Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
12693/16.2T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: TRANSFERÊNCIA ELETRÓNICA DE FUNDOS
ELECTRONIC FUND TRANSFER
TRANSFERÊNCIA BANCÁRIA
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
PRESSUPOSTOS
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 11/27/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: HENRIQUE ARAÚJO
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / NÃO CUMPRIMENTO / FALTA DE CUMPRIMENTO E MORA IMPUTÁVEIS AO DEVEDOR.
Doutrina:
- Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, p. 467;
- Catarina Anastácio, A Transferência Bancária, p. 349;
- Maria Raquel Guimarães, As transferências electrónicas de fundos e os cartões de débito, p. 18 e ss.;
- Vaz Serra, Provas – Direito Probatório Material, BMJ n.º 110, p. 120.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 344.º E 799.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO:


- DE 17-12-2008, PROCESSO N.º 0327/08, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - A operação de transferência eletrónica de fundos (Electronic Fund Transfer, ou, simplesmente, EFT), consiste na ordem de transferência de fundos, dada por uma pessoa a favor de outra, através de meios eletrónicos.

II - A procedência dos pedidos formulados pelo ordenante da transferência bancária contra o Banco, no âmbito da relação contratual estabelecida entre ambos, depende da prova dos pressupostos típicos da responsabilidade civil: o facto ilícito, a imputação do facto ao agente, a culpa (que a lei presume ser do devedor – art. 799.º do CC), o dano, e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

III - O facto ilícito invocado traduzir-se-ia, segundo o autor, na circunstância de as ordens de transferência terem sido executadas pelo Banco apesar de não ter sido ele quem as emitiu e de estas terem sido “feitas à sua revelia”.

IV - A maior dificuldade da prova de um facto negativo, fora da estrita previsão do artigo 344.º do CC, não faz inverter o ónus da prova.
Decisão Texto Integral:

PROC. N.º 12693/16.2T8PRT.P1.S1

REVISTA EXCEPCIONAL

            REL. 60[1]

                                                                       *

AA, consultor jurídico, residente na rua ..., n.º …, …, intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra “BB, S.A.”, com sede na rua ..., n.º …, ..., pedindo que este se seja condenado a:

a) restituir ao Autor a quantia global de 218.863,38 €, acrescida de juros, contados desde o levantamento dos valores em causa;

b) pagar ao Autor compensação pelos danos não patrimoniais sofridos, que liquida em 10.000,00 €.

Alegou, em síntese, o seguinte:

- Tendo procedido à abertura da conta bancária nº ...na agência de ... do Réu, transferiu para essa conta, em 08.07.2013, 1.500.000,00 €, com o objectivo de adquirir um imóvel, finalidade de que deu conhecimento ao seu gestor de conta.

- Com a frustração desse negócio, a conta bancária aberta junto do Réu ficou destinada a pequenos pagamentos do dia-a-dia da vida do Autor em Portugal, além da compra do imóvel que, de facto, viria a concretizar posteriormente.

- Tinha confiança no Réu, e particularmente no seu gestor de conta, com quem conversava frequentemente;

- Devido às suas frequentes ausências de Portugal, o Réu conferiu-lhe a possibilidade de efectuar movimentos na sua conta bancária mediante instruções enviadas por “e-mail”;

- Para o efeito, em 17.09.2013, Autor e o Réu celebraram acordo com a designação “...”, pelo qual passou a ser possível, ao primeiro, enviar por “e-mail” instruções quanto à execução das transacções pelo Banco Réu ;

- Tais instruções consistiam na realização de pagamentos, geralmente de valor inferior a 10.000,00 €, muito raramente em transferências pessoais, para outras contas bancárias, e mais raramente ainda para contas bancárias fora de Portugal;

- Ao Réu cabia, na pessoa do seu gestor de conta, controlar e verificar os movimentos bancários, de forma diligente, alertando para eventuais anomalias, podendo mesmo bloquear pagamentos e /ou transferências.

- No dia 04.03.2014, foram ordenadas 2 transferências bancárias da sua conta: uma no valor de 57.000,00 €, destinada a “S...”, ...(...); e uma outra, no valor de 40.000 £ (cerca de 48.863,38 €), destinada ao “..., PLC”, ..., ... (...).

- E, em 11.03.2014, mais 2 transferências bancárias, cada uma no valor de 85.000,00 €, sendo uma destinada ao “...” (...), e a outra destinada ao “...” (...).

- A ordem para a realização destas operações foi enviada através do seu endereço de “email”, mas foram feitas à sua revelia, desconhecendo a identidade do emitente;

- Estas instruções referiam-se a valores muito mais altos que os valores dos movimentos feitos na sua conta bancária e representavam operações sem relação com a finalidade previamente fixada à conta bancária;

- Aliás, caso tivesse sido executada a ordem de transferência de 57.000,00 €, a conta ficaria a descoberto em cerca de 25.000,00 €.

- A transferência de 57.000,00 € frustrou-se devido a uma irregularidade técnica, o que não sucedeu com as restantes três, sendo certo que as singularidades formais dessas ordens de transferência, designadamente quanto aos erros ortográficos e dactilográficos que apresentavam, deveriam ter alertado o Réu para a falta da sua autenticidade;

- Viveu momentos de angústia com toda a situação e a perda do valor correspondente às transferências fraudulentas desarranjou toda a sua vida, sentindo-         -se frustrado por não poder confiar nos serviços bancários do Réu, tendo ainda sofrido outros danos na sua saúde.

O Banco Réu apresentou contestação, rejeitando qualquer responsabilidade e pedindo a improcedência da acção.

Instruída a causa, realizou-se a audiência de julgamento e foi proferida sentença que decretou a absolvição do Réu quanto à totalidade dos pedidos.

O Autor recorreu, mas o Tribunal da Relação do ... julgou a apelação improcedente e confirmou a decisão da 1ª instância.

Ainda inconformado, apresentou o Autor recurso de revista normal, ao abrigo do n.º 3 do artigo 671º do CPC, por entender que o acórdão da Relação do ... utilizou fundamentação essencialmente diferente da que foi usada na decisão da 1ª instância.

Subsidiariamente, invocou a possibilidade da revista excepcional, nos termos do artigo 672º, n.º 1, alíneas a) e b) do CPC.

As conclusões inscritas na revista são as seguintes:
I) O Autor, ora Recorrente, considera que face à matéria de facto definida na primeira instância, e posteriormente aditada em sede de recurso, outra teria de ser a decisão de direito.
II) Reapreciada que foi a prova produzida, decidiu o Tribunal da Relação aditar os pontos 2A, 13A e 21A; ou seja, passou também a ser dado como prova­do que:

a. “o Autor é cliente do Réu desde 02/11/2011, tendo como seu Gestor de
Conta o referido CC
;

b. já antes de ter sido assinado o documento referido (AIR) as ordens
de transferências eram emitidas em anexos assinados, enviados por
e-mail
;

c. as assinaturas constantes das ordens de transferência referidas nos
pontos 14 e 15 não foram verificadas pelo gestor de conta nem pelo
gerente do balcão.”

III) Perante o complemento desta factologia, mais sólida ficou a posição do Autor que, desde a primeira hora, considerou que as referidas transferências ilícitas, só ocorreram por manifesta falta de cuidado do Réu
IV) Não foi esse o entendimento da Relação que, considerando não ter provado o Autor de que tais transferências não foram por ele ordenadas ou, ainda, de que o Autor não conhece a identidade dos emitentes das ordens de transferência referidas em 14 e 15, tudo o mais passou a ficar prejudicado, não sendo objecto de apreciação – e aqui, a razão principal de discordância do Autor.
V) Poderiam ter decorrido as referidas transferências, se os funcionários do Réu tivessem cumprido as suas obrigações? A resposta tem de ser sempre negativa. Se os funcionários do Réu cumprissem os deveres a que estavam contratual e legalmente obrigados para com o Autor, nenhum êxito teriam tais transferências (fosse quem fosse que as ordenasse). Aí, já nem se colocaria sequer a hipótese de exigir ao Autor que identificasse os ordenantes de tais transferências, ou demonstrasse não ter sido ele próprio a urdir tão desprezível estratégia!
VI) Como foi aditado à matéria de facto, o objectivo da abertura de conta no BB, em 2/11/2011, “destinava-se, além do mais, a pequenos pagamentos do dia-a-dia da vida do autor em Portugal.”
VII) Tal alteração, aparentemente insignificante, vai ter influência directa na análise dos movimentos da conta (transações de valores baixos e destinos das mesmas); mas é essencialíssima para se comprovar que os movimentos da conta sempre foram solicitados pelo Autor através de instruções enviadas em anexos descritivos, remetidos ao Réu por e-mail, muito antes da assinatura do “contrato de adesão” (AIR).
VIII) Desse modo cai por terra o motivo da assinatura do AIR, em 17/09/2013. Tal assinatura nada tinha a ver com a autorização do Autor ao Réu para ser a conta movimentada através de instruções enviadas pelo e-mail ....com. Desde a abertura da conta que a mesma era movimentada dessa forma (metodologia sugerida pelo funcionário do Réu, CC, conforme o comprova o e-mail junto pelo Autor em 12/06/2017, para contradita do que tinha declarado [falsamente] o referido funcionário).
IX) Contudo, segundo o funcionário CC (quanto à “forma acordada”) bastaria que a ordem viesse daquele e-mail para que a mesma se cumprisse! Idêntica convicção revelou o outro funcionário do Réu, também envolvido no problema: o gerente DD. Só que as outras testemunhas também do Réu (a auditora EE e o director EE) vieram demonstrar o contrário: terem tais funcionários o dever de verificar as ordens e as assinaturas.
X) Apesar desta alteração da matéria de facto ter uma significativa implicação no raciocínio crítico do julgador, não foi o mesmo desenvolvido. Salvo o devido respeito, o Tribunal da Relação não conseguiu ir para lá do que vinha pré-concluído pela primeira instância, num quadro factual incompleto e imperfeito. Depois da alteração do quadro factual, esperava-se uma apreciação crítica diferente, uma convicção adequada e influenciada pelo aditamento dos novos factos.
XI) Não cumpriu assim o douto acórdão com o art. 607.º/4, 662.º e 663.º, do CPC.

XII) Tomando em conta o aditamento à matéria de facto ordenada pela Relação, fácil se torna concluir que não houve, por parte do Réu, qualquer conferência das ordens de transferências, processadas pelo Réu em 4 e 11 de Março de 2014. Também não houve qualquer controlo das assinaturas apostas nessas ordens. Segundo os próprios funcionários do Réu (excepto as chefias: FF e EE) nem era necessário haver tais conferências; bastava apenas apurar que vinham daquele endereço de e-mail para serem de imediato processadas.

XIII)    Esquecem os funcionários do Réu que há deveres contratuais, regras gerais,
leis nacionais e directivas europeias que obrigam a um maior controlo de
transacções electrónicas; por outro lado, ignoram também que sobre
determinados clientes (como é o caso do Autor) há um especial dever de
vigilância (protectora) da sua própria conta e dos seus movimentos, tal é o
risco que as suas transacções comportam (transacções internacionais, valores
elevados, etc.) É por demais evidente que o simples controlo do e-mail
nunca seria suficiente – como bem declararam as próprias chefias do Réu.

XIV)     Não verificando as assinaturas das ordens de transferências nunca seria
possível sequer – como não foi – cumprir as obrigações constantes das alí­neas c) e d) do contrato de adesão (AIR). Para isso, teriam de as verifi­car, de as analisar. Mas nada disto foi feito porque os funcionários do Réu directamente envolvidos, consideravam que essas obrigações não lhes competiam!

XV)     Para somar a tudo isto releve-se que o Autor, ora recorrente, foi classificado
pelo próprio Réu (BB) nos termos e para os efeitos do art. 317.º, e
seguintes do Código dos Valores Mobiliários, como “
Investidor Não Profis­sional, categorização esta que lhe confere o maior grau de protecção
previsto na lei
” (sic.) – cfr. Doc. 1, lado b), junto com a contestação.

XVI)    Perante a legislação geral das transacções electrónicas deveria também o
Autor ser considerado cliente com perfil de risco (holandês, com residência
na ..., com elevados proventos e transacções internacionais...) perfil este
que teria de merecer por parte do Réu um maior cuidado, uma maior atenção, uma maior segurança. Assim não aconteceu e o Tribunal de Recurso acabou por desconsiderar!

XVII) Refere o douto acórdão que o Autor apenas se limitou a fazer prova por declarações de parte; que poderia ter feito prova de que nada tinha a ver com as contas de destino das transferências, assim como ter identificado os autores das transferências! Com o devido respeito, não pode aderir a tais proposições o Autor, ora Recorrente.
XVIII) O autor provou nada ter a ver com as ordens de transferência, desde logo juntando documentos para demonstrar não terem os mesmos (ordens de transferência) a ver com a sua prática comunicativa com o banco, ora Réu. Tais ordens de transferência vinham como anexo ao e-mail através do qual, desde Novembro de 2011 a conta do Autor era movimentada – esta era a forma habitual. Porém, ao contrário das anteriores, estas transferências re­flectiam valores elevados (40.000£+85.000€+85.000€) não habituais nas or­dens do Autor e muito menos serem as três em espaço temporal tão curto (duas no mesmo dia); tratar-se de destinos nunca antes usados pelo Autor e habitualmente ligados com fraudes informáticas (... e ...); conterem erros ortográficos invulgares, exibirem diferente tipo de letra na mesma ordem e contendo, no fundo de cada ordem, uma assinatura do Au­tor, visivelmente aposta por “bloco de colagem” (“copy past” grotesco) de fácil detecção, tal era a inclinação que demonstrava face ao restante texto, ou o desalinho que apresentava relativamente ao corpo do texto (cfr. fls...).
XIX) Complementarmente, o Autor juntou também aos autos a participação/queixa apresentada na Polícia Judiciária do ... (Doc. 7 da PI), no sentido de ser apurada a identidade dos autores das ordens fraudulentas das transferências bancárias – actividade essa que o Autor, por si só, nunca conseguiria al­cançar.
XX) Para além dos documentos juntos, em sede de audiência veio o Autor pres­tar declarações de parte. Só que tais declarações não foram devidamente valoradas pelo tribunal a quo, nem pelo tribunal de recurso que deu, nesta parte, por reproduzidas as conclusões da primeira decisão – mas erradas, salvo o devido respeito, que é sempre muito – julgando e decidindo no mes­mo erro da decisão anterior. E de que erro se trata?
XXI) Refere o douto acórdão (pg. 27) que “O réu impugnou esse facto negativo e demonstrou a autenticação dessas concretas operações de pagamento.” Mas tal premissa deixou de fazer sentido, quando foi – e bem – aditada nova ma­téria de facto. Concretamente, quando passou a ficar demonstrado que “21-A As assinaturas constantes das ordens de transferência referidas nos pontos 14 e 15 não foram verificadas pelo gestor de conta nem pelo gerente do bal­cão”.

Aqui chegados,

XXII)  Deveria o decisor – ao contrário do concluído pela primeira instância, antes de aditada a matéria de facto provada – ter interiorizado que a realidade factual se alterou e, assim, concluir que o Réu não conseguiu impugnar esse facto negativo (as transferências não foram ordenadas pelo Autor) e, menos ainda, ter o Réu demonstrado a autenticação dessas concretas operações de pagamento.
XXIII) Efetivamente, provado ficou à saciedade que o Réu nem verificou (sequer) a assinatura aposta nessas ordens!
XXIV) Estando em causa para o Autor a prova de um facto negativo, a acrescida dificuldade da prova de factos negativos deverá (como alude o Ac. do STJ, de 17/12/2008) ter como corolário, por força do princípio constitucional da proporcionalidade, uma menor exigência probatória por parte do aplicador do direito, dando relevo a provas menos relevantes e convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse, aplicando a máxima latina «iis quae difficilioris sunt probationis leviores probationes admittuntur».
XXV) No caso, como é muito difícil para o Autor fazer prova de que o facto não aconteceu (ele não é o feitor das instruções, das ordens de transferência) deve entender-se que cabe à contraparte (banco) provar o facto positivo contrário ao facto negativo invocado.
XXVI) E isso não aconteceu. O Réu nem sequer verificou a assinatura da ordem de transferência, quanto mais a genuinidade da mesma!

XXVII)   Por outro lado, é certo que o Autor desconhece a identidade dos autores
da fraude, desde logo porque se trata de uma fraude, característica inerente
a esse tipo de operações. Para investigar esse tipo de realidade existem os
Órgãos de Polícia Criminal a quem o Autor recorreu de imediato,
precisamente para ser investigado o crime e identificados os seus autores.

XXVIII) Para além desta questão, também o percurso lógico seguido pelo decisor
não pode ser aplaudido, tal é o afastamento do mesmo face à realidade da
fraude informática actual. Só isso legitima que no texto da primeira instância, subscrito pela decisão da Relação (cfr. pg. 27, 28 e 29) se encontre alguma ironia no comentário das explicações dadas pelo Autor, aquando das declarações prestadas, acerca do que teria ocorrido no seu computador.

XXIX)     Em causa não estavam as estratégias mais conhecidos de burlas
informáticas
phishing ou pharming (processos de auto-instalação no PC). Na
situação aqui ocorrida a segurança estava (ou devia estar) “blindada” pelo
controlo manual do e-mail, pela verificação das ordens de pagamento e
da conferência da assinatura.

XXX)      Este controlo era humano. Tratava-se da existência de um “agente
humano” capaz de apreciar e travar os movimentos minimamente suspeitos.
Tratava-se, no fundo, do gestor de conta, com capacidade e
responsabilidade para validar e proceder ao movimento das transferências. Sem a mais-valia deste “factor humano”, não se cumpria a ordem.

XXXI) Ao referir-se ao IP do correio electrónico do Autor, o decisor envereda por
um percurso, só possível, raciocinando em erro. O Autor verificava os e­mails, sempre longe de imaginar que por ali andasse uma pasta fraudulenta
colocada por “pirata informático” numa das centenas de pastas existentes no
seu e-mail. O seu endereço de correio electrónico, como a maioria dos actuais,
não contém a faculdade de enviar alertas, sempre que outro utilizador tem
acesso ao e-mail através de outro terminal (pormenor facilmente constatável
pela experiência comum do homem médio). Por isso o Autor não teve qual­quer alerta, nem movimento suspeito de outros estarem a operacionalizar
através da sua conta de e-mail. A presunção do julgador não pode aqui obter acolhimento, nem tão pouco legitimar a conclusão de ter encontrado fa­lha do Autor em não ter reagido aos alertas recebidos.

XXXII) Com o contrato de abertura de conta, firmado entre Réu e Autor (02/11/11), ficou pressuposta uma relação contratual duradoura. Os deveres gerais de conduta e de proteção que impendem sobre o Réu (banco), e não cumpridos em qualquer contrato de adesão, encontram aqui (no contrato de abertura de conta) o seu ponto de partida.
XXXIII) Cabe ao Réu (banco) assegurar e zelar pelos interesses do Autor (cliente) durante toda a relação negocial e – numa outra dimensão complementar, sem em causa pôr a inicial – acautelar os interesses empresarias do Autor (cliente), protegendo-o de situações de fraude, de branqueamento de ca­pitais, etc.
XXXIV) Nenhuma destas obrigações foi tomada em conta no julgamento, quando apreciado foi o cumprimento das responsabilidades cometidas ao Réu. Nem o foi também no julgamento de recurso, por tal matéria ter saído preju­dicada. Mas impõe-          -se fazê-lo; impõe-se aplicar o direito quando tão abun­dante e límpida é a matéria de facto carreada nos autos.
XXXV) Por sua vez, e nos termos sufragados no art. 236.º, do CC, os negócios jurídicos devem ser interpretados em termos correspondentes à doutrina da impressão do destinatário. Está inequivocamente subjacente à actuação do Réu (instituição bancária) a obrigação de dar sequência às mencionadas expectativas do cliente, uma vinculação contratual continuada e não mera­mente episódica.
XXXVI) O Autor é cliente do Réu desde 2/11/2011. Desde essa data, foi a conta sempre movimentada via correio electrónico, através de instruções enviadas por e-mail, contendo um anexo com as instruções concretas (cfr. ponto 24 e 25, da matéria de facto provada).
XXXVII) Independentemente da assinatura do Contrato de Autorização (AIR), já muito antes o Réu tinha concertado com o Autor, a movimentação da conta através do envio de ordens por correio electrónico (reveja-se a matéria dada como provada, nos pontos 24 e 25, e os documentos juntos pelo Autor em audiên­cia).
XXXVIII) Este contrato de autorização (AIR), mais não era do que um contrato de adesão. Conforme clausulado no texto do próprio contrato (2.ª página, 6.º pa­rágrafo) o Autor só assume a responsabilidade e consequências pela utili­zação não autorizada, má utilização ou utilização fraudulenta da sua conta e­mail e ordens dadas, no pressuposto que o Réu as confere, tendo mesmo o direito/dever de não as realizar, caso exista dúvida sobre a pessoa que en­via as instruções, ou acerca do conteúdo das mesmas.
XXXIX) Neste mesmo contrato o Réu tinha o dever de confirmar essas instruções, tendo particularmente em conta a sua natureza, o montante em causa e o contexto em que são submetidas (cfr. 1ª página, alíneas c) e d) do documen­to em causa) – coisa que também não fez! E não o fazendo jamais conse­guiria o Réu cumprir a sua parte, cumprir o contrato.

XL)           Sobre o Réu pendia assim um dever especial de cuidado, de verificação das ordens recebidas por e-mail, visto possuir o direito/dever de as não executar. (Cfr. 1.ª pág., alínea c), do texto do Contrato). É por isso manifesta a conduta negligente por parte do Réu (art. 483.º, e seguintes, do CC). Como refere Maria Raquel Guimarães (1999), na obra ‘As Transferências Electrónicas de Fundos e os Cartões de Débito’, “é ao banco que cabe assegurar a regularidade do funcionamento do sistema, para além do controlo dos meios técnicos utilizados, compreendendo-se, assim, que sobre ele recaia o risco de esse mesmo sistema ge­rar danos não imputáveis a culpa dos seus utilizadores.”

XLI) Por outro lado, estamos também perante a falha de um dever colateral típico, no âmbito de uma relação obrigacional complexa: o dever de protec­ção e cuidado para com a pessoa e o património dos intervenientes (art.º 9.º/1, da Lei de Defesa do Consumidor).

XLII) Complementarmente, em matéria de responsabilidades nas transferências por meios electrónicos, há sobretudo a ter em conta o DL 317/2009, de 30/10, convocado (mas apenas em parte) na primeira decisão.

XLIII) Através da alínea b), do n.º 1., do art. 67.º, do DL 317/2009, impende sobre o Autor (utilizador dos serviços) a obrigação de comunicar. E o Autor deu cumprimento imediato dessa sua obrigação junto do Réu (por telefone e pelo en­vio de e-mail) logo que foi alertado pelo banco suíço. Mais, o Autor participou igualmente os factos à própria PJ (cfr. Doc. 7, junto com a PI).

XLIV) Cumprindo estes deveres do art. 67.º, entra-se no campo das obrigações do Réu. Como é referido no n.º 1, do art. 70.º, do DL 317/2009, “...., incumbe ao respetivo prestador de serviço de pagamento fornecer prova de que a operação de pagamento foi autenticada, devidamente registada e contabilizada e que não foi afetada por avaria técnica ou qualquer outra deficiência.”

XLV) Competiria ao Réu (entidade bancária) provar que a operação de pagamento foi autenticada. Mas tal não aconteceu. Pelo contrário; conforme atrás se demonstrou, o próprio gestor de conta, CC, confessou que não conferia as ordens anexas, nem autenticava a assinatura, não lhe ca­bendo sequer tal obrigação. O mesmo aconteceu com o gerente de balcão, DD, que igualmente confessou não fazer qualquer controlo sobre os e-mails, sobre as ordens anexas, sobre os valores aí consignados, ou mesmo conferência de assinatura (nem tempo teria para isso, como de­clarou!).

XLVI) Nesta falta de verificação das operações bancárias em causa materializa-se a grande razão de discordância do Autor com a douta sentença que se ousa censurar: violou o Réu o seu dever especial de cuidado, o seu dever de verificação das ordens recebidas por e-mail. Só por este comportamento faltoso do Réu conseguiu o “pirata informático” ter êxito na consumação da fraude.

XLVII) O facto do Réu ter recebido um e-mail (instrumento de pagamento) ao qual vem anexada a ordem, não deve, sem mais, ser visto como inequívoca prova de que a ordem (autorização) vem do titular do e-mail, ainda que provenha do e-mail acordado. “A demonstração de que um e-mail proveio da caixa de cor­reio electrónico de uma dada pessoa, não garante que foi essa pessoa a enviá-lo”. (Margarida Lima Rego). E no mesmo sentido o n.º 2, do art. 70.º, do DL 317/2009.

XLVIII)  Tratando-se de cliente com perfil de risco e classificado expressamente pelo
Réu (nos termos do art. 317.º, do CVM) como “
investidor Não Profissional, ca-
tegorização esta que lhe confere o maior grau de proteção previsto na lei
” (cfr. Doc. n.º 1, lado b), da contestação) mais obrigações acrescidas tinha o Réu.

XLIX) No art. 66.º, n.º 2, al. a), do DL 317/2009 (Dever de vigilância da instituição bancária face aos fundos do cliente) encontra-se outro dever a cumprir por parte do Réu: deve ter em conta as operações habituais do cliente, ou se­ja, demonstrar um especial dever lateral de cuidado. No mesmo sentido, o Ac. do TRG (de 17/12/2014) vem relembrar que as instituições de crédito, poderão (e deverão) traçar o perfil do utilizador.

L) Sempre caberia igualmente ao Réu (banco) a prova de que a operação de pagamento foi autorizada pelo titular da conta (Autor, cliente): a existência de facto negativo, tratar-se de um documento particular electrónico (art. 374.º, CC) e a prova recair sobre o Réu (devedor) nos termos do art 799.º do CC.

LI) Recai sobre o Réu, o dever de prestar um serviço eficaz e seguro (art. 68.º, DL 317/2009). De pouco valeu ao Autor a categorização feita na abertura de conta, quando recordamos o depoimento do gestor de conta, afirmar que não conferiu as assinaturas nem as ordens enviadas, uma vez que para ele, bastaria provirem do alegado e-mail do Autor!

LII) É certo que o Réu cumpriu este dever de tentar reaver os valores; contudo, tal não o desonera de não ter cumprido outros (e preventivos), nomeada­mente, os deveres objectivamente consignados no DL 317/2009, no RGICSF (Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras), na Lei 25/2008, de 5/6, e particularmente, nas als. c) e d) do “Contrato de Adesão”. E tudo deveria ser cumprido, em estrita obediência ao princípio do maior grau de proteção conferido por lei - estatuto expressamente atribuído pelo Réu ao Autor, aquando da abertura de conta.

LIII) Por fim, convoque-se ainda o AC do STJ, de 18/03/02, que, chamado a pronunciar-se sobre a falsidade de ordens de pagamento dirigidas a um ban­co, “interpretou o dever de competência técnico inscrito no texto do art. 73º, [do RGICSF] como exigência de um grau de rigor e competência superior ao do comum pai de família, mas sem chegar ao ponto de ser pericial ou científico.”

LIV) Mesmo que por mera hipótese académica alguma culpa propendesse para o lado do Autor, sempre a repartição da responsabilidade e do prejuízo havido, teria de ser levado em conta - art. 71º e 72º do DL 317/ 2009. O texto de­cisório não aborda tal capítulo. Porém, ele sempre seria configurável se al­guma incúria procedimental fosse imputada ao Autor, ora Recorrente.

LV)     Disposições legais violadas:
• CC: art. 236.°, 374.°/2, 483.°, 799.°/1.
• CPC: art. 615.°/1. ai. d); 662.°, 697.°.
• DL 317/2009, de 30/10: art. 65.°, art. 67.°, art. 68.°, art. 70.°, art. 71.°, art. 72.°;
• CVM: art. 317.°,
• RGICSF: art. 73.°

O Banco recorrido, nas contra-alegações, pronunciou-se no sentido da inadmissibilidade de qualquer uma das possibilidades de recurso, pugnando, caso assim não se entenda, pela improcedência da revista.

Indeferida, pelo relator, a possibilidade de revista normal (cfr. fls. 911 a 926), foi remetido o processo à Formação, tendo esta admitido a revista excepcional à luz da disposição da alínea a) do n.º 1 do artigo 672º do CPC (cfr. fls. 935/936).


*

II.        FUNDAMENTAÇÃO

            OS FACTOS

            Vêm provados das instâncias os seguintes factos[2]:


1. O Autor AA, de nacionalidade holandesa, teve intenção em comprar uma casa na zona do ....


2. Para isso decidiu abrir uma conta bancária num Banco português, decidindo fazê-lo no balcão de ... do BB, abrindo, designadamente, a conta bancária nº …, para a qual foi indicado como gestor de conta o funcionário do Réu CC.

2.A      O Autor é cliente do Réu desde 02.11/.2011, tendo como seu Gestor de Conta o referido CC - (facto aditado pela Relação).


3. Com vista à aquisição da casa no ..., em Julho de 2013, o Autor realizou uma transferência bancária no valor de € 1.499.887,00 a crédito para a conta bancária referida em 2. …


4. … tendo informado o funcionário do Réu, CC, da finalidade da transferência.

5. A 9 de Setembro de 2013, o Autor deu ao Réu instrução para a transferência da quantia de € 1.500.000,00 de regresso ao banco de origem (“...” – ...).

6. Como tal instrução demorava a ser efectivada, a esse propósito foram trocados vários “e-mails” e telefonemas entre o Autor e funcionário do Réu, CC …

7. … acabando a transferência por ser realizada apenas a 18 de Setembro de 2013.

8. Para a sua vida profissional o Autor utilizava outras contas bancárias de que era titular.

9. A conta bancária nº ...aberta pelo Autor junto da agência de ... do Réu destinava-se, além do mais, a pequenos pagamentos do dia-a-dia da vida do Autor em Portugal

10. Posteriormente, tendo o Autor adquirido uma habitação na cidade do ..., decidiu proceder à sua recuperação e remodelação …

11. … passando a utilizar a conta bancária nº ...no pagamento de despesas com a reabilitação do imóvel adquirido e com a aquisição de peças decorativas, e continuando a utilizá-la no pagamento de água, renda e outros gastos com uma habitação que o Autor havia arrendado.

12. O Autor confiava no Réu e particularmente no funcionário deste CC.

13. Devido às frequentes ausências de Portugal que a vida profissional do Autor implicava, a 17 de Setembro de 2013 este decidiu subscrever documento pelo qual autorizou o Réu a aceitar e executar as instruções relativas à movimentação da conta bancária nº ...remetidas através da conta de correio electrónico ....com, nos termos fixados no documento cuja cópia consta de fls. 23 e 24.

13.A. Já antes de ter sido assinado o documento referido (AIR) as ordens de transferências eram emitidas em anexos assinados, enviados por email - (facto aditado pela Relação).


14. No dia 4 de Março de 2014 foram remetidas ao Réu, através da conta de correio electrónico ....com, 2 instruções para realização de transferências bancárias a débito, sobre a conta bancária nº …, uma no valor de € 57.000,00 (destinada a conta bancária domiciliada no banco “S...”, ..., …, ...), e outra no valor de £ 40.000,00 (destinada a conta bancária domiciliada no banco “..., PLC”, B..., ..., ...).


15. Dias depois, a 11 de Março de 2014, foram remetidas ao Réu, através da conta de correio electrónico ....com, mais 2 instruções para realização de transferências bancárias, cada uma no valor unitário de € 85.000,00, sendo uma destinada a conta bancária domiciliada no banco “...” (...), e outra destinada a conta bancária domiciliada no banco ...” (...).

16. As ordens de transferência referidas em 14. e 15. referiam-se a valores superiores aos movimentos a débito habitualmente realizados pelo Autor na conta bancária ...…

17. … indicavam valores certos (redondos) a transferir,

18. … e traduziam transferências entre contas bancárias.

19. A transferência de € 57.000,00 referida em 14. acabou por não ser efectuada devido a irregularidade na indicação do IBAN de destino.

20. As restantes 3 operações de transferência referidas em 14. e 15. foram efectuadas.

21. As instruções para transferência referidas em 14. e 15. apresentavam erros ortográficos, como, por exemplo:

a. a utilização da palavra “thousend”;

b. a utilização da palavra “fouthy”;

c. a utilização da palavra “...”.

21.A.   As assinaturas constantes das ordens de transferência referidas nos pontos 14. e 15. não foram verificadas pelo gestor de conta nem pelo gerente do balcão - (facto aditado pela Relação).


22. A 13 de Março de 2014 foram remetidas ao Banco “...”, através da conta de correio electrónico ....com, 2 instruções para realização de transferências bancárias a débito, uma sobre a conta bancária nº ..., no valor de € 95.000,00 (destinada a conta bancária domiciliada no Banco “...”, ...), e outra no valor de £ 120.000,00, sobre a conta bancária nº ..., ou sobre a conta nº ... destinada a conta bancária domiciliada no Banco “..., Ltd”, ...)


23. O Autor, a 13 de Março de 2014, contactou o Réu, na pessoa do funcionário CC, dando instruções para não mais executar nenhum movimento na conta bancária nº ... sem prévia confirmação do Autor por telefone.

24. Entre Março de 2013 e Março de 2014 foram realizadas pelo Autor, a débito, sobre a conta bancária nº ..., diversas transferências de valor igual ou superior a € 10.000,00, incluindo 15 transferências que oscilaram entre o mínimo de € 10.000,00 e o máximo de € 60.745,00.

25. Muitas das transferências referidas em 24. tiveram como destino instituições bancárias estrangeiras, europeias (..., …, …, … e ...) e de outros continentes (…, …, …).

26. No momento referido em 23., o Autor informou o funcionário do Réu que havia ocorrido uma quebra de segurança no seu computador.

27. Após o momento referido em 23., o funcionário do Réu, CC, por contacto telefónico com o Autor, obteve deste a informação que teriam sido efectuadas sobre a sua conta bancária 5 transferências que considerava não terem sido por si ordenadas, sendo

a.         3 emitidas e debitadas a 5 de Março de 2014, respectivamente com os valores de € 57.000,00, £ 7.050,00 e £ 40.000,00; e

b.        2 emitidas a 12 de Março de 2014 e debitadas no dia subsequente, no valor unitário de € 85.000,00 cada.

 
28. Posteriormente, o Autor reconheceu como legítima a transferência de £ 7.050,00.


29. As ordens de transferência referidas em 14. e 15., além de provirem do endereço de correio electrónico ....com, traziam em anexo, assinada, a ordem a executar, como era habitual o Autor enviar.

           

Por outro lado, as instâncias julgaram não provados os seguintes factos:


a. O funcionário do Réu, CC, gestor da conta de que era titular o Autor, tenha sido informado que a conta bancária nº … se destinaria ao pagamento de despesas pontuais relacionadas com as obras de reabilitação do imóvel adquirido pelo Autor, bem como à aquisição de peças decorativas.


b. As ordens de transferência referidas em 14. e 15. tenham sido dadas à revelia do Autor;

c. O Autor desconheça a identidade dos emitentes das ordens de transferência referidas em 14. e 15.

d. O Autor tenha junto do Réu previamente fixado a finalidade da conta bancária nº ….

e. As transferências referidas em 14. e 15. se destinassem todas a empresas estrangeiras.

f. Caso a transferência de € 57.000,00 referida em 14. tivesse sido efectuada, a conta bancária nº ...ficaria “a descoberto” em cerca de € 25.000,00.

g. As instruções para transferência referidas em 14. e 15. apresentassem erro ortográfico no nome do Autor (“F...” em vez de “F...”).

h. As ordens de transferência referidas em 22. tenham sido dadas à revelia do Autor.

i. O Autor desconheça a identidade dos emitentes das ordens de transferência referidas em 22.

j. As ordens de transferência referidas em 22. tenham levantado reservas junto do banco “...”; que tenham sido de imediato bloqueadas e que o Autor tenha sobre elas sido contactado para esclarecimento e eventual confirmação.

k. Tenha sido pelo contacto do banco “...” que o Autor se apercebeu das ordens de transferência referidas em 14. e 15.

l. O Autor tenha vivido momentos de muita angústia na sequência do referido em 14., 15., 19. e 20.

m. Pelos factos referidos em 14., 15., 19. e 20., o Autor tenha sofrido desarranjo da sua vida, com adiamento de obras que estava a empreender, e alteração da sua vida.

n. Pelos factos referidos em 14., 15., 19. e 20., o Autor se tenha sentido frustrado; que a sua saúde tenha ficado afectada; e que tenha ficado com perda de apetite e visivelmente mais magro.

o. Ainda hoje o referido em 14., 15., 19. e 20. cause ao Autor estado de ansiedade e stress que lhe reduz a vontade de trabalhar e a vontade de efectuar deslocações profissionais.

p. As transferências bancárias referidas em 24. tenham tido como destinatário instituições bancárias dos …, ... e ....

           
O DIREITO

O acórdão da Formação que admitiu a revista excepcional reconheceu relevo jurídico à questão suscitada no recurso, no âmbito da responsabilidade civil bancária, dizendo tratar-se “de um caso que não é comum nos tribunais nacionais, tendo a sua origem numa ordem genérica de movimentação de conta bancária, a que acresceriam instruções remetidas por email, sendo questionado também o ónus de demonstração da existência ou não de alguma instrução que, por essa via, tenha sido transmitida ao R., mas cuja autoria não seria do A.”.

É, pois, com esta delimitação objectiva que se apreciará a revista excepcional.

A matéria em discussão enquadra-se no conceito amplo de transferência electrónica de fundos (..., ou, simplesmente, ...), operação que consiste na ordem de transferência de fundos, dada por uma pessoa a favor de outra, através de meios electrónicos[3].

A complexidade deste tipo de operações, a habitual envolvência de vários intervenientes e o recurso a meios técnicos, mais ou menos sofisticados, de comunicação electrónica, são factores que potenciam a ocorrência de incidentes neste domínio. Esse risco concretiza-se, muitas vezes, em falhas técnicas ou intrusões ilegítimas e fraudulentas no sistema de transmissão de mensagens e nos equipamentos informáticos.

Mas, ordenada uma transferência, o Banco fica obrigado a, de acordo com as condições estipuladas e dentro do limite dos fundos disponibilizáveis, executar, usando da devida diligência e de acordo com as instruções recebidas, essa mesma ordem. Se o não fizer, será responsável face ao seu cliente, ordenante da transferência bancária[4].

Vejamos, agora, o caso concreto.

Em causa nesta acção estão três transferências bancárias, nos valores de £ 40.000,00, € 85.000,00 e € 85.000,00, sendo as instruções para realização dessas transferências datadas, respectivamente, de 04.03.2014 (a primeira) e 11.03.2014 (as duas últimas) – cfr. pontos 14 e 15.

Como bem sintetizado no acórdão recorrido, a tese do Autor assenta nos seguintes fundamentos:

- as instruções para as ordens de transferência bancária procederam do email do Autor, mas não foram por si transmitidas;

- os termos dessas instruções permitiriam ao Banco Réu, seu destinatário, concluir que não procediam da sua autoria;

- ao não analisar eficazmente essas instruções, não detectando a ilegitimidade das instruções, o Banco Réu incumpriu os seus deveres contratuais.

Em 17.09.2013, o Autor, que já era cliente do Réu desde 02.11.2011 (cfr. ponto 2.), subscreveu o documento junto a fls. 23 e 24, no qual autorizou o Banco Réu a aceitar e executar instruções relativas à movimentação da conta bancária que aí detinha, através da conta de correio electrónico ....com (cfr. ponto 13.). Aliás, já antes de ter subscrito esse documento, as ordens de transferência eram emitidas em anexos assinados, enviados por email (cfr. ponto 13-A).

           Nesse documento, denominado “...” ficou expressamente referido que o Autor “autoriza o BB, S.A., a não agir sobre instruções enviadas por email quando estas não procedam do mencionado email”[5]. Ficou também previsto que o Autor “autoriza o BB, S.A., a não agir sobre instruções enviadas por email onde haja dúvidas acerca da identidade da pessoa que dá as instruções ou sobre o conteúdo destas”[6].

           Esta acção funda-se na alegada violação, pelo Banco, dessas cláusulas contratuais e na omissão dos deveres associados à realização de operações bancárias através desses meios, em particular no que concerne às ordens de transferência de fundos da conta do Autor para contas de terceiros.

A procedência dos pedidos formulados contra o BB depende, pois, da prova dos pressupostos típicos da responsabilidade: o facto ilícito, a imputação do facto ao agente, a culpa (que a lei presume ser do devedor – artigo 799º do CC), o dano, e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

           A regra geral do n.º 1 do artigo 342º do CC estabelece, em termos de ónus da prova, que cabe àquele que invocar um direito a prova dos factos constitutivos do direito alegado.

           Na decorrência dessa norma, e exceptuadas as situações especiais previstas na lei, a existência de um facto negativo que constitua fundamento da pretensão deduzida pelo autor faz recair sobre este a correspondente prova.

            Ora, o facto ilícito invocado traduzir-se-ia, segundo o Autor, na circunstância de as ordens de transferência terem sido executadas pelo BB apesar de não ter sido aquele quem as emitiu, e de estas terem sido “feitas à sua revelia”, desconhecendo quem as tenha emitido – cfr. artigos 35º e seguintes da petição inicial.

           O que, a final, resultou provado foi que as ordens de transferência referidas em 14. e 15., além de provirem do endereço de correio electrónico ....com, traziam em anexo, assinada, a ordem a executar, como era habitual (cfr. ponto 29.). Pelo contrário, não ficou provado que essas ordens tenham sido feitas à revelia do Autor nem que este desconhecesse a identidade dos emitentes das mesmas [cfr. alíneas b) e c) dos factos não provados].

Sustenta o Autor que, dada a enorme dificuldade em fazer a prova do facto negativo de não ter sido ele “o feitor das instruções, das ordens de transferência”, deveria caber à contraparte (BB) a prova do facto positivo contrário, ou seja, deveria caber ao BB a prova de que as ordens de transferência foram emitidas pelo Autor – cfr. conclusões XXIV e XXV).          e

É inegável que a demonstração de um facto negativo apresenta, por vezes, grande dificuldade.

Contudo, a maior dificuldade da prova do facto negativo não foi considerada relevante, pelo legislador, para determinar uma inversão do ónus da prova, como se conclui do disposto no artigo 344º do CC[7]. Nesta disposição apenas foram acauteladas as hipóteses da existência de presunções legais, de dispensa ou liberação do ónus da prova e de contratos probatórios (n.º 1), bem como os casos em que a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado (n.º 2.).

Por isso, já Vaz Serra[8] referia, a propósito da ultrapassada regra negativa non sunt probanda: “Esta regra, quando entendida no sentido de que não carecem de prova os factos negativos, não parece de aceitar, pois se o direito, que se faz valer, tem como requisito um facto negativo, deve este facto ser provado por quem exerce o direito, precisamente como os factos positivos que sejam requisitos dos direitos exercidos. Não há motivo para soluções diferentes nos dois casos, dado que os factos negativos não têm que se presumir pela mera circunstância de o serem, nem seria razoável que se impusesse à outra parte o ónus de provar o facto positivo contrário”.

Os tribunais, cientes dos obstáculos que se colocam à demonstração de factos negativos, são, por princípio, menos exigentes na valoração das provas para apuramento desse tipo de factos.

Como se observa no acórdão do STA de 17.12.2008[9], a dificuldade da prova de determinados factos negativos deverá ter como corolário, por força do princípio constitucional da proporcionalidade, uma menor exigência probatória por parte do julgador, valorizando provas menos convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse.

Evidentemente que, como também se admite nesse acórdão, não serão constitucionalmente admissíveis, por violação da norma do artigo 20º, n.º 1, da CRP, situações de imposição de ónus probatório que reconduzam à impossibilidade prática de prova de um facto necessário para o reconhecimento de um direito.

Mas no caso concreto não é isso que sucede, na medida em que sempre seria possível ao Autor demonstrar que as ordens de transferência não tinham sido por si emitidas.

O acórdão recorrido reproduz o que, sobre este aspecto, foi escrito com bastante assertividade na sentença da 1ª instância:

“(…) o que para os autos releva será que o ataque de que o autor afirma ter sido vítima não se teria traduzido na simples apropriação de dados bancários do autor, posteriormente utilizados no relacionamento electrónico com o banco réu como se do autor se tratara, mas antes na verdadeira manipulação dos ficheiros do computador do autor, com criação de documentos/ficheiros similares aos que o autor anteriormente enviara, cópia da assinatura do autor, e posterior envio desses documentos/ficheiros, falsamente assinados, através do endereço electrónico do autor.

Independentemente do grau de elaboração desta alegada fraude, uma coisa é certa: não pode deixar de ter deixado vestígios claros, seja no computador do autor (traduzidos, pelo menos, na abertura e visionamento de ficheiros originais por forma a apurar o procedimento habitual entre autor e réu no que respeita às instruções para transferências bancárias), e nos registos de visitas ao correio electrónico do autor (…) para não falar no registo no computador do autor da própria existência do alegado programa ‘malware’.

(…)

(…) face à singularidade do suposto ataque informático e à necessária existência de vestígios do mesmo (facilmente detectáveis pelo simples exame ao computador do autor; através de informação pedida à entidade fornecedora do serviço de correio electrónico do autor; ou por simples averiguação do destino do dinheiro), expectável seria que o autor carreasse para os autos elementos objectivos que permitissem ter como razoável a verificação do ataque”.

Ainda recorrendo à apreciação feita na sentença da 1ª instância, o acórdão da Relação do ... sublinha a seguinte passagem:

“(…) não deixa de surpreender que, para demonstrar a ilegitimidade das instruções de transferência, o único meio de prova apresentado pelo autor se reconduza às declarações de parte por si prestadas, simplesmente afirmando ter o ‘software’ do seu computador sido atacado e invadido por um ‘malware’ enviado por terceiro, que teria manipulado as informações armazenadas na máquina, gerando as instruções de transferência cuja autenticidade impugna”.

Ora, por mais difícil que a prova do facto negativo alegado se apresentasse – o que, como bem esclarecido nas decisões das instâncias, nem é o caso – nunca seria possível chegar ao ponto de, como pretende o recorrente, se inverter o ónus da prova.

Os imperativos da certeza e da segurança jurídica não permitem que os tribunais procedam à derrogação da lei nesta matéria, consoante os casos concretos que são chamados a decidir, pois, de contrário, a modificação do ónus probatório poderia redundar ou confundir-se com arbitrariedade.

Por outro lado, está também vedada, por força do disposto nos artigos 10º, n.º 2 e 11º do CC, a aplicação analógica, a outras situações, dos preceitos que invertem o ónus da prova, porquanto não se está perante um caso omisso e porque o artigo 344º tem clara natureza excepcional.

Como atrás se referiu, o Autor só lograria a procedência da acção se provasse, primeiro que tudo, o facto negativo consubstanciador da ilicitude, ou seja, que não emitiu as ordens de transferência de fundos identificadas nos pontos 14. e 15. a que o Banco Réu deu seguimento.

Faltando a prova da falsidade dessas ordens, não há, sequer, que apreciar os restantes requisitos da responsabilidade civil.

Isto mesmo ficou bem expresso no acórdão recorrido: “(…) se não pode ter-se por demonstrado sequer que foi outrem que não o autor o autor das instruções de transferência dos três valores descritos supra, isto é, que essas instruções foram ilegítimas, não pode, sucessivamente, indagar-se sobre se o réu poderia ter identificado uma tal ilegitimidade, que ficou por apurar. Consecutivamente, não se pode discutir sobre se o banco incumpriu qualquer dever de cautela e de protecção para com o autor, seu cliente, executando ordens de transferência que deveria ter identificado ou admitido serem falsas e prevenido o seu cumprimento, pois que não se tem por adquirido que as mesmas tenhas sido efectivamente falsas e que tenham redundado num desapossamento do autor relativamente às quantias transferidas”.

Nas alegações da revista o recorrente continua a trocar a prioridade dos requisitos. Diz ele, na conclusão V: “Se os funcionários do Réu cumprissem os deveres a que estavam contratual e legalmente obrigados para com o Autor, nenhum êxito teriam tais transferências (fosse quem fosse que as ordenasse). Aí, já nem se colocaria sequer a hipótese de exigir ao Autor que identificasse os ordenantes de tais transferências, ou demonstrasse não ter sido ele próprio a urdir tão desprezível estratégia!”

Põe, como se vê, todo o enfoque no incumprimento dos deveres de diligência do Banco Réu subalternizando o elemento fulcral e decisivo: a origem e autoria das ordens de transferência.

Só se se tivesse provado que as ordens de transferência foram emitidas por outrem (que não o Autor), e à sua revelia, é que se poderia questionar se o Banco cumpriu os deveres de diligência a que estava contratualmente vinculado quando deu seguimento a essas ordens de transferência, no âmbito da relação negocial bancária firmada com o seu cliente.


*

III.      DECISÃO

Nestes termos, nega-se provimento à revista.

                                                           *

Custas pelo recorrente.

                                                           *

       LISBOA, 27 de Novembro de 2019

Henrique Araújo (Relator)

Maria Olinda Garcia

Raimundo Queirós

_______________
[1]    Relator:        Henrique Araújo
    Adjuntos:      Maria Olinda Garcia
                            Raimundo Queirós
[2] São reproduzidos em itálico os factos que foram objeto de modificação na Relação do Porto.
[3] Cfr. Maria Raquel Guimarães, “As transferências electrónicas de fundos e os cartões de débito”, páginas 18 e seguintes.
[4] Catarina Anastácio, “A Transferência Bancária”, página 349.
[5] “(…) I hereby authorise BB, S.A. (…) not to act on instructions sent by email whem they do not come from the abovementioned email” – alínea b).
[6] “(…) I hereby authorise BB, S.A. (not to act on instructions sent by email where there is doubts about the identity of the person giving the instruction or about its contents” – alínea c).
[7] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, página 467, nota 2, onde se refere: “já se tem entendido, erroneamente, que a extrema dificuldade de prova do facto pode inverter o critério legal de repartição do ónus da prova”.
[8] “Provas – Direito Probatório Material”, BMJ n.º 110, página 120.
[9] No processo n.º 0327/08 (Conselheiro Jorge de Sousa), em www.dgsi.pt.