Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
Relator: | HENRIQUE ARAÚJO | ||
Descritores: | TRANSFERÊNCIA ELETRÓNICA DE FUNDOS ELECTRONIC FUND TRANSFER TRANSFERÊNCIA BANCÁRIA RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL PRESSUPOSTOS ÓNUS DA PROVA | ||
Data do Acordão: | 11/27/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | HENRIQUE ARAÚJO | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / NÃO CUMPRIMENTO / FALTA DE CUMPRIMENTO E MORA IMPUTÁVEIS AO DEVEDOR. | ||
Doutrina: | - Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, p. 467; - Catarina Anastácio, A Transferência Bancária, p. 349; - Maria Raquel Guimarães, As transferências electrónicas de fundos e os cartões de débito, p. 18 e ss.; - Vaz Serra, Provas – Direito Probatório Material, BMJ n.º 110, p. 120. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 344.º E 799.º. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO: - DE 17-12-2008, PROCESSO N.º 0327/08, IN WWW.DGSI.PT. | ||
Sumário : | I - A operação de transferência eletrónica de fundos (Electronic Fund Transfer, ou, simplesmente, EFT), consiste na ordem de transferência de fundos, dada por uma pessoa a favor de outra, através de meios eletrónicos. II - A procedência dos pedidos formulados pelo ordenante da transferência bancária contra o Banco, no âmbito da relação contratual estabelecida entre ambos, depende da prova dos pressupostos típicos da responsabilidade civil: o facto ilícito, a imputação do facto ao agente, a culpa (que a lei presume ser do devedor – art. 799.º do CC), o dano, e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. III - O facto ilícito invocado traduzir-se-ia, segundo o autor, na circunstância de as ordens de transferência terem sido executadas pelo Banco apesar de não ter sido ele quem as emitiu e de estas terem sido “feitas à sua revelia”. IV - A maior dificuldade da prova de um facto negativo, fora da estrita previsão do artigo 344.º do CC, não faz inverter o ónus da prova. | ||
Decisão Texto Integral: |
PROC. N.º 12693/16.2T8PRT.P1.S1 REVISTA EXCEPCIONAL REL. 60[1]
*
AA, consultor jurídico, residente na rua ..., n.º …, …, intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra “BB, S.A.”, com sede na rua ..., n.º …, ..., pedindo que este se seja condenado a: a) restituir ao Autor a quantia global de 218.863,38 €, acrescida de juros, contados desde o levantamento dos valores em causa; b) pagar ao Autor compensação pelos danos não patrimoniais sofridos, que liquida em 10.000,00 €.
Alegou, em síntese, o seguinte: - Tendo procedido à abertura da conta bancária nº ...na agência de ... do Réu, transferiu para essa conta, em 08.07.2013, 1.500.000,00 €, com o objectivo de adquirir um imóvel, finalidade de que deu conhecimento ao seu gestor de conta. - Com a frustração desse negócio, a conta bancária aberta junto do Réu ficou destinada a pequenos pagamentos do dia-a-dia da vida do Autor em Portugal, além da compra do imóvel que, de facto, viria a concretizar posteriormente. - Tinha confiança no Réu, e particularmente no seu gestor de conta, com quem conversava frequentemente; - Devido às suas frequentes ausências de Portugal, o Réu conferiu-lhe a possibilidade de efectuar movimentos na sua conta bancária mediante instruções enviadas por “e-mail”; - Para o efeito, em 17.09.2013, Autor e o Réu celebraram acordo com a designação “...”, pelo qual passou a ser possível, ao primeiro, enviar por “e-mail” instruções quanto à execução das transacções pelo Banco Réu ; - Tais instruções consistiam na realização de pagamentos, geralmente de valor inferior a 10.000,00 €, muito raramente em transferências pessoais, para outras contas bancárias, e mais raramente ainda para contas bancárias fora de Portugal; - Ao Réu cabia, na pessoa do seu gestor de conta, controlar e verificar os movimentos bancários, de forma diligente, alertando para eventuais anomalias, podendo mesmo bloquear pagamentos e /ou transferências. - No dia 04.03.2014, foram ordenadas 2 transferências bancárias da sua conta: uma no valor de 57.000,00 €, destinada a “S...”, ...(...); e uma outra, no valor de 40.000 £ (cerca de 48.863,38 €), destinada ao “..., PLC”, ..., ... (...). - E, em 11.03.2014, mais 2 transferências bancárias, cada uma no valor de 85.000,00 €, sendo uma destinada ao “...” (...), e a outra destinada ao “...” (...). - A ordem para a realização destas operações foi enviada através do seu endereço de “email”, mas foram feitas à sua revelia, desconhecendo a identidade do emitente; - Estas instruções referiam-se a valores muito mais altos que os valores dos movimentos feitos na sua conta bancária e representavam operações sem relação com a finalidade previamente fixada à conta bancária; - Aliás, caso tivesse sido executada a ordem de transferência de 57.000,00 €, a conta ficaria a descoberto em cerca de 25.000,00 €. - A transferência de 57.000,00 € frustrou-se devido a uma irregularidade técnica, o que não sucedeu com as restantes três, sendo certo que as singularidades formais dessas ordens de transferência, designadamente quanto aos erros ortográficos e dactilográficos que apresentavam, deveriam ter alertado o Réu para a falta da sua autenticidade; - Viveu momentos de angústia com toda a situação e a perda do valor correspondente às transferências fraudulentas desarranjou toda a sua vida, sentindo- -se frustrado por não poder confiar nos serviços bancários do Réu, tendo ainda sofrido outros danos na sua saúde.
O Banco Réu apresentou contestação, rejeitando qualquer responsabilidade e pedindo a improcedência da acção.
Instruída a causa, realizou-se a audiência de julgamento e foi proferida sentença que decretou a absolvição do Réu quanto à totalidade dos pedidos.
O Autor recorreu, mas o Tribunal da Relação do ... julgou a apelação improcedente e confirmou a decisão da 1ª instância.
Ainda inconformado, apresentou o Autor recurso de revista normal, ao abrigo do n.º 3 do artigo 671º do CPC, por entender que o acórdão da Relação do ... utilizou fundamentação essencialmente diferente da que foi usada na decisão da 1ª instância. Subsidiariamente, invocou a possibilidade da revista excepcional, nos termos do artigo 672º, n.º 1, alíneas a) e b) do CPC. As conclusões inscritas na revista são as seguintes: a. “o Autor é cliente do Réu desde 02/11/2011, tendo como seu Gestor de b. já antes de ter sido assinado o documento referido (AIR) as ordens c. as assinaturas constantes das ordens de transferência referidas nos XII) Tomando em conta o aditamento à matéria de facto ordenada pela Relação, fácil se torna concluir que não houve, por parte do Réu, qualquer conferência das ordens de transferências, processadas pelo Réu em 4 e 11 de Março de 2014. Também não houve qualquer controlo das assinaturas apostas nessas ordens. Segundo os próprios funcionários do Réu (excepto as chefias: FF e EE) nem era necessário haver tais conferências; bastava apenas apurar que vinham daquele endereço de e-mail para serem de imediato processadas. XIII) Esquecem os funcionários do Réu que há deveres contratuais, regras gerais, XIV) Não verificando as assinaturas das ordens de transferências nunca seria XV) Para somar a tudo isto releve-se que o Autor, ora recorrente, foi classificado XVI) Perante a legislação geral das transacções electrónicas deveria também o Aqui chegados, XXII) Deveria o decisor – ao contrário do concluído pela primeira instância, antes de aditada a matéria de facto provada – ter interiorizado que a realidade factual se alterou e, assim, concluir que o Réu não conseguiu impugnar esse facto negativo (as transferências não foram ordenadas pelo Autor) e, menos ainda, ter o Réu demonstrado a autenticação dessas concretas operações de pagamento. XXVII) Por outro lado, é certo que o Autor desconhece a identidade dos autores XXVIII) Para além desta questão, também o percurso lógico seguido pelo decisor XXIX) Em causa não estavam as estratégias mais conhecidos de burlas XXX) Este controlo era humano. Tratava-se da existência de um “agente XXXI) Ao referir-se ao IP do correio electrónico do Autor, o decisor envereda por XXXII) Com o contrato de abertura de conta, firmado entre Réu e Autor (02/11/11), ficou pressuposta uma relação contratual duradoura. Os deveres gerais de conduta e de proteção que impendem sobre o Réu (banco), e não cumpridos em qualquer contrato de adesão, encontram aqui (no contrato de abertura de conta) o seu ponto de partida. XL) Sobre o Réu pendia assim um dever especial de cuidado, de verificação das ordens recebidas por e-mail, visto possuir o direito/dever de as não executar. (Cfr. 1.ª pág., alínea c), do texto do Contrato). É por isso manifesta a conduta negligente por parte do Réu (art. 483.º, e seguintes, do CC). Como refere Maria Raquel Guimarães (1999), na obra ‘As Transferências Electrónicas de Fundos e os Cartões de Débito’, “é ao banco que cabe assegurar a regularidade do funcionamento do sistema, para além do controlo dos meios técnicos utilizados, compreendendo-se, assim, que sobre ele recaia o risco de esse mesmo sistema gerar danos não imputáveis a culpa dos seus utilizadores.” XLI) Por outro lado, estamos também perante a falha de um dever colateral típico, no âmbito de uma relação obrigacional complexa: o dever de protecção e cuidado para com a pessoa e o património dos intervenientes (art.º 9.º/1, da Lei de Defesa do Consumidor). XLII) Complementarmente, em matéria de responsabilidades nas transferências por meios electrónicos, há sobretudo a ter em conta o DL 317/2009, de 30/10, convocado (mas apenas em parte) na primeira decisão. XLIII) Através da alínea b), do n.º 1., do art. 67.º, do DL 317/2009, impende sobre o Autor (utilizador dos serviços) a obrigação de comunicar. E o Autor deu cumprimento imediato dessa sua obrigação junto do Réu (por telefone e pelo envio de e-mail) logo que foi alertado pelo banco suíço. Mais, o Autor participou igualmente os factos à própria PJ (cfr. Doc. 7, junto com a PI). XLIV) Cumprindo estes deveres do art. 67.º, entra-se no campo das obrigações do Réu. Como é referido no n.º 1, do art. 70.º, do DL 317/2009, “...., incumbe ao respetivo prestador de serviço de pagamento fornecer prova de que a operação de pagamento foi autenticada, devidamente registada e contabilizada e que não foi afetada por avaria técnica ou qualquer outra deficiência.” XLV) Competiria ao Réu (entidade bancária) provar que a operação de pagamento foi autenticada. Mas tal não aconteceu. Pelo contrário; conforme atrás se demonstrou, o próprio gestor de conta, CC, confessou que não conferia as ordens anexas, nem autenticava a assinatura, não lhe cabendo sequer tal obrigação. O mesmo aconteceu com o gerente de balcão, DD, que igualmente confessou não fazer qualquer controlo sobre os e-mails, sobre as ordens anexas, sobre os valores aí consignados, ou mesmo conferência de assinatura (nem tempo teria para isso, como declarou!). XLVI) Nesta falta de verificação das operações bancárias em causa materializa-se a grande razão de discordância do Autor com a douta sentença que se ousa censurar: violou o Réu o seu dever especial de cuidado, o seu dever de verificação das ordens recebidas por e-mail. Só por este comportamento faltoso do Réu conseguiu o “pirata informático” ter êxito na consumação da fraude. XLVII) O facto do Réu ter recebido um e-mail (instrumento de pagamento) ao qual vem anexada a ordem, não deve, sem mais, ser visto como inequívoca prova de que a ordem (autorização) vem do titular do e-mail, ainda que provenha do e-mail acordado. “A demonstração de que um e-mail proveio da caixa de correio electrónico de uma dada pessoa, não garante que foi essa pessoa a enviá-lo”. (Margarida Lima Rego). E no mesmo sentido o n.º 2, do art. 70.º, do DL 317/2009. XLVIII) Tratando-se de cliente com perfil de risco e classificado expressamente pelo XLIX) No art. 66.º, n.º 2, al. a), do DL 317/2009 (Dever de vigilância da instituição bancária face aos fundos do cliente) encontra-se outro dever a cumprir por parte do Réu: deve ter em conta as operações habituais do cliente, ou seja, demonstrar um especial dever lateral de cuidado. No mesmo sentido, o Ac. do TRG (de 17/12/2014) vem relembrar que as instituições de crédito, poderão (e deverão) traçar o perfil do utilizador. L) Sempre caberia igualmente ao Réu (banco) a prova de que a operação de pagamento foi autorizada pelo titular da conta (Autor, cliente): a existência de facto negativo, tratar-se de um documento particular electrónico (art. 374.º, CC) e a prova recair sobre o Réu (devedor) nos termos do art 799.º do CC. LI) Recai sobre o Réu, o dever de prestar um serviço eficaz e seguro (art. 68.º, DL 317/2009). De pouco valeu ao Autor a categorização feita na abertura de conta, quando recordamos o depoimento do gestor de conta, afirmar que não conferiu as assinaturas nem as ordens enviadas, uma vez que para ele, bastaria provirem do alegado e-mail do Autor! LII) É certo que o Réu cumpriu este dever de tentar reaver os valores; contudo, tal não o desonera de não ter cumprido outros (e preventivos), nomeadamente, os deveres objectivamente consignados no DL 317/2009, no RGICSF (Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras), na Lei 25/2008, de 5/6, e particularmente, nas als. c) e d) do “Contrato de Adesão”. E tudo deveria ser cumprido, em estrita obediência ao princípio do maior grau de proteção conferido por lei - estatuto expressamente atribuído pelo Réu ao Autor, aquando da abertura de conta. LIII) Por fim, convoque-se ainda o AC do STJ, de 18/03/02, que, chamado a pronunciar-se sobre a falsidade de ordens de pagamento dirigidas a um banco, “interpretou o dever de competência técnico inscrito no texto do art. 73º, [do RGICSF] como exigência de um grau de rigor e competência superior ao do comum pai de família, mas sem chegar ao ponto de ser pericial ou científico.” LIV) Mesmo que por mera hipótese académica alguma culpa propendesse para o lado do Autor, sempre a repartição da responsabilidade e do prejuízo havido, teria de ser levado em conta - art. 71º e 72º do DL 317/ 2009. O texto decisório não aborda tal capítulo. Porém, ele sempre seria configurável se alguma incúria procedimental fosse imputada ao Autor, ora Recorrente. LV) Disposições legais violadas:
O Banco recorrido, nas contra-alegações, pronunciou-se no sentido da inadmissibilidade de qualquer uma das possibilidades de recurso, pugnando, caso assim não se entenda, pela improcedência da revista.
Indeferida, pelo relator, a possibilidade de revista normal (cfr. fls. 911 a 926), foi remetido o processo à Formação, tendo esta admitido a revista excepcional à luz da disposição da alínea a) do n.º 1 do artigo 672º do CPC (cfr. fls. 935/936).
II. FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Vêm provados das instâncias os seguintes factos[2]:
2.A O Autor é cliente do Réu desde 02.11/.2011, tendo como seu Gestor de Conta o referido CC - (facto aditado pela Relação).
13.A. Já antes de ter sido assinado o documento referido (AIR) as ordens de transferências eram emitidas em anexos assinados, enviados por email - (facto aditado pela Relação). a. a utilização da palavra “thousend”; b. a utilização da palavra “fouthy”; c. a utilização da palavra “...”.
21.A. As assinaturas constantes das ordens de transferência referidas nos pontos 14. e 15. não foram verificadas pelo gestor de conta nem pelo gerente do balcão - (facto aditado pela Relação). a. 3 emitidas e debitadas a 5 de Março de 2014, respectivamente com os valores de € 57.000,00, £ 7.050,00 e £ 40.000,00; e b. 2 emitidas a 12 de Março de 2014 e debitadas no dia subsequente, no valor unitário de € 85.000,00 cada.
Por outro lado, as instâncias julgaram não provados os seguintes factos: O acórdão da Formação que admitiu a revista excepcional reconheceu relevo jurídico à questão suscitada no recurso, no âmbito da responsabilidade civil bancária, dizendo tratar-se “de um caso que não é comum nos tribunais nacionais, tendo a sua origem numa ordem genérica de movimentação de conta bancária, a que acresceriam instruções remetidas por email, sendo questionado também o ónus de demonstração da existência ou não de alguma instrução que, por essa via, tenha sido transmitida ao R., mas cuja autoria não seria do A.”. É, pois, com esta delimitação objectiva que se apreciará a revista excepcional.
A matéria em discussão enquadra-se no conceito amplo de transferência electrónica de fundos (..., ou, simplesmente, ...), operação que consiste na ordem de transferência de fundos, dada por uma pessoa a favor de outra, através de meios electrónicos[3]. A complexidade deste tipo de operações, a habitual envolvência de vários intervenientes e o recurso a meios técnicos, mais ou menos sofisticados, de comunicação electrónica, são factores que potenciam a ocorrência de incidentes neste domínio. Esse risco concretiza-se, muitas vezes, em falhas técnicas ou intrusões ilegítimas e fraudulentas no sistema de transmissão de mensagens e nos equipamentos informáticos. Mas, ordenada uma transferência, o Banco fica obrigado a, de acordo com as condições estipuladas e dentro do limite dos fundos disponibilizáveis, executar, usando da devida diligência e de acordo com as instruções recebidas, essa mesma ordem. Se o não fizer, será responsável face ao seu cliente, ordenante da transferência bancária[4].
Vejamos, agora, o caso concreto. Em causa nesta acção estão três transferências bancárias, nos valores de £ 40.000,00, € 85.000,00 e € 85.000,00, sendo as instruções para realização dessas transferências datadas, respectivamente, de 04.03.2014 (a primeira) e 11.03.2014 (as duas últimas) – cfr. pontos 14 e 15. Como bem sintetizado no acórdão recorrido, a tese do Autor assenta nos seguintes fundamentos: - as instruções para as ordens de transferência bancária procederam do email do Autor, mas não foram por si transmitidas; - os termos dessas instruções permitiriam ao Banco Réu, seu destinatário, concluir que não procediam da sua autoria; - ao não analisar eficazmente essas instruções, não detectando a ilegitimidade das instruções, o Banco Réu incumpriu os seus deveres contratuais. Em 17.09.2013, o Autor, que já era cliente do Réu desde 02.11.2011 (cfr. ponto 2.), subscreveu o documento junto a fls. 23 e 24, no qual autorizou o Banco Réu a aceitar e executar instruções relativas à movimentação da conta bancária que aí detinha, através da conta de correio electrónico ....com (cfr. ponto 13.). Aliás, já antes de ter subscrito esse documento, as ordens de transferência eram emitidas em anexos assinados, enviados por email (cfr. ponto 13-A). Nesse documento, denominado “...” ficou expressamente referido que o Autor “autoriza o BB, S.A., a não agir sobre instruções enviadas por email quando estas não procedam do mencionado email”[5]. Ficou também previsto que o Autor “autoriza o BB, S.A., a não agir sobre instruções enviadas por email onde haja dúvidas acerca da identidade da pessoa que dá as instruções ou sobre o conteúdo destas”[6]. Esta acção funda-se na alegada violação, pelo Banco, dessas cláusulas contratuais e na omissão dos deveres associados à realização de operações bancárias através desses meios, em particular no que concerne às ordens de transferência de fundos da conta do Autor para contas de terceiros. A procedência dos pedidos formulados contra o BB depende, pois, da prova dos pressupostos típicos da responsabilidade: o facto ilícito, a imputação do facto ao agente, a culpa (que a lei presume ser do devedor – artigo 799º do CC), o dano, e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. A regra geral do n.º 1 do artigo 342º do CC estabelece, em termos de ónus da prova, que cabe àquele que invocar um direito a prova dos factos constitutivos do direito alegado. Na decorrência dessa norma, e exceptuadas as situações especiais previstas na lei, a existência de um facto negativo que constitua fundamento da pretensão deduzida pelo autor faz recair sobre este a correspondente prova. Ora, o facto ilícito invocado traduzir-se-ia, segundo o Autor, na circunstância de as ordens de transferência terem sido executadas pelo BB apesar de não ter sido aquele quem as emitiu, e de estas terem sido “feitas à sua revelia”, desconhecendo quem as tenha emitido – cfr. artigos 35º e seguintes da petição inicial. O que, a final, resultou provado foi que as ordens de transferência referidas em 14. e 15., além de provirem do endereço de correio electrónico ....com, traziam em anexo, assinada, a ordem a executar, como era habitual (cfr. ponto 29.). Pelo contrário, não ficou provado que essas ordens tenham sido feitas à revelia do Autor nem que este desconhecesse a identidade dos emitentes das mesmas [cfr. alíneas b) e c) dos factos não provados]. Sustenta o Autor que, dada a enorme dificuldade em fazer a prova do facto negativo de não ter sido ele “o feitor das instruções, das ordens de transferência”, deveria caber à contraparte (BB) a prova do facto positivo contrário, ou seja, deveria caber ao BB a prova de que as ordens de transferência foram emitidas pelo Autor – cfr. conclusões XXIV e XXV). e É inegável que a demonstração de um facto negativo apresenta, por vezes, grande dificuldade. Contudo, a maior dificuldade da prova do facto negativo não foi considerada relevante, pelo legislador, para determinar uma inversão do ónus da prova, como se conclui do disposto no artigo 344º do CC[7]. Nesta disposição apenas foram acauteladas as hipóteses da existência de presunções legais, de dispensa ou liberação do ónus da prova e de contratos probatórios (n.º 1), bem como os casos em que a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado (n.º 2.). Por isso, já Vaz Serra[8] referia, a propósito da ultrapassada regra negativa non sunt probanda: “Esta regra, quando entendida no sentido de que não carecem de prova os factos negativos, não parece de aceitar, pois se o direito, que se faz valer, tem como requisito um facto negativo, deve este facto ser provado por quem exerce o direito, precisamente como os factos positivos que sejam requisitos dos direitos exercidos. Não há motivo para soluções diferentes nos dois casos, dado que os factos negativos não têm que se presumir pela mera circunstância de o serem, nem seria razoável que se impusesse à outra parte o ónus de provar o facto positivo contrário”. Os tribunais, cientes dos obstáculos que se colocam à demonstração de factos negativos, são, por princípio, menos exigentes na valoração das provas para apuramento desse tipo de factos. Como se observa no acórdão do STA de 17.12.2008[9], a dificuldade da prova de determinados factos negativos deverá ter como corolário, por força do princípio constitucional da proporcionalidade, uma menor exigência probatória por parte do julgador, valorizando provas menos convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse. Evidentemente que, como também se admite nesse acórdão, não serão constitucionalmente admissíveis, por violação da norma do artigo 20º, n.º 1, da CRP, situações de imposição de ónus probatório que reconduzam à impossibilidade prática de prova de um facto necessário para o reconhecimento de um direito. Mas no caso concreto não é isso que sucede, na medida em que sempre seria possível ao Autor demonstrar que as ordens de transferência não tinham sido por si emitidas. O acórdão recorrido reproduz o que, sobre este aspecto, foi escrito com bastante assertividade na sentença da 1ª instância: “(…) o que para os autos releva será que o ataque de que o autor afirma ter sido vítima não se teria traduzido na simples apropriação de dados bancários do autor, posteriormente utilizados no relacionamento electrónico com o banco réu como se do autor se tratara, mas antes na verdadeira manipulação dos ficheiros do computador do autor, com criação de documentos/ficheiros similares aos que o autor anteriormente enviara, cópia da assinatura do autor, e posterior envio desses documentos/ficheiros, falsamente assinados, através do endereço electrónico do autor. Independentemente do grau de elaboração desta alegada fraude, uma coisa é certa: não pode deixar de ter deixado vestígios claros, seja no computador do autor (traduzidos, pelo menos, na abertura e visionamento de ficheiros originais por forma a apurar o procedimento habitual entre autor e réu no que respeita às instruções para transferências bancárias), e nos registos de visitas ao correio electrónico do autor (…) para não falar no registo no computador do autor da própria existência do alegado programa ‘malware’. (…) (…) face à singularidade do suposto ataque informático e à necessária existência de vestígios do mesmo (facilmente detectáveis pelo simples exame ao computador do autor; através de informação pedida à entidade fornecedora do serviço de correio electrónico do autor; ou por simples averiguação do destino do dinheiro), expectável seria que o autor carreasse para os autos elementos objectivos que permitissem ter como razoável a verificação do ataque”. Ainda recorrendo à apreciação feita na sentença da 1ª instância, o acórdão da Relação do ... sublinha a seguinte passagem: “(…) não deixa de surpreender que, para demonstrar a ilegitimidade das instruções de transferência, o único meio de prova apresentado pelo autor se reconduza às declarações de parte por si prestadas, simplesmente afirmando ter o ‘software’ do seu computador sido atacado e invadido por um ‘malware’ enviado por terceiro, que teria manipulado as informações armazenadas na máquina, gerando as instruções de transferência cuja autenticidade impugna”. Ora, por mais difícil que a prova do facto negativo alegado se apresentasse – o que, como bem esclarecido nas decisões das instâncias, nem é o caso – nunca seria possível chegar ao ponto de, como pretende o recorrente, se inverter o ónus da prova. Os imperativos da certeza e da segurança jurídica não permitem que os tribunais procedam à derrogação da lei nesta matéria, consoante os casos concretos que são chamados a decidir, pois, de contrário, a modificação do ónus probatório poderia redundar ou confundir-se com arbitrariedade. Por outro lado, está também vedada, por força do disposto nos artigos 10º, n.º 2 e 11º do CC, a aplicação analógica, a outras situações, dos preceitos que invertem o ónus da prova, porquanto não se está perante um caso omisso e porque o artigo 344º tem clara natureza excepcional. Como atrás se referiu, o Autor só lograria a procedência da acção se provasse, primeiro que tudo, o facto negativo consubstanciador da ilicitude, ou seja, que não emitiu as ordens de transferência de fundos identificadas nos pontos 14. e 15. a que o Banco Réu deu seguimento. Faltando a prova da falsidade dessas ordens, não há, sequer, que apreciar os restantes requisitos da responsabilidade civil. Isto mesmo ficou bem expresso no acórdão recorrido: “(…) se não pode ter-se por demonstrado sequer que foi outrem que não o autor o autor das instruções de transferência dos três valores descritos supra, isto é, que essas instruções foram ilegítimas, não pode, sucessivamente, indagar-se sobre se o réu poderia ter identificado uma tal ilegitimidade, que ficou por apurar. Consecutivamente, não se pode discutir sobre se o banco incumpriu qualquer dever de cautela e de protecção para com o autor, seu cliente, executando ordens de transferência que deveria ter identificado ou admitido serem falsas e prevenido o seu cumprimento, pois que não se tem por adquirido que as mesmas tenhas sido efectivamente falsas e que tenham redundado num desapossamento do autor relativamente às quantias transferidas”. Nas alegações da revista o recorrente continua a trocar a prioridade dos requisitos. Diz ele, na conclusão V: “Se os funcionários do Réu cumprissem os deveres a que estavam contratual e legalmente obrigados para com o Autor, nenhum êxito teriam tais transferências (fosse quem fosse que as ordenasse). Aí, já nem se colocaria sequer a hipótese de exigir ao Autor que identificasse os ordenantes de tais transferências, ou demonstrasse não ter sido ele próprio a urdir tão desprezível estratégia!” Põe, como se vê, todo o enfoque no incumprimento dos deveres de diligência do Banco Réu subalternizando o elemento fulcral e decisivo: a origem e autoria das ordens de transferência. Só se se tivesse provado que as ordens de transferência foram emitidas por outrem (que não o Autor), e à sua revelia, é que se poderia questionar se o Banco cumpriu os deveres de diligência a que estava contratualmente vinculado quando deu seguimento a essas ordens de transferência, no âmbito da relação negocial bancária firmada com o seu cliente.
III. DECISÃO
Nestes termos, nega-se provimento à revista.
*
Custas pelo recorrente.
*
LISBOA, 27 de Novembro de 2019
Henrique Araújo (Relator) Maria Olinda Garcia Raimundo Queirós
_______________ |