Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06S2455
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUSA PEIXOTO
Descritores: PENHORA
DIREITO AO TRESPASSE
ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
ACÇÃO DE DESPEJO
Nº do Documento: SJ200611080024554
Data do Acordão: 11/08/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : 1. A resolução do contrato de arrendamento decretada judicialmente após a data da penhora, com fundamento na falta de pagamento de rendas vencidas após aquela data, faz extinguir a penhora do direito ao arrendamento.
2. A ineficácia relativa prevista no art. 820.º do C.C., compreende-se quando a extinção do crédito penhorado resulte apenas da vontade do executado ou do seu devedor, mas deixa de ter razão de ser quando resulte de uma decisão judicial.
3. Seria mesmo incompreensível que o direito do senhorio à resolução do contrato de arrendamento tivesse de ceder, apesar de estar judicialmente reconhecido, perante o direito do exequente.
Decisão Texto Integral: Acordam na secção social do Supremo Tribunal da Justiça:

1. Em 2 de Maio de 2002, AA instaurou a presente execução de sentença contra Empresa-A, requerendo a conversão em penhora do arresto dos bens da executada, de que fazia parte o direito ao trespasse e arrendamento do estabelecimento do comercial da executada.

A conversão foi decretada por despacho de 11.6.2002.

Já na fase da venda, o proprietário do local onde funcionava o estabelecimento veio aos autos informar que o contrato de arrendamento havia sido resolvido, por decisão judicial transitada em julgado, proferida no processo n.º 2277/2002, que correu termos na 3.ª secção do 2.º Juízo Cível de Lisboa.

Notificado da junção da certidão judicial da referida sentença, o exequente veio requerer que a execução prosseguisse, alegando que a extinção do contrato de arrendamento ocorreu em data posterior à data da penhora e que tal extinção ficou a dever-se exclusivamente a facto imputável à executada, não tendo, por isso, a sentença que decretou o despejo qualquer influência sobre a penhora, face ao disposto nos artigos 819.º e 820.º do C. C..

Em resposta ao requerimento do exequente, o proprietário do local arrendado veio dizer que a penhora não prejudicava o seu direito de pedir a resolução do contrato com fundamento na falta de pagamento das rendas, invocando nesse sentido o acórdão da Relação de Lisboa de 3.7.97 (BMJ, n.º 469, p. 644).

Pronunciando-se sobre a questão, o M.mo Juiz declarou extinta a penhora e ordenou o levantamento da mesma no que diz respeito ao direito de arrendamento.

Inconformado com a decisão, o exequente interpôs recurso de agravo que foi julgado improcedente pelo Tribunal da Relação de Lisboa, com um voto de vencido e, mantendo o seu inconformismo, agravou para este Supremo Tribunal, invocando oposição entre o acórdão recorrido e, pelos menos, dois outros acórdãos proferidos no domínio da mesma legislação, um da Relação de Lisboa (proc. 401/02, 4.ª Secção) e outro do STJ (proc. 1915/02, 4.ª Secção) e alegando inexistir acórdão de uniformização de jurisprudência sobre a questão em apreço.

O exequente conclui a sua alegação da seguinte forma:
I - Por despacho de 11.06.2002, o arresto do direito ao trespasse e arrendamento do estabelecimento da Executada foi convertido em penhora.
II - Em 07.09.2000, o Agravante tinha intentou acção judicial em que peticionava créditos emergentes do contrato de trabalho que o vinculou à Executada e sua cessação.
III - A Executada assumiu, nos autos, um comportamento processual manifestamente dilatório, tudo tendo feito para dificultar e atrasar a normal marcha do processo.
IV - E, fora destes autos, os seus actos foram de molde a criar a convicção de que a montante da acção de despejo existiu um acordo com o proprietário do estabelecimento com o intuito de impedir a execução da sentença.
V - Dispõe o art. 820.º do C. Civil "sendo penhorado algum crédito do devedor, a extinção dele por causa dependente da vontade do Executado ou do seu devedor, verificada depois da penhora, é igualmente ineficaz em relação ao Exequente".
VI - No caso em apreço, a extinção do contrato de arrendamento do estabelecimento nomeado à penhora verificou-se muito depois da penhora e teve por causa a exclusiva vontade da Executada.
VII - O art. 819.º do C. Civil estabelece que "Sem prejuízo das regras de registo, são ineficazes em relação ao exequente os actos de disposição ou oneração dos bens penhorados".
VIII - Terá assim que concluir-se que a sentença que decretou o despejo do local arrendado nenhuma eficácia produz sobre a penhora anteriormente efectuada.
IX - No mesmo sentido decidiram o Tribunal da Relação de Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, em acórdãos proferidos, respectivamente, nos processos n° 401/02-4 da 2.ª Secção e n° 1915/02, da 4.ª Secção.
X - Ao decidir como decidiu, violou o douto recorrido designadamente o disposto nos arts. 820.º e 819.º ambos do C. Civil.

A executada não contra-alegou e, neste Supremo Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se pelo não provimento do recurso, em parecer a que as partes não responderam.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

2. Os factos
Os factos dados como provados são os seguintes:
a) No requerimento inicial, o exequente requereu a conversão em penhora do arresto dos bens da executada que anteriormente havia sido decretado.
b) Entre os bens arrestados encontrava-se o direito ao trespasse e arrendamento do estabelecimento comercial da executada, sito em Lisboa, na Rua de Campo de Ourique, n.º....
c) O arresto foi levado a cabo em 2 de Abril de 2001 e, por despacho de 11.6.2002, foi ordenada a sua conversão em penhora.
d) Já na fase da venda, em 21.5.2004, o proprietário da loja onde funcionava o estabelecimento da executada veio informar que o contrato de arrendamento relativamente ao local onde o estabelecimento da executada funcionava tinha sido resolvido por sentença.
e) Em 4.6.2003, na acção que com o n.º 2277/02, correu termos na 3.ª secção do 2.º Juízo Cível de Lisboa foi proferida sentença resolvendo o contrato de arrendamento que tinha sido celebrado entre a executada e o anterior proprietário da fracção onde funcionava o estabelecimento da executada, por falta de pagamento das rendas do locado desde 1 de Setembro até Dezembro de 2002.
f) A sentença em questão transitou em julgado em 19 de Junho de 2003.
g) Face a teor daquela sentença, o M.mo Juiz ordenou o levantamento da penhora do direito ao arrendamento.

3. O direito
Como resulta das conclusões formuladas pelo recorrente, o objecto do recurso restringe--se à questão de saber se a penhora do direito ao arrendamento do local onde funcionava o estabelecimento da executada deve ser mantida, ou não, depois de o respectivo contrato de arrendamento ter sido resolvido por sentença transitada em julgado, proferida posteriormente à data da penhora, com fundamento na falta de pagamento de rendas vencidas também já depois da data da penhora.

A questão em apreço prende-se com o disposto no art.º 820.º do C. C. (na redacção em vigor à data da penhora (1), nos termos do qual "[s]endo penhorado algum crédito do devedor, a extinção dele por causa dependente da vontade do executado ou do seu devedor, verificada depois da penhora, é igualmente ineficaz em relação ao exequente".

Como resulta daquele normativo, quando a penhora tenha incidido sobre direitos de crédito (como é o caso do direito ao arrendamento), a extinção dos mesmos é ineficaz em relação ao exequente, desde que a causa da extinção seja imputável ao executado ou ao seu devedor e desde que tenha ocorrido depois da realização da penhora.

O mesmo se passa, aliás, quando os bens penhorados não tenham natureza creditícia, por força do disposto no art.º 819.º do C. C. (na redacção que lhe foi dada pelo D. L. n.º 38/2003, de 8/3, com Declaração de Rectificação 5-C/2003, de 30/4) , nos temos do qual "[s]em prejuízo das regras do registo, são inoponíveis à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados"[ (2)].

Com aquelas duas disposições legal, pretendeu-se evitar a frustração dos fins da execução e, consequentemente, salvaguardar o direito que a lei confere ao credor de exigir judicialmente do devedor o cumprimento da obrigação e de executar o seu património para obter aquele cumprimento (art.º 817.º do C.C.).

No caso em apreço, os efeitos da penhora reportam-se à data em que o arresto foi realizado, ou seja, a 2 de Abril de 2001, por força do disposto no n.º 2 do art.º 622.º do C. C. (3) e a acção para resolução do contrato de arrendamento foi intentada posteriormente àquela data, uma vez que tem o n.º 2277/02 e o mesmo aconteceu, obviamente, com a respectiva sentença.

Por sua vez, o despejo foi decretado com fundamento no não pagamento das rendas referentes aos meses de Setembro a Dezembro de 2002.

Deste modo, dúvidas não há de que a causa da resolução do contrato de arrendamento ocorreu depois da data do arresto.

O que se questiona é se a resolução do contrato é imputável à executada ou ao seu devedor (o senhorio do local arrendado) e, consequentemente, se a decisão proferida na referida acção é ou não ineficaz relativamente ao exequente.

No que toca ao direito do senhorio à resolução do contrato de arrendamento com fundamentos na falta de pagamento das rendas, quer se trate de rendas vencidas anteriormente à data da penhora, quer às que se vencerem posteriormente, a jurisprudência tem vindo a reconhecer pacificamente a existência desse direito, com o fundamento de que a penhora do direito ao arrendamento e trespasse do estabelecimento comercial em nada afecta o direito de propriedade do senhorio sobre o prédio onde o estabelecimento funciona.

Mas o mesmo não acontece, no que toca à repercussão que a decisão de despejo tem sobre a penhora. Nessa matéria, há quem defenda a ineficácia do despejo, desde que a sua causa tenha ocorrido após a data da penhora, com a consequente manutenção desta e há quem defenda o contrário.

No sentido da ineficácia do despejo, decidiu-se no acórdão do STJ de 26.2.2003, junto a fls. 259-274 dos autos, proferido no processo n.º 1915/02, da 4.ª Secção, de que foi relator o conselheiro Ferreira Neto.

No sentido contrário, decidiu-se, por exemplo, no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27.2.2002, proferido no proc. n.º 401/02, 4.ª secção, junto a fls. 249-256 dos autos e nos acórdãos do STJ de 30.9.99 (proc. 377/99, 7.ª secção, de que foi relator o conselheiro Herculano Namora), de 25.6.2002 (proc. 1449/02, 1.ª secção, de que foi relator o conselheiro Pinto Monteiro) e de 14.1.2004 (proc. 964/002, da 4.ª secção, de que foi relator o conselheiro Fernandes Cadilha).

Da nossa parte, entendemos que a melhor solução é aquela que defende a não aplicação do art.º 820.º do C.C. e subscrevemos inteiramente a argumentação que a esse respeito foi aduzida no já citado acórdão deste tribunal de 14.1.2004 (tirado com vistos alargados).

Aí se escreveu, relativamente ao art.º 820.º, o seguinte:
«Como logo resulta do seu sentido literal, o preceito refere-se apenas aos factos extintivos que dependam da vontade do executado ou do seu devedor. Não se aplica, assim, ao caso de impossibilidade de cumprimento ou da verificação de condição que resolva o direito (nestes termos, exprimem-se PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, ob. cit., pág. 83) (4).
Ora, no caso em apreço, alega-se que "o contrato de arrendamento cessou por falta de pagamento de rendas, facto que é imputável à conduta da executada"; mas o certo que o não pagamento das rendas não determina automaticamente a resolução do contrato, a qual apenas poderá ter lugar por iniciativa do senhorio, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 63º, n.º 2, e 64º, n.º 1, alínea a), do Regime do Arrendamento Urbano - como sucedeu, aliás, na hipótese configurada nos autos, em que a extinção do arrendamento foi decretada na sequência da competente acção de despejo intentada pelo locador.
Não estamos, por isso, perante uma situação subsumível à previsão da citada disposição, como, de resto, explicitam os autores acabados de citar, quando escrevem: "se o direito penhorado for o direito ao arrendamento e ao trespasse, nada obsta a que o locador requeira e obtenha o despejo do imóvel por falta de pagamento de rendas, visto que a extinção do direito não depende apenas, nesse aspecto, da vontade do executado" (ibidem).» (fim da transcrição)

Estamos plenamente de acordo com tal posição. Acrescentaremos, apenas, que essa é também a posição assumida por Lebre de Freitas (5) a respeito do disposto no art.º 819.º do C.C., mas que também consideramos válida relativamente ao disposto no art.º 820.º.

Diz aquele autor:
"Como actos jurídicos que são, a disposição e a oneração dependem da vontade do titular do direito e a norma do art.º 819 CC pressupõe a prática dum acto voluntário do executado. Assim, a regra da ineficácia relativa não abrange os actos constitutivos de direito real de garantia sobre os bens penhorados em que o titular destes não intervenha. É o que acontece com a penhora (art. 871), com o arresto (art. 402) e com a hipoteca legal ou judicial (arts. 704 e 710 CC). Da mesma forma, a usucapião, as sentenças proferidas contra o executado, a amortização da sua quota e outros actos independentes da sua vontade estão excluídos da aplicação da regra.."

Não se ignora que a posição assumida por Anselmo de Castro (6) é diferente. Para este autor, a regra da ineficácia relativa consagrada nos artigos 819.º e 820.º "tem aplicação indistintamente a todos os actos de disposição (ou cessão), translativos ou constitutivos, sejam de direitos reais de gozo ou de garantia, ou extintivos do direito (compensação, novação, renúncia, perdão, etc.)" não interessando "à aplicação da regra, a fisionomia ou a estrutura do acto, conquanto envolva transmissão de direito, v. g., transacção, amortização de cota, partilha, divisão, nem a sua natureza extrajudicial ou judicial, estendendo-se, por isso, às próprias transacções e partilhas ou divisão de cousa comum judicialmente feitas, bem como às eventuais sentenças proferidas contra o executado". Para que tais actos sejam oponíveis à execução, continua aquele autor, "importa que, posteriormente à data que for relevante para a eficácia da penhora em relação a terceiros, tenha sido assegurada a intervenção, no acto ou no processo, do exequente".

Não nos parece, todavia, que esta posição seja a mais defensável, face aos interesses em jogo e ao objectivo visado pelos artigos 819.º e 820.º.

Na verdade e como já foi referido, os artigos 819.º e 820.º visam impedir que o executado ou o seu devedor comprometam os objectivos da execução, por sua livre iniciativa e vontade, ou seja, visam impedir que os efeitos da penhora fiquem à mercê do arbítrio do executado ou do seu devedor. E compreende-se que os actos de disposição assim efectuados pelo executado ou pelo seu devedor fiquem sujeitos ao regime de ineficácia relativa contido nos artigos 819.º e 820.º.

Mas, essa ineficácia já deixa de ter razão de ser quando se trate de uma decisão judicial. E seria mesmo incompreensível que o direito do senhorio à resolução do contrato tivesse de ceder, apesar de estar judicialmente reconhecido, perante o direito do exequente.

4. Decisão
Nos termos expostos, decide-se negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida.
Custas pelo exequente.

Lisboa, 8 de Novembro de 2006
Sousa Peixoto
Sousa Grandão
Pinto Hespanhol
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(1) - A actual redacção do art.º 820.º, introduzida pelo D. L. n.º 199/2003, de 10/9, é a seguinte:
"Sendo penhorado algum crédito do devedor, a extinção dele por causa dependente da vontade do executado ou do seu devedor, verificada depois da penhora, é igualmente inoponível à execução."
(2) - Antes do D.L. n.º 38/2003, o art.º 819.º tinha a seguinte redacção:
"Sem prejuízo das regras do registo, são ineficazes em relação ao exequente os actos de disposição ou oneração dos bens penhorados."
(3) - O art.º 622.º do C. C. tem o seguinte teor:
"1. Os actos de disposição dos bens arrestados são ineficazes em relação ao requerente do arresto, de acordo com as regras próprias da penhora.
2. Ao arresto são extensivos, na parte aplicável, os demais efeitos da penhora."
(4) - A obra citada é o Código Civil anotado, 2.ª edição, vol. II.
(5) - A Acção Executiva, Coimbra Editora, ano 1993, p. 219.
(6) - A acção Executiva Singular, Comum e Especial, Coimbra Editora, ano 1977, p. 159-160.