Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B3869
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARAÚJO BARROS
Descritores: AGRAVO
ADMISSIBILIDADE
REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO
USUCAPIÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
CONFLITO DE DIREITOS
REIVINDICAÇÃO
POSSE DE BOA FÉ
Nº do Documento: SJ200412160038697
Data do Acordão: 12/16/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 2853/01
Data: 04/29/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. Sendo certo que em recurso de revista, nos termos do artigo 722º, nº 1, do C.Proc.Civil, o recorrente pode impugnar o acórdão recorrido, quer com fundamento na violação da lei substantiva, quer ainda com base em violação de lei de processo, o STJ só conhece da matéria respeitante à invocada violação da lei adjectiva se desta for admissível recurso, nos termos do nº 2 do artigo 754º do mesmo diploma.
2. A norma do nº 1 do artigo 5º do Código de Registo Predial (os factos sujeitos a registo só produzem efeitos em relação a terceiros depois da data do respectivo registo) é afastada, no que toca aos direitos referidos na al. a) do nº 1 do artigo 2º, isto é, os direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão, pelo regime excepcional do nº 2, al. a) do mesmo artigo 5º, em cujos termos a usucapião em nada é prejudicada pelas vicissitudes registrais.

3. No conflito entre direitos incompatíveis sobre a coisa, se alguém se fiou apenas na situação registral, nada pode contra a usucapião, ultima ratio na solução dos conflitos entre adquirentes de direitos reais, que o titular verdadeiro pode invocar nos termos gerais.
4. Só é de boa fé a posse de uma parte de um prédio quando o possuidor adquirente desconhecia, sem culpa, a desconformidade entre a situação registral e a situação substantiva.
5. A acção de reivindicação de propriedade, com fundamento no nº 1 do artigo 1311º do Código Civil, é integrada por dois pedidos entre si logicamente articulados: 1º - reconhecimento judicial do direito de propriedade do autor sobre a coisa reivindicada; 2º - condenação do demandado a restituí-la ao seu proprietário.
6. É uma acção que constitui a pretensão do proprietário não possuidor contra o possuidor não proprietário ou do proprietário possuidor contra o detentor, devendo, por isso, ser proposta contra quem, no momento da propositura, for possuidor ou detentor da coisa reivindicada.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A" e marido B, C e marido D e E intentaram, através de petição inicial apresentada em 26 de Junho de 2001, no Tribunal Judicial de Alcácer do Sal, acção declarativa com processo comum ordinário contra F peticionando o seguinte:
a) seja o réu condenado a reconhecer que o prédio que adquiriu e que se encontra descrito na conservatória do Registo Predial de Alcácer do Sal sob nº 1056/181095 tem somente a área de 209 hectares (pedido este já corrigido, conforme determinado no despacho de fls. 186);
b) seja o réu condenado a abrir mão e a restituir às autoras e sua mãe a faixa de terreno com a área de 53,1097 hectares que abusivamente ocupou e que detém sem qualquer título que legitime essa ocupação, e que pretende ver anexado ao seu prédio, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcácer do Sal sob o nº 1056/181095, em prejuízo do prédio das autoras e sua mãe descrito sob o nº 805/211292 da mesma Conservatória do Registo Predial;
c) seja o réu condenado a pagar às autoras e sua mãe a quantia de 27.096.000$00, acrescida de juros à taxa legal, desde a sua citação, até efectivo pagamento.
Citado, o réu não contestou.
No entanto, veio a ser proferido despacho a convidar os autores a corrigirem a sua petição inicial, nomeadamente ´"alegando factos que sustentem o pedido de restituição da coisa, ou que corrijam o pedido, por forma a que o mesmo seja conforme à matéria articulada" (fls. 102), o que estes fizeram através de petição corrigida de 26 de Dezembro de 2001 (fls. 106 a 116).
Só nessa sequência o réu veio contestar a acção.
Entretanto, foi, a convite do M.mo Juiz, requerida a intervenção principal provocada, ao lado dos autores, da mãe das autoras G, a qual foi admitida.
Por despacho de 26 de Maio de 2003 (fls. 184 a 186) foram julgados confessados, por falta de contestação, todos os factos constantes da petição inicial de 26/06/2001, e admitidos por acordo os novos (poucos) factos constantes da segunda petição inicial de 26/12/2001.
Dessa decisão interpôs o réu recurso de agravo, recebido com subida diferida (fls. 176 e 228).
Posteriormente, após alegações produzidas nos termos do art. 484º do C.Proc.Civil, foi proferida sentença, na qual, julgada a acção totalmente procedente, se condenou o réu F no seguinte:
a) reconhecer que o prédio que adquiriu e que se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcácer do Sal sob nº 1056/181095, tem somente a área de 209 hectares;
b) a abrir mão e a restituir às autoras A e marido B, C e marido, D, E e à interveniente G a faixa de terreno com a área de 53,1097 hectares que ocupou e que detém sem qualquer título que legitime essa ocupação, e que pretende ver anexado ao seu prédio, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcácer do Sal sob o nº 1056/181095, em prejuízo do prédio das primeiras, descrito sob o nº 805/211292 da mesma Conservatória;
c) a pagar às autoras e interveniente a quantia de 27.096.000$00 (135.154,28 Euros), acrescida de juros à taxa legal, desde a citação e até efectivo pagamento.
Inconformado apelou o réu, sem êxito embora, porquanto o Tribunal da Relação de Évora, em acórdão de 29 de Abril de 2004, julgou improcedentes os recursos (de agravo e de apelação) e confirmou a sentença recorrida.

Interpôs, desta feita, o réu recurso de revista, pretendendo a revogação do acórdão impugnado em conformidade com as conclusões que formulou.

Em contra-alegações sustentaram as recorridas a questão da impossibilidade de conhecimento da matéria correspondente ao agravo e defendendo, no mais, a manutenção do julgado.

Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

É, em princípio, pelo conteúdo das conclusões do recorrente que se delimitam as questões a apreciar no âmbito do recurso.
Acresce que o tribunal apenas tem que se pronunciar sobre as verdadeiras questões suscitadas, nelas não estando incluídos, como é sabido, "os argumentos ou raciocínios expostos na defesa da tese propugnada que, podendo constituir questões em sentido lógico ou científico, não integram matéria decisória para o juiz". (1)
O recorrente findou as respectivas alegações formulando (embora indicadas sob a numeração I, II, III e IV) extensas conclusões, em alguns pontos de difícil apreensão (as quais, obviamente, não vamos reproduzir) em que suscitou, no essencial, os seguintes pontos de divergência em relação ao acórdão impugnado:
1. A contestação apresentada pelo réu tem inteira validade, não podendo, em consequência, ter sido considerados como confessados os factos constantes, quer da 1ª quer da 2ª petições iniciais apresentadas pelo autor.

2. O Tribunal a quo aplicou mal o artigo 5º, n° 1, do C.R. Predial, ao considerar que a venda foi efectuada pelo réu a terceiro, por se tratar de acto sujeito a registo, só seria oponível aos autores a partir do registo respectivo, designadamente porque o registo predial não tem efeitos constitutivos mas sim de publicidade e o réu não pode ser havido como terceiro no que se encontra em discussão nos autos, à luz daquela disposição legal.

3. Ainda que se entenda que não existiu contestação nos autos os factos julgados confessados não permitiam a condenação do réu nos pedidos formulados pelos autores, porquanto este adquiriu, de boa fé, ao H um prédio com 262,1097 hectares e não um prédio com 209 hectares, não tendo celebrado qualquer negócio com as autoras.

4. O réu adquiriu do H a titularidade jurídica do prédio tal como estava delimitado por este, igualmente adquirindo a posse material e jurídica do mesmo, posse essa que sempre foi de boa fé, o que significa que o corte das árvores e o produto da sua venda estavam protegidos pela lei, por serem os frutos do possuidor de boa fé.

5. Em todo o caso, sempre as autoras perderam a posse sobre a aludida parcela de terreno, nos autos de controvertida titularidade, por força da aplicação da alínea d) do art. 1267° do Código Civil, não podendo reivindicá-la.

Mostra-se assente, no acórdão recorrido, a seguinte matéria de facto:
i) - as autoras e sua mãe, a interveniente principal G, e outra co-herdeira, I, procederam por escritura pública lavrada em 19 de Outubro de 1992, de fls. 58 a 66 do livro de notas 292-B do Cartório Notarial de Alcácer do Sal, à partilha das heranças de J e de L, respectivamente pai e avós das autoras;
ii) - por essa escritura procederam as cinco outorgantes à partilha e divisão de um prédio misto denominado "HERDADE DE MONTALVO", sito na freguesia de Santa Maria do concelho e comarca de Alcácer do Sal, com a área de 2.752,6950 hectares, composto de arrozal, cultura arvense, montado de sobro, pinhal, eucaliptal, e nove prédios urbanos;
iii) - este prédio estava descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcácer do Sal sob o nº 21, a folhas 51 verso do Livro B-1 da suprimida, e estava inscrito a favor das mesmas outorgantes pelas inscrições nº 14.376 e 14.377 de fls. 193 vº e 194 do livro G-24, achando-se inscrito na matriz cadastral sob o artigo 16-secção EE-1 a EE-8, e na matriz urbana sob os artigos 326, 329, 332 a 337 inclusive e 736;
iv) - por efeito dessa partilha e da divisão do dito prédio, foi adjudicado às autoras e à interveniente, em comum e na proporção de um quarto indiviso para cada uma, um prédio misto, denominado "MONTALVO NASCENTE", situado no lugar de Montalvo, freguesia de Santa Maria, do concelho e comarca de Alcácer do Sal, que se compõe de terra de arrozal, cultura arvense, montado de sobro, pinhal, eucaliptal, e quatro prédios urbanos, o qual tem actualmente a área de 777,1030 hectares confrontando do norte com Rio Sado e Lavra do Melo, sul com o réu (antes H) nascente com Batalha e Torrinha e poente com Montalvo Poente;
v) - o referido prédio, com a composição que acima se refere, está descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcácer do Sal sob o nº 00805/211292;
vi) - tal aquisição está inscrita a favor das autoras e interveniente pela inscrição G-1, da referida descrição nº 00805/211292;
vii) - e está inscrito na matriz urbana da mesma freguesia sob os artigos 326, 329, 332 e 736; a sua parte rústica encontra-se omissa na matriz cadastral da mesma freguesia, mas já foi pedida a sua inscrição;
viii) - o prédio referido em ii) ficou a pertencer aos referidos avó e pai das autoras, L e J desde 1958, por óbito do marido da primeira e pai do segundo, M, achando-se a respectiva aquisição inscrita a favor daqueles pela inscrição nº 7612 de folhas 165 vº do Livro G-10 da mesma Conservatória;
ix) - por sua vez, M houve a propriedade plena de tal prédio desde, pelo menos, o ano de 1929, por sucessão de seus pais, N e O, propriedade essa inscrita a seu favor pelas inscrições números 5823 de folhas 141 do Livro G-8 e 6560 de folhas 93 do Livro G-9, ambas da citada Conservatória desta comarca;
x) - foram as autoras, seus pais e seus avós que sempre administraram os referidos prédios, convencidos de não lesarem qualquer direito de terceiro;
xi) - plantaram e cuidaram da parte de pinhal e eucaliptal, faziam searas de arroz na terra de arrozal e davam de arrendamento também terra para esse fim e para pastagem de gado bovino e ovino;
xii) - quando esses arrendamentos decorriam, eram as autoras, seus pais e seus avós, que negociavam as rendas com os rendeiros e que deles as recebiam ou cobravam;
xiii) - o pai das autoras teve residência durante largos períodos de tempo na casa de habitação existente no dito prédio, e tanto os seus avós como as próprias autoras e interveniente ali habitam frequentemente e ali passam férias e fins de semana;
xiv) - foram sempre as autoras e sua mãe e todos os referidos antepossuidores que receberam e fizeram seus os rendimentos dos mencionados prédios;
xv) - sem oposição fosse de quem fosse e de modo pacífico;
xvi) - as autoras, a interveniente e os seus antepossuidores, têm sempre exercido as actividades referidas nos artigos antecedentes de modo a serem presenciados por toda a gente, há mais de cinquenta e sessenta anos, sem qualquer interrupção de solução de continuidade;
xvii) - as autoras, a interveniente, seus pais e seus avós sempre se consideraram como únicos proprietários quer da "HERDADE DE MONTALVO" quer de "MONTALVO NASCENTE" e sempre procederam em relação aos dois prédios com a intenção de exercerem, como efectivamente sempre exerceram, as faculdades em que tal consiste;
xviii) - por escritura pública de 27 de Setembro de 1995, lavrada de fls. 14 vº a 17 do livro de notas nº 300-B do Cartório Notarial de Alcácer do sal, as autoras e a interveniente venderam a H, comerciante, residente em Amor, Leiria, "um prédio rústico, composto de eucaliptal, com a área de 209 hectares, confrontando do norte com Montalvo nascente, sul com courela de Montalvo, nascente com Batalha e poente com Montalvo poente";
xix) - este prédio resultou da desanexação e divisão que na mesma escritura as autoras e interveniente fizeram da HERDADE DE MONTALVO NASCENTE, que, em consequência desta divisão e venda, ficou com as seguintes confrontações: "norte Rio Sado e Lavra do Melo, sul prédio numero dois - o vendido ao H - nascente Batalha e Torrinha e poente Montalvo Poente";
xx) - na data da outorga desta escritura, não havia quaisquer marcos que definissem a linha divisória entre o prédio "Montalvo Nascente" e o prédio rústico de 209 hectares nessa data desanexado e vendido ao referido H;
xxi) - todos os outorgantes, vendedoras e comprador, sabiam que o prédio desanexado e vendido tinha tão só a área de 209 hectares;
xxii) - tanto as autoras como a interveniente sempre estiveram no pleno convencimento de que a área cuja extrema veio a ser definida com a colocação de marcos, após a escritura, correspondia, com total exactidão, aos 209 hectares que tinham vendido a H pela escritura de 27 de Setembro de 1995;
xxiii) - para se poder proceder à escritura de divisão do prédio das autoras - Montalvo Nascente - e para dele se destacar o talho de terra que veio a ser vendido ao H, a interveniente apresentou na Repartição de Finanças de Alcácer do Sal, em 26 de Julho de 1995, requerimento que serviu de base à instauração do processo de cadastro nº 26/95;
xxiv) - para efeito dessa divisão cadastral, constituíram um novo prédio rústico, desanexado do seu prédio denominado "Montalvo Nascente", com a seguinte composição: "Prédio rústico composto por eucaliptal com a área de 209 hectares, confrontando do norte com Montalvo Nascente, Sul Courela de Montalvo, nascente com Batalha e poente com Montalvo Poente";
xxv) - a interveniente, no falado requerimento que dirigiu à Repartição de Finanças de Alcácer do Sal e que originou o referido processo 26/95, exarou a seguinte declaração: "estes prédios encontram-se já devidamente demarcados", afirmação esta que pretendia significar que os prédios resultantes da divisão já tinham a sua extrema comum definida apenas em planta, e não por marcos;
xxvi) - a dita planta, a fls. 60 dos autos, traduz com fidelidade todos os elementos materiais que se propôs representar, sendo certo que dela teve conhecimento o comprador H;
xxvii) - o comprador H fez registar a seu favor, na Conservatória do Registo Predial de Alcácer do Sal, a aquisição do novo prédio rústico, o qual ficou descrito sob o nº 01056/181095, ali se mencionando que o prédio tinha a área de 209 hectares, ficando essa descrição com o seguinte teor: "PRÉDIO RÚSTICO - Montalvo - 209 hectares - eucaliptal - norte, Montalvo Nascente; sul, Courela de Montalvo; nascente, Batalha; poente, Montalvo Poente - v.v. 905.000$00 - artigo: omisso. Desanexado do n.º 00805/211192. Emendado: "Batalha";
xxviii) - a interveniente, para instruir a escritura de venda ao H, requereu o parecer favorável, quer da Comissão de Coordenação da Região do Alentejo, quer da Direcção Regional de Agricultura do Alentejo, à divisão do prédio HERDADE MONTALVO NASCENTE, conforme documentos de fls. 65 a 70, em ambos se mencionando que o prédio desanexado e a vender ao H era com a área de 209 hectares;
xxix) - quando foram colocados os marcos, foram-no sem respeito pela planta supra referida, bem como pelas descrições prediais abertas aquando da desanexação, de modo que a parcela demarcada ficou com a área de 262.1097 hectares;
xxx) - nenhum dos outorgantes na dita escritura assistiu à colocação desses marcos, que foi feita no ano de 1996;
xxxi) - por escritura pública de 12 de Novembro de 1997, lavrada a folhas 98 e 99 do Livro 182-D do Cartório Notarial de Montemor-o-Velho, o H e mulher venderam ao réu F o prédio descrito na CRP de Alcácer do Sal sob o nº 1056/181095;
xxxii) - nessa escritura o réu F outorgou simultaneamente como comprador e vendedor, usando para o efeito procuração irrevogável a si passada pelo H e mulher no 1º Cartório Notarial de Leiria em 29 de Abril de 1997;
xxxiii) - nessa procuração o H e mulher identificaram o prédio para cuja venda conferiam poderes ao ora réu, e nela declararam expressamente que esse mandato era conferido para vender um prédio com a área de 209 hectares;
xxxiv) - o réu F, por ter verificado que no terreno a área demarcada correspondia a 262.1097 hectares, pretendeu apoderar-se em termos registrais desse terreno, que de facto ocupava e usava;
xxxv) - em Janeiro de 1999, solicitou a Q que entrasse em contacto com a interveniente, para obter uma declaração de concordância com o modo como os marcos estavam colocados;
xxxvi) - a interveniente, na convicção de que os marcos tinham sido colocados em concordância, quer com a planta supra referida, quer com a venda feita ao H, quer ainda com as descrições abertas aquando da efectivação dos actos registrais atrás referidos, manifestou o seu convencimento de que os marcos estavam correctamente colocados;
xxxvii) - em 28 de Junho de 1999, o réu F mandou P ao Instituto Português de Cartografia e Cadastro para, no processo de cadastro 26/95, que a interveniente fizera instaurar, requerer o seu prosseguimento, dispondo-se a pagar os custos inerentes;
xxxviii) - tal requerimento, apresentado em nome de "G e outros", foi assinado pelo P como se fosse por aquelas, como consta de fls. 79;
xxxix) quer as autoras, quer a interveniente, não conhecem o P ou o réu F, e muito menos os encarregou de apresentar tal requerimento;
xl) - e logo no dia seguinte o próprio réu F procedeu ao pagamento dos custos calculados pelo IPCC - Instituto Português de Cartografia e Cadastro - para a prosseguimento daquele processo de cadastro;
xli) - o IPCC, em 20 Setembro de 1999, decidiu deixar o processo sem solução, uma vez que no pedido inicial de discriminação e nas escrituras, se mencionavam 209 hectares e na medição feita pelos seus serviços, se achavam 262.1097 hectares;
xlii) - o conhecimento destes factos levaram, no princípio do ano de 2000, a que a interveniente solicitasse a um topógrafo idóneo que procedesse à verificação da área do prédio de 209 hectares que tinha sido desanexado e vendido ao H e que este por sua vez havia vendido ao ora réu F;
xliii) - então esse topógrafo verificou que realmente os marcos existentes não estavam a delimitar 209 hectares mas área superior;
xliv) - o mesmo topógrafo determinou o traçado da extrema entre os dois prédios; e nessa extrema fez colocar cinco novos marcos;
xlv) - de tudo isto foi dado conhecimento ao réu F, do mesmo modo que a interveniente enviou nova carta ao Q a desfazer a informação prestada anteriormente;
xlvi) - em meados de Abril de 2000, esses marcos que tinham sido colocados pelo topógrafo, apareceram arrancados;
xlvii) - em 18 de Abril de 2000, o réu F requereu na Repartição de Finanças de Alcácer do Sal a correcção da área do seu prédio, de 209 hectares para 229 hectares, abrindo novo processo de Cadastro a que foi atribuído o nº 8/2000, afirmando que "as confrontações encontram-se correctas";
xlviii) - na mesma data de 18 de Abril de 2000, requereu na Conservatória de Registo Predial de Alcácer do Sal, o averbamento à descrição do prédio nº 1056/181095, de que a sua área era de 229 hectares, pedido este que instruiu com o requerimento que na mesma data endereçou à Repartição de Finanças;
il) - a Conservatória do Registo Predial procedeu imediatamente ao averbamento requerido pelo réu;
l) - a Repartição de Finanças notificou o réu para apresentar em 30 dias prova da legalidade da alteração pretendida, tendo este deixado passar o prazo sem nada apresentar, pelo que o seu requerimento não obteve despacho favorável;
li) - nos 52,1097 hectares que fazem parte integrante do prédio das autoras e da interveniente, de que o réu se apossou, este vem comportando-se como se fosse proprietário, percorrendo, sempre que entende, quer ele próprio quer os seus empregados, a mencionada faixa, limpando-a de mato, desbastando as árvores, cortando-as, ou retirando os seus frutos;
lii) - o que vem fazendo ininterruptamente desde que outorgou a escritura de compra e venda até à presente data;
liii) - até princípios do ano 1998, a faixa de terreno de 52,1097 hectares aqui em questão, não teve qualquer cultura por parte das autoras nem do réu, visto tratar-se de pinhal, nem nela se fizera, até então, qualquer corte de árvores;
liv) - em meados do ano 1998, o réu cortou todas as árvores existentes no seu prédio e também os pinheiros que estavam plantadas na referida faixa de 52,1097 hectares pertencente às autoras e interveniente, dos quais se apoderou, vendendo-os a terceiros;
lv) - assim, o réu cortou de pinheiros, na faixa pertencente às autoras, 6.774 esteres, ou seja, o equivalente a 130 esteres/hectare;
lvi) - o valor comercial de cada estere de madeira de pinheiro que o réu cortou, era, em 1998, de 4.000$00/estere.
O acórdão recorrido, como se depreende dos autos (cfr. relatório supra elaborado) apreciou dois recursos interpostos pelo réu F de decisões da primeira instância:

a) - recurso de agravo do despacho de 26 de Maio de 2003 (fls. 184 a 186) em que foram julgados confessados, por falta de contestação, todos os factos constantes da petição inicial de 26/06/2001, e admitidos por acordo os novos (poucos) factos constantes da segunda petição inicial de 26/12/2001;
b) - recurso de apelação da sentença proferida a final, após alegações apresentadas pelo autor nos termos do art. 484º, nº 2, do C.Proc.Civil.
Do acórdão assim exarado interpôs aquele réu, nos termos previstos no art. 722º, nº 1, do C.Proc.Civil, um único recurso de revista, não obstante pretender - e tê-lo efectivamente feito - impugnar todo o acórdão recorrido, quer na parte em que conheceu do agravo, quer naquela em que apreciou a apelação.
Todavia, aquele art. 722º, nº 1, refere claramente que "sendo o recurso de revista pode o recorrente alegar, além da violação da lei substantiva, a violação de lei de processo, quando desta for admissível o recurso, nos termos do nº 2 do art. 754º" (sublinhado nosso).

Ora, segundo preceitua o nº 2 do mencionado art. 754º (2) "não é admitido recurso do acórdão da Relação sobre decisão da primeira instância, salvo se o acórdão estiver em oposição com outro, proferido no domínio da mesma legislação pelo Supremo Tribunal de Justiça ou por qualquer Relação e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 732º-A e 732º-B, jurisprudência com ele conforme".
Ou, agora por força do nº 3 do mesmo art. 754º, "nos casos dos agravos referidos nos números 2 e 3 do art. 678º e na alínea a) do número 1 do artigo 734º".
Deste modo, e porque a decisão concretamente impugnada pela recorrente com fundamento na violação da lei adjectiva - despacho que julgou confessados, por falta de contestação, os factos articulados pelas autoras - se não enquadra em qualquer dos preceitos dos arts. 678º, nºs 2 e 3 ou do art. 734º, nº 1, al. a), do C.Proc.Civil (3), e porque sobre ela se pronunciou a Relação, confirmando-a, não seria nunca admissível o recurso de agravo.
Consequentemente, uma vez que, in casu, o recorrente impugna esta parte do acórdão em crise com exclusivo fundamento na violação de normas de processo, não podendo esta ser invocada autonomamente já que, como vimos, o recurso de agravo não seria admissível, atento o estabelecido no art. 754º, nº 2, do C.Proc.Civil (cfr. art. 722º, nº 1), não pode este STJ conhecer - e não conhecerá - nessa parte, do objecto do recurso.
Resta, então, analisar as questões suscitadas pelo recorrente na medida em que diverge da decisão recorrida no tocante à solução de direito a que chegou aquando da análise do recurso de apelação (como é óbvio, já que não se conhece da eventual violação da lei adjectiva, a matéria de facto tida por assente é a que acima foi transcrita).
O que faremos apontando apenas, no essencial, as razões da irrazoabilidade da pretensão do recorrente, porquanto a solução do acórdão recorrido - já na sequência do entendimento da 1ª instância - se impõe naturalmente em face dos factos apurados.
Em primeiro lugar, é, além de irrelevante, inadequada a afirmação de que o acórdão recorrido aplicou mal o art. 5º, n° 1, do C.R. Predial.
Ao contrário do que afirma o recorrente (o acórdão considerou que a venda foi efectuada pelo réu a terceiro, por se tratar de acto sujeito a registo, só seria oponível aos autores a partir do registo respectivo, designadamente porque o registo predial não tem efeitos constitutivos mas sim de publicidade e o réu não pode ser havido como terceiro no que se encontra em discussão nos autos, à luz daquela disposição legal) não foi feita no acórdão em crise, por despicienda, qualquer referência a esta questão.
Mas, como é evidente, "estando provados os factos constitutivos da aquisição originária pelos autores do respectivo direito de propriedade por usucapião" (4) a norma do nº 1 do art. 5º do C. Registo Predial (os factos sujeitos a registo só produzem efeitos em relação a terceiros depois da data do respectivo registo) é afastada, no que toca aos direitos referidos na al. a) do nº 1 do art. 2º, isto é, aos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão, pelo regime excepcional do nº 2, al. a) do mesmo art. 5º, em cujos termos a usucapião em nada é prejudicada pelas vicissitudes registrais. (5)

"Eis-nos, pois, chegados a um sistema coerente, e quanto possível simples, sobre a publicidade constitutiva. No conflito entre direitos incompatíveis sobre a coisa, valem as regras substantivas; mas se alguém, a título oneroso e de boa fé, praticou um acto de aquisição porque se fiou na situação registal, passa a ter um direito que derrota o do verdadeiro titular. Nada pode porém contra a usucapião, ultima ratio na solução dos conflitos entre adquirentes de direitos reais, que o titular verdadeiro pode aqui invocar nos termos gerais". (6)

Desta forma, demonstrada pelos autores a aquisição originária de todo o prédio (aí incluída a faixa que, só por lapso, foi erradamente mencionada quanto à área alienada) óbvia é a conclusão de que a acção haveria de proceder nos precisos termos em que foi intentada.
Ademais, não é verdade, como pretende o recorrente, que tenha adquirido, de boa fé, ao H um prédio com 262,1097 hectares, tal como estava delimitado por este, e não um prédio com 209 hectares (não tendo celebrado qualquer negócio com as autoras) igualmente adquirindo a posse material e jurídica que sempre foi de boa fé.
Em primeiro lugar, como resulta da matéria de facto assente, o H, quando comprou às recorridas o prédio em causa nos autos, sabia que este tinha a área de 209 hectares, e com tal área registou a aquisição (xxi) e xxvii) da matéria de facto). Acresce que nenhum dos outorgantes na escritura (inclusive, portanto, o H) assistiu à colocação dos marcos feita em 1996 (xxix) da matéria de facto).
Depois, na procuração que aquele H e mulher outorgaram ao réu F e que permitiu a este celebrar a escritura de compra e venda de 12 de Novembro de 1997, identificaram os constituintes o prédio que iria ser objecto do contrato, indicando-lhe a área de 209 hectares (xxxi) a xxxiii) da matéria de facto).
Finalmente, só por ter verificado que no terreno a área demarcada correspondia a 262.1097 hectares, que ele efectivamente ocupava, é que o réu pretendeu apoderar-se em termos registrais desse terreno (xxxiv) da matéria de facto).
É, assim, inevitável a conclusão a que o acórdão recorrido chegou de que a posse do recorrente sobre a faixa de terreno superior à efectivamente alienada é uma posse de má fé. Com efeito, "há boa fé quando o terceiro desconhecia, sem culpa, a desconformidade entre a situação registral e a situação substantiva. Também aqui, nada há que afaste o Direito das Coisas dos princípios gerais sobre boa fé que dominam os negócios jurídicos". (7)
O que significa, ao contrário do que defende o recorrente, que o corte das árvores a que procedeu e o produto da respectiva venda não estavam tutelados pela lei, devendo, portanto, ser restituídos às autoras (pelo equivalente já que era impossível a restituição em espécie), nos precisos termos do disposto no art. 1271º do C.Civil.
Como derradeiro acréscimo às considerações expendidas (que, como dissemos não se justificava serem tão pormenorizadas) sempre diremos que é irrelevante para a decisão a proferir o facto de as autoras terem, eventualmente, perdido a posse sobre a faixa de terreno controvertida nos autos, por força da aplicação da alínea d) do art. 1267° do Código Civil.
Na verdade, encontramo-nos perante uma típica acção de reivindicação, fundamentada, além do mais, no art. 1311º do C.Civil.
Acção essa que, "consoante resulta do nº 1 do art. 1311º, é integrada por dois pedidos entre si logicamente articulados: 1º - reconhecimento judicial do direito de propriedade do autor sobre a coisa reivindicada; 2º - condenação do demandado a restituí-la ao seu proprietário. (...) E que, como o mesmo preceito torna bem claro, "deve ser proposta contra quem, no momento da propositura, for possuidor ou detentor da coisa reivindicada; nem de outro modo teria sentido útil o pedido da sua restituição". (8)
Em suma, "esta acção de reivindicação é a pretensão do proprietário não possuidor contra o possuidor não proprietário ou do proprietário possuidor contra o detentor". (9)

Em consequência, contra o que aventa o recorrente, a eventual perda da posse pelos autores, não só em nada afecta o seu direito de intentarem a presente acção de reivindicação, como lhes confere verdadeira legitimidade para o fazerem.
Conformemente ao exposto, surge logicamente inevitável a improcedência do recurso interposto, só havendo que confirmar a decisão impugnada.
Nestes termos, decide-se:

a) - julgar improcedente o recurso de revista interposto pelo réu F;

b) - confirmar inteiramente o acórdão recorrido;

c) - condenar o recorrente nas custas da revista.

Lisboa, 16 de Dezembro de 2004
Araújo Barros
Oliveira Barros
Salvador da Costa
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(1) Rodrigues Bastos, "Notas ao Código de Processo Civil", vol. III, Lisboa, 1972, pag. 228.

(2) Na redacção dada pelo Dec.lei nº 375-A/99, de 20 de Setembro, porquanto esta já vigorava na data em que a acção foi proposta (26 de Junho de 2001).

(3) Ter a decisão recorrida violado as regras de competência internacional, em razão da matéria ou da hierarquia ou ofendido o caso julgado; ter a decisão respeitado ao valor da causa (e este excedia o valor da alçada do tribunal de que se recorre); ou haver a decisão recorrida posto termo ao processo.

(4) Cfr. fls. 403.

(5) Ac. STJ de 03/02/99, in BMJ nº 336, pag. 433 (relator Sousa Dinis). Cfr. Ac. STJ de 01/07/99, no Proc. 445/99 da 2ª secção (relator Peixe Pelica).

(6) José de Oliveira Ascensão, "Direitos Reais", Lisboa, 1974, pag. 415.
(7) Oliveira Ascensão, obra citada, pag. 402.
(8) Augusto da Penha Gonçalves, "Curso de Direitos Reais", Lisboa, 1992, pag. 358.

(9) Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil Anotado", vol. III, 2ª edição, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra, 1987, pag. 114.