Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6500/07.4TBBRG.G2.S3
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: ARGUIÇÃO DE NULIDADE DE ACÓRDÃO
INDEPENDÊNCIA E IMPARCIALIDADE DO TRIBUNAL
COMPETÊNCIA PARA APRECIAR A NULIDADE
IMPEDIMENTOS DO JUIZ
INTERVENÇÃO NO PROCESSO
Data do Acordão: 04/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS - TRIBUNAIS / GARANTIAS DE IMPARCIALIDADE - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA ( NULIDADES ) - RECURSOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 5.º, 115.º, N.º1, AL. E), 607.º, N.º 4, 615.º, AL. C), 666.º.
Sumário :
I - Como deriva do art. 666.º do NCPC (2013), a competência para apreciar uma reclamação dirigida a um acórdão – mecanismo que é impassível de ser confundido com o recurso – pertence exclusivamente ao colectivo que o proferiu, sendo que os magistrados judiciais que o integrarão não se podem qualificar como “juízes de outro tribunal” para efeitos de suscitação do impedimento a que alude a al. e) do n.º 1 do art. 115.º desse diploma. Tal solução normativa não viola qualquer preceito ou princípio constitucional.

II - O cometimento do vício de omissão de pronúncia supõe que a questão cujo conhecimento se omitiu seja relevante para composição da lide, o que exclui a relevância de argumentos e de matérias despiciendas para aquele propósito ou cujo conhecimento se tenha por prejudicado pela solução dada ao litígio.

III - Os princípios estruturantes do processo civil, em vigor desde 1995/96, apontam no sentido de que, tendo o autor alegado, na petição inicial, o núcleo essencial dos factos que integram a causa de pedir, é possível que sejam processualmente adquiridos factos que complementem ou concretizem esse núcleo e que estes suportem a decisão de procedência da causa. O juízo sobre o desfecho da causa não tem que assentar exclusivamente nos factos descritos na petição inicial, como derivaria de uma visão desproporcionadamente formalística e preclusiva do ónus de alegação.

IV - Tendo o autor logrado caracterizar, em termos minimamente adequados o núcleo da causa de pedir que invoca – a usucapião – e tendo-se concluído que era possível ter como processualmente adquiridos os factos que traduzem o efectivo exercício de actos possessórios sobre a parcela de terreno cuja titularidade é controvertida, não se verifica a nulidade a que se reporta a al. c) do n.º 1 do art. 618.º do NCPC.

V - Às considerações expostas em III e IV não subjaz uma interpretação do disposto no art. 5.º e no n.º 4 do art. 607.º (ambos do NCPC) segundo a qual a falta de alegação de factos essenciais pode ser suprida judicialmente, antes se assumindo que as imprecisões e deficiências que afectam a descrição da matéria de facto não se traduzem numa omissão de alegação do núcleo fundamental desta.

VI - O raciocínio referido em V é compatível com os normativos aí mencionados e em nada afecta o direito de defesa – pois este é plenamente garantido pela estrutura contraditória da audiência final –, não contendendo, outrossim, com quaisquer princípios ou preceitos constitucionais.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



1. Notificado do acórdão proferido nos presentes autos, negando provimento à revista interposta, vieram os recorrentes AA e mulher arguir, no requerimento de fls. 1465 e segs, as nulidades de omissão de pronúncia e de contradição entre os fundamentos e a decisão, suscitando ainda o impedimento para intervirem na conferência que é competente para apreciar tais pretensas nulidades dos juízes que subscreveram o referido aresto, invocando o disposto no art. 115º, nº1., al. e) do CPC, invocando em abono de tal tese o princípio do Estado de Direito.

A parte contrária pronunciou-se pela improcedência manifesta de tal arguição.

Começando por apreciar esta questão prévia, dir-se-á, desde logo que a tese do recorrente – ao confundir as figuras do recurso (dirigido necessariamente a um Tribunal superior) e da reclamação (no caso, arguição de nulidades), endereçada aos próprios juízes que a proferiram a decisão reclamada, é manifestamente improcedente, olvidando, quer as disposições legais vigentes, quer a prática reiterada e uniforme de todos os Tribunais superiores (incluindo a do próprio Tribunal Constitucional) no sentido de que o órgão competente para julgar a arguição de nulidades de um acórdão é o próprio colectivo que o proferiu.

Tal solução, emergente do disposto no art. 666º do CPC, não tem a menor conexão com a matéria do pretenso impedimento invocado, já que obviamente os juízes que proferiram o acórdão reclamado não podem qualificar-se como juízes de outro tribunal que hajam proferido a decisão impugnada.

Por outro lado, esta solução normativa, pacificamente aplicada desde sempre, não viola qualquer preceito ou princípio constitucional, como, aliás, o TC tem entendido; como se afirma, por exemplo, no acórdão 79/02:

2.2. - Assim, relevantemente, interessa apurar da conformidade constitucional do nº 3 do artigo 668º, aplicado com o sentido de que a apreciação de nulidades invocadas quanto ao acórdão que se pretende anular é feita pelos juízes que nele intervieram.

Será esta uma interpretação inconstitucional, designadamente por ofensa ao convocado artigo 202º, nº 2, da Lei Fundamental?

3. -   O regime vigente relativo ao conhecimento das nulidades da sentença – e, mais concretamente, o pertinente à nulidade, tendo em causa a oposição dos fundamentos com a decisão – projecta-se no plano da constitucionalidade, na medida em que esteja em risco a dimensão garantística que o texto constitucional reserva à função jurisdicional e ao modo como a justiça se administra.

Na tese do recorrente, o nº 2 do artigo 202º da Constituição – que ensaia uma definição da função jurisdicional, o que é doutrinariamente controvertido (assim, Gomes Canotilho e Vital Moreira Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 792) – é desrespeitado sempre que os mesmos juízes “anulam a defesa dos direitos e interesses protegidos aos arguentes”, ao serem chamados a pronunciarem-se sobre as arguidas nulidades, pressupondo-se que se moverão, perante um qualquer argumento eventualmente brandido, com o prejuízo subentendido “pelo uso da prudência e da experiência e saber acumulado do exercício da função judicial”.

Por outras palavras, pondo de lado a argumentação eufemística de que se lançou mão, o julgamento da matéria pertinente à alegada nulidade processual, susceptível de se repercutir nos ulteriores termos de causa, deveria caber a terceiros, e não aos subcritores da decisão, por estarem em jogo as garantias de independência e objectividade.

Convém observar, no entanto, que o legislador goza de liberdade de conformação na ampliação ou restrição das formas impugnatórias das decisões  e na adopção de outras medidas – como, relativamente ao direito ao recurso, o Tribunal Constitucional se tem pronunciado, nomeadamente no tocante à existência de um direito a duplo grau de jurisdição, excluída a hipótese de recurso em matéria penal (cfr., por todos, os acórdãos nºs. 287/90, 305/94, 239/97 e 479/98, publicados no Diário da República, II Série, de 20 de Fevereiro de 1991, 27 de Agosto de 1994, 15 de Maio de 1997 e 24 de Novembro de 199, respectivamente).

Por sua vez, e como se observou no acórdão nº 485/2000, publicado no citado Diário, II Série, de 4 de Janeiro de 2001, ao ter presente a garantia de acesso ao direito e aos tribunais para tutela dos interesses legalmente protegidos, consagrada no nº 1 do artigo 20º da Constituição, o exercício da censura constitucional terá lugar quando o modelo processualmente estatuído restrinja ou trunque a materialização dessa dimensão garantística.

Ora – sem questionar o modo como foi apreciada a matéria de facto pela decisão judicial, em si mesma considerada, o que se subtrai aos poderes de cognição do Tribunal Constitucional –, não é razoável que, em tese geral, se proceda ao “desaforamento” do processo, colocando sob “suspeição “ a independência e a objectividade do julgador, quando este seja chamado a pronunciar-se sobre alegada nulidade processual.

Como se observou noutro aresto deste Tribunal – o nº 135/88, publicado no jornal oficial referido, II Série, de 8 de Outubro de 1988 – a independência dos juízes, considerada não apenas como um dever ético-social mais ainda como o dever de “dizer o direito”, de modo a manter-se o julgador alheio a influências exteriores, assume-se como responsabilidade que terá a dimensão e a densidade “da fortaleza de ânimo, de carácter e da personalidade moral de cada juiz”, de modo a que se pode dizer não se encontrar o juiz em condições de “administrar justiça” quando a sua imparcialidade ou a confiança do público se ponham justificadamente em causa, pois não estarão, nessa medida, reunidas condições mínimas que assegurem a objectividade da jurisdição.

Se se compreende que a anulação do julgamento, em consequência de vícios intrínsecos e essenciais da própria decisão de mérito, seja susceptível de abalar a confiança na imparcialidade e na objectividade que ao julgador devem assistir, revelar-se-ia de todo injustificada a generalização de semelhante “suspeição”, de modo a impedir-se que o mesmo tribunal, composto pelos mesmos juízes, aprecie uma alegada nulidade, do naipe das enunciadas no artigo 668º (para mais, a decisão sobre a arguição não permite ao Tribunal reapreciar a decisão que emitiu mas apenas corrigir vícios formais da mesma; e essa nova decisão passa, em princípio, a fazer parte integrante da sentença proferida).

De resto, não só essa é a solução corrente e incontroversa no processamento dos recursos como, de outro modo, estaria capciosamente aberta a via para um novo grau de jurisdição, porventura ilimitadamente renovado, enquanto não aceite a tese do arguente.

O que seria, afinal, contrariar o processamento concebido para evitar manobras dilatórias na tramitação processual.

A norma do nº 2 do artigo 202º da Constituição da República não é, por conseguinte “tocada”.

Deste modo – e com tal fundamento – indefere-se a verificação do pretenso impedimento dos juízes que intervieram na prolação do acórdão reclamado e julga-se conforme à Lei Fundamental o regime processual consagrado no nº3 do art. 666º do CPC, enquanto comete à conferência, integrada pelos mesmos juízes que subscreveram o acórdão reclamado, a competência para apreciar os vícios imputados ao acórdão proferido.


2. Começa o recorrente por invocar o vício de omissão de pronúncia, já que o acórdão reclamado não teria tomado expressamente posição sobre a precisa antiguidade da descrição registral do prédio em litígio, uma vez que – embora resultasse dos factos tidos como provados pelas instâncias que as ditas confrontações estavam estabilizadas há mais de 30 anos - resultaria das certidões juntas ao procedimento cautelar apenso que o dito prédio estaria descrito no registo predial apenas a partir de 8/8/97.


Sendo o objecto do recurso circunscrito às conclusões da alegação do recorrente, o cometimento do vício de omissão de pronúncia supõe que o Tribunal haja omitido a apreciação de uma questão, relevante para a composição da lide, colocada explicitamente pelo recorrente naquela peça processual (e não um mero argumento por ele esgrimido ou uma matéria irrelevante ou prejudicada pela solução dada ao litígio)

Ora, a – aliás artificiosa - argumentação dos reclamantes é manifestamente improcedente: na verdade, se os reclamantes pretendem, com este argumento, ora deduzido, impugnar a resposta dada pelas instâncias ao ponto 10 da matéria de facto, deveriam tê-lo feito durante o processo, e não obviamente após a prolação do acórdão final sobre o litígio…

Por outro lado, é evidente que quando as instâncias referiram que o prédio em litígio há mais de 30 anos apresentava as confrontações indicadas no ponto 1 da matéria de facto assente, tal afirmação tem de entender-se e interpretar-se no sentido de que os limites físicos do prédio eram já então os que vieram a constar da descrição predial. Ou seja, a descrição predial ulteriormente feita, assimilou e coincidiu com a definição física de confrontações e extremas do prédio que as instâncias, na sua actividade de livre valoração da prova, consideraram factualmente existente há décadas.

Não deixou, deste modo, o acórdão de apreciar nenhuma questão que integrasse o objecto do recurso interposto e fosse relevante para a solução jurídica do pleito.


3. Tratam ainda os reclamantes de arguir a ininteligibilidade da decisão, por contradição entre os fundamentos e a decisão, já que – partindo-se do princípio de que o A. teria o ónus de alegar a prática de actos possessórios que abrangessem ou incluíssem a parcela cuja titularidade era controvertida – teria o acórdão contemporizado com a procedência da acção de reivindicação, apesar de reconhecer algum nível de imprecisão ou deficiência – de ambiguidade ou equivocidade – no modo como a matéria factual havia sido alegada na petição e transposta para os pontos da base instrutória.

Saliente-se que a argumentação dos reclamantes assenta numa visão desproporcionadamente formalista e rigidamente preclusiva do processo civil, manifestamente incompatível, não apenas com o Código de 2013, mas com princípios estruturantes em vigor desde 1995/96 – segundo a qual qualquer insuficiência, deficiência ou imprecisão na exposição e descrição dos factos substantivamente relevantes na petição inicial deveria ditar a irremediável improcedência da acção.

Sucede, porém, que há muito deixou de ser assim no nosso ordenamento processual: desde que o A. tenha alegado na petição o núcleo essencial, caracterizador da causa de pedir, é perfeitamente possível que sejam ainda processualmente adquiridos, durante o processo, factos complementares ou concretizadores daquele núcleo essencial – e que poderão servir legitimamente de suporte a uma decisão de procedência da acção; ou seja: o que é decisivo para o juízo de procedência ou improcedência não é apenas – como o era na referida e há muito ultrapassada visão desproporcionadamente formalística e preclusiva do ónus de alegação da parte – o elenco de factos descritos inicialmente na petição, mas o conjunto de factos processualmente adquiridos até ao termo do processo, após realização das diligências de produção de prova.

Daí que – tendo-se entendido que, apesar das reconhecidas insuficiências ou imprecisões da petição, o A. logrou caracterizar na petição, em termos minimamente adequados, o núcleo essencial caracterizador da causa de pedir invocada (a usucapião abrangendo a totalidade física do imóvel) – a solução do litígio dependia de saber se podia considerar-se processualmente adquirido o facto traduzido no efectivo exercício de actos possessórios sobre – também- a parcela de terreno cuja titularidade era concretamente controvertida: e foi naturalmente a resposta positiva a esta questão, aprofundadamente explicitada no acórdão, a fls. 1956/1958, que permitiu manter o decidido pela Relação no acórdão recorrido.

Improcede também, deste modo, a segunda nulidade imputada ao acórdão reclamado.

Por outro lado, é manifesto que o acórdão recorrido não interpretou as normas dos art. 5º e 607º, nº4, do CPC no sentido de que a falta de alegação de factos essenciais integradores da causa de pedir pode ser suprida pelo Tribunal com recurso a regras de experiência e presunções naturais: como decorre claramente das anteriores considerações, todo o acórdão está construído no pressuposto de que as imprecisões, insuficiências e ambiguidades que afectavam a descrição da matéria de facto na petição não implicavam a omissão de alegação do núcleo essencial desta : o que ocorreu, de forma paradigmática, foi a aquisição processual de factos concretizadores daquele núcleo factual essencial, referentes ao exercício pelo A. de actos possessórios sobre toda a realidade física do prédio, solução que, não só é perfeitamente compatível, como é imposta pela disciplina constante daqueles preceitos legais, em nada colidindo com o direito de defesa (plenamente garantido pela estrutura contraditória da audiência final) ou com quaisquer preceitos ou princípios constitucionais.

Vai, pois, indeferida na totalidade a reclamação deduzida.


Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, sem prejuízo, por ora, do benefício de apoio judiciário.


Lisboa, 07 de Abril de 2016


Lopes do Rego (Relator)

Orlando Afonso

Távora Victor