Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A1746
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: URBANO DIAS
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
Nº do Documento: SJ20070705017461
Data do Acordão: 07/05/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I – A acção de reivindicação, tal como está configurada no art. 1311º do CC, obriga a que o seu autor formule dois pedidos: o reconhecimento do direito de propriedade, por um lado, e a restituição da coisa, por outro (o pedido de indemnização poderá vir por acréscimo).
II – Cabe, pois, ao reivindicante o ónus de alegar e provar que é proprietário da coisa e que esta se encontra na posse ou detenção do R.. A este, por sua vez, com vista a obstar o êxito da acção, cabe alegar e provar que é titular de um direito (real ou obrigacional) que legitima a ocupação.
III – Não tendo os AA. provado que a R. “FF” ocupa o terreno reivindicado, como efectivamente não provaram, naturaliter improcede a acção contra ela dirigida.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I Relatório
AA, BB, CC, DD e EE intentaram, no Tribunal Cível da comarca do Porto, acção ordinária contra FF S. A., actualmente denominada FF – Companhia de Lubrificantes e Combustíveis S.A., pedindo a sua condenação no reconhecimento do seu direito de proprietários do terreno que se estende entre a frente do prédio descrito no art. 1º da petição inicial e a E.N. nº 00, ao km 11,100 e, consequentemente, na respectiva restituição com indemnização a fixar em sede de liquidação.
Em suma, alegaram a seu favor o instituto da usucapião e a falta de título a legitimar a ocupação da R., para além de prejuízos provocados pela mesma.
Esta, uma vez citada, requereu o chamamento à autoria de GG e mulher HH e da firma GG Lª, de que aqueles são sócios-gerentes, incidente este que foi admitido (cfr. despacho de fls. 32 e 33).

Em sede de contestação, a “FF” impugnou parte da factualidade vertida na petição e disse que não lhe podiam ser assacadas responsabilidades pela simples razão de não ocupar o prédio reivindicado.

Os chamados à autoria também contestaram, defendendo a improcedência da acção, argumentando com o facto de, aquando da partilha dos bens por óbito da mãe de HH, lhes ter sido adjudicado, bem com ao seu marido GG, o estabelecimento comercial de abastecimento de combustíveis, e, por via disso, terem os restantes herdeiros subscrito um documento suplementar à partilha pelo qual os autorizaram a explorar as bombas de gasolina e gasóleo, ficando a rodovia livre para todos os herdeiros e para servidão das ditas bombas.
E, em reconvenção, pediram a condenação dos AA. a reconhecerem que são eles, GG e HH, os proprietários do posto de revenda de combustíveis composto pela rodovia de acesso e todo o terreno onde se encontra implantado, incluindo o respectivo subsolo, por via do instituto da usucapião, ou, em alternativa, a reconhecerem que são eles os proprietários do posto de venda e que adquiriram por usucapião uma servidão legal de passagem pela rodovia de acesso ao mesmo, bem como “uso de servidão de acesso do subsolo para instalação de depósitos dos combustíveis do estabelecimento”, ou, ainda, que são eles os donos do posto de revenda e que adquiriram por destinação de pai de família uma servidão de passagem pela rodovia de acesso frente ao prédio e de uma servidão de uso do subsolo para instalação dos depósitos de combustíveis do estabelecimento.

Seguiram-se os demais articulados, saneador (onde foi admitido o pedido reconvencional dos chamados!), especificação e questionário e julgamento, após o que tanto a acção como a reconvenção foram julgadas improcedentes.

Desta decisão apelaram para o Tribunal da Relação do Porto tanto AA. como os chamados e, por acórdão de 18 de Dezembro de 2000, foi decretada a anulação do julgamento com vista a serem eliminadas contradições nas respostas a quesitos.

E, o curioso está no facto de tal anulação ter assentado nas considerações dos chamados onde defenderam apenas a revogação do julgado no tocante ao pedido reconvencional (cfr. fls. 451 vº).

O processo baixou, então, à 1ª instância.
Após novo julgamento, foi proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente. E, por via disso, o Mº Juiz reconheceu que os AA. são donos e legítimos proprietários do terreno “que se estende entre a frente do prédio descrito no art. 1º da petição inicial – … – e a E.N. 14, ao km 11,100, absolvendo a ré FF – Oil Portuguesa, …”, bem como absolveu “a ré do pedido de indemnização a liquidar em execução de sentença pela ilegítima ocupação e utilização deste terreno e seu subsolo”, e julgou improcedente a reconvenção.
Isto é, em relação à acção (e só este esta parte nos interessa) ninguém foi condenado, mas a acção foi julgada parcialmente procedente só … porque o Mº Juiz entendeu por bem reconhecer que os AA. são os donos da parcela!

Novamente apelaram para o Tribunal da Relação do Porto AA. e chamados mas em vão já que, desta vez, o sentenciado pela 1ª instância foi totalmente confirmado.

Ainda irresignados recorreram tanto uns como outros para este STJ, pedindo revista do acórdão da Relação do Porto.
O recurso dos chamados acabou por não ser admitido em consideração à regra da sucumbência (art. 678º, nº1, parte final, do CPC).
Os AA. ofereceram a respectiva minuta que fecharam com longas e complexas “conclusões”, em perfeita transgressão à regra imposta pelo art. 690º, nº 1 do CPC, através das quais, na mira de obterem a revogação do aresto impugnado, tiveram oportunidade para sublinhar que gozam de modo pleno da parcela reivindicada e que o vínculo contratual que sobre ele incidia desde 1952 para nele se instalar a 1ª R. terminou no fim do prazo de licenciamento que foi de vinte anos, ou, a não se entender assim, o vínculo de vinte anos, com aceitação tácita do usufrutuário, terminou com a morte deste, em 6 de Janeiro de 1977, ou, ainda, a não ser assim, a cedência do posto pela 1ª R., com as suas licenças em Março de 2003 aos chamados, tinha que obter autorização do dono do prédio para que este pudesse continuar a ser cedido gratuitamente, nos termos da al. f) do art. 1135º do CC.

Os recorridos não responderam às alegações dos recorrentes-AA..

IIAs instâncias fixaram o seguinte quadro factual:
1 - Teor do documento junto a fls. 116 a 120, certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial da Maia, relativa ao prédio descrito sob o nº 00503/080694.
2 - Há mais de 30 anos que os AA., por si e antepassados, dão de arrendamento parte do prédio urbano sito no lugar da Espinhosa, freguesia de S. Pedro de Avioso, na Maia, situado junto à Estrada Nacional nº 14 e ao km 11, 100, com o nº 522.
3 - E habitam na parte restante.
4 - Pagam contribuição e impostos sobre ele.
5 - Fazem obras de conservação e limpeza.
6 - Consecutivamente.
7 - À vista de toda agente.
8 - Sem que alguém, alguma vez, lhes tivesse oposto que o prédio não lhes pertence.
9 - Na convicção de que exerciam e exercem um direito próprio.
10 - O prédio dos AA., entre a frente do estabelecimento que gira sob a firma T. ....., Lª e a E.N. 14, compreende uma área de terreno onde estão enterrados dois tanques de depósito de combustíveis sem que os AA. aufiram com isso qualquer rendimento, esclarecendo-se que já, a 13 de Dezembro de 1972, após a assinatura do documento a que se refere a resposta ao quesito 21º, e posteriormente, a A. comunicou à R. e aos chamados a sua oposição à presença dos tanques de depósito de combustíveis naquele local.
11 - Os veículos automóveis que acedem ao estabelecimento de venda de combustíveis utilizam o terreno entre a frente do edifício dos AA. e a E.N. em toda a sua extensão.
12 - A ocupação da área de terreno nos termos referidos impede que os AA. a gozem exclusivamente e torna possível a exploração do posto de gasolina que vende produtos da R..
13 - O prédio urbano que os AA. identificam bem como os que lhe ficam a norte eram pertença e foram construídos por DT.
14 - Era dele, também, o posto de abastecimento de combustíveis e respectivo terreno onde o mesmo foi construído à perto de 50 anos e se enterraram os respectivos depósitos.
15 - Os prédios referidos em 13) só foram construídos após a abertura do posto de combustíveis.
16 - Após a construção dos ditos prédios, casas, os acessos às mesmas passou a fazer-se, também, pela rodovia de acesso que durante anos só serviu o posto de combustíveis, situada entre a traseira do posto de combustíveis e as casas, uma vez que tudo pertencia ao mesmo dono.
17 - Aos outros herdeiros, incluindo o DT não lhes interessava o estabelecimento e GG e mulher HH ficaram com ele.
18 - Estes acederam e, em 21-12-1971, quando fizeram a partilha dos imóveis acordaram na partilha do referido estabelecimento, fazendo-a por documento particular.
19 - O dito estabelecimento, com todas as suas pertenças, foi adjudicado aos RR. GG e HH, tendo estes dado a cada um dos outros herdeiros e ao Martinho da Silva Tavares inclusive, a quantia de 30.000$00 a título de tornas.
20 - Na mesma ocasião foi elaborado o documento junto a fls. 48, cujo conteúdo se dá por reproduzido, o qual foi assinado pelos herdeiros cujas assinaturas ali constam.
21 - Desde 1971 o GG e mulher HH exploram o estabelecimento de venda de combustíveis, no que sucederam a DT e a Martinho da Silva Tavares, colhem os respectivos benefícios, dão-no à exploração à sociedade GG & Cª, Lª, fazem obras no terreno onde o mesmo está implantado, incluindo a rodovia de acesso, dotaram-no de iluminação, puseram o reclamo FF logo na entrada da rodovia, colocaram e repararam os paralelepípedos de toda a rodovia de acesso, procedem ao arranjo e limpeza da mesma, remexem no subsolo, pagam as respectivas licenças e impostos inerentes ao mesmo, tudo de forma contínua, à vista de toda a gente e com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção de exercerem um direito próprio e sem darem satisfação a ninguém.
22 - Também há mais de 1, 5, 10, 15, 30 e 40 anos que vêm os carros e pessoas utilizando a rodovia para aceso às bombas de gasolina, de forma reiterada e contínua, com perfeito conhecimento dos AA., sem oposição deles ou de outrem, estando a R. e os chamados na convicção que o acesso é um direito inerente ao estabelecimento e que não se pode fazer por outro lado.
23 - De igual modo e nas mesmas condições e anos que o posto de combustíveis se serve de tanques existentes no subsolo do terreno.
24 - Cuja existência os AA. conhecem, pois as tampas dos tanques dos mesmos estão à superfície e para lá sempre foram lançados os combustíveis.
25 - Os terrenos e instalação em questão pertenciam ao DT, que neles explorava um posto de abastecimento de combustíveis líquidos, para o funcionamento do qual a R. “FF”, a pedido do referido David, montou no local depósitos e bombas abastecedoras de combustíveis, de sua propriedade, de que o mesmo David A. Tavares ficou depositário e utilizador, sendo nestas condições, mas a pedido da sociedade GG & C", Lª, que na actualidade explora o posto, que em Outubro de 1989 procedeu à substituição dos depósitos antigos por depósitos novos.
26 - Em local e estabelecimento que os respectivos exploradores e detentores sempre indicaram à R. como legítimas instalações do seu negócio.
Importa explicitar o que está contido nos documentos que foram dados como reproduzidos (indevidamente: os documentos não são factos) (cfr. pontos nºs 1 e 20).
Assim, do documento emanado da Conservatória do Registo Predial apenas consta a descrição de um prédio urbano composto de rés-do-chão e andar e o registo da presente acção.
Já no documento junto a fls. 48, datado de 21 de Dezembro de 1971 e subscrito por seis pessoas, está escrito o seguinte:
“Nós abaixo assinados declaramos que autorisamos a exploração de bombas de Gasolina e Gazoil a nossa irmãHH da Silva Tavares, e seu marido GG. Ficando o Rodovia livre para todos os herdeiros, e para servidão das ditas bombas” (sic).

III
Quid iuris?

A questão que nos é colocada resume-se, ao cabo e ao resto, a saber se a R., tem título que legitime a ocupação da faixa de terreno aqui em causa, a parte da rodovia que fica em frente ao prédio urbano dos AA..
O tribunal de 1ª instância, depois, de declarar os AA. como proprietários da faixa de terreno por estes reivindicada, considerou que, por via do documento junto a 48, os “chamados ficaram com o direito de utilizar a rodovia para uso pessoal e também para efeitos de exploração do posto de combustíveis, isto é, para exploração pessoal e produtiva, na medida indispensável à continuação da exploração do posto” e daí que tivesse concluído que “este direito de disponibilidade simples é um direito atípico em matéria obrigacional”.
Bizantina esta qualificação, sem dúvida…
Mas a mesma bastou para afastar a responsabilidade da R. “FF” já que tanto esta como os chamados “lograram provar que a ocupação da parte da rodovia reivindicada é feita com fundamento num direito obrigacional que lhes permite a utilização do imóvel em causa”.
Não se reparou, contudo, que não ficou provado que a R. “FF” ocupasse de qualquer modo a faixa reivindicada…
Bom.
A Relação confirmou este segmento decisório, mas alterou objectivamente o sentido apontado pela 1ª instância, ao afirmar que “…de tal licenciamento não pode resultar qualquer direito de propriedade para a entidade petrolífera que figura nos autos como ré. O que entre esta e os Chamados existe é um contrato obrigacional atípico já atrás referido, comum a estes postos de abastecimento de combustíveis”.
Há um ponto que é importante e interessa sublinhar: é que a R. “FF” foi absolvida pela 1ª instância; só em relação aos chamados é que foi dito que eles tinham título legítimo de ocupação da parcela reivindicada.
Não obstante isso, os AA. continuaram a insistir na tese da ocupação ilegítima por parte da R. “FF”. A atitude daqueles ajuda, em parte, a compreender a confusão em que a Relação caiu.
E é este ponto concreto que os AA. querem fazer valer com o presente recurso ao enfatizarem a caducidade do contrato que ligou inicialmente a “FF” e DT e depois continuou através dos chamados.
Mas tal ponto, com o sempre devido respeito, é irrelevante para a sorte da lide pela singela razão que, como já ficou dito e redito, nenhum facto dado como provado permite concluir que a “FF” ocupa (ou até que ocupou) a faixa de terreno reivindicada.
Uma simples leitura do perguntado sob o nº 11 do questionário e da resposta dada pelo Colectivo (cfr. fls. 329) é suficiente para chegar a tal conclusão. Na verdade, tendo sido perguntado se a R. explora no local um estabelecimento de gasolina e gasóleo e utiliza o terreno reivindicado para serventia de veículos automóveis ao posto de abastecimento, apenas ficou provado “que os veículos automóveis que acedem ao estabelecimento de venda de combustíveis utilizam o terreno entre a frente do edifício dos AA. e a E.N. 14 em toda a sua extensão”.
Mas, mais: ficou ainda provado que a aludida faixa de terreno permite o acesso às bombas de gasolina, as quais fazem parte do estabelecimento comercial pertença dos chamados GG e HH e é por eles explorada, sendo eles que fazem obras no terreno onde o mesmo está implantado, incluindo a rodovia de acesso e as mesmas são, presentemente exploradas pela firma chamada (cfr. ponto 21 da matéria de facto elencada).
É também certo que o estabelecimento comercial de “bombas de combustível” foi adjudicado aos chamados GG e HH por virtude de partilhas e que os outros herdeiros os autorizaram a explorar as bombas de gasolina, como resulta do documento junto a fls. 48 (cfr. pontos 19º e 20º supra referidos).
Ou seja, a faixa reivindicada está, de facto, a ser ocupada pelos chamados GG e HH, presentemente por intermédio da firma GG e Cª Lª.
Desta sorte, temos por mal dirigida toda e qualquer crítica feita pelos recorrentes ao aresto da Relação do Porto que, tal como na apelação, insistem apenas na ideia (errada) de que a dita faixa está a ser ocupada pela “FF”.
Esta foi, aliás, a ideia mestra que a “FF” lançou ab initio no processo (cfr. requerimento de chamamento junto a fls. 19 e ss. e arts. 3º, 4º e 5º da contestação) para afastar a sua responsabilidade, a ideia que nada tinha a ver com a ocupação da faixa reivindicada e que, portanto, nenhuma responsabilidade lhe podia ser assacada.
E o certo é que tal posição (de impugnação) deu resultados: não conseguiram os AA. provar a alegada ocupação.
A acção de reivindicação, tal como está configurada no art. 1311º do CC, obriga a que o seu autor formule dois pedidos: o reconhecimento do direito de propriedade, por um lado, e a restituição da coisa, por outro (o pedido de indemnização poderá vir por acréscimo).
Cabe, pois, ao reivindicante o ónus de alegar e provar que é proprietário da coisa e que esta se encontra na posse ou detenção do R.. A este, por sua vez, com vista a obstar o êxito da acção, cabe alegar e provar que é titular de um direito (real ou obrigacional) que legitima a ocupação.
Não tendo os AA. provado que a R. “FF” ocupa o terreno reivindicado, como efectivamente, não provaram, naturaliter improcede a acção contra ela dirigida.
Explicada está, pois, a falta de razão dos recorrentes: o recurso não pode deixar de improceder.

IVDecisão
Em conformidade com o exposto, nega-se a revista e condenam-se os recorrentes no pagamento das custas correspondentes.

Lisboa, aos 05 de Julho de 2007
Urbano Dias (relator)
Paulo Sá
Faria Antunes