Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1ª SECÇÃO | ||
Relator: | JORGE LEAL | ||
Descritores: | JULGAMENTO AMPLIADO RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA PARTILHA DIVÓRCIO REGIME DE BENS COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS EX-CÔNJUGE TERRENO DOAÇÃO PROPRIEDADE BEM PRÓPRIO CONSTRUÇÃO CASA DE MORADA DE FAMÍLIA BEM COMUM DO CASAL BENFEITORIA ÚTIL ACESSÃO INDUSTRIAL | ||
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Data do Acordão: | 06/25/2025 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Referência de Publicação: | ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA N.º 9/2025. D.R. I SÉRIE. 174 (2025-09-10) P. 1-19, HTTPS://FILES.DIARIODAREPUBLICA.PT/1S/2025/09/17400/0001400032.PDF | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | UNIFORMIZA-SE A JURISPRUDÊNCIA NOS SEGUINTES TERMOS. " A OBRA EDIFICADA (CASA DE MORADA DE FAMÍLIA) POR DOIS CÔNJUGES, CASADOS NO REGIME DA COMUNHÃO DE BENS ADQUIRIDOS, COM DINHEIRO OU BENS COMUNS, EM TERRENO PRÓPRIO DE UM DELES, CONSTITUI COISA NOVA QUE É BEM PRÓPRIO DO CÔNJUGE TITULAR DO TERRENO E DÁ LUGAR A UM CRÉDITO DE COMPENSAÇÃO DO PATRIMÓNIO COMUM SOBRE O PATRIMÓNIO DO DONO DA COISA NOVA, COM VISTA À REPOSIÇÃO DO EQUILÍBRIO PATRIMONIAL". | ||
Indicações Eventuais: | TRANSIDO EM JULGADO | ||
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Sumário : | A obra edificada (casa de morada de família) por dois cônjuges, casados no regime da comunhão de bens adquiridos, com dinheiro ou bens comuns, em terreno próprio de um deles, constitui coisa nova que é bem próprio do cônjuge titular do terreno e dá lugar a um crédito de compensação do património comum sobre o património do dono da coisa nova, com vista à reposição do equilíbrio patrimonial. | ||
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Decisão Texto Integral: | Revista ampliada n.º 985/20.0T8VCD-B.P1.S1 Acordam, reunidos em sessão do pleno, os juízes das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça I. RELATÓRIO 1. Em 10.7.2020 AA requereu a partilha dos bens comuns do dissolvido casal que formou, antes do divórcio, com BB. Indicou o requerido para exercer as funções de cabeça-de-casal. 2. Nomeado cabeça-de-casal, o requerido BB apresentou relação de bens, onde fez constar, como ativo, o seguinte: “1º Benfeitorias do prédio urbano, sito na Rua ..., União de freguesias de ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o registo nº: ...72 e inscrito na matriz predial sob o artigo ...37 da referida União de freguesias, tudo conforme junta caderneta e certidão predial, como documento nº 1 e 2. 2º Estas Benfeitorias, detém o valor de € 338. 915,00, (trezentos e trinta e oito mil novecentos e quinze euros), conforme avaliação elaborada pelo Engº CC, com inscrição na CMVM: .../14/015, que se junta como documento nº 3 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido”. 3. A requerente reclamou da relação de bens, dizendo, quanto à verba n.º 1, que estava insuficientemente descrita, designadamente porque não identificava o titular (que é ela própria) do direito de propriedade sobre o terreno onde a benfeitoria (moradia) foi edificada; por outro lado, não aceitou os valores indicados, quer para a benfeitoria, quer para o terreno (€ 338 915,00 + € 68 210,00) e indicou valores alternativos (€164.072,64 + €112.500,00), suportados numa avaliação que encomendou. Terminou pedindo que fosse ordenada a avaliação da benfeitoria. 4. Por despacho de 14.12.2021, na sequência de requerimento da requerente, o requerido foi removido do cargo de cabeça-de-casal, tendo sido nomeada cabeça-de-casal, em sua substituição, a requerente. 5. A cabeça-de-casal apresentou relação de bens, onde fez constar, no ativo, a seguinte verba única: “Direito de crédito do património comum do extinto casal, sobre a ex-cônjuge AA, proveniente das obras/benfeitorias de construção da moradia atualmente descrita na Conservatória do Registo Predial da ... sob o registo nº ...72 e inscrito na matriz predial sob o artigo ...37 da União de freguesias de ..., ... e ..., com o valor patrimonial fiscal actual (CIMI) de €169.077,92, obras/benfeitorias essas realizadas por ambos, em terreno próprio da interessada AA, num valor que se atribui de € 160.000,00 (cento e sessenta mil euros)”. 6. O requerido reclamou da relação de bens apresentada, com os seguintes fundamentos: - não concorda com o valor relacionado como direito de crédito sobre a interessada AA; - o terreno onde foi construída a moradia (que foi a casa de morada do casal) era um prédio rústico doado pelos pais da cabeça-de-casal, cujo valor era de € 65 000,00; - uma vez construída a moradia ora averbada através do Modelo I de IMI, em sede de Finanças e registada a favor da Cabeça e do ora Reclamante, o prédio só poderia ser relacionado como bem comum do casal e não como um direito de crédito; - a jurisprudência tem decidido, quase invariavelmente, que a construção pelos cônjuges casados em comunhão de adquiridos de um prédio urbano em terreno de um só deles, deve ser considerada uma benfeitoria, e que, por isso, esta deve ser descrita como bem comum no inventário consequente ao divórcio do casal, mantendo-se o terreno como bem próprio, conclusão a que chega, essencialmente, em função da orientação que distingue benfeitoria e acessão por via da relação jurídica com a coisa; - assim, na situação dos autos dever-se-á definir o regime a aplicar em função da ideia de que uma obra que resulta incorporada num terreno, passando a constituir com ele uma realidade incindível e provocando a sua alteração jurídica de prédio rústico para urbano, não pode fazer-se equivaler a uma benfeitoria, e que é o conceito de acessão, no que tem de essencial, que melhor satisfaz a compreensão daquele fenómeno; - a solução de considerar terreno e edifício nele construído como um bem comum, por via do disposto no nº 1 do art. 1726º/CC, é a que quadra melhor às expetativas dos cônjuges e também aos interesses dos credores, a que não são alheios as normas dos arts 1721º e seguintes. 7. Por decisão proferida em 13.7.2022, a reclamação foi decidida nestes termos: “Veio o interessado BB, após liquidação das taxas e multas devidas pela prática tardia do ato, apresentar reclamação à relação de bens apresentada pela cabeça de casal, em 03.01.2022. Contesta a verba n.º 1 do ativo, relacionada como “direito de crédito do património comum do extinto casal sobre a ex-cônjuge AA, proveniente das obras/benfeitorias de construção da moradia (…) realizadas por ambos em terreno próprio da interessada (…), num valor que se atribui de € 160.000,00.” Reconhecendo que o terreno onde foi construída a moradia (que serviu de casa de morada de família) era bem próprio da cabeça de casal, sustenta que a edificação, porque construída por ambos na pendência do matrimónio, deve ser classificada de benfeitoria, rejeitando porém o valor atribuído. Mais acusa a falta de relacionação dos bens móveis que compõem o recheio da casa que fora de família a que atribui o valor (total) de € 10.000,00. Não juntou nem requereu a produção de qualquer prova. A cabeça de casal reiterou a relação de bens, apontando ao reclamante a incongruência de reclamar bens e valores que ele próprio, entanto (enquanto?) cabeça de casal nos autos, também não relacionou. Apreciando. À reclamação que ora se aprecia é aplicável o regime dos incidentes (cfr. artigos 1105º e 1091º do CPC), definido nos artigos 292º a 294º do C.P.C., nos termos do qual a prova é oferecida com a apresentação do incidente. Ora, como já dito, o reclamante não cumpriu com este ónus probatório que sobre si impende, pelo que, não havendo prova a produzir, apreciar-se-á a reclamação à luz das regras de direito aplicáveis, em face da posição a respeito assumida pela cabeça de casal. Isto posto, resulta assente nos autos que o terreno onde foi implantada a casa de morada de família do extinto casal era bem próprio da cabeça de casal, por doação de seus pais. Na pendência do casamento, o então casal procedeu à construção de um imóvel para habitação, o qual veio a servir de casa de morada de família. É a natureza desta construção, enquanto bem a relacionar para partilha, que agora se aprecia. Ora, nos termos do artigo 1724º do CC, fazem parte da comunhão «o produto do trabalho dos cônjuges» e «os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados pela lei». Por seu turno, o artigo 1726º/1 do mesmo CC refere que «os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações». Neste quadro legal, é possível encarar a casa construída como um bem "adquirido" na constância do casamento, desde o momento em que o terreno deixou de ter individualidade própria passando a ser um prédio urbano e os cônjuges a construíram utilizando valores comuns na construção: a casa como que "adveio" aos cônjuges em virtude de uma conjugação de esforços, pois que foram empregues na sua construção um bem próprio e bens comuns. Não sendo possível dissociar a casa (comum) do terreno (próprio), há que encontrar solução para a respetiva partilha equitativa, na certeza de que caso seja permitido ao interessado licitar na casa, estaria a permitir-se-lhe adquirir, por essa via, um terreno alheio. A cabeça de casal classificou o bem como “direito de crédito”, o reclamante entende-o como “benfeitoria”. Ora, como resulta do artigo 216º, nº 3, do CC, as benfeitorias classificam-se em necessárias (as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa); úteis (as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor) e voluptuárias (as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante). No caso, estamos em presença de obras de construção realizadas pelos cônjuges no prédio doado à interessada pelo que, à luz do critério legal plasmado no citado artigo 216º, devem ser qualificadas como benfeitorias úteis, pois configuram despesas que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, aumentam o valor objetivo do bem. Porque se presume que tais obras foram realizadas à custa do património do casal (já que ninguém sequer alega que tenham sido usados dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges), em conformidade com o disposto no art. 1733º, nº 2, do CC, tem natureza comum. Em face do exposto, e acolhendo o entendimento que vem sendo dominante na nossa jurisprudência, entende-se que, tendo cessado as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges por divórcio (cf. arts. 1688º, 1788º e 1789º, do CC), deverá proceder-se à relacionação do valor das obras realizadas (e não das próprias obras) como benfeitoria, por forma a que se opere a oportuna compensação devida ao património comum. Esta é a solução que obsta o enriquecimento sem causa, ao impedir que um dos cônjuges fique beneficiado no momento da partilha. Ora, uma vez que esta benfeitoria não pode separar-se do prédio onde foi realizada, nos termos do n.º 6 do artigo 1098º do CPC, deve ela constar da relação de bens como crédito do património comum sobre a interessada, cabeça de casal, conforme foi, aliás, devidamente relacionada e descrita. Note-se que tal benfeitoria, assim relacionada como crédito correspondente ao valor da edificação, permitirá operar por via da partilha o ressarcimento previsto no artigo 1273º do CC, assim assegurando a proteção dos direitos patrimoniais de ambos os cônjuges a uma partilha justa e equitativa. Em conformidade, nesta parte, improcede a reclamação. Quanto ao respetivo valor: O reclamante contesta o valor atribuído, sem porém indicar outro ou prova a produzir para sustentar o seu entendimento. Em face do exposto, e por força das regras de repartição do ónus da prova, a reclamação improcede nesta parte, sem prejuízo da possibilidade de, em sede própria, os interessados acordarem no valor a atribuir à verba, nos termos previstos e autorizados pelo artigo 1111º, n.º 2, a), do CPC”. 8. O requerido BB apelou da referida decisão, pugnando pela qualificação do bem relacionado como bem comum do casal, devendo a cabeça-de-casal ser compensada pela deslocação feita do seu património próprio (terreno) para o património comum do casal. 9. Em 26.6.2023 a Relação do Porto proferiu acórdão que culminou com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente a apelação de BB e, em consequência, 1) revogar a decisão recorrida na parte em que desatendeu a reclamação à relação de bens e ordenou que se mantivesse relacionada como benfeitoria a moradia construída na vigência do matrimónio com o contributo de ambos os cônjuges, decisão a ser substituída por outra que determine se proceda à aludida avaliação para apurar, a final, qual a mais valiosa das prestações que contribuíram para a aquisição desse imóvel e, bem assim, definir o valor da compensação que for devida ao património desfalcado; 2) no mais, confirmar o despacho recorrido. As custas do recurso serão suportadas em partes iguais por recorrente e recorrida”. 10. A requerente interpôs recurso de revista desse acórdão, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões: “I. A recorrente não se conforma com a douta decisão de 2ª instância que revogou a decisão da 1ª instância e que decidiu: “revogar a decisão recorrida na parte em que desatendeu a reclamação à relação de bens e ordenou que se mantivesse relacionada como benfeitoria a moradia construída na vigência do matrimónio com o contributo de ambos os cônjuges, decisão a ser substituída por outra que determine se proceda à aludida avaliação para apurar, a final, qual a mais valiosa das prestações que contribuíram para a aquisição desse imóvel e, bem assim, definir o valor da compensação que for devida ao património desfalcado”, II. O acórdão recorrido está em contradição absoluta com o acórdão lavrado no processo 1530/20.3T8VNF.G1.S1 de 29.11.2022 da 1ª secção do STJ, transitada em julgado: ”A edificação de obra (casa) por dois cônjuges, casados no regime de comunhão de bens adquiridos, em terreno próprio de um deles, constitui benfeitoria e dá lugar a um crédito de compensação (um crédito do património comum sobre o património próprio) com vista à reposição do equilíbrio patrimonial, pois de outra forma haveria um injustificado enriquecimento sem causa.” III. Estes acórdãos versam sobre a mesma questão fundamental de direito o que justifica o presente recurso de revista, sendo que ambos os acórdãos foram proferidos no âmbito da mesma legislação. IV. Os factos a ter presentes no caso sub judice são: (i) O extinto casal AA e BB contraira matrimónio no regime de comunhão de adquiridos; (ii) O prédio urbano, terreno, onde foi erigida a moradia foi doado à aqui recorrente e cabeça-de-casal, já casada, pelo seu progenitor, sendo bem próprio desta, registado na Conservatória de Registo Predial e na Repartição de Finanças respetiva, em nome da mesma donatária, como resulta dos documentos juntos aos autos, sendo bem próprio da recorrente. (iii) A construção foi edificada pelos ex-cônjuges, com recurso a um valor mutuado pela Banca ao extinto casal, o qual está, maioritariamente, em divida à entidade bancária, como resulta do passivo resultante da Relação de Bens, referida no Acórdão em recurso – página 3 - passivo este reclamado pela entidade bancária respetiva. (verba 1 do passivo - a verba 2 da Relação de Bens dizia respeito a um automóvel). V. A doutrina professada pelo acórdão recorrido e o seu mérito académico deverá, se assim for entendido pelo legislador, ser por este tratado, não tendo a virtualidade de se impor no atual quadro legal. VI. Está em causa, também, no caso presente a violação dos princípios da certeza e confiança jurídicas, da donatária (proprietária) do prédio e do seu doador, que, com a solução em recurso vê as suas legitimas expetativas, intenções e declarações contratuais, enquanto doador, violadas. Doou à filha, aqui recorrente, um prédio. Não o doou ao seu ex-genro. Poderá dizer-se que os interesses e legítimas expetativas do doador, no caso dos autos, não têm tutela jurídica, - quiçá pelo instituto da colação as coisas não serão tão claras -, mas a confiança e certeza jurídicas ficam gravemente contundidas. VII. E não se diga que o terreno se confunde em absoluto com a benfeitoria; Não é verdade óbvia, a assunção de com a construção, o terreno de construção– “deixou de ter individualidade própria”. A natureza urbana do terreno de construção é inquestionável, tanto administrativa, como fiscal como legalmente. As moradias (benfeitorias) constroem-se e derrubam-se, os terrenos ficam e mantêm a sua natureza urbana, tanto administrativa, como fiscal, como legalmente. São um valor, uma propriedade com valor patrimonial significativo, em si. Por algum motivo os terrenos de construção, como o caso dos autos, pagam IMI urbano e não rústico. VIII. Dão-se aqui por reproduzidos os argumentos na decisão do STJ do processo nº 1530/20.3T8VNG.Gl.S1: “ Segundo o art. 1325º, do CC “dá-se a acessão, quando com a coisa que é propriedade de alguém se une e incorpora outra coisa que lhe não pertencia” … “Para que se verifique a acessão, exige-se, antes de mais, que se esteja perante um simples possuidor que, nessa qualidade, não tenha vinculação jurídica especial com alguém, sendo antes titular de um direito a que corresponde a chamada obrigação passiva universal, própria dos direitos reais, já que nenhum interesse se perfila, no lado passivo da relação jurídica de posse que justifique a inaplicabilidade do regime da acessão. O regime da acessão só será, portanto, chamado à colação quando o interventor seja juridicamente estranho ao prédio, isto é, sempre que, a ele, não esteja ligado em consequência de qualquer relação jurídica.” IX. No caso presente, também se verifica que o prédio foi doado à interessada recorrente, sendo bem próprio da recorrente, atento o regime de comunhão de adquiridos do extinto casamento de ambos e tendo a moradia sido construída por ambos para nela habitarem, não se pode considerar o, à data, cônjuge marido “ um estranho relativamente ao prédio onde foi construída a casa, uma vez que, tendo a obra sido realizada por ambos os cônjuges, não era, dada a sua relação familiar com a ré (cf. art. 1576º CC), um terceiro em relação ao prédio.” “Também, realizadas as obras em prédio (urbano) do cônjuge mulher, não houve inovação em solo ou terreno alheio, como a acessão pressupõe, mas tão somente valorização de prédio já existente, por ambos os cônjuges, em razão do seu casamento.” X. Concluiu esse aresto, como nós o fazemos, no caso presente: “Por conseguinte, inverificados, no caso concreto, os pressupostos da acessão, no tocante a uma ficcionada aquisição em comum da propriedade do edificado, afigura-se-nos que o regime a aplicar há-se ser encontrado à luz do instituto das benfeitorias, que, na definição legal (art. 216º, do CC), são todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa.” XI. “Contra esta solução não se invoque o disposto no art. 1726º, do CC, em que se dispõe que os bens adquiridos com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações, pois como se decidiu no ac. deste STJ de 16/2/2016, Revista nº 3036/11.2TBVCT.G1.S1, (Relator Cons. Júlio Gomes), não publicado, “o que a norma prevê é apenas a aquisição e não a situação diversa da construção no terreno de um dos cônjuges. E, em segundo lugar, ela (está a referir-se à aplicação da norma do art. 1726º, do CC) conduz à alteração do estatuto de um bem que era próprio e que passa a ser comum, o que suscita algumas interrogações quanto à sua compatibilidade com o princípio da imutabilidade do regime de bens e, sobretudo, com aquela ratio que entendemos ser subjacente ao não funcionamento entre cônjuges da usucapião ou da acessão industrial imobiliária. Um cônjuge deve poder anuir na aplicação de bens comuns, por exemplo, para a conservação ou para a ampliação de um prédio próprio que seja, por hipótese, a casa de morada de família, sem se expor ao risco de assim perder a propriedade exclusiva do bem, deixando de ser próprio (o que seria reintroduzir por esta via algo de muito próximo nos seus resultados da acessão industrial).” “Tal solução corresponde “à preocupação básica do nosso direito de obstar ao enriquecimento sem causa”, já que impede que um dos cônjuges fique beneficiado no momento da partilha e, por outro lado, assenta num princípio básico do direito patrimonial da família que encontra expressão em várias normas (cf. arts. 1697º, 1722º, nº 2, 1726º, 1727º e 1728º, todos do CC). Em sentido concordante com o que vimos defendendo, se pronunciaram os acórdãos deste Supremo Tribunal, proferidos em 17.9.2009, na Revista nº 1130/04.5TBABF, da 7ª secção, em 10.9.2009, na revista nº 713.05.0TBAVR.C1.S1, da 7ª secção, em 3.2.2009, na Revista nº 3240/08, da 6ª secção e em 13.2.2014, na Revista nº 1007/03.1TBSCR.L2.S1, da 2ª secção, não publicados, em que, em casos semelhantes ao presente, se afastou expressamente o regime da acessão, considerando, antes, que se estaria em presença de uma benfeitoria. Mais recentemente, esta mesma orientação foi reafirmada por este Supremo Tribunal, no acórdão de 30.4.2019, na revista nº 5967/17.7T8CBR.S1, disponível em www.dgsi.pt, e de que foi Relator o Cons. Ilídio Sacarrão Martins, que também subscreve o presente aresto. Todos os arestos referidos se debruçaram sobre a questão agora trazida à apreciação deste Supremo Tribunal, pelo que esta corrente jurisprudencial não poderia deixar de ser por nós especialmente ponderada, designadamente por força do disposto no art. 8º, nº 3, do CC, segundo o qual “nas decisões a proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.”. E, o caso em discussão, as obras de construção realizadas pelos cônjuges no prédio urbano doado à ré, à luz do critério legal plasmado no art. 216º, devem ser qualificadas como benfeitorias úteis, pois configuram despesas que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, aumentam o valor objetivo do bem.” “Atenta a factualidade apurada, tendo cessado as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges por divórcio (cf. arts. 1688º, 1788º e 1789º, do CC), deverá proceder-se à relacionação do valor das obras realizadas como benfeitorias, no inventário instaurado para partilha dos bens, por forma a que se opere a compensação devida ao património comum.” XII. Os interesses dos ex-cônjuges estão defendidos na solução que defendemos e a solução em recurso, ao contrário, lesa legítimos interesses que não são respeitados e não se coaduna com os regimes jurídicos vigentes dos institutos envolvidos. XIII. A doutrina abraçada pelo acórdão em recurso e o seu eventual mérito deverá, se assim for entendido pelo legislador, ser por este tratado, não tendo a virtualidade para se impor no atual quadro legal. XIV. Acresce que decisões dispares sobre a mesma questão jurídica causam perplexidades e são fonte de incerteza e de desconfiança na justiça, justificando-se o julgamento ampliado da revista. Termos em que deverá, pelos argumentos acima descritos e se dão por reproduzidos, nomeadamente as normas jurídicas invocadas, ser revogada a decisão da 2ª instância e substituída por outra que ordene a relacionação do valor das obras realizadas como benfeitorias, no inventário instaurado por partilha dos bens do ex-casal, por forma a que se opere a compensação devida ao património comum, mantendo-se assim na íntegra a decisão de 1ª Instância. Em acréscimo, Requer que o Exmo Sr. Juiz Conselheiro, Presidente do STJ, determine que o julgamento de recurso se faça com intervenção do pleno das secções cíveis, por se revelar necessário e conveniente para assegurar a uniformização da jurisprudência, em nome da certeza, da confiança jurídica e da legalidade, nos termos do artigo 686.º n.º 2 do CPC. Custas totais pelo recorrido”. 11. O requerido também interpôs recurso de revista do dito acórdão, assim como apresentou resposta à revista interposta pela requerente, mas ambas as peças processuais foram rejeitadas pela Relação, por extemporaneidade. 12. Recebidos os autos neste Supremo Tribunal de Justiça, foi o processo enviado ao Exm.º Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, para os efeitos previstos no art.º 686.º n.º 1 do CPC, atendendo ao requerimento de julgamento ampliado da revista apresentado pela recorrente. 13. Por despacho proferido em 06.02.2024, o Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça determinou que se procedesse ao julgamento ampliado da revista, de acordo com o disposto no art.º 686.º, n.ºs 1 e 2 do CPC. 14. O Ministério Público emitiu o seguinte parecer: “Pelo exposto, somos de parecer que deverá fixar-se a jurisprudência no seguinte sentido: “1- A construção de uma habitação, mediante recurso a meios financeiros de ambos os cônjuges, durante a constância do casamento no regime da comunhão de adquiridos, num prédio composto por terreno, propriedade exclusiva de um deles, não consubstancia uma benfeitoria, dado que essa construção não se traduz numa obra destinada a conservar ou melhorar a parcela desse terreno, tratando-se antes de obra que determina uma alteração substancial e jurídica desse prédio ao nele incorporar a moradia, dando lugar a uma nova coisa, a um prédio urbano. 2- Essa construção também não é subsumível no instituto da acessão imobiliária, já que o cônjuge não proprietário do terreno tem perfeito conhecimento de que tal construção é levada a cabo num terreno que não lhe pertence, não se verificando o requisito da boa-fé consagrado no n.º 1 do art.º 1340.º do CCivil e ainda porque o terreno não é coisa alheia em relação ao cônjuge que for o seu dono. 3- Decretado o divórcio entre os cônjuges, no processo de inventário destinado a partilhar os bens comuns do extinto casal, à situação descrita aplica-se o regime jurídico consagrado nos art.ºs 1724.º e 1726.º do CCivl, havendo que apurar qual a participação de maior valor nas entradas efetuadas para a aquisição ou construção do bem. 4- Assim, consoante a contribuição mais alta seja a do património próprio (terreno) ou do património comum (dinheiro ou bens comuns utilizados na construção da casa), o bem deverá ser qualificado como próprio ou comum, tendo lugar a devida compensação ao património empobrecido de acordo com o regime estabelecido no artigo 1689. ° do CCivil.” 15. Foram colhidos os vistos legais e, apresentado memorando pelo relator, realizou-se sessão do pleno, onde se fixou, por maioria, a orientação a tomar. II. FUNDAMENTAÇÃO 1. A questão objeto deste recurso é a seguinte: dissolvido o casamento por divórcio, qual o tratamento jurídico a dar ao resultado da edificação da casa de morada de família, realizada no decurso do matrimónio de casal casado no regime da comunhão de adquiridos, com dinheiro ou bens comuns do casal, em terreno que constitui bem próprio de um dos cônjuges. 2. O factualismo a levar em consideração, conforme emerge dos autos, é o seguinte: 1. A requerente e o requerido casaram um com o outro em 07.8.2010, no regime da comunhão de adquiridos. 2. Por escritura pública outorgada em 25.7.2011, os pais da requerente doaram a esta, por conta da quota disponível, um “prédio urbano composto parcela de terreno para construção urbana, com a área de mil quinhentos e sessenta e dois, vírgula, cinquenta metros quadrados (…) inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...21, com o valor patrimonial tributário de 21.910,00€, e igual valor atribuído”, “sito na Rua ..., lugar de ..., freguesia de ..., concelho de ...”. 3. Pela apresentação 2975 de 2011/07/25, foi inscrita, a favor da ora requerente, “casada com BB”, na Conservatória do Registo Predial de ..., Freguesia de ..., a aquisição, por doação, do prédio referido em 2, o qual se encontra descrito, na aludida conservatória e freguesia, sob o n.º ...72/20110725, nos seguintes termos: “Urbano Situado em: ... Rua ... Área total: 1541,5 m2 Área coberta: 1339,1 m2 Matriz n.º: ...21 Freguesia: ..., ... e .... Composição e confrontações: Casa de dois pisos, cave e rés-do-chão, com logradouro. Desanexado do n.º ...78/20101216 de ... Cedidos 21 m2 ao domínio público”. 4. Em 06.02.2012 a requerente e o requerido contraíram um empréstimo bancário para financiarem a construção, no aludido terreno, de uma moradia, que veio a constituir a sua casa de morada de família. 5. Na ocasião referida em 4, no documento escrito outorgado pela requerente e o requerido junto do banco mutuante, ficou consignado, na cláusula segunda, sob a epígrafe “hipoteca”, o seguinte: “A Primeira Outorgante AA constitui a favor do Banco, que a aceita, hipoteca sobre o Prédio Urbano, composto por terreno para construção, destinado a construção urbana, sito em Rua ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ...72 da freguesia de ..., com o registo de aquisição a seu favor pela inscrição Ap. ...75 de 2011/07/25, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...21, com o valor patrimonial de 21 910.00 euros, doravante designado por “imóvel”, para garantia de todas as responsabilidades assumidas nos termos do presente contrato, nomeadamente encargos contratuais ou prémios de seguro que o Banco venha a pagar em sua substituição (…) O Primeiro Outorgante Marido BB presta o devido consentimento a sua esposa para a válida constituição da presente hipoteca por se tratar de um bem próprio do seu cônjuge”. 6. A requerente e o requerido suportaram, ambos, o pagamento do empréstimo referido em 4. 7. A requerente e o requerido divorciaram-se em 25.7.2019, na Conservatória do Registo Civil de .... 3. O Direito Está em causa um matrimónio sujeito ao regime de bens da comunhão de adquiridos (art.º 1717.º, 1721.º e seguintes do Código Civil). Na pendência do matrimónio a cônjuge mulher recebeu, por doação, a propriedade de um terreno, destinado a construção. Esse bem era, face ao regime de bens aplicável, bem próprio do cônjuge mulher (art.º 1722.º n.º 1 al. b) do Código Civil). Os dois cônjuges procederam à construção, no aludido terreno, da sua casa de morada de família, suportando conjuntamente o respetivo custo. A 1.ª instância qualificou a construção como benfeitoria útil (art.º 216.º do Código Civil) que, por não poder ser separada do prédio onde foi realizada, deveria ser relacionada como crédito (art.º 1098.º n.º 6 do CPC) do património comum sobre a interessada cabeça de casal, assim operando o ressarcimento previsto no art.º 1273.º do Código Civil. A Relação, após analisar o caso sub judice à luz dos institutos das benfeitorias e da acessão industrial imobiliária, concluiu que é no direito matrimonial que tem de ser procurada a solução, e não no direito comum. E encontrou a solução no art.º 1726.º do Código Civil: nos termos do n.º 1 desse artigo, “os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações” e, nos termos do n.º 2, ficará sempre “salva a compensação devida pelo património comum aos patrimónios próprios dos cônjuges, ou por estes àquele, no momento da dissolução e partilha da comunhão”. Nesses termos a Relação determinou que se procedesse à avaliação dos contributos para a aquisição do bem em causa, isto é, à avaliação do terreno, bem próprio da recorrida, e do dinheiro aplicado na construção e manutenção da moradia, bem comum, para se apurar se o bem “é de qualificar como próprio da cabeça de casal (caso em que o recorrente terá sobre ela um crédito correspondente ao valor actual da sua contribuição) ou como bem comum, caso em que haverá lugar a «devida compensação ao património empobrecido de acordo com o regime estabelecido no art. 1689.º, do Cód. Civil»”. Esta divergência de entendimento entre as duas instâncias reflete a divisão que se tem manifestado na jurisprudência acerca do tratamento jurídico a dar a situações, como a dos autos, em que sobre um terreno próprio de um dos cônjuges é construído, conjuntamente pelo casal, um edifício, que por vezes é destinado a casa de morada de família. Uma das formas de resolver a questão consiste na aplicação do direito comum (por contraposição ao direito matrimonial). No acórdão do STJ, de 27.01.1993, publicado na Coletânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano I, tomo I, 1993, páginas 102 a 104, perspetivou-se a solução do litígio pela contraposição entre o instituto das benfeitorias e o da acessão. Na análise das duas figuras, salientou-se o critério distintivo da finalidade e do regime jurídico de ambas as figuras: “no caso de simples benfeitorias, atribui a lei ao autor delas um direito de levantamento (ius tollendi) ou um direito de crédito contra o dono da coisa benfeitorizada (CC, artº 1273º), não, porém, um direito de propriedade sobre a coisa, pois a benfeitoria não se destina senão a conservar ou melhorar a coisa: no caso de acessão, diversamente, não se trata apenas de conservar ou melhorar uma coisa de outrem, mas de construir uma coisa nova, mediante alteração da substância daquele em que a obra, etc, é feita, atribuindo, assim, a lei, em certas condições, ao autor da acessão a propriedade da coisa.” E, analisando os pressupostos da acessão industrial imobiliária previstos no art.º 1340.º n.º 1 do Código Civil (que um terceiro construa obra em terreno alheio e que haja boa-fé), entendeu-se que não estavam preenchidos na espécie em causa: por um lado, o cônjuge não pode ser considerado um estranho em relação à coisa e a acessão não se aplica à comparticipação do proprietário da coisa; por outro lado, não pode ocorrer boa fé, que consiste na ignorância de se estar a atuar em coisa alheia (n.º 4 do art.º 1340.º do Código Civil). E, quanto a autorização da incorporação, prevista na parte final do n.º 4 do art.º 1340.º, ela não faz sentido na espécie, pois o cônjuge, proprietário da coisa, não se demite ou renuncia aos seus direitos sobre a coisa. Por conseguinte, considerou-se que no caso se estava perante benfeitoria e não acessão. Pelo que a construção, efetuada em terreno bem próprio da mulher, seria propriedade exclusiva do cônjuge mulher. Esta forma de considerar a questão foi criticada por Rita Lobo Xavier, no artigo “Das relações entre o direito comum e o direito matrimonial – a propósito de atribuições patrimoniais entre cônjuges”, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, volume I, Coimbra Editora, 2004, pág. 487 e seguintes. Por um lado, quanto à tentativa de analisar o fenómeno por via da acessão, a autora evidenciou as dificuldades já denotadas pela abordagem à luz do direito comum. Por outro lado, quanto às benfeitorias, para além de considerar como pouco rigorosa a qualificação de uma casa, construída num terreno, como benfeitoria, que a lei qualifica de simples despesa feita para conservar ou melhorar a coisa (art.º 216.º n.º 1 do Código Civil), a autora salientou que tal benfeitoria, a existir, deveria integrar a comunhão, por força do art.º 1733.º n.º 2 do Código Civil (“A incomunicabilidade dos bens não abrange os respectivos frutos nem o valor das benfeitorias úteis” – regra aplicável, por maioria de razão, ao regime de comunhão de adquiridos). Uma vez qualificada de benfeitoria, a casa não poderia, pois, ser qualificada de bem próprio do cônjuge proprietário do terreno. Isto exposto, a autora propôs que o tratamento jurídico destas situações fosse efetuado no âmbito do direito matrimonial. Assim, a construção da casa integrar-se-ia na previsão do art.º 1724.º do Código Civil, que integra na comunhão “[o]s bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados por lei”. A construção da casa efetuada pelo casal na pendência do matrimónio, com os recursos comuns do casal, constituiria um “ganho” “alcançado”, um bem que lhes “adveio” na pendência do matrimónio, integrando a comunhão nos termos do art.º 1724.º do Código Civil. E, atendendo à particularidade de a construção ser efetuada em terreno próprio de um dos cônjuges, poderá e deverá (segundo Rita Lobo Xavier) aplicar-se o disposto no n.º 1 do art.º 1726.º do Código Civil. Este artigo, sob a epígrafe “Bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios e noutra parte com dinheiro ou bens comuns”, estipula, no n.º 1, que “Os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações”. A casa, composta pela construção e o terreno onde está implantada, foi obtida mediante o contributo de ambos os membros do casal, parte com um bem próprio (o terreno) e o restante com dinheiro comum. Assim, por aplicação do n.º 1 do art.º 1726.º, a casa seria bem comum ou bem próprio do cônjuge titular do terreno, consoante a mais valiosa das duas prestações. Esta solução é, segundo defende Rita Lobo Xavier, aquela que melhor corresponde às expectativas dos cônjuges e à “natural e espontânea interpenetração de patrimónios que ocorre durante a vida conjugal” (artigo citado, páginas 494 e 495). Da deslocação patrimonial assim efetuada nascerá o direito à compensação previsto no n.º 2 do art.º 1726.º do Código Civil, isto é, a “compensação devida pelo património comum aos patrimónios próprios dos cônjuges, ou por estes àquele, no momento da dissolução e partilha da comunhão”. Subsidiariamente à aplicação do artigo 1726.º do Código Civil, Rita Lobo Xavier propõe uma “acomodação” do regime comum, isto é, a aplicação do art.º 1340.º do Código Civil à situação em análise, “acedendo” o património comum no direito de propriedade sobre o terreno, consoante a relação entre o valor do terreno e o valor das quantias empregues na construção da casa. A deslocação patrimonial daí decorrente daria origem a compensação entre os patrimónios, nos termos do princípio geral da compensação entre os patrimónios que vigora no direito matrimonial (Rita Lobo Xavier, artigo citado, páginas 498 a 500). Na doutrina, esta tese teve o aplauso de Rossana Martingo Cruz (União de facto versus casamento, Coimbra, Gestlegal, 2019, pp. 472-474, nota 1388 – atualmente, na 2.ª edição, revista e atualizada, 2023, pp. 508-510, nota 1399) e foi também defendida por Cristina Araújo Dias, em “Da acessão no âmbito da titularidade dos bens no regime da comunhão de adquiridos: bens adquiridos por virtude da titularidade de bens próprios”, in Estudos em Comemoração do 10.º aniversário da Licenciatura em Direito da Universidade do Minho, 2004, pp. 229-249. Parte da jurisprudência, sobretudo ao nível das Relações, mas também do Supremo Tribunal de Justiça, tem seguido a orientação proposta por Rita Lobo Xavier, aplicando a situações idênticas à destes autos o regime previsto no art.º 1726.º do Código Civil. É o caso dos acórdãos (por ordem cronológica) da Relação de Évora, de 25.3.2010, processo n.º 454/05.9TBFAR.E1; do STJ, 25.11.2010, processo n.º 2737/07.4TBCSC-D.L1.S1; da Relação do Porto, 28.5.2013, processo n.º 3255/08.9TJVNF-B.P1; da Relação de Guimarães, 09.02.2017, processo n.º 162/10.9TBAVV.G1; da Relação de Coimbra, de 12.10.2020, processo n.º 2124/15.0T8LRA.C1; da Relação de Guimarães, 30.6.2022, processo n.º 32/22.8T8BRG-A.G1; da Relação do Porto, 10.10.2022, processo n.º 1042/18.5T8AVR-E.P1; do STJ, 13.10.2022, processo n.º 32/22.8T8BRG-A.G1.S1. Porém, é também significativa a jurisprudência que rejeita, a casos como o sub judice, a aplicação daquele dispositivo legal (aplicação do art.º 1726.º do Código Civil). Nesses casos, a jurisprudência envereda, maioritariamente, por solução que passa pela qualificação, como benfeitorias úteis, das construções efetuadas pelo casal em terreno próprio de um dos cônjuges. Daí advém que as construções serão consideradas como pertencentes ao património próprio do cônjuge titular do terreno, cabendo ao património comum um crédito sobre o património próprio desse cônjuge, respeitante ao valor da construção. É o caso dos acórdãos (por ordem cronológica) da Relação de Coimbra, de 23.10.2012, processo n.º 1058/09.2TBTMR-A.C1; da Relação de Coimbra, de 13.5.2014, processo n.º 1068/08.7TBTMR-B.C1; da Relação de Guimarães, 26.01.2017, processo n.º 954/15.2T8VLR.G2; do STJ, de 30.4.2019, processo n.º 5967/17.7T8CBR.S1; do STJ, de 06.5.2021, processo n.º 2124/15.0T8LRA.C1.S1; do STJ, 29.11.2022, processo n.º 1530/20.3T8VNF.G1.S1; da Relação de Coimbra, 12.7.2023, processo n.º 155/23.6T8CBR.C1; da Relação de Évora, de 11.4.2024, processo n.º 1077/20.8T8STR-A.E1. Qual o caminho a seguir? Com o devido respeito por quem tem entendimento diverso, julga-se que é de rejeitar a aplicação, às situações como a descrita nos autos, do disposto no art.º 1726.º do Código Civil. Esta norma tem em vista a aquisição onerosa de bens pelo casal, na pendência do matrimónio. Isto é, está em causa a aquisição de bens a terceiros, mediante o pagamento, pelos cônjuges, com bens ou dinheiro próprio de um dos cônjuges e bens ou dinheiro comum do casal. O art.º 1726.º visa afastar o resultado paradoxal a que se chegaria se se aplicasse a regra da sub-rogação aos casos em que um bem fosse adquirido pelo casal com recurso simultâneo a bens próprios e bens comuns: o bem seria parcialmente comum e parcialmente próprio – o que repugnaria ao princípio da especialização ou individualização dos direitos reais. Essa é uma realidade diversa da construção de um edifício num terreno próprio de um dos cônjuges. Não se descortina, na letra e na teleologia do preceito, o intuito e a vocação para a definição do estatuto jurídico da realidade constituída pela adjunção/incorporação, na pendência do matrimónio, pelos cônjuges, de coisas ou materiais, provenientes do exterior da esfera matrimonial, a coisas já nela integradas, nomeadamente a título de bens próprios. A aplicação, ao caso em espécie, do art.º 1726.º, poderia acarretar a alteração da natureza do terreno, que de bem próprio passaria a integrar a massa dos bens comuns – colidindo com o princípio da imutabilidade do regime de bens (art.º 1714.º do Código Civil). Dito de outro modo, o cônjuge deve estar livre da possibilidade de, na sequência das vicissitudes próprias da vivência familiar, um bem que integrava o seu património exclusivo (in casu, o terreno que lhe foi doado), mudar de estatuto, podendo, no final da liquidação do património matrimonial, acabar no seio do património do outro ex-cônjuge, na sequência de licitações admissíveis sobre bens supervenientemente qualificados de comuns. Tal risco é tanto mais relevante quanto o matrimónio é, cada vez mais, uma relação jurídica perene. A aplicação do art.º 1726.º operaria como uma forma encapotada de acessão industrial (in casu, na modalidade, porventura, de acessão industrial imobiliária invertida, prevista no art.º 1340.º n.º 1 do Código Civil) figura que não deve atuar no seio da instituição matrimonial, entre os cônjuges. Reproduzindo o exposto no acórdão do STJ, de 16.02.2016, processo n.º 3036/11.2TBVCT.G1.S1 (não publicado nas bases de dados acedíveis via internet), dir-se-á que um cônjuge “deve poder anuir na aplicação de bens comuns, por exemplo, para a conservação ou para a ampliação de um prédio próprio que seja, por hipótese, a casa de morada de família, sem se expor ao risco de assim perder a propriedade exclusiva do bem, deixando o mesmo de ser próprio (o que seria reintroduzir por esta via algo muito próximo nos seus resultados da acessão industrial).” Faz sentido relembrar aqui, por aplicável, a razão que explica que a usucapião não corra entre os cônjuges. “Se o casamento implica uma plena comunhão de vida, cada um dos cônjuges deve poder consentir que o outro utilize os bens do primeiro (e até que os utilize exclusivamente) sem ter que contar com a possibilidade de por isso vir a perder a propriedade dos referidos bens. Acresce que a preservação do casamento deve implicar a desnecessidade de acções judiciais entre cônjuges na constância do mesmo para impedir que um cônjuge acabe por apropriar-se de bens do outro, seja por usucapião, seja por acessão” (citámos o STJ, mencionado acórdão de 16.02.2016, processo n.º 3036/11.2TBVCT.G1.S1). Rejeitada a aplicação ao caso sub judice do disposto no art.º 1726.º do Código Civil, haverá que definir o pertinente enquadramento jurídico. No desenho da solução, a jurisprudência tem-se apoiado na destrinça entre acessão e benfeitoria. Conforme se sintetizou no acórdão do STJ de 29.11.2022, processo n.º 1530/20.3T8VNF.G1.S1, “[n]o Código Civil de 1966, perfilaram-se dois critérios de distinção entre as benfeitorias e acessão - o subjectivo e o objectivo. Para o “critério subjectivo”, a distinção arranca da existência ou inexistência de uma relação jurídica que vincule a pessoa à coisa beneficiada, e daí que a benfeitoria consista num melhoramento feito por quem está ligado à coisa em consequência de uma relação ou vínculo jurídico, ao passo que a acessão é um fenómeno que vem do exterior, de um terceiro que não tem qualquer contacto jurídico com a coisa. Assim, são benfeitorias os melhoramentos feitos na coisa pelo proprietário, pelo possuidor, pelo locatário, comodatário, usufrutuário, e acessão os melhoramentos realizados por um terceiro, não ligado juridicamente, podendo ser um simples detentor ocasional ( P. Lima/A.Varela , Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., pág.163 ). Segundo o “critério objectivo”, a distinção funda-se na finalidade e no regime de ambos os institutos, sendo a benfeitoria uma despesa para a conservação ou o melhoramento da coisa, que não é alterada na sua substância, e que dá lugar a um direito de levantamento ou um direito de crédito contra o dono da coisa benfeitorizada, pressupondo a acessão a união e incorporação de uma coisa com outra pertencente a proprietário diverso, atribuindo a lei, em determinadas condições, ao autor da acessão o direito de propriedade. Assim, a distinção é objectiva, por ser independente da posição jurídica da pessoa que faz a obra, mas antes da natureza desta, havendo acessão quando se trate de construção nova e benfeitoria se é melhorada uma já existente ( cf, Vaz Serra, RLJ ano 108, pág.266)”. E também, conforme se expendeu no recentíssimo acórdão do STJ de 13.3.2025, processo n.º 3018/14.2TBVFX.L2.S1: “Convém começar por referir, recorrendo à análise de Júlio Gomes (anotação ao artigo 1340.º, in Comentário ao Código Civil – Direito das Coisas, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2021, pág. 227) que,“[n]o passado (cfr. Ac. STJ 04.04.1995 (86096), BMJ, 446 (1995), pp. 245 e ss.) imperou entre nós o entendimento, dominante ainda em França, de que a construção tinha de ser uma nova construção diretamente implantada no terreno e não uma mera reparação ou ampliação de outra já existente, não podendo resumir-se, por exemplo, a acrescentar um andar a um edifício já existente posição que, aliás, ainda é defendida por doutrina importante a nível nacional (Quirino Soares, 2005, 3). Mas a partir do Ac. do STJ 17.03.1998, RLJ, ano 132.º, n.ºs 3905 e 3906, entende-se que «verifica-se o direito de acessão industrial imobiliária quando as obras realizadas se incorporam em prédio urbano alheio e não tão-somente em prédio rústico, como parece resultar do dispositivo legal». Para tanto adotou-se uma interpretação extensiva da norma, atendendo à sua ratio que identificou como sendo o «carácter inovador ou transformador das obras realizadas em prédio alheio, não havendo qualquer motivo para distinguir se elas foram efetuadas em prédio rústico e urbano».”. Uma das principais consequências deste entendimento ampliado foi assim sublinhado pelo mesmo autor: “Tornou-se, assim, mais delicada a distinção entre benfeitorias e as obras que podem conduzir à acessão. Para alguns a benfeitoria consiste «num melhoramento feito por quem está ligado à coisa em consequência de uma relação ou vínculo jurídico, ao passo que a acessão é um fenómeno que vem do exterior, de um estranho, de uma pessoa que não tem contacto jurídico com ela» ([Quirino] Soares, 1996: 15; Ac. RE 07.10.2009 (161/2000.E1). Seriam, assim, benfeitorias os melhoramentos feitos na coisa pelo locatário, comodatário ou usufrutuário. Esta posição esbarra, desde logo, e como já tivemos ocasião de escrever (…) na circunstância de que, ao menos frequentemente quando não em regra, quem constrói (semeia ou planta) em terreno alheio será o possuidor do mesmo e dificilmente se poderá dizer que o possuidor é juridicamente um estranho relativamente à coisa possuída. Para outros, a distinção deve encontrar-se, antes, no escopo da despesa: nas benfeitorias faz-se uma despesa para conservar ou melhorar uma coisa e não para a transformar ([Armando] Triunfante, 2029: 221; Ac. RP 04.03.1997 (9620910); Ac. RE 25.01.2007 (2157/06-2). Pela nossa parte, aderimos ao entendimento de [Menezes] Cordeiro, 1979: 514, quando afirma que «os conceitos de benfeitoria e de acessão são distintos», embora apresentem «uma zona comum que só se pode distinguir por uma diferença de perspetiva». Benfeitorias e acessão estiveram historicamente ligadas, mas são conceitos que respondem a questões jurídicas distintas e como afirmou [Vaz] Serra, 266, «o critério distintivo deve fundar-se na finalidade e no regime de ambas as figuras». Nas benfeitorias está em jogo, em primeira linha, evitar o dano do seu autor através da indemnização e do ius tollendi (ainda que a reparação desse dano possa ser limitada), ao passo que na acessão está em causa, em primeira linha, a aquisição da propriedade.” (anotação ao artigo 1340.º, cit., pág. 227)”. Para os defensores do acima citado (acórdão do STJ de 29.11.2022) “critério subjetivo” (em especial, Pires de Lima e Antunes Varela), benfeitoria e acessão apresentam objetivamente caracteres idênticos. Em ambas há sempre um benefício material para a coisa. O que as distingue é, como supratranscrito, a existência (benfeitoria) ou inexistência (acessão) de ligação jurídica entre o autor do benefício e a coisa. O “critério objetivo” arranca da visão apresentada por Manuel Rodrigues: “Das benfeitorias distingue-se a acessão. Nesta há, como nas benfeitorias, a valorização do objecto possuído, mas os actos de acessão distinguem-se daquelas, porque alteram a substância do objecto da posse, porque inovam” (A posse: Estudo de Direito Civil Português, Almedina, 2.ª edição, pág. 362). Na corrente objetivista se integra Vaz Serra (e, de certa forma em linha com Vaz Serra, cremos, Júlio Gomes e Menezes Cordeiro, citados no acórdão do STJ de 13.3.2025, supra mencionado), para quem o critério distintivo de acessão e benfeitoria deve fundar-se na finalidade e no regime jurídico de ambas as figuras. No caso de simples benfeitorias, a lei atribui ao autor delas um direito de levantamento (jus tollendi) ou um direito de crédito contra o dono da coisa benfeitorizada (art.º 1273.º do Código Civil). O autor da benfeitoria não adquire a propriedade sobre a coisa beneficiada, “pois a benfeitoria não se destina senão a conservar ou melhorar a coisa” (Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 35554, ano 108.º, pág. 266). No caso de acessão, “diversamente, não se trata apenas de conservar ou melhorar uma coisa de outrem, mas de construir uma coisa nova, mediante alteração da substância daquele em que a obra, etc., é feita, atribuindo assim, a lei, em certas condições, ao autor da acessão, a propriedade da coisa” (RLJ, local supracitado). Para Vaz Serra, as definições de benfeitorias e de acessão, constantes, respetivamente, nos artigos 216.º e 1325.º do Código Civil “mostram que a benfeitoria é uma despesa feita para a conservação ou o melhoramento da coisa, que, assim, não é alterada na sua substância, ao passo que a acessão supõe a união e incorporação de uma coisa com outra pertencente a proprietário diverso” (RLJ, local supracitado). De todo o modo, Vaz Serra admite que, sendo este o critério geral de distinção entre as duas figuras, não está excluído “que para determinados efeitos e casos, a lei se afaste dessa directiva, pois pode ela, ao aludir a benfeitoria ou acessão relativamente aos institutos em que elas podem existir, orientar-se por algum critério diferente” (RLJ, local citado supra). E, anota Vaz Serra, “Também da convenção das partes, pode derivar um especial critério de determinação de benfeitorias, podendo as partes considerar como tais obras que, segundo o critério legal, o não seriam” (RLJ, supracitada, páginas 266 e 267). Em situações idênticas à destes autos, a jurisprudência que rejeita a aplicação do art.º 1726.º do Código Civil qualifica, na sua maioria, a construção efetuada conjuntamente pelos cônjuges sobre terreno próprio de um deles, não, diretamente, com base num critério dogmático de distinção entre acessão e benfeitoria, mas por exclusão de partes: afastada a possibilidade de se qualificar a situação como acessão, então aplicar-se-á o regime da benfeitoria (vide os acórdãos do STJ de 30.4.2019, processo n.º 5967/17.7T8CBR.S1; de 06.5.2021, processo n.º 2124/15.0T8LRA.C1.S1; de 29.11.2022, processo n.º 1530/20.3T8VNF.G1.S1, acima citados). Vejamos. A acessão é um dos modos legalmente previstos de aquisição do direito da propriedade (artigos 1316.º e 1317.º, alínea d), do Código Civil). Na definição legal, dá-se a acessão, “quando com a coisa que é propriedade de alguém se une e incorpora outra coisa que lhe não pertencia”. A acessão diz-se natural, quando resulta exclusivamente das forças da natureza (n.º 1 do art.º 1326.º do CC). Dá-se a acessão industrial “quando, por facto do homem, se confundem objectos pertencentes a diversos donos, ou quando alguém aplica o trabalho próprio a matéria pertencente a outrem, confundindo o resultado desse trabalho com propriedade alheia” (n.º 1 do art.º 1326.º do CC). A acessão industrial é mobiliária ou imobiliária, conforme a natureza das coisas envolvidas (n.º 2 do art.º 1326.º). Passando à acessão industrial imobiliária, que interessa ao nosso caso, no art.º 1339.º, sob a epígrafe “Obras, sementeiras ou plantações com materiais alheios”, estipula-se que: “Aquele que em terreno seu construir obra ou fizer sementeira ou plantação com materiais, sementes ou plantas alheias adquire os materiais, sementes ou plantas que utilizou, pagando o respectivo valor, além da indemnização a que haja lugar”. Vigora, aqui, o princípio superficies solo cedit “em toda a sua plenitude” (José Alberto C. Vieira, Direitos Reais, Coimbra Editora, 2008, pág. 696). Haja boa ou má fé por parte do interventor (que é o proprietário do terreno), este adquire a propriedade do que, por sua iniciativa, incorporou no terreno, ressalvando-se o direito do terceiro, proprietário do que foi unido ao solo, a ser pago pelo valor das coisas que perdeu e a ser indemnizado, nos termos gerais, se for o caso, pela violação do seu direito de propriedade sobre aquelas. Já o art.º 1340.º, sob a epígrafe “Obras, sementeiras ou plantações feitas de boa fé em terreno alheio”, estipula que: “1. Se alguém, de boa fé, construir obra em terreno alheio, ou nele fizer sementeira ou plantação, e o valor que as obras, sementeiras ou plantações tiverem trazido à totalidade do prédio for maior do que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras, sementeiras ou plantações. 2. Se o valor acrescentado for igual, haverá licitação entre o antigo dono e o autor da incorporação, pela forma estabelecida no nº 2 do artigo 1333º. 3. Se o valor acrescentado for menor, as obras, sementeiras ou plantações pertencem ao dono do terreno, com obrigação de indemnizar o autor delas do valor que tinham ao tempo da incorporação. 4. Entende-se que houve boa fé, se o autor da obra, sementeira ou plantação desconhecia que o terreno era alheio, ou se foi autorizada a incorporação pelo dono do terreno”. Aqui, se o interventor agir de boa fé e o valor acrescentado ao terreno alheio for superior àquele que o terreno tinha antes da incorporação, o autor da incorporação adquire a propriedade do terreno. Neste caso, ocorre derrogação ao princípio superficies solo cedit, produzindo-se aquilo que a doutrina designa de acessão invertida, isto é: uma acessão que, em vez de funcionar a favor do dono do solo, opera em prol do interventor (António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, XIV, Direitos Reais, 2.ª parte, 2023, Almedina, páginas 371 e 372). Nesta modalidade de acessão, entende-se que houve boa fé, se o autor da obra (ou da sementeira ou plantação) “desconhecia que o terreno era alheio, ou se foi autorizada a incorporação pelo dono do terreno” (n.º 4 do art.º 1340.º do CC). Conforme exposto supra, não suscita controvérsia a inaplicabilidade do regime da acessão industrial imobiliária à edificação, pelos cônjuges, de construção em terreno que seja bem próprio de um deles. Com efeito, não existe, neste caso, entre o interventor e o titular do terreno a relação de estraneidade que caracteriza a acessão: aqui, o dono do terreno é um dos interventores. Dito de outro modo, falta o carácter alheio dos materiais ou bens aplicados na edificação da casa, pois que os mesmos, sendo comuns, advêm também do proprietário do terreno. Por outro lado, o cônjuge não proprietário do terreno não ignorava que este não lhe pertencia e, quanto à autorização para a incorporação, também não fará sentido presumir que o cônjuge proprietário do terreno se demitiu dos seus direitos sobre este. Porém, a não aplicação do art.º 1340.º, isto é, do regime da acessão industrial imobiliária, não implica que se qualifique a construção sub judice como benfeitoria. A definição legal de benfeitoria é assaz clara: “Artigo 216º Benfeitorias 1. Consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa. 2. As benfeitorias são necessárias, úteis ou voluptuárias. 3. São benfeitorias necessárias as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa; úteis as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor; voluptuárias as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante”. Ressalta, no texto legal, a noção objetiva de benfeitoria apontada por Manuel Rodrigues e destacada por Vaz Serra. Assim, inexistindo, como não existe, norma legal ou contratual que imponha o arredamento do critério distintivo objetivo supramencionado, crê-se que a edificação de uma moradia, com bens ou dinheiro comuns, por um casal unido em regime de comunhão de adquiridos, num terreno que é bem próprio de um dos cônjuges, não constitui uma benfeitoria: mais do que constituir a melhoria de uma coisa, consubstancia a criação de uma coisa nova (neste sentido, para além dos acórdãos, supracitados, que defendem a aplicação, a estas situações, do disposto no art.º 1726.º do Código Civil, o já acima mencionado acórdão do STJ, de 16.02.2016, processo n.º 3036/11.2TBVCT.G1.S1, não publicado). Não sendo a edificação uma benfeitoria, nem sendo aplicável a regra da acessão prevista no art.º 1340.º do Código Civil, prevalecerá, isto é, atuará diretamente o princípio, dos direitos reais, maxime no que concerne ao direito da propriedade, da especialização ou individualização. O direito real incide sobre coisas únicas e individualizadas (José Alberto Vieira, Direitos Reais, ob. citada, páginas 216 a 225). Em princípio, o direito real não incide apenas sobre partes de uma coisa, mas sobre a totalidade desta, dotada de autonomia (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direitos Reais, 2022, 10.ª edição, Almedina, páginas 24 a 26 – aqui mencionando, este autor, o subprincípio da autonomização ou da totalidade). É o que decorre de norma como a contida no artigo 408.º n.º 2, parte final, do Código Civil (“Se a transferência [de direito real sobre coisa determinada] respeitar a coisa futura ou indeterminada, o direito transfere-se quando a coisa for adquirida pelo alienante ou determinada com conhecimento de ambas as partes, sem prejuízo do disposto em matéria de obrigações genéricas e do contrato de empreitada; se, porém, respeitar a frutos naturais ou a partes componentes ou integrantes, a transferência só se verifica no momento da colheita ou separação”). E também nesse sentido operam a acessão e o regime das benfeitorias. É sabido que em certos casos se podem constituir direitos reais autónomos sobre partes de coisa, como na propriedade horizontal, que incide sobre frações autónomas de um prédio (art.º 1414.º do Código Civil) ou no direito de superfície, em que alguém é titular de um implante em prédio alheio (art.º 1524.º do Código Civil). Pode igualmente constituir-se hipotecas separadas das partes do prédio suscetíveis de propriedade autónoma (art.º 688.º, n.º 2, do Código Civil). Nesses casos, no entanto, o legislador autonomiza essas partes como objeto autónomo do direito real, o que não afeta a solução geral de o direito real ter de abranger a totalidade (Luís Menezes Leitão, obra citada, nota 33, pág. 24). Isto é, estas situações particulares, especialmente admitidas pelo legislador, não obnubilam que a regra da totalidade é uma característica tendencial, natural, quanto ao âmbito objetivo dos direitos reais (cfr. Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de direitos reais, 5.ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2007, 5.ª edição revista e remodelada, páginas 57 a 59). Por força deste princípio, na falta de norma legal que a tal obsta ou que determine solução contrária, no caso sub judice o direito de propriedade sobre o terreno passa também a incidir sobre a obra nele edificada, ou seja, o direito de propriedade (do cônjuge titular do terreno) abrange a totalidade da coisa nova criada. Tal solução harmoniza-se com o disposto na parte final da alínea b) do art.º 1724.º e no art.º 1728.º n.º 1 e n.º 2 alínea a) do Código Civil. A incorporação de uma edificação (casa de morada de família), operada pelo esforço conjunto dos cônjuges, num terreno pertencente (bem próprio) a um dos cônjuges, não podendo dar origem à acessão invertida prevista no art.º 1340.º do Código Civil, desde logo por falta dos necessários elementos de estraneidade e de boa fé, reveste a natureza do terreno alvo da união/incorporação, isto é, o todo constituirá bem próprio do cônjuge dono do terreno, sem prejuízo da compensação devida ao património comum. Com efeito, dissolvido o matrimónio, aquando da partilha torna-se exigível o crédito do património comum sobre o património do cônjuge titular do imóvel sub judice, a título de compensação pelo valor que a construção representa no imóvel constituído. Conforme nota Luís Menezes de Leitão, “no âmbito do regime da comunhão de adquiridos, o legislador veio expressamente considerar que a existência de transferências entre os patrimónios pessoais dos cônjuges e o património comum implicam o surgimento de deveres de “compensação” (art. 1726º, n.º 2, 1727.º e 1728.º), apontando a lei como momento para o seu surgimento o da dissolução e partilha da comunhão (art.º 1726.º, n.º 2). É possível configurar estes deveres como tendo por objeto a restituição de algo que foi adquirido sem causa jurídica pelo património pessoal ou pelo património comum, e assim estabelecer a sua fundamentação no enriquecimento sem causa (art. 473º, nº 1). A existência de um regime específico para a dissolução e partilha da comunhão conjugal torna, porém, desnecessária a aplicação do seu regime” (O enriquecimento sem causa no direito civil, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal n.º 176, Lisboa, 1996, páginas 513 e 514). De normas como as contidas nos artigos 1726.º, n.º 2, 1697.º, 1722.º n.º 2, 1728.º n.º 1 e 1689.º do Código Civil é possível deduzir, como refere Rita Lobo Xavier, “um princípio geral que obriga às compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges e entre estes e o património comum, sempre que um deles, no final do regime, se encontre enriquecido em detrimento de outro” (Limites à autonomia privada na disciplina das relações patrimoniais entre os cônjuges, Coimbra, Almedina, 2000, pág. 395). O mecanismo das compensações visa a reintegração do equilíbrio patrimonial quebrado pelo fluxo de valores entre as massas patrimoniais existentes nos regimes de comunhão. É uma manifestação do princípio de equidade que rege as relações patrimoniais entre os cônjuges (cfr. Rita Lobo Xavier, Limites…, citado, pág. 398). De resto, a recorrente reconhece a existência de tal crédito, que relacionou como “Direito de crédito do património comum do extinto casal, sobre a ex-cônjuge AA, proveniente das obras/benfeitorias de construção da moradia atualmente descrita na Conservatória do Registo Predial da ... sob o registo nº ...72 e inscrito na matriz predial sob o artigo ...37 da União de freguesias de ..., ... e ..., com o valor patrimonial fiscal actual (CIMI) de €169.077,92, obras/benfeitorias essas realizadas por ambos, em terreno próprio da interessada AA, num valor que se atribui de € 160.000,00 (cento e sessenta mil euros)” (n.º 5 do Relatório). Quanto ao valor do crédito, atendendo à controvérsia que a esse respeito se gerou entre a requerente e o requerido (cfr. os pontos 2, 3, 5 e 6 do Relatório supra) deverá o mesmo ser apurado após avaliação a efetuar nos autos, avaliação essa cuja determinação cabe nos poderes oficiosos do tribunal (art.º 411.º do CPC) e foi decidida no acórdão recorrido. Nesta parte, pois, deverá manter-se o acórdão recorrido. Isto é, no acórdão recorrido ajuizou-se que “Há que apurar, então, qual dos contributos para a aquisição do bem em causa (terreno bem próprio da recorrida onde foi construída a moradia ou dinheiro aplicado na sua construção e manutenção, bem comum) é o mais valioso e, sendo muito díspares, os valores indicados por cada um dos interessados, «impõe-se recorrer a uma avaliação das mencionadas realidades prediais de acordo com os critérios valorimétricos habitualmente adotados nas avaliações de imóveis» para determinar se o bem é de qualificar como próprio da cabeça de casal (caso em que o recorrente terá sobre ela um crédito correspondente ao valor actual da sua contribuição) ou como bem comum, caso em que haverá lugar a «devida compensação ao património empobrecido de acordo com o regime estabelecido no art. 1689º, do Cód. Civil.»” (negritos nossos). E, em conformidade, decidiu-se, no número 1 do dispositivo do acórdão recorrido, “revogar a decisão recorrida na parte em que desatendeu a reclamação à relação de bens e ordenou que se mantivesse relacionada como benfeitoria a moradia construída na vigência do matrimónio com o contributo de ambos os cônjuges, decisão a ser substituída por outra que determine se proceda à aludida avaliação para apurar, a final, qual a mais valiosa das prestações que contribuíram para a aquisição desse imóvel e, bem assim, definir o valor da compensação que for devida ao património desfalcado” (negrito nosso). Ora, como se exarou acima, permanece o interesse e a necessidade de se proceder à produção de prova, nomeadamente pericial, tendo em vista a avaliação das duas componentes do imóvel sub judice (terreno e edificação/obra), assim se diligenciando pela fixação do valor do crédito do património comum correspondente ao valor da edificação/obra efetuada no terreno da requerente. Nestes termos, a revista merece provimento apenas parcial. No que concerne ao objeto específico da revista ampliada, deve fixar-se a seguinte jurisprudência uniformizadora: “A obra edificada (casa de morada de família) por dois cônjuges, casados no regime da comunhão de bens adquiridos, com dinheiro ou bens comuns, em terreno próprio de um deles, constitui coisa nova que é bem próprio do cônjuge titular do terreno e dá lugar a um crédito de compensação do património comum sobre o património do dono da coisa nova, com vista à reposição do equilíbrio patrimonial”. III. DECISÃO Pelo exposto, julga-se a revista parcialmente procedente e, consequentemente: 1.º Revoga-se o n.º 1 do dispositivo do acórdão recorrido e, em sua substituição, determina-se que se proceda à produção de prova, nomeadamente pericial, tendo em vista a avaliação das duas componentes do imóvel sub judice (terreno e edificação/obra), assim se diligenciando pela fixação do valor do crédito do património comum, sobre a requerente, correspondente ao valor da edificação/obra efetuada no terreno da requerente, devendo tal crédito ser relacionado em conformidade; 2.º No mais, confirma-se o acórdão recorrido; 3.º As custas da revista, na vertente de custas de parte, são a cargo da recorrente e do recorrido, na proporção do respetivo decaimento, que se fixa em 1/4 a cargo da recorrente e 3/4 a cargo do recorrido (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 533.º do CPC); 4.º Uniformiza-se a jurisprudência nos seguintes termos: “A obra edificada (casa de morada de família) por dois cônjuges, casados no regime da comunhão de bens adquiridos, com dinheiro ou bens comuns, em terreno próprio de um deles, constitui coisa nova que é bem próprio do cônjuge titular do terreno e dá lugar a um crédito de compensação do património comum sobre o património do dono da coisa nova, com vista à reposição do equilíbrio patrimonial”. Oportunamente, remeta-se certidão do acórdão para publicação na 1.ª série do Diário da República. Lisboa, 25.6.2025 Jorge Leal (Relator) Emídio Francisco Santos Nelson Borges Carneiro Luís Fernando dos Santos Correia de Mendonça Maria do Rosário Gonçalves Henrique Antunes Maria de Deus Simão da Cruz Silva Damasceno Correia Anabela Luna de Carvalho Orlando dos Santos Nascimento Cristina Tavares Coelho Rui Machado e Moura Carlos Portela Arlindo de Oliveira António Pires Robalo Maria Clara Sottomayor Maria da Graça Trigo Fátima Gomes Graça Amaral Maria Olinda Garcia Maria João Vaz Tomé – Conforme declaração anexada. António Magalhães José Maria Ferreira Lopes António Barateiro Martins Fernando Baptista de Oliveira Luís Filipe Castelo Branco do Espírito Santo Ana Paula Lobo Maria Teresa Leão Melo Albuquerque – Discordo, respeitosamente, da posição que fez vencimento por entender que a situação em causa se integra na al b) do art 1724º do CC, devendo ser-lhe aplicável o disposto no art 1726º CC, pelo que o conjunto decorrente do terreno e da construção urbana nele edificada deveria ser considerada bem próprio do cônjuge titular do terreno ou bem comum do casal, consoante o maior valor daquele, ou desta, intervindo, após, a compensação prevista no nº 2 no referido art 1726º. Maria dos Prazeres Pizarro Beleza – Vencido, junto declaração. António Oliveira Abreu (Vencido conforme declaração que junto) Nuno Manuel Pinto Oliveira (Vencido, nos termos da declaração de voto da Exmª. Senhora Conselheira Maria dos Prazeres Beleza)
_*_ Processo n.º 985/20.0t8VCD-B.P1.S1 Declaração de voto Com o devido o respeito, na senda da Senhora Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza: «Aplicaria o regime das benfeitorias (úteis) porque, em relação ao prédio, a construção de uma casa é uma benfeitoria útil. Esta solução não contraria o (tendencial) princípio da especialização ou da individualização (eu diria antes a característica da inerência dos direitos reais), nem cria uma situação de sobreposição de direitos reais (como sucede, por exemplo, com o direito de superfície ou com as servidões prediais) ou de desequilíbrio entre os ex-cônjuges. Como escrevem Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (Curso de Direito da Família, vol. I, Introdução. Direito Matrimonial, 5.ª ed., Imprensa da Universidade de Coimbra, pág. 641, a propósito da identificação dos bens comuns no regime da comunhão de adquiridos, mais especificamente, dos “Frutos e rendimentos dos bens próprios e o valor das benfeitorias úteis feitas nestes bens”, “Só se considera comum, com autonomia, o valor das benfeitorias úteis. É o caso frequente da edificação de um imóvel, durante o casamento, com dinheiro comum, num terreno próprio de um dos cônjuges”». Por seu turno, no segmento uniformizador, teria em conta que, nesta perspetiva, o prédio edificado integra o património próprio do cônjuge proprietário do terreno e o seu valor o património comum do casal. Maria João Vaz Tomé
_*_ Processo n.° 985/20.0t8VCD-B.Pl.Sl Vencida. Aplicaria o regime das benfeitorias (úteis) porque, em relação ao prédio, a construção de uma casa é uma benfeitoria útil. Esta solução não contraria o (tendencial) princípio da especialização ou da individualização (eu diria antes a característica da inerência dos direitos reais), nem cria uma situação de sobreposição de direitos reais (como sucede, por exemplo, com o direito de superfície ou com as servidões prediais) e conduz a uma compensação ao património comum, uma vez que o valor das benfeitorias úteis é um bem comum. Como escrevem Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (Curso de Direito da Família, vol I, Introdução. Direito Matrimonial, 5.a ed,s Imprensa da Universidade de Coimbra, pág. 641, a propósito da identificação dos bens comuns no regime da comunhão de adquiridos, mais especificamente, dos "Frutos e rendimentos dos bens próprios e o valor das benfeitorias úteis feitas nestes bens", "Só se considera comum, com autonomia, o valor das benfeitorias úteis. É o caso frequente da edificação de um imóvel, durante o casamento, com dinheiro comum, num terreno próprio de um dos cônjuges". Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
_*_ Processo n.º 985/20.0T8VCD-B.P1.S1 (Julgamento ampliado de revista) Voto de vencido - Juiz Conselheiro Oliveira Abreu
1. O caso trazido a Juízo encerra uma situação em que sobre um terreno próprio de um dos cônjuges é construído, conjuntamente pelo casal, um edifício, a casa de morada de família, sendo o regime matrimonial o de comunhão de adquiridos, importando saber qual o regime jurídico atinente à relação de bens, no caso de inventário subsequente ao divórcio. 2. Contrariamente à solução acolhida, entendo que a situação descrita nos autos é subsumível à previsão dos artºs. 1724ºe 1726º, ambos do Código Civil. 3. Entendo, por um lado, que o regime jurídico aplicável à construção do ajuizado prédio não poderá ser encontrado ao abrigo do instituto das benfeitorias, na medida em que, desde logo, não está demonstrado nos autos terem sido realizados trabalhos no terreno, bem próprio do ex-cônjuge, com vista a conservá-lo ou melhorá-lo. O que está em causa nos autos é, nada mais que uma construção de uma moradia sobre um prédio composto por lote de terreno destinado à construção, que importa inovação, de tal modo que altera substancialmente o prédio onde se edifica, provocando, assim, sublinhamos, uma alteração substancial e jurídica deste, mediante a incorporação nele da moradia que nele foi erigida, passando a constituir (lote de terreno e moradia) um todo uno e indivisível, dando origem a uma coisa nova, a uma nova realidade material e jurídica, constituindo um prédio urbano, o que não pode ser confundido com benfeitoria, conforme este instituto é concetualizado. Ademais, poder-se-ia considerar para a solução do caso em apreço, os títulos de aquisição do direito de propriedade, concretamente, a acessão industrial, enquanto causa de aquisição originária retroativa do direito de propriedade sobre determinada coisa, compreendendo na sua noção legal o conceito de incorporação de uma coisa da titularidade de uma pessoa, numa outra coisa da titularidade de outra, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1316º, 1317º al. d), 1325º e 1326º, todos do Código Civil, e respetivos requisitos substantivos cumulativos: a) a incorporação da construção em terreno alheio; b) com materiais pertencentes ao seu autor; c) de boa fé; d) e que o valor trazido pelas obras ao prédio seja maior do que o valor que este tinha antes - art.º 1340º Código Civil - . Todavia, também entendemos que não será este o regime jurídico aplicável ao caso trazido a Juízo, na medida em que não se poderá reconhecer o ex-cônjuge um estranho relativamente ao terreno onde foi construído o prédio urbano, uma vez que, tendo a construção sido realizada por ambos os cônjuges, não era, dada a sua relação matrimonial, um terceiro em relação ao prédio, o que necessariamente, e sem outros considerando, torna inverificados os pressupostos da acessão, sublinhando-se a ausência da boa-fé, dai que não possamos falar de acessão industrial imobiliária, enquanto título de aquisição do direito de propriedade, traduzindo uma derrogação do princípio geral consagrado na expressão latina, “superficies solo cedit”. 4. Sustentamos, então, como já adiantamos, que o regime jurídico aplicável para encontrar a solução do caso passaria pela subsunção ao regime matrimonial do casamento do extinto casal. 5. Na verdade, acentuamos, o que está em causa nos autos é nada mais que uma construção de uma moradia sobre um prédio que importa inovação, de tal modo que altera substancialmente o prédio onde se edifica, provocando, assim, uma alteração substancial e jurídica deste, mediante a incorporação nele da moradia que nele foi erigida, passando a constituir (lote de terreno e moradia) um todo uno e indivisível, dando origem a uma coisa nova, a uma nova realidade material e jurídica, constituindo um prédio urbano. 6. O regime jurídico aplicável à construção de uma moradia, edificada a expensas dos cônjuges, entretanto divorciados, sobre um prédio composto por lote de terreno destinado à construção, bem próprio de um dos ex-cônjuges, decorre do regime matrimonial do casamento do extinto casal, sem deixar de salvaguardar que estamos perante duas pessoas que foram casadas entre si e que, nessa medida, a relação matrimonial influencia a generalidade das relações obrigacionais ou reais de que os cônjuges são ou foram titulares, daí resultando um regime diferente daquele que decorrerá da aplicação isolada do direito comum. 7. O espírito do sistema da comunhão de adquiridos é o de que ingressam no património comum todos os ganhos alcançados pelos cônjuges durante o casamento que não sejam excetuados por lei, donde, sempre que os cônjuges, na constância do matrimónio, contraído no regime da comunhão de adquiridos, construam uma casa sobre um terreno que apenas é propriedade de um deles, momento em que o terreno deixou de ter individualidade própria, passando a ser um prédio urbano, impõe-se reconhecer que se a moradia mandada edificar pelos cônjuges for a parte mais valiosa comparativamente com o valor do terreno, esse prédio é bem comum de ambos os cônjuges, ficando sempre salvaguarda a compensação devida pelo património comum ao cônjuge proprietário do terreno, no momento da dissolução e partilha da comunhão. 8. Assim, demonstrado que a parte mais valiosa é a despendida por ambos os ex-cônjuges na construção da moradia, durante a constância do casamento celebrado no regime da comunhão de adquiridos, mediante a utilização de meios financeiros de ambos, impõe-se reconhecer que o prédio urbano é bem comum do extinto casal, e, como tal, importa o respetivo relacionamento pelo cabeça de casal a fim de ser partilhado - art.º 1726º n.º 1 do Código Civil - porém, o património conjugal a partilhar terá de compensar o ex-cônjuge pelo valor atual do prédio composto pela parcela de terreno que lhe foi doado, e onde foi implantada a construção - art.º 1726º n.º 2 do Código Civil - donde, deverá ser relacionado o valor do terreno no qual foi implanta a moradia como compensação devida pelo património conjugal ao património do ex-cônjuge. 9. Pelo exposto, não podemos deixar de manifestar que o conhecimento da questão controvertida, nos termos em que, por maioria, logrou vencimento, não merece a nossa aprovação, daí este voto de vencido. (Oliveira Abreu) |