio prometido vender, é inexigível impor-lhe a outorga da escritura pública de compra e venda antes do cancelamento de tais inscrições.

4. Não demonstrando o promitente-vendedor o cancelamento dos ónus e encargos nem a possibilidade de o conseguir num prazo razoável, é legítimo ao promitente-comprador declarar a resolução do contrato-promessa de compra e venda.

5. O facto de a Cooperativa que é beneficiária das inscrições prediais fazer depender a emissão da declaração necessária ao seu cancelamento do pagamento de uma quantia correspondente à “taxa de construção” registada não liberta o promitente-vendedor da presunção de culpa no incumprimento do contrato prometido, nos termos do art. 799º, nº 1, do CC.

Decisão Texto Integral:
I - AA e BB, intentaram acção declarativa contra CC e DD, pedindo a condenação no pagamento da quantia de € 40.000,00 correspondente ao dobro do sinal que foi prestado no âmbito de um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel, assim como no pagamento das despesas efectuadas e de outros danos.

Alegam que os RR. não cumpriram o contrato-promessa de compra e venda, na medida em que não afastaram os ónus e encargos que continuavam a persistir sobre a fracção prometida vender.

Os RR. contestarem e alegaram que nenhum obstáculo existia à outorga da escritura pública de compra e venda, tendo sido os AA. que se recusaram a outorgá-la, de modo que, em via reconvencional, reclamam o direito a haver o sinal que foi pago pelos AA. no valor de € 20.000,00.

Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, condenando os RR, no pagamento do sinal em dobro, sendo julgada improcedente a reconvenção

Os RR. recorreram e a Relação confirmou a sentença.

Os RR. interpuseram recurso de revista que foi admitida como revista excepcional, suscitando-se as seguintes questões essenciais:

a) Nulidade do acórdão por falta ou insuficiência de fundamentação;

b) Ilegitimidade da declaração de resolução do contrato-promessa de compra e venda feita pelos AA., na medida em que a persistência das inscrições do pacto de preferência e da taxa de construção a favor da Cooperativa não impedia a outorga do contrato de compra e venda, nem prejudicava de modo algum os AA.;

c) Ausência de culpa dos RR. no que respeita à não obtenção da declaração para efeitos de cancelamento do pacto de preferência e da taxa de construção, uma vez que a mesma foi ilegitimamente recusada pela Cooperativa.

Os AA. contra-alegaram.


II – Factos provados:

1. Os AA. encontraram em venda, junto da mediadora imobiliária EE - Soc. de Mediação Imobiliária, Ldª (titular da licença n° … - AMI, e a que explora a marca FF), a fracção B, correspondente ao r/c e 1º andar do prédio urbano da R. …, Urban. do Moinho, Évora, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o art. … da freguesia da Horta das Figueiras e descrito na CRP de Évora sob o n° ….

2. A aquisição, por compra, do prédio a que se alude em 1. mostra-se inscrita a favor da R. mulher pela Ap. 6, de 27-8-04.

3. Pela Ap. 31, de 29-11-04, mostra-se registado um “Pacto de preferência”, pelo prazo de 30 anos, a favor da Coop. de Habitação Económica GG, C.R.L., da qual a R. mulher é cooperante.

4. De acordo com os estatutos da Cooperativa, o não exercício do direito referido em 3. implicaria para a R. mulher o pagamento de uma “Taxa de construção”, taxa estipulada anualmente pela assembleia-geral da Cooperativa.

5. No dia 17-6-09, os AA. e os RR., celebraram um contrato-promessa de compra e venda, tendo por objecto o prédio descrito em 1., nos termos do qual os RR. prometeram vender aos AA. e estes prometeram comprar o imóvel referido em 1., pelo preço de € 100.000,00, “livre de ónus ou encargos”.

6. A título de sinal e princípio de pagamento, os AA. emitiram um cheque a favor dos RR., que lhes entregaram, no valor de € 20.000,00, tendo os RR. dado a respectiva quitação.

7. Acordaram ainda que a escritura pública seria para efectuar no prazo de 90 dias a contar da data da outorga do contrato, num dos Cart. Not. de Évora ou na Conservatória com o serviço Casa Pronta.

8. Ficou clausulado que o não exercício do direito de preferência por parte da Cooperativa era condição essencial para os AA., determinante para a decisão de realização do contrato.

9. Acordaram ainda que a R. mulher disponibilizaria ao A. todos os documentos da sua responsabilidade necessários para a realização da escritura definitiva.

10. A organização de parte da documentação necessária para a outorga do acto definitivo de compra e venda do imóvel foi promovida com o auxílio dos serviços da imobiliária EE, Ldª.

11. Com data de 18-6-09, a R. mulher remeteu uma carta registada com aviso de recepção à direcção da Cooperativa, que a recebeu, informando que havia acordado com o R. marido a venda do prédio descrito em 1., pelo preço de € 100.000,00 (fls. 53 e 134).

12. Com data de 23-6-09, a Cooperativa remeteu uma carta registada com aviso de recepção à R. mulher, que a recebeu, solicitando-lhe que se deslocasse aos seus serviços administrativos a fim de iniciar o processo de alienação do prédio (fls. 54 e 136)

13. Na sequência da carta mencionada em 12., a R. mulher informou a mediadora imobiliária, e esta informou os AA., de que a Cooperativa não iria exercer o direito de preferência.

14. Os RR. pretendiam evitar o exercício do direito de preferência por parte da Cooperativa.

15. Os RR. foram informados pela empresa imobiliária de que a Conservadora responsável pelo serviço Casa Pronta, onde se iria formalizar o negócio prometido, apenas cancelaria a inscrição registral do pacto de preferência com base numa declaração escrita de renúncia subscrita pela preferente.

16. Alguns dias após a recepção da carta referida em 12., a R. mulher dirigiu-se aos serviços da Cooperativa com a intenção de solicitar a emissão de tal declaração, o que fez, na pessoa de HH, funcionário da Cooperativa, por quem foi atendida.

17. Aí, foi comunicado à R. mulher que, caso a Cooperativa não viesse a exercer o seu direito de preferência, a “Taxa de construção” que ela teria de pagar para a libertação do ónus ascendia ao valor de € 7.568,08.

18. O funcionário que atendeu a R. mulher recusou-se a entregar a declaração solicitada sem que fosse efectuado o pagamento da quantia mencionada em 17., alegando que, tal como já ocorrera em casos anteriores com outros cooperadores, se o fizesse, a R. não iria pagar a verba reclamada.

19. Por acordo entre AA. e os RR., foi designado o dia 23-7-09 para a outorga do acto definitivo de compra e venda do imóvel, junto da CRP de Évora, a cargo da Conservadora II.

20. A empresa imobiliária interpelou os RR. relativamente à necessidade de obterem o documento com vista ao distrate do ónus referido em 3.

21. Em 22-7-09, a R. mulher elaborou e entregou nos serviços da Cooperativa um requerimento a solicitar uma cópia da carta que esta tinha entregue na CRP de Évora (Casa Pronta) no âmbito do processo de alienação do prédio a que se alude em 1. (fls. 137).

22. Nessa mesma data, a R. mulher remeteu um fax à Cooperativa informando que no dia seguinte, pelas 10.30 h, na CRP de Évora, iria realizar-se a escritura definitiva, solicitando a presença de um representante da Cooperativa para os devidos efeitos (fls. 143).

23. Também no dia 22-7-09, os RR. desocuparam o imóvel descrito em 1. e foram habitar com familiar da R. mulher, desocupação que foi realizada num único dia.

24. No dia 2-7-09, os RR. celebraram com JJ - Promoção Imobiliária, Ldª, um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel para habitação, tendo pago o valor de € 14.000,00 a título de sinal e princípio de pagamento do preço.

25. Após a venda do imóvel identificado em 1., pretendiam os RR. mudar a sua habitação para outro imóvel que tinham em vista.

26. Na data designada para a outorga da escritura de compra e venda - 23-7-2009 - encontravam-se presentes na Conservatória os AA. e os RR., que se fizeram acompanhar de advogado, irmão da R. mulher, a Conservadora, o representante da imobiliária EE, LL, um representante da Cooperativa e um representante da CGD, banco com inscrição de hipoteca sobre o imóvel (Ap. 6 de 2008/09/08) que seria simultaneamente o banco mutuante aos AA. do remanescente do preço ainda em falta.

27. No local, o representante da Cooperativa referiu que a “Taxa de construção” a que se alude em 4., requerida para a emissão do documento, com vista ao distrate do ónus, não havia sido paga, razão pela qual o documento não havia sido emitido.

28. Os AA. recusaram-se a realizar a escritura por considerarem que, assim, o prédio não ficava livre de ónus.

29. A escritura não se realizou, emitindo a Conservadora uma declaração onde consta que a escritura para esse dia designada não se efectuou por não ter sido apresentado documento comprovativo do cancelamento do pacto de preferência registado a favor da Coop. de Hab. Económica-GG, CRL, a coberto da apres. 31 de 29-11-04.

30. Quando entregou a declaração referida em 29., a Conservadora questionou ambas as partes sobre o que deveria fazer quanto ao procedimento Casa Pronta iniciado para formalizar o negócio prometido, dando-lhes duas alternativas: ou encerrá-lo de imediato e liquidar os emolumentos devidos, ou mantê-lo aberto, caso as partes considerassem existir possibilidade de o negócio se vir a concretizar.

31. A resposta de ambas as partes foi no sentido da segunda hipótese, pelo que a Conservadora manteve o procedimento aberto.

32. Logo aí os RR. informaram os AA. e a Conservadora de que iriam diligenciar junto da Cooperativa para solucionar o assunto, o que fizeram através dos docs. mencionados em 34., 35. e 38.

33. Dessas diligências, os RR. deram conhecimento aos AA.

34. No dia 23-7-09, a R. mulher remeteu uma carta à Cooperativa solicitando que, no prazo de 3 dias úteis, emitisse e lhe entregasse uma declaração escrita atestando o não exercício da preferência, para poder cancelar a inscrição registral de tal direito (fls. 145 a 147).

35. Na mesma data, a R. mulher deu entrada nos serviços da Cooperativa de um requerimento, dirigido à Direcção desta, solicitando a realização de uma reunião no dia 28 do mesmo mês, para resolver o assunto relativo à venda do imóvel (fls. 153).

36. Com data de 23-7-09, a R. mulher fez constar, por escrito, que informava os promitentes-compradores, ora AA.,

"Que, em face dos factos decorrentes do acto de escritura agendado para o dia de hoje, tomámos as diligências constantes das cartas que remetemos à Cooperativa GG e cuja cópia anexamos.

Assim, solicitamos aos promitentes-compradores que manifestem se mantêm a vontade de concretizar o negócio constante do contrato-promessa de compra e venda" (fls. 168).

37. No dia 28-7-09, realizou-se uma reunião entre a direcção da Cooperativa e os RR.

38. No dia 29-7-09 a R. mulher remeteu um fax à Cooperativa informando que, com vista a resolver o impasse criado, caucionaria, através de depósito escrow ou garantia bancária, a quantia que a Cooperativa entendia ser-lhe devida, e esta confirmaria por escrito o não exercício do direito de preferência por forma a ir ao encontro do entendimento da Conservadora quanto ao cancelamento do registo do pacto de preferência (fls. 158).

39. No dia 4-8-09, a Cooperativa respondeu ao fax referido em 38., informando os RR. de que recusava a proposta (fls. 159).

40. Em 10-8-09, o Instituto MM do Sector Cooperativo remeteu uma carta à R. mulher, por esta recebida, com o seguinte teor:

Considerando a questão suscitada, entende-se dever informar o seguinte:

Em termos de direito de preferência, a lei estipula que “no caso da alienação inter vivos de fogos construídos ou adquiridos com apoios financeiros do Estado, a cooperativa terá direito de preferência por 30 anos, contados a partir da data da primeira entrega do fogo” (art. 28º, nº 2, do DL n° 502/99, de 19-11).

Se o cooperador pretender vender o seu fogo deverá comunicar, nos termos estatutários ou legais, esse facto à cooperativa, indicando de forma clara, precisa e inequívoca a sua pretensão (art. 416° do CC).

No caso de a cooperativa exercer o direito de preferência, o preço da habitação resultará da aplicação da fórmula prevista no citado art. 28°.

Acrescente-se, também, que “no caso de a cooperativa não exercer o direito de preferência (...) no prazo fixado, caberá ao Instituto Nacional de Habitação exercer esse direito nos mesmos termos” (n° 5 do art. 28° do dipl. cit).

O não exercício do referido direito, pelas entidades referidas, nos prazos estipulados, implica a respectiva caducidade, e a consequente liberdade do cooperador contratar nos termos que considere adequados aos seus interesses.

Acresce finalmente referir que a comunicação enviada à GG (18-6-09) não pode ser considerada uma notificação para preferir, sendo antes uma notificação de venda” (fls. 76.

41. Os RR. intentaram contra a Cooperativa uma providência cautelar no sentido de obter decisão judicial que a obrigasse à emissão de declaração idónea ao cancelamento do ónus que impendia na CRP sobre o imóvel, que correu termos no 1o Juízo Cível, sob o n° 1869/09.9TBEVR.

42. Em 24-8-09, os RR. comunicaram aos AA. que haviam intentado uma providência cautelar contra a Cooperativa (fls. 173).

43. Com data de 27-8-09, os AA. remeteram aos RR. uma carta, registada com aviso de recepção (fls. 62 a 64), manifestando-lhes a quebra de confiança contratual ocorrida no dia designado para a realização da escritura, 23-7-09, e comunicando-lhes a decisão de resolução do contrato-promessa celebrado no dia 17-6-09; nessa carta, os AA. exigiram aos RR. a imediata entrega do valor correspondente ao dobro do sinal entregue, conforme doc. de fls. 62 a 64; os RR. receberam essa carta.

44. Na mesma data, os RR. remeteram aos AA. uma carta onde, além do mais, lhes comunicaram que mantinham interesse no negócio e continuavam disponíveis para concertar uma solução que satisfizesse ambas as partes.

45. Por carta datada de 2-9-09, registada e com aviso de recepção, os RR. responderam à carta mencionada em 43., informando os AA. que mantinham interesse na realização do negócio (fls. 176 a 178).

46. Por carta datada de 26-10-09, registada com aviso de recepção, os RR. informaram os AA. de que pretendiam restituir-lhes a quantia prestada a título de sinal (fls. 180).

47. Em 28-10-09, os AA. responderam à carta mencionada em 46., por carta registada, informando os RR. de que só aceitariam a devolução do sinal em dobro (fls. 182 e 183).

48. Os AA. gastaram o seu tempo, dinheiro e oportunidade de crédito bancário, no sentido de obterem a aprovação pelo banco mutuante, a CGD, S.A., de um empréstimo que lhes permitisse adquirir o imóvel, o que vieram a conseguir.

49. Para o efeito, os AA. tiveram as seguintes despesas: € 230,00 com o estudo do crédito, € 180,00 com a avaliação do imóvel e € 34,31 com o reconhecimento de assinaturas, num total de € 444,31.

50. Para procederem ao pagamento do valor do sinal, os AA. utilizaram todas as economias que possuíam e que correspondiam ao valor acumulado desde tenra idade de ambos.

51. Os AA. estão actualmente a residir numa habitação não própria e não podem adquirir outra habitação enquanto os RR. não lhes devolverem o sinal pago, acrescido de montante de igual valor, pois não têm dinheiro para o efeito, estando por isso inviabilizada a concretização do projecto de vida familiar no que concerne à paternidade e maternidade e a relação pessoal entre os AA. tem sofrido tumultos e conflitos, podendo a qualquer momento desmoronar-se enquanto casal.

52. Os RR. propuseram duas vezes aos AA. a devolução do sinal que estes prestaram.

53. Houve, pelo menos, um contacto entre os AA. e a Cooperativa e a Cooperativa facultou aos AA. cópia da correspondência trocada com a R.

54. Os AA. deixaram a habitação onde se encontravam a residir, para irem ocupar o imóvel que prometeram adquirir.

55. A Cooperativa foi declarada insolvente em 23-10-09.


III – Decidindo:

1. Não encontra qualquer subsistência a arguida nulidade do acórdão sustentada na falta ou na insuficiência da fundamentação. Tais vícios não se verificam, na medida em que, embora com discordância dos RR., o acórdão respondeu às questões que foram suscitadas.

O facto de nele se ter aderido em larga margem à sentença de 1ª instância não revela aquele vício, compreendendo-se tal opção da Relação em face da qualidade substancial e formal da sentença da 1ª instância, em que, a par de uma ordenada e cronológica enunciação dos factos provados, nos confrontamos com uma correcta e profunda fundamentação jurídica.

2. Os AA. declararam a resolução do contrato-promessa de compra e venda que celebraram com os RR., depois de se verificar que estes não conseguiram remover as inscrições prediais existentes à margem do seu direito de propriedade sobre a fracção, mais concretamente o “pacto de preferência” com eficácia real e a obrigação de pagamento à Cooperativa, que construiu o prédio, de uma “taxa de construção” para a eventualidade de não exercer o direito de preferência. Essa remoção não foi demonstrada nem quando foi designada a data para a outorga escritura pública de compra e venda, nem depois das diligências que posteriormente foram empreendidas pelos RR. junto da referida Cooperativa.

Perante tais circunstâncias, consideraram os AA. que houve incumprimento da obrigação de celebração do contrato definitivo “livre de ónus e encargos”, pedindo a condenação dos RR. na devolução do sinal em dobro.

Já os RR. argumentam nesta acção que não existiam razões que justificassem a recusa de outorga do contrato definitivo pelos AA., uma vez que a falta de cancelamento das aludidas inscrições não prejudicava a transferência do direito de propriedade. Concluem que os AA. não tinham motivos para declarar a resolução do contrato com base na quebra de confiança, sendo aquela actuação ilegítima e geradora do direito de fazerem seu o sinal que foi prestado pelos AA.

Afirmam os RR. que tudo quanto a Cooperativa exigia à R. para a emissão da declaração necessária ao cancelamento das inscrições prediais não tinha base legal. Posto que a consagração do “pacto de preferência” e da “taxa de construção” resultasse dos estatutos da Cooperativa, argumentam que era ilegal a exigência dessa taxa como contrapartida da subscrição da declaração de distrate.

3. Vejamos:

É inegável o esforço dos recorrentes em torno da discussão da natureza jurídica do “pacto de preferência”, com eficácia real, e da obrigação de pagamento da “taxa de construção” estabelecida a favor da Cooperativa. Sem dúvida alguma, as alegações apresentadas pelos recorrentes revelam uma profundidade pouco usual no tratamento de matérias jurídicas, tão complexas quanto lacunosas na doutrina e na jurisprudência, relacionadas com as figuras dos ónus reais e dos encargos levados ao registo predial.

Igualmente assinalável é o esforço argumentativo no sentido de esvaziarem de conteúdo quer o pacto de preferência, quer a obrigação de pagamento da taxa de construção, para sustentarem a afirmação de que os AA. nada teriam a temer com a manutenção de tais inscrições prediais e de que, deste modo, não se justificava a sua recusa na outorga do contrato de compra e venda.

Todavia, evidencia-se uma falha no percurso argumentativo que, afectando a premissas, se repercute na conclusão.

Como bem o revela a certidão da sentença judicial que consta de fls. 352 e segs., com nota de trânsito em julgado em 3-8-12, algumas das questões que os RR. pretendem reavivar nesta revista já foram apreciadas no âmbito de uma outra acção que intentaram contra a Massa Insolvente da Coop. GG, construtora do edifício, tendo recebido da instância judicial uma resposta inteiramente negativa. Assim aconteceu com a nulidade do art. 76º, nº 4, dos Estatutos da Cooperativa, com a nulidade da cláusula atributiva do direito ao recebimento de uma taxa de construção e com a nulidade do registo do pacto de preferência.

Posto que a sentença tenha sido proferida em 13-7-12, depois de ter sido instaurada a presente acção, já se encontrava transitada em julgado quando foi interposto o presente recurso de revista, não sendo legítimo ignorar o seu teor, como se todas as referidas questões constituíssem ainda matéria virgem que devesse ser desbravada no âmbito da presente acção em que os AA. são os seus interlocutores.

Por conseguinte, para além de as questões já terem sido suscitadas numa acção em que era contraparte a única entidade que poderia responder pelas mesmas, a sua enunciação na presente acção erra o alvo, tendo em conta que os AA. intervieram como simples promitentes-compradores de uma fracção que se encontrava disponível no mercado imobiliário. Sendo a relação dos AA. com os RR. limitada à subscrição de um contrato-promessa de compra e venda de uma fracção autónoma que pretendiam adquirir, livre de quaisquer embaraços prediais, e não tendo os AA. qualquer conexão nem com a Cooperativa que construiu o edifício, nem com a primitiva venda feita pela Cooperativa à R., não é legítimo que sejam confrontados com as dificuldades que apenas os RR. podem ultrapassar e cujas consequências apenas se deverão reflectir nas respectivas esferas jurídicas.

4. Os RR. recorrentes sustentam que os AA. seriam obrigados a outorgar o contrato definitivo, apesar de se manter no registo predial quer o “pacto de preferência”, quer o “encargo” da R. de proceder ao pagamento de uma prestação a favor da Cooperativa de Habitação, sendo esta última para a eventualidade de a Cooperativa não exercer aquele direito de preferência.

As questões lançadas pelos RR. nas suas alegações de recurso apresentam-se com um carácter essencialmente teórico, não cabendo a este Supremo Tribunal tomar posição sobre as mesmas, a não ser que algum efeito pudesse produzir-se na resolução do caso concreto, o qual pura e simplesmente não existe. Este Supremo Tribunal de Justiça deve tratar com a necessária profundidade as questões jurídicas suscitadas nas alegações ou outras que sejam de conhecimento oficioso, mas apenas na estrita medida em que das mesmas possa colher algum elemento com relevo para a resolução dos concretos litígios, não sendo exigível uma abordagem das questões numa perspectiva meramente teórica.

Em tese, seria porventura interessante abordar a natureza jurídica dos chamados ónus reais, distinguindo-os de outras figuras próximas, tal como o seria analisar a problemática do registo desses ónus e encargos, designadamente no que concerne à sua eficácia externa. Contudo, para tal ocorresse seria necessário que das conclusões que então viessem a ser formuladas algo pudesse ser aproveitado para a resolução do presente conflito, o que não ocorre.

5. Como os RR. defendem, não custaria admitir a caducidade do direito de preferência convencional que se traduziu na concessão à Cooperativa de uma opção para adquirir a fracção que a R. cooperante pretendesse vender, bastando evidenciar que, decorrido o prazo para o exercício do referido direito de opção sem que a Cooperativa tivesse declarado a vontade de adquirir a fracção, tal direito se terá extinguido.

Contudo, apesar disso, à data a que os autos se reportam, o pacto de preferência com eficácia real continuava a constar do registo predial e, além disso, a Conservadora do Registo Predial que iria formalizar a compra e venda fez saber aos AA. que apenas cancelaria essa inscrição depois de ser apresentada uma declaração de renúncia subscrita pela Cooperativa beneficiária, entidade que, por seu lado, fazia depender a declaração do pagamento de uma quantia a título de “taxa de construção”.

Quanto à aludida “taxa de construção”, também não custaria aceitar que, apesar de constar do registo predial, apenas oneraria a parte que outorgou na primitiva escritura de compra e venda, ou seja, a R. que adquiriu a fracção à Cooperativa. A referida “taxa de construção” correspondia a uma obrigação assumida pela R. cooperante perante tal entidade, de modo que, embora tivesse sido levada ao registo predial, os seus efeitos não excederiam a esfera jurídica da A., não se transmitindo a terceiros adquirentes da fracção.

Todavia, tal como se disse a respeito do “pacto de preferência”, aquela obrigação continuava a constar do registo predial, constituindo um elemento perturbador da segurança da transmissão a merecer dos AA. o seu prévio cancelamento, o qual, no entanto, apenas seria alcançado depois de ser obtida a referida declaração da Cooperativa.

O cancelamento de tais registos constituía um ónus que impendia sobre os promitentes-vendedores, permitindo a outorga do contrato prometido sem quaisquer impedimentos formais e materiais ao direito de propriedade (arts. 879º, al. a), e 905º e segs. do CC). Ónus que, de todo o modo, fora expressamente assumido pelos promitentes-vendedores e que, por essa via, igualmente estariam vinculados ao mesmo (arts. 405º e 406º do CC).

6. Observam os recorrentes que tanto o registo do “pacto de preferência” como o da “taxa de construção” estavam eivados de diversos vícios conexos quer com a validade substancial das declarações negociais respectivas, quer com o preenchimento dos requisitos a que obedecem as inscrições registrais.

Não vamos discutir aqui tal argumentação, na medida em que, como se disse anteriormente, a problemática inerente a tais questões respeita fundamentalmente aos RR. e à Cooperativa, sendo totalmente alheia aos AA. Além disso, como também já se referiu, tais questões foram suscitadas pelos RR. noutra acção que foi intentada contra a Massa Insolvente da Cooperativa, tendo aí recebido uma resposta negativa.

O que de modo algum pode passar em claro na presente acção é que o nível argumentativo dos recorrentes para sustentação da sua posição acerca dos diversos vícios materiais e formais das inscrições registrais apenas vem confirmar o risco que constituiria para os AA. a outorga do contrato prometido, adquirindo o que, numa linguagem financeira muito em voga, poderia revelar-se um “produto tóxico” susceptível de determinar a ocorrência de prejuízos patrimoniais ou de incómodos pessoais na esfera dos RR.

Os RR. pretendem convencer que tudo afinal não passaria de um fogo fátuo que desapareceria logo que os AA. confrontassem a Cooperativa com diversas normas do Código Civil, do Código de Registo Predial, de diplomas que regulam a actividade das Cooperativas de Construção e de Habitação ou até com argumentos jurídicos extraídos da Constituição, tuteladora do direito de propriedade. Diplomas e normas que, conjugada e alegadamente, se sobreporiam a qualquer pretensão da Cooperativa ou que derrubariam qualquer dificuldade assente na persistência das inscrições registrais.

Trata-se, contudo, de uma alegação que não colhe. Se é verdade que com a outorga do contrato de compra e venda prometido se salvaria a posição dos RR., poderia sair agravada a situação dos AA. que, sem poderem aceder aos meios de defesa próprios de quem tinha a qualidade de cooperante, ficariam à mercê de exigências da Cooperativa na ocasião em que se propusessem obter o cancelamento da inscrição.

Do que os AA. seguramente não se livrariam era da necessidade de defrontarem tal entidade quando pretendessem a eliminação das inscrições prediais e a libertação, com carta de alforria, do direito de propriedade amarrado a laços sustentados em regras do registo predial com eficácia erga omnes.

Os AA. não sabiam nem tinham que saber se o direito emergente do “pacto de preferência” caducara ou não, se se mantinha ou não a obrigação de pagamento da “taxa de construção”, se um e outra tinham base legal ou convencional ou se se transmitiam ou não para os adquirentes da fracção, enfim, se a aparente subsistência de factos sujeitos a registo encontrava ou não qualquer correspondência no direito material. Tudo isto era assunto da estrita esfera dos RR. e da Cooperativa, cabendo aos primeiros apresentar aos AA. um “produto” livre de todos os escolhos que se tornavam visíveis mediante a simples consulta do registo predial.

De modo mais prosaico, mas que traduz a realidade observável através do encadeamento de factos apurados, os RR., que não convenceram a Cooperativa a emitir a declaração de renúncia à preferência antes de receber a quantia respeitante à “taxa de construção”, procuram desembaraçar-se da situação, transferindo para os AA. o risco da operação, o qual poderia traduzir-se no surgimento de um posterior litígio com a Cooperativa quando pretendessem cancelar as referidas inscrições prediais.

7. Dizem os recorrentes, com aparente tranquilidade, que a Cooperativa não exerceu o direito de preferência, de modo que o mesmo caducou, pelo que o facto de continuar a constar do registo o pacto de preferência com eficácia real não faz ressuscitar um direito que entretanto se extinguiu. Com a mesma tranquilidade e bastante indiferença afirmam ainda que a inscrição da obrigação de pagamento de uma contraprestação em casos de não exercício do direito de preferência apenas era oponível à R., não podendo a Cooperativa reclamar dos AA. esse crédito.

Sejamos claros.

Os AA. não têm nem jamais pretenderam ter qualquer relação com a Cooperativa que construiu o edifício e que vendeu à R. a fracção em causa; não têm nem tinham que ter formação jurídica que lhes permitisse compreender todas as nuances dos ónus reiais e dos encargos ou dos mecanismos que levaram ao registo ou que poderiam justificar o seu cancelamento.

Foi a R. que subscreveu a escritura pública na qual foi inserido um “pacto de preferência” a favor da Cooperativa e que aceitou que nela figurasse a obrigação de lhe entregar uma determinada quantia, a título de “taxa de construção”, se acaso esta não exercesse o direito de preferência; foram os RR. que se incumbiram de vender aos AA. a fracção autónoma “livre de ónus e encargos”, expressão que, abarcando seguramente direitos reais de garantia, como a hipoteca ou outros direitos reais, é extensiva a outros factos que, derivando exclusivamente das relações estabelecidas entre a Cooperativa e a R. cooperante, constassem formalmente do registo predial.

E ainda com mais clareza e inequivocidade.

Os AA., como promitentes-compradores, tinham o inegável direito – que emerge do contrato, mas que sempre resultaria da lei supletivamente aplicável – de apenas aceitarem a outorga do contrato de compra e venda depois de serem afastados todos os escolhos que imediatamente eram visíveis, quer por resultarem do registo predial, quer por decorrerem de declarações emitidas pela Cooperativa acerca das condições exigidas para a entrega de uma declaração de distrate à margem do direito de propriedade (“pacto de preferência” e “taxa de construção”).

Os AA., que simplesmente procuraram no mercado habitacional uma fracção que correspondesse às suas possibilidades e necessidades, tinham legitimidade para recusar a outorga da escritura pública enquanto se mantivesse o sombrio circunstancialismo que continuava a marcar o relacionamento entre a Cooperativa e a R. e que, com ou sem razão assente na lei, continuava a afectar de facto a segurança jurídica da operação imobiliária e a interferir objectivamente no valor da fracção.

Tudo o que respeitava às obrigações assumidas pela R. perante a Cooperativa e que de forma real ou aparente interferia na consistência do direito de propriedade ou que, com ou sem motivo legal, continuava a ser discutido entre essas partes constituía matéria que apenas respeitava aos RR. e à Cooperativa, não sendo os AA. obrigados a carregar o fardo da discussão da problemática jurídica em torno da legitimidade da Cooperativa relativamente às suas reclamações, tal como não teriam de suportar o risco económico e financeiro da operação.

Também não era legítimo impor aos AA. que, sem a sua aceitação, se vissem colocados no centro de um conflito com a Cooperativa, depois de os RR. se porem a salvo com o recebimento da totalidade do preço da compra e venda.

8. Os recorrentes insurgiram-se contra as exigências da Cooperativa, mas tal reacção não bastava para acautelar os interesses dos promitentes-compradores que exigiam o cancelamento daquelas inscrições prediais.

É verdade que instauraram contra a Cooperativa um procedimento cautelar com o objectivo de obterem a aludida declaração sem necessidade de pagamento da quantia exigida. Mas tal actuação não surtiu efeito a tempo de ser outorgado o contrato prometido.

Também se prontificaram a apresentar à Cooperativa uma garantia de pagamento da “taxa de construção”. Porém, na medida em que essa garantia não satisfazia as pretensões da Cooperativa, prolongando o conflito com eventual discussão da legitimidade da exigência, a mesma manteve a recusa de entrega da declaração para distrate das inscrições registrais.

Por todos estes motivos, e sem necessidade de discutir os efeitos das inscrições que continuavam a persistir sobre a fracção autónoma, fica claro que foram os RR. que perante os AA. não cumpriram o estabelecido no contrato-promessa.

9. É tempo de responder categoricamente à questão que essencialmente interessa para a resolução do diferendo:

Havia fundamento para a declaração de resolução do contrato-promessa de compra e venda que foi comunicada pelos AA. aos RR.?

Como o indiciam os anteriores argumentos, a resposta não pode deixar de ser afirmativa, com efeitos na confirmação do acórdão recorrido e, consequentemente, na improcedência da pretensão reconvencional dos RR.

Sendo legítimo aos AA. recusar a outorga da escritura pública antes do cancelamento efectivo das referidas inscrições prediais e não tendo sido realizado esse cancelamento nem sequer depois da primeira data que foi designada para a outorga do contrato prometido, fica clara a legitimidade da declaração de resolução que foi formulada pelos AA. e a consequente obrigação dos RR. de procederem à devolução do sinal em dobro, em resultado do incumprimento definitivo do contrato-promessa que, insista-se, obrigava à outorga da venda da fracção “livre de ónus e encargos”.

O alinhamento dos factos essenciais e a sua conjugação com as normas jurídicas aplicáveis não deixa lugar a dúvidas:

- A fracção que foi objecto de contrato-promessa de compra e venda apresentava como inscrições, para além do direito de propriedade a favor da R., um “pacto de preferência” por 30 anos e uma “taxa de construção” a favor da Cooperativa;

- Os RR. prometeram vender a fracção “livre de ónus e encargos”, mas na data designada para a escritura pública – 23-7-2009 – as inscrições mantinham-se activas e aqueles não lograram obter da Cooperativa uma declaração que permitisse o cancelamento, efeito que a Conservadora do Registo Predial também recusava sem que lhe fosse apresentada a declaração de renúncia subscrita pela Cooperativa para efeitos de distrate;

- Por causa disso, e unicamente por causa disso, os AA. recusaram-se a celebrar o contrato de compra e venda na primeira data que foi designada para o efeito, embora não afastassem a sua outorga em data posterior, condicionada ao referido distrate;

- Para o efeito, os RR. procuraram obter da Cooperativa a declaração, mas a mesma foi recusada pela Cooperativa em 29-7-2009, mesmo depois de a R. ter declarado que ofereceria uma garantia bancária no valor da taxa de construção;

- Para superação do impasse os RR. intentaram contra a Cooperativa uma providência cautelar em 24-8-2009, facto que comunicaram aos AA., os quais, em face da ausência de uma resposta mais ajustada aos seus interesses, que não se satisfaziam com a demora de um processo judicial de intimação da Cooperativa, responderam a 27-8-2009 declarando a resolução do contrato;

- Os RR. que, num primeiro momento, não se conformaram com essa declaração, mantendo a intenção de outorgarem o contrato, em 26-10-2009 propuseram aos AA. a restituição do sinal prestado, o que estes recusaram, já que pretendiam receber o sinal em dobro;

- Os AA. empenharam no contrato-promessa todas as suas economias, pretendendo com a sua outorga a aquisição de uma casa onde pudessem viver como casal, tendo abandonado a habitação onde viviam;

- Para além da restituição do sinal em singelo, os RR. não confrontaram os AA. com outra solução que, de modo razoável, permitisse a celebração do contrato de compra e venda “livre de ónus e encargos”.

10. A correcta integração jurídica dos factos apurados impõe que se atenda a todo o circunstancialismo que rodeou a outorga do contrato-promessa de compra e venda e às diligências que se sucederam até à declaração da resolução por iniciativa dos AA.

Para além de ser inadequado seguir o percurso metodológico que os RR. escolheram e que, como já se afirmou, tinha como principal objectivo afirmar a ausência de uma justificação legítima para a declaração de resolução, também não é correcto seccionar a realidade em factos atomísticos e chamar à colação normas desgarradas para nelas assentar a solução do caso. Ao invés, a justa composição do litígio em que os AA., sem qualquer quota de responsabilidade, se viram envolvidos, com prejuízos sérios para as suas expectativas relativamente à outorga do contrato de compra e venda e com riscos não menos sérios para o seu relacionamento, implica que se observe a realidade através de uma perspectiva impressionista que privilegie a imagem formada pelo conjunto de elementos integrantes.

A complexidade do sistema normativo a que deve apelar-se para nele encontrar a resposta adequada à concreta situação encontra correspondência na complexidade dos fenómenos sociais que são transpostos para os processos judiciais, cabendo aos tribunais a tarefa de proceder a uma correcta articulação da matéria de facto e de direito por forma a evitar soluções que, sendo porventura formalmente sustentadas, contrariam a natureza das coisas e o senso comum.

Enfim, ainda que os RR. se tivessem esforçado no sentido de nos desviar para um outro trajecto, perseguindo uma conclusão que revelasse a natureza injustificada da declaração de resolução, o certo é que, recentrado o litígio naquilo que verdadeiramente interessa a ambas as partes, o que se nos apresenta é precisamente o inverso daquilo que os RR. almejam.

Os AA. agiram como agiria qualquer interessado nas mesmas circunstâncias, fugindo de uma situação que se prefigurava problemática. Mantendo-se o contrato-promessa de compra e venda, corriam o risco de não conseguirem, num prazo razoável, a outorga do contrato de compra e venda da fracção liberta dos “ónus e encargos” que continuavam e continuariam a pesar sobre a mesma.

Já, por seu lado, se avançassem para a outorga do contrato prometido, como pretendiam os RR., desembolsando o montante que faltava para o pagamento do preço, corriam o risco de jamais se libertarem dos famigerados “ónus e encargos” que continuariam a pairar sobre a fracção e sobre as suas vidas ou o risco de se verem envolvidos num conflito com a Cooperativa em torno da caducidade do “pacto de preferência” ou da exigibilidade da “taxa de construção”.

Nenhum dos caminhos que os RR. apontavam aos AA. (recusada que foi a mera devolução do sinal em singelo) lhes convinha ou era exigível.

Não o era a manutenção do contrato-promessa de compra e venda, já que, deste modo, não ficava resolvida a pretendida aquisição da fracção para a qual os AA. conseguiram obter o financiamento bancário. Também não o era a outorga da compra e venda que, embora livrando os RR. de todos os problemas suscitados pela recusa da Cooperativa, os transferia para os AA. que nenhuma responsabilidade tiveram nas inscrições prediais e que, por conseguinte, não tinham que arcar nem com os riscos de litigância, nem com os efeitos negativos que, para a segurança do seu direito e para a valorização da sua propriedade, advinham da persistência dos “ónus e encargos” cujo cancelamento exigia a colaboração da Cooperativa ou uma decisão judicial que a substituísse.

Por conseguinte, em face das circunstâncias, e dado que nenhuma outra solução satisfatória foi apresentada pelos RR., revelava-se inexigível aos AA. a manutenção do statu quo, sendo, por isso, justificada a declaração de resolução do contrato.

O circunstancialismo que rodeou a outorga do contrato-promessa, a data designada para a celebração do contrato prometido e as negociações e troca de correspondência entre os sujeitos intervenientes revelam que a situação se apresentava totalmente bloqueada, justificando da parte dos AA. a sua desvinculação através da única forma de que dispunham, ou seja, através da declaração de resolução do contrato, por incumprimento definitivo do contrato promessa, nos termos do art. 808º do CC.

11. Dizem os RR. que nenhuma culpa lhes pode ser assacada relativamente à situação e que tudo fizeram para que a Cooperativa emitisse a declaração de renúncia necessária ao cancelamento das inscrições prediais.

Tal alegação surge para defrontar a presunção de culpa que emerge do art. 799º, nº 1, do CC, preceito que, em face da matéria de facto apurada, não se mostra fácil de ultrapassar.

Efectivamente os RR. comprometeram-se a outorgar o contrato de compra e venda da fracção “livre de ónus e encargos” e, mais concretamente, liberta das inscrições anexas ao seu direito de propriedade. Porém, não conseguiram nem revelaram a possibilidade de o conseguir em prazo razoável, mantendo os AA. numa situação de indefinição quanto à celebração do contrato definitivo.

Respeitando os embaraços unicamente às relações entre a R. e a Cooperativa e não tendo nisso os AA. qualquer interferência, um caminho alternativo se apresentava aos RR. que poderiam ter desbravado, a fim de cumprirem, em tempo oportuno, o compromisso assumido perante os AA. Afinal, como a Cooperativa o declarou no dia em que todos compareceram para a outorga do contrato de compra e venda e em comunicações posteriores, bastaria que os RR. lhe pagassem a quantia reclamada como “taxa de construção” e que encontrava sustentação num compromisso que a R. assumira aquando da compra da fracção.

Repare-se que uma tal opção não prejudicava sequer a possibilidade de entre tais interessados se discutir posteriormente a validade dessa exigência, podendo antecipar-se a possibilidade de o litígio acerca dessa matéria ser resolvido pela única via que seria vinculativa para ambas, sem prejudicar os interesses dos AA.

Porém, entre o respeito do compromisso assumido pelos RR. perante os AA. e a defesa dos seus interesses perante a Cooperativa tudo apontava para a necessidade de privilegiarem o primeiro.

Por conseguinte, o simples facto de os RR. terem encontrado resistência na obtenção de uma declaração de renúncia da Cooperativa não afasta a sua responsabilidade presumivelmente culposa em face do incumprimento daquilo a que se haviam comprometido perante os AA.

Aliás, as dificuldades que, em geral, os devedores encontram para o cumprimento das obrigações assumidas, designadamente de natureza económica, não bastam para os exonerar da responsabilidade contratual. A não ser em casos extremos que apelam à não exigibilidade, a alegação de difficultas praestandi não basta para livrar o devedor da sua responsabilidade pelo incumprimento da obrigação assumida.

No contexto da presente acção não são invocáveis perante os AA. os motivos que, na perspectiva dos RR., permitiriam afirmar a ilegitimidade do comportamento da Cooperativa, nem a alegada invalidade de normas estatutárias, nem a  invalidade das convenções que, apesar de tudo, ficaram a integrar a escritura pública de compra e venda e sustentaram as inscrições prediais, nem quaisquer outros meios de defesa que eventualmente pudessem ser usados contra a Cooperativa.

Tudo isso, insista-se, é matéria que não ultrapassa a esfera dos sujeitos directamente interessados e que não pode repercutir-se negativamente na esfera dos AA., confirmando-se, assim, a presunção de culpa no incumprimento prevista no art. 799º, nº 1, do CC.

IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista excepcional, confirmando o acórdão recorrido.

Custas da revista a cargo dos RR.

Notifique.

Lisboa, 22-1-15


Abrantes Geraldes (Relator)


Tomé Gomes


Bettencourt de Faria