Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A1901
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FARIA ANTUNES
Descritores: PROCEDIMENTOS CAUTELARES
APREENSÃO DE VEÍCULO
LEGITIMIDADE
RESERVA DE PROPRIEDADE
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
CRÉDITO AO CONSUMO
COLIGAÇÃO DE CONTRATOS
Nº do Documento: SJ20060912019011
Data do Acordão: 09/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :
I - Tendo a requerida comprado um veículo automóvel à 2.ª requerente e outro à 3.ª requerente, que receberam os respectivos preços, na íntegra, mediante a entrega pela 1.ª requerente dos devidos quantitativos ao abrigo dos contratos de financiamento para aquisição a crédito celebrados com
a requerida nos termos do DL n.º 359/91, de 21-09, alienações essas que foram feitas com reserva de propriedade a favor das vendedoras (2.ª e 3.ª requerentes), para garantia do pagamento (à 1.ª requerente) dos referidos financiamentos por parte da compradora requerida, podem as 2.ª e 3.ª requerentes, perante a falta de pagamento pela requerida das prestações dos contratos de financiamento, requerer, ao abrigo do DL n.º 54/75, de 12-02, a imediata apreensão e entrega dos aludidos automóveis e respectivos documentos.
II - Com efeito, as obrigações que originaram a reserva de propriedade respeitam aos contratos de financiamento, ficando ajustado o efeito diferido da transferência do direito de propriedade em função, não do pagamento do preço às vendedoras (pois estas receberam-no integralmente),
mas da verificação da condição suspensiva do pagamento integral, pela requerida, dos financiamentos que lhe foram concedidos pela 1.ª requerente.
III - A circunstância de as vendedoras terem já recebido o preço integral das vendas não impede a concessão da providência cautelar requerida, estando reunidos todos os requisitos para ser decretada, pois: 1.º) têm reservada a seu favor a propriedade dos veículos até à data em que
forem pagas todas as prestações à 1.ª requerente; 2.º) a requerida deixou de pagar as referidas prestações, sendo o montante das prestações vencidas e não pagas superior à oitava parte do preço; 3.º) a requerida foi interpelada para pôr termo à mora no prazo de 8 dias, razoável para o
efeito, o que não fez.
IV - Não constitui óbice a tanto o disposto na parte inicial do n.º 1 do art. 18.º do DL n.º 54/75. Na verdade, não sendo as 2.ª e 3.ª requerentes credoras da requerida, mas apenas titulares do registo de reserva de propriedade, apenas terão de cumprir a 2.ª parte desse dispositivo legal, ou seja propor acção de resolução dos contratos dentro de 15 dias a contar da data da apreensão.
V - Já a 1.ª requerente, financiadora, como não é titular dos registos de reserva de propriedade, não pode pedir a apreensão dos veículos e respectivos documentos, porquanto o art. 15.º, n.º 1, reserva essa faculdade aos titulares desse registo, sendo, por isso, parte ilegítima.
VI - Embora a 1.ª requerente deva ser absolvida da instância neste procedimento cautelar, isso não significa que não possa ser nomeada fiel depositária dos veículos e intervir depois na acção principal de que o procedimento cautelar é dependência, coligadamente com as demais requerentes ao abrigo do art. 30.º, n.º 2, do CPC, visando cobrar os créditos resultantes dos contratos de financiamento.
VII - O financiamento pela 1.ª requerente e a venda de carros pelas demais requerentes configura uma união de contratos com dependência unilateral dos contratos de compra e venda relativamente aos contratos de financiamento.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
AA BANK ..., BB, SA e CC, SA, requereram procedimento cautelar contra DD LDA, pedindo, ao abrigo dos artºs 15º e segs. do DL nº 54/75, de 12/2, a imediata apreensão e entrega dos automóveis que indicaram, e respectivos documentos, respectivamente às 2ª e 3ª requerentes, e que se nomeie a 1ª requerente fiel depositária de tais veículos.
Alegaram que as 2ª e 3ª requerentes venderam à requerida os aludidos veículos, a prestações e com reserva de propriedade a favor destas até estarem pagas as prestações dos financiamentos para o efeito feitos pela 1ª recorrente, tendo a requerida deixado de pagar as prestações dos financiamentos, não obstante ter sido interpelada para pôr fim à mora, incumprindo assim os contratos de financiamento.
Na 1ª instância a 1ª requerente foi julgada parte ilegítima – com absolvição da requerida da instância quanto ao respectivo pedido – por não ser titular da inscrição da reserva de propriedade dos veículos, e a pretensão das demais requerentes foi julgada improcedente por não serem partes nos contratos de financiamento, e as reservas de propriedade garantirem apenas o cumprimento das obrigações resultantes destes contratos, de que a providência cautelar é dependência.
As requerentes recorreram de agravo para a Relação de Lisboa, que confirmou o decidido.
Novamente inconformadas, interpuseram recurso de agravo em 2ª instância, dizendo no requerimento de interposição haver contradição entre o acórdão recorrido e os acórdãos da Relação de Lisboa, datados de 18.1.1999, 13.2.2003 e 20.10.2005.
Alegando, concluíram:
A. As Agravantes BB, SA e CC, SA, venderam e a Agravante AA BANK ... financiou a Agravada, com reserva de propriedade e a prestações, os veículos automóveis de marca Ford, modelo Focus, com a matrícula 00-00-00 e de marca Ford, modelo Transit 190, com a matrícula 00-00-00, financiamentos esses, pelos montantes de € 26.585,40 e € 16.832,40, formalizados nos Contratos de Financiamento para Aquisição a Crédito celebrados entre a Agravante AA BANK ... e a Agravada, juntos sob os doc. 1 e 5 ao requerimento inicial da providência cautelar.
Urge decidir, colhidos que foram já os vistos legais.
Os factos a atender são os indiciariamente considerados provados no acórdão recorrido, para os quais se remete nos termos dos artºs 713º, nº 6, ex vi artºs 749º e 762º, nº 1 do CPC.
Perante esse circunstancialismo, concordou a Relação inteiramente com a decisão da 1ª instância e respectiva fundamentação (i) de que a 1ª requerente é parte ilegítima por não ser titular da inscrição da reserva de propriedade dos veículos, (ii) e de que a pretensão das demais requerentes improcede por não serem partes nos contratos de financiamento e as reservas de propriedade garantirem apenas o cumprimento das obrigações resultantes destes contratos, de que o procedimento cautelar é dependência.
Segundo a Relação (com um voto de vencido), a 1ª requerente, entidade financiadora das aquisições dos carros a crédito, não tem direito a recorrer à providência cautelar de apreensão dos veículos, prevista pelo DL nº 54/75, de 12/2, apesar do incumprimento contratual dos contratos de financiamento, pela devedora (a requerida), por não ter inscrita a seu favor a reserva de propriedade sobre os veículos adquiridos por esta última, e, também segundo a Relação, as vendedoras (as 2ª e 3ª requerentes) com reserva de propriedade sobre os veículos vendidos à requerida e titulares do respectivo registo não podem requerer a dita providência cautelar por terem a totalidade dos créditos respeitantes a tais vendas satisfeitos.
Vejamos.
A requerida comprou um veículo automóvel à 2ª requerente, e outro à 3ª requerente, tendo estas recebido os respectivos preços, na íntegra, mediante a entrega dos respectivos quantitativos que a 1ª requerente fez ao abrigo dos contratos de financiamento para aquisição a crédito (nos termos do DL nº 359/91, de 21/9) celebrados com a requerida.
Para garantia do pagamento desses financiamentos, pela compradora (a requerida), as alienações foram feitas com reserva de propriedade a favor das vendedoras (2ª e 3ª requerentes), até que a requerida liquidasse a totalidade das prestações dos financiamentos contraídos junto da 1ª requerente, reserva essa que as vendedoras registaram.
Mercê da reserva da propriedade, as vendas não operaram a transferência imediata do direito de propriedade para a requerida.
Ficou ajustado o efeito diferido da transferência do direito de propriedade, dependendo tal transferência, não do pagamento do preço às vendedoras (pois estas receberam-no integralmente), mas da verificação da condição suspensiva do pagamento integral, pela requerida, dos financiamentos que lhe foram concedidos pela 1ª requerente, condição suspensiva lícita à luz do segmento final do nº 1 do artº 409º da lei substantiva.
Na verdade, não obstante as vendedoras terem recebido a totalidade do preço da venda dos veículos automóveis, nada obstava à reserva da propriedade visto o artº 409º, nº 1 do CC dizer que «Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento…» (sublinhado nosso).
Ora, como reza o nº 1 artº 15º do DL nº 54/75, de 12/2, «…não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular dos respectivos registos pode requerer em juízo a apreensão do veículo e dos documentos…».
Portanto, a requerida não cumpriu a obrigação de pagar as prestações dos contratos de financiamento, vencendo-se imediata e automaticamente todas as prestações em dívida, e dado que não cumpriu as obrigações que originaram a reserva de propriedade, podem as 2ª e 3ª requerentes pedir, como pediram, a apreensão dos veículos e respectivos documentos (cláusula C dos contratos de financiamento e artºs 781º e 934º do CC e 15º, nº 1 do DL 54/75).
A circunstância de as vendedoras terem já recebido o preço integral das vendas não impede que tal pedido seja deferido, tanto mais que a requerida se vinculou a não levantar obstáculos à actuação das requerentes vendedoras, ainda que actuando estas no interesse da financiadora (clásusula A. das condições gerais dos contratos).
As 2ª e 3ª requerentes reúnem todos os requisitos para o exercício de que depende a concessão da providência cautelar requerida, pois: (i) têm reservada a seu favor a propriedade dos veículos até à data em que forem pagas todas as prestações à 1ª requerente; (ii) a requerida deixou de pagar as referidas prestações, sendo o montante das prestações vencidas e não pagas superior à oitava parte do preço; (iii) a requerida foi interpelada para pôr termo à mora no prazo de oito dias, razoável para o efeito, o que não fez.
Nem o citado artº 15º, nº 1 exige que se achem confundidas na mesma esfera jurídica a posição do credor e a de reservatário, podendo aplicar-se para satisfação de um crédito de terceiro que não o do reservatário.
Não sendo as 2ª e 3ª requerentes credoras da requerida, não constitui todavia qualquer óbice a circunstância de na parte inicial do nº 1 do artº 18º do DL nº 54/75 se dizer que dentro de quinze dias a contar da data da apreensão, o credor deve promover a venda do veículo apreendido…
Como titulares do registo de reserva de propriedade, terão apenas de cumprir a 2ª parte desse dispositivo legal, ou seja, de propor acção de resolução dos contratos de alienação, dentro do prazo de quinze dias a contar da data da apreensão.
O que o artº 18º em referência exige é que a requerida não tenha cumprido as obrigações que originaram a reserva de propriedade, e essa exigência mostra-se satisfeita.
Tendo as 2ª e 3ª requerentes interesse em que a 1ª requerente possa cobrar o montante financiado, uma vez que a subsistência de crédito mal parado poderá ter repercussão negativa no âmbito de futuras propostas de financiamento para aquisição por terceiros de carros que as 2ª e 3ª requerentes tenham para venda.
Já no concernente à 1ª requerente, não sendo titular dos registos de reserva de propriedade, não pode pedir a apreensão dos veículos e respectivos documentos, porquanto o artº 15º, nº 1, em referência, reserva essa faculdade aos titulares desse registo.
Concorda-se por conseguinte com o entendimento das instâncias, neste particular.
Uma derradeira nota, antes de concluir.
Absolvida a requerida da instância neste procedimento cautelar, no que tange à pretensão deduzida pela 1ª requerente, isso não significa que esta requerente não possa intervir depois na acção principal de que o procedimento cautelar é dependência, coligadamente com as demais requerentes ao abrigo do artº 30º, nº 2 do CPC, visando cobrar os créditos resultantes dos contratos de financiamento.
Note-se que entre a 1ª requerente, a requerida e as restantes requerentes, foi estabelecido um relacionamento triangular, traduzido na aquisição pela requerida de carros das duas últimas requerentes, mediante financiamentos da 1ª requerente.
E pode sustentar-se (na esteira de Inocêncio Galvão Telles, no Manual dos Contratos em Geral, Reprint, LEX, 3ª edição, 1965, págs. 397 e seg.) que o financiamento pela 1ª requerente e a venda dos carros pelas demais requerentes configurou uma união de contratos com dependência unilateral dos contratos de compra e venda relativamente aos contratos de financiamento, por as partes terem querido a pluralidade de contratos como um todo, como um conjunto económico, dependendo a validade e vigência das alienações dos articulados veículos automóveis da validade e vigência dos contratos de financiamento, atenta a intrínseca relação económica existente, pelo que, a extinguirem-se os contratos de financiamento, extinguem-se também os de compra e venda.
Por isso, a coligação das três requerentes na possível futura acção será porventura possível ao abrigo do referido artº 30º, nº 2 do CPC, possibilitando se decrete a resolução dos contratos de financiamento e, consequentemente, dos contratos de compra e venda, a contento das três requerentes da presente providência cautelar, cumprindo o direito, por essa forma, as necessidades práticas da vida, seu verdadeiro escopo.
Termos em que, atento ainda o comando do artº 16º, nº 1 do DL nº 54/75, de 12/2, acordam em conceder parcial provimento ao agravo, revogando em parte o acórdão recorrido, ordenando a imediata apreensão e entrega do automóvel Ford, modelo Focus GHI, matrícula 00-00-00 e veículo Ford, modelo Transit 190, matrícula 00-00-00, e respectivos documentos, através das autoridades policiais competentes, respectivamente às 2ª e 3ª requerentes, nomeando-se a 1ª requerente, representada por uma das pessoas indicadas no requerimento inicial, como fiel depositária de tais veículos.
Custas pelas agravantes, vencidas na medida do decaimento quanto à decisão recorrida relativa à 1ª requerente, na proporção de metade.

Lisboa , 12-09-2006

Faria Antunes (Relator)
Sebastião Póvoas
Moreira Alves