Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A329
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
Nº do Documento: SJ2008040103296
Data do Acordão: 04/01/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Sumário :
Os créditos dos trabalhadores, aos quais é atribuído o privilégio imobiliário geral, não podem ser graduados à frente do crédito garantido por hipoteca, sendo-lhes aplicável o regime do art. 749º do C.Civil.
Assim, o crédito garantido por hipoteca tem prioridade no pagamento em relação aos créditos dos trabalhadores, garantidos por privilégio imobiliário geral.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I- Relatório:
1-1- No Tribunal de Comércio de Lisboa, nos autos de reclamação de créditos que correm por apenso à acção de falência nº 10/97, em que foi declarada falida a sociedade “RP – Confecções de Roupa, Lda., foram graduados créditos nos seguintes termos:
A – Pelo produto da venda da fracção apreendida e vendida nos autos:
1º - Créditos reclamados pelos trabalhadores
2º Crédito do BB, S.A. (incorporante do Banco MM) de Esc. 107.613.716$00;
3º - Crédito da Caixa BB – Esc. 146.409.824$00,
4º - Remanescente do crédito da Caixa BB e restantes créditos a ser pagos rateadamente:
BES, S.A. - Esc. 19.081.922$00;
MCU – Máquinas de Costura, Lda. - Esc. 7.370.009$00;
Banco BB, S.A.- Esc. 14.545.250$00, créditos próprios;
Crédito Predial Português – Esc. 1.991.225$00;
Caixa Geral de Depósitos, S.A., do anterior Banco Nacional Ultramarino, S.A. – Esc. 7.720.150$30;
EDP DISTRIBUIÇÂO – Energia, S.A. – Esc. 604.146$00;
CRSS de Lisboa e Vale do Tejo – Esc. 202.305.137$00;
Ministério Público – Esc. 194.032.776$00 (incluindo o montante reconhecido na acção apensa).
Mapfre – Seguros Gerais, S.A. – Esc. 996.548$00;
Caixa BB: Esc. 56.826.016$00.
B – Pelo produto da venda dos restantes bens da massa:
1º- Créditos reclamados pelos trabalhadores, a ser pagos rateadamente;
2º - Restantes créditos a ser pagos rateadamente.
1-2- Não se conformando com esta decisão, dela recorreu para a Relação de Lisboa o Banco BB, que, por acórdão de 20-9-2007 julgou improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Irresignado com este acórdão, dele recorreu o Banco BB S.A. para este Supremo Tribunal, recurso que foi admitido como revista e com efeito devolutivo.
O recorrente alegou, tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões:
1ª- O Código Civil apenas prevê, no nº 3 do art. 735º, privilégios imobiliários especiais.
2ª- Assim, o privilégio imobiliário geral para garantia dos créditos laborais dos trabalhadores previsto na alínea b) do artigo 12° da Lei nº 17/86 de 14 de Junho e no artigo 4º da Lei n° 96/2001 de 20 de Agosto, constitui uma derrogação ao princípio geral consagrado no citado artigo 735.° n° 3 de que os privilégios imobiliários são sempre especiais;

3ª- A Lei n° 17/86 não estabelece que os privilégios imobiliários gerais que criou abarcam todos os bens existentes no património do devedor, nem sequer regula o concurso de tal privilégio com outras garantias reais, designadamente, a hipoteca, nem esclarece a sua relação com os direitos de terceiros;

4ª- Assim, aos privilégios imobiliários gerais de que beneficiam os créditos laborais, por serem de natureza absolutamente excepcional, por não incidirem sobre bens certos e determinados, por derrogarem o princípio geral estabelecido no n.° 3 do artigo 735.° do Código Civil, por nem sequer existirem na realidade jurídica à data da entrada em vigor daquele diploma legal, por afectarem gravemente os legítimos direitos de terceiros, designadamente os do credor cuja hipoteca se encontra devidamente registada em virtude de não estarem sujeitos a registo, é-lhes inaplicável o princípio previsto no artigo 751º do Código Civil;

5ª- Daí que, a tais privilégios, pelo facto de serem gerais, deve se aplicado o regime previsto no artigo 749º e 686° do Código Civil, constituindo meras preferências de pagamento, só prevalecendo em relação aos créditos comuns;

6ª- Consequentemente, face à lei ordinária, os direitos de crédito garantidos por privilégios imobiliários gerais, cedem, na ordem de graduação, perante os créditos garantidos por hipoteca.

7ª- Os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 362/2002 e 363/2002, publicados no Diário da República de 16 de Outubro de 2002, declararam a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do artigo 2.° da Constituição, respectivamente, da norma constante, na versão primitiva do artigo 104°, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, e hoje do artigo 111º e das normas constantes do artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80 de 9 de Maio e do artigo 2° do Decreto Lei n°5 12/76, de 3 de Julho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nelas conferido à Fazenda Pública e à Segurança Social preferem à hipoteca, nos termos do artigo 751°.

8ª- Tais declarações de inconstitucionalidade fundamentam-se no facto de tais normas violarem o princípio da confiança ínsito no Estado de Direito Democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição da República.

9ª- Os fundamentos, que determinaram a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral dos citados normativos, aplicam-se aos privilégios imobiliários gerais instituídos pela alínea b) do artigo 12° da Lei nº 17/86 de 14 de Junho e no artigo 4º da Lei n° 96/2001, de 20 de Agosto, quanto aos créditos laborais;

10ª- A interpretação que o Acórdão recorrida fez dos citados preceitos, no sentido de que o privilégio imobiliário geral aí constituído prefere às hipotecas anteriormente registadas, graduando os créditos dos trabalhadores com preferência aos créditos garantidos por hipoteca, viola igualmente os princípios da protecção da confiança e da segurança jurídica.

11ª- Na verdade, tal privilégio é de índole geral sem qualquer conexão com o prédio sobre que incide e constitui um ónus oculto por não ser possível aos particulares indagar sobre a existência desses créditos privilegiados e apurar o seu montante, mormente, aquando da constituição das hipotecas;

12ª- Consequentemente, os credores hipotecários são, no momento da graduação de créditos, confrontados e surpreendidos com uma realidade que não conheciam, nem podendo conhecer, podendo ver completamente prejudicado o pagamento dos seus créditos, apesar de tudo terem acautelado tendo em vista a certeza e segurança jurídicas.

13ª- Em face do exposto, as normas contidas na alínea b) do artigo 12.° da Lei nº 17/86, de 14 de Junho e no artigo 4.° da Lei nº 96/2001 de 20 de Agosto devem ser interpretadas no sentido de que o privilégio imobiliário geral nelas conferido aos créditos dos trabalhadores prefere à hipoteca, é inconstitucional por violação dos princípios da confiança e segurança, previsto no artigo 2° da Constituição da República.

Termos em que deve ser concedido provimento à presente revista e, em consequência, o Acórdão recorrido ser substituído por outro Acórdão que gradue o crédito hipotecário do Recorrente preferencialmente aos créditos dos trabalhadores.
Não houve contra-alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas (arts. 690º nº1 e 684º nº 3, ex vi do disposto no art. 726º do C.P.Civil).
Nesta conformidade será a seguinte a questão a apreciar e decidir:
- Se o crédito do Banco recorrente garantido por hipoteca, deve ser graduado anteriormente aos créditos dos trabalhadores.

Como consta do relatório deste acórdão, a sentença de 1ª instância, posição confirmada pelo acórdão da Relação, graduou em primeiro lugar, em relação ao produto da venda da fracção apreendida e vendida nos autos, os créditos reclamados pelos trabalhadores e em segundo lugar o crédito do recorrente, BB.
Haverá a ponderar que foi fixada a data de 1-7-1999 como a da declaração da falência. Por outro lado, não há dúvida e assim foi considerado nas instâncias, que o crédito reclamado pelo então Banco MM (hoje BB) se encontra integralmente garantido com hipoteca incidente sobre a fracção identificada e apreendida para a massa falida.
Ao presente processo aplicou-se, adjectivamente, o dispositivo do Código Especial de Recuperação de Empresa e Falência, aprovado pelo Dec-Lei 132/93 de 23/4, pois vigorava na altura da instauração do processo. Actualmente está em vigor o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, aprovado pelo Dec-Lei 53/2004 de 18 de Março, com as alterações introduzidas pelo Dec-Lei 200/2004 de 18 de Agosto. Porém, o regime deste diploma não se aplica aos processos pendentes à data da entrada em vigor do (novo) diploma, como resulta do art. 12º nº 1 daquele Dec-Lei 53/2004.
Como se viu, a questão a apreciar e decidir será a de se saber se na graduação, os créditos (de trabalhadores) emergentes de contrato de trabalho, devem, ou não, prevalecer sobre créditos garantidos por hipoteca. Na sentença de 1ª instância recorrida, graduou-se os créditos dos trabalhadores antes do crédito garantido por hipoteca. É precisamente em relação a esta circunstância de serem esses créditos graduados antes do seu, que o recorrente mostra o seu inconformismo neste recurso.
Estabelece o art. 12º nº 1 da Lei 17/86 de 14/6 (na redacção introduzida pela Lei 96/2001 de 20/8):
Os créditos emergentes do contrato individual de trabalho regulados pela presente lei gozam dos seguintes privilégios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário geral.
2- Os privilégios dos créditos referidos no nº 1, ainda que resultantes de retribuição em falta antes da entrada em vigor da presente lei, gozam de preferência nos termos do número seguinte, incluindo os créditos respeitantes a despesas de justiça.
3- A graduação dos créditos far-se-á pela ordem seguinte:
a) Quanto ao privilégio mobiliário geral, antes dos créditos referidos no nº 1 do art. 747º do Código Civil, mas pela ordem dos créditos enunciados no artigo 737º do mesmo Código;
b) Quanto ao privilégio imobiliário geral, antes dos créditos referidos no art. 748º do Código Civil e ainda dos créditos de contribuição devidas à Segurança Social”.
Também a referida Lei 96/2001 de 20/8, estabelece, em relação aos créditos dos trabalhadores exceptuados pela Lei 17/86 de 14/6:
1- Os créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação não abrangidos pela Lei nº 17/86 de 14 de Junho, gozam dos seguintes privilégios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário geral.
2-...
3- Os privilégios dos créditos referidos no nº 1, ainda que preexistentes à entrada em vigor da presente lei, gozam de preferência nos termos da número seguinte, sem prejuízo, contudo, dos créditos emergentes da Lei nº 17/86 de 14 de Junho e dos privilégios anteriormente constituídos com direito a ser graduados antes da entrada em vigor da presente lei.
4- A graduação dos créditos far-se-á pela ordem seguinte:
a) Quanto ao privilégio mobiliário geral, antes dos créditos referidos no nº 1 do art. 747º do Código Civil, mas pela ordem dos créditos enunciados no artigo 737º do mesmo Código;
b) Quanto ao privilégio imobiliário geral, antes dos créditos referidos no art. 748º do Código Civil e ainda dos créditos devidas à segurança social”.
Quer isto dizer que esta Lei (96/2001), que se aplica aos créditos dos trabalhadores não abrangidos pela Lei 17/86 (sendo que o âmbito de aplicação deste normativo diz respeito às entidades cujos trabalhadores estejam numa situação de salários em atraso) estabelece um regime semelhante ao estabelecido por esta Lei (17/86).
Estas Leis não estão hoje em vigor dado que foram revogadas pelas disposições combinadas dos arts. 21º nº 2 als. c) e t) da Lei 99/2003 de 27 de Agosto (Lei que aprovou o Código do Trabalho) e 3º da Lei 35/2004 de 29 de Julho (Lei que Regulamentou o Código do Trabalho), revogação com efeitos a partir de 28 de Agosto de 2004 (30 dias após a publicação desta Lei). Todavia como a situação dos autos diz respeito a contratos de trabalho e correspondentes créditos constituídos e consolidados antes dessa data, será aplicável ao caso o regime que resulta das Leis 17/86 e 96/2001, visto que o art. 8º nº 1 da Lei 99/2003 exclui do âmbito da sua aplicação, os factos e situações ocorridos anteriormente à sua entrada em vigor. De notar que com a declaração de falência, são encerrados os livros e tornam-se imediatamente exigíveis todas as obrigações da falida, procedendo-se à imediata apreensão de todos os bens que passam a integrar a massa falida, seguindo-se a reclamação de créditos (arts. 147º, 148º, 151º 175º e 188º do CPEREF), donde resulta que o concurso de credores se abre com o trânsito em julgado da sentença que declara a falência, sendo a essa data que se deve atender para definir as situações jurídicas provenientes das relações jurídicas havidas entre os seus credores.
Ambas as ditas Leis (17/86 e 96/2001) atribuem aos créditos dos trabalhadores emergentes de contrato de trabalho, o privilégio mobiliário geral e o privilégio imobiliário geral.
Nos termos do art. 733º do C.Civil, “privilégio creditório é a faculdade, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente de registo, de serem pagos com preferência a outros”.
Significa isto que a lei atribui a certos credores a possibilidade de serem pagos prevalentemente aos outros, em razão do seu crédito estar especialmente relacionado com determinados bens do devedor.
Os privilégios creditórios, são de duas espécies, os mobiliários e os imobiliários, sendo que os primeiros são gerais, quando abrangem o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou de acto equivalente e especiais quando compreendem só o valor do determinados bens móveis. Os segundos são sempre especiais (art. 735º nºs 1, 2 e 3 do C.Civil).
De sublinhar aqui que, pese embora, esta disposição designe que os privilégios imobiliários são sempre especiais, o certo é que as leis acima referenciadas (e outras, como o Dec-Lei 512/76 de 16/6 e 103/80 de 9/5, publicadas posteriormente à entrada em vigor do C.Civil), vieram estabelecer que os mencionados créditos dos trabalhadores gozam de privilégio imobiliário geral11 O Dec-Lei 512/76 e o Dec-Lei 103/80 de 9/5 estabeleceram o privilégio imobiliário geral, em relação aos créditos da Segurança Social.
.
O regime jurídico dos privilégios imobiliários (especiais) está definido no C.Civil, concretamente nos arts. 743º e segs.. Porém, os diplomas que estabeleceram os privilégios imobiliários gerais não regulam o respectivo regime jurídico. Daí que a doutrina, concretamente (entre outros) os Profs. Almeida Costa e Menezes Cordeiro, entendam que aos privilégios imobiliários gerais, se deve aplicar o regime estabelecido no Código Civil, para os privilégios mobiliários, isto é, o regime definido no art. 749º do diploma (in Direito das Obrigações, 5ª edição pág. 824 e Direito das Obrigações, 2º Vol. págs. 500 e 501, respectivamente). Como lapidarmente diz o Prof. Menezes Cordeiro “a figura do privilégio imobiliário geral foi introduzida na nossa ordem jurídica pelo Dec-Lei 512/76 de 16 de Junho, em favor de instituições de previdência. Este diploma não indica o regime concreto dos privilégios imobiliários gerais que veio criar. Pensamos, no entanto, que o seu regime se deve aproximar dos privilégios gerais (mobiliários) que consta do Código Civil. Isto porque, dada a sua generalidade, não são direitos reais de garantia - não incidem sobre coisas corpóreas certas e determinadas - nem sequer, verdadeiros direitos subjectivos, mas tão só preferências gerais anómalas. Assim sendo, deve ser-lhe aplicado o regime constante do art. 749º do Cód. Civil, nomeadamente, eles não são oponíveis a quaisquer direitos reais anteriores ou posteriores aos débitos garantidos”.
Quer isto dizer que se deve aplicar aos privilégios imobiliários gerais, o regime definido no art. 749º do C.Civil, afastando-se assim o regime estabelecido no art. 751º em relação aos privilégios imobiliários especiais.
De sublinhar a este propósito que foi, entretanto, publicado o Dec-Lei 38/2003 de 8/3 que deu nova redacção aos arts. 735º nº 3, 749º e principalmente ao 751º do C.Civil. Esta disposição passou a estabelecer que os privilégios imobiliários especiais preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores. Na sua redacção anterior o art. 751º apenas se referia aos privilégios imobiliários e não aos privilégios imobiliários especiais. . Segundo tem vindo a entender a jurisprudência. Entre outros Ac. do STJ de 11-10-2007 in www.dgsi.pt/jstj.nsf, a estrutura normativa assumida pelos ditos artigos, teve em vista o esclarecimento de dúvidas que se levantavam na aplicação dos preceitos, dúvidas que tinham a ver por não existirem, aquando do começo da vigência do actual C.Civil, os privilégios imobiliários gerais. Assim, ao estabelecer nova redacção aos ditos artigos e principalmente ao art. 751º, aquele diploma interveio excluindo da previsão deste os privilégios imobiliários gerais. Sendo normas interpretativas, nos termos do art. 13º nº 1 do C.Civil, devem-se integrar (e esclarecer) as leis que atribuíram aos créditos laborais o privilégio imobiliário geral.
Nesta conformidade, os créditos dos trabalhadores, aos quais é atribuído pelas ditas leis o privilégio imobiliário geral, não podem ser graduados à frente do crédito do recorrente que é garantido por hipoteca, sendo-lhes aplicável o regime do art. 749º. Assim, nos termos desta disposição “o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente”. Ou seja, e para o que aqui importa, o privilégio (imobiliário geral) não poderá ser oponível a qualquer direito real anterior ou posterior ao débito garantido.
Nos termos do art. 686º nº 1 do mesmo Código “a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas, pertencentes o devedor ou terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozam de privilégio especial ou de prioridade de registo”. Isto é, o credor hipotecário tem o direito a ser pago pelo valor da coisa objecto da garantia, com preferência sobre os demais credores (desde que estes não gozem de qualquer privilégio especial ou de prioridade de registo).
Face a esta norma e ao regime do art. 749º temos, pois, que concluir que o crédito garantido por hipoteca tem prioridade no pagamento em relação aos créditos dos trabalhadores, garantidos por privilégio imobiliário geral. É a esta posição que tem vindo a aderir a mais recente jurisprudência dos nossos tribunais superiores (entre outros, Acs. do STJ de 24-9-02 in Col. Jur. 2002, Tomo III, pág. 54 a 57, de 5-2-02 in Col. Jur. 2002, Tomo I, pág. 71, de 3-4-2003, de 11-9-2007, de 11-10-2007 todos estes in www. djsi.pt/jstj).
Após o Acórdão do Tribunal Constitucional de 22-10-2003 (in DR, II Série de 3-1-04), este Tribunal tem vindo a desenvolver a jurisprudência de que não é inconstitucional a norma do art. 12º nº 1 da Lei 17/86 “na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário nele conferido aos créditos emergentes do contrato individual de trabalho, prefere à hipoteca, nos termos do art. 751º do C.C”. Antes, era nesse Tribunal entendimento dominante, senão pacífico, de que “o princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático (a que se refere o art. 2º da Constituição) postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e relevantemente contar ... A esta luz pergunta-se ... que segurança jurídica constitucionalmente relevante, terá o cidadão, perante uma interpretação normativa que lhe neutraliza a garantia real (hipoteca) por si registada, independentemente de o ter sido em data posterior ao início da vigência das normas em causa”. Depois de outra argumentação, conclui que “a interpretação normativa em sindicância, viola o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no art. 2º da Constituição” (in acórdão 160/000 de 22-3-00, DR. II Série de 10-10-00). Assim julgou inconstitucionais as constantes dos arts. 2º do Dec-Lei 512/76 e 11º do Dec-Lei 103/80 de 9/5, interpretadas no sentido que o privilégio imobiliário geral neles conferida, prefere à hipoteca, nos termos do art. 751º do C.Civil. Posteriormente o tribunal manteve a mesma posição designadamente nos acórdãos 354/00 de 5-7-00, 109/02 de 5-3-02, 387/02 de 2-10-02, todos acessíveis na internet através do sítio «www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos». De salientar ainda que o acórdão 362/02 do mesmo tribunal, em relação ao art. 104º do Código do Imposto sobre os Rendimentos de Pessoas Singulares (da primitiva versão, disposição agora contida no art. 111º do mesmo diploma) que confere à Fazenda Nacional, igualmente, um privilégio imobiliário geral, e com o mesmo género de argumentação, considerou inconstitucional, com força obrigatória geral, tal norma, tendo exarado: “Nestes termos o Tribunal Constitucional decide declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do art. 2º da Constituição, da norma constante, na versão primitiva, do artigo 104º do Código do Imposto sobre os Rendimentos de Pessoas Singulares, aprovado pelo Dec-Lei nº 442-A/88, de 30 de Novembro, e, hoje, na numeração resultante do Dec-Lei nº 198/2001 de 3 de Julho, do seu art.111º, na interpretação segundo o qual o privilégio imobiliário geral nele conferido à Fazenda Nacional prefere hipoteca, nos termos do art. 751º do Código Civil” (in mesmo sítio).
Pese embora este entendimento parecer ter sido abandonado, adoptando-se o acima referenciado o certo é, a interpretação que fazemos das disposições legais em causa, não colidem com qualquer juízo de (in)constitucionalidade, pela razão de que não colocamos a hipótese de não aplicarmos à situação dos autos, por ser inconstitucional, o disposto no art. 751º (situação que despoletou a declaração de não inconstitucionalidade da norma pelo Tribunal Constitucional), aderindo antes à tese que a lei ordinária afasta a aplicação dessa disposição.
Não ignoramos, por outro lado, que o art. 377º do Código do Trabalho atribui hoje aos trabalhadores o privilégio imobiliário especial sobre os imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade (sublinhado nosso).
Este dispositivo não tem aplicação ao caso vertente pela razão de que não se demonstra (ou sequer se alega) que o imóvel em causa fosse aquele onde os trabalhadores reclamantes dos créditos laborais prestavam a sua actividade (a este propósito, vide Ac. do STJ de 31-1-2007 (in www.dgsi.pt/jstj.nsf). Além disso, quando essa norma entrou em vigor (em 1-12-2003 – art. 3º nº 1 da Lei 99/2003 -) já a falência da requerida havia sido decretada há muito. Assim, produzindo-se os direitos decorrentes da falência nesse momento, todas as (eventuais) alterações legais posteriores serão irrelevantes (art. 12º nº 1 do C.Civil). Aliás, como acima já dissemos, o próprio art. 8º nº 1 da Lei 99/2003 exclui do âmbito da sua aplicação os factos e situações ocorridos anteriormente à sua entrada em vigor.
A revista é, por conseguinte, de conceder.
III- Decisão:
Por tudo o exposto, dá-se provimento à revista e, consequentemente, revoga-se o acórdão recorrido, decidindo-se que o crédito hipotecário do recorrente, BB, e no que diz respeito ao produto da venda da fracção apreendida e vendida nos autos, seja graduado em primeiro, descendo para segundo lugar os créditos dos trabalhadores.
Custas pela massa falida.

Lisboa, 01 de Abril de 2008

Garcia Calejo ( relator)
Mário Mendes
Sebastião Póvoas