Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1957/12.4TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: PAULO SÁ
Descritores: ACIDENTE DE SERVIÇO
CLASSIFICAÇÃO
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
INCAPACIDADE PERMANENTE PARCIAL
JUNTA MÉDICA
CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES
FORÇA VINCULATIVA
Data do Acordão: 12/15/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS .
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA ( NULIDADES ) / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º 1, 371.º, N.º1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 615.º, N.º 1, ALÍNEA C), 655.º, 674.º, N.º 3.
DECRETO-LEI N.º 131/2012, DE 25-06: - ARTIGOS 1.º E 3.º.
DECRETO-LEI N.º 503/99, DE 20-11 (REGIME JURÍDICO DOS ACIDENTES EM SERVIÇO E DAS DOENÇAS PROFISSIONAIS NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA): - ARTIGOS 7.º, N.º7, 38.º, N.º1, 46.º, N.º3.
DECRETO-LEI N.º 59/89, DE 22-02: - ARTIGOS 1.º E 2.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:
-DE 23.06.1 2015, PROCESSO N.º 2988/12.0TBVIS.C1.

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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 03/02/2005, PROCESSO N.º 4500/04 – 2.ª, DE 25/03/2004, PROCESSO N.º 370/04 – 2.ª, DE 09/05/2002, PROCESSO N.º 1342/02 – 2.ª, E DE 20/06/2000, PROCESSO N.º 447/00-1ª, TODOS IN WWW.DGSI.PT ;
-DE 30/05/2013, PROCESSO N.º 056/10.3TJVNF.P1.S1.
Sumário :
A classificação de acidente de serviço pela entidade empregadora e a fixação de IPP à sinistrada pela junta médica da CGA, ao abrigo do disposto nos arts. 7.º, n.º 7, e 38.º, n.º 1, ambos do DL n.º 503/99, de 20-11 – diploma que aprovou o regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública –, apenas vinculam a entidade empregadora, o funcionário e a CGA, já não a seguradora contra quem a última instaura acção, tendo em vista o reembolso da quantia fixada a título de pensão vitalícia emergente de acidente de viação e de serviço.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 1957/12.4TVLSB:L1.S1[1]

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – A CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES, I.P. instaurou acção declarativa de condenação, com processo sumário contra AA, SA, por intermédio da qual pediu:

«a) A condenação da Demandada AA, SA, na reparação dos danos decorrentes do acidente de viação causado pelo seu segurado, isto é, no pagamento à Caixa Geral de Aposentações da importância global de € 54.246,72 (cinquenta e quatro mil, duzentos e quarenta e seis euros e setenta e dois cêntimos), correspondente ao capital necessário para suportar os encargos com a pensão vitalícia por acidente em serviço fixada pela CGA à subscritora n.º … BB, na reparação do acidente sofrido em 2010-03-25;

b) A condenação da Demandada no pagamento de juros de mora que se vierem a vencer entre a data em que ocorra a citação até efectivo e integral pagamento;

ou, caso o Tribunal conclua que não assiste à CGA o direito a pedir a condenação da Seguradora no pagamento do capital necessário para suportar os encargos com a pensão vitalícia fixada à interessada, determinado por cálculo actuariaI, requer-se:

c) A condenação da Demandada AA, SA, a reembolsar, no futuro, a CGA de todas as importâncias que a esta venha a comprovar ter pago ao sinistrado pela reparação do acidente em causa nos autos, no prazo máximo de 30 dias a contar de cada interpelação; (…»

Alegou, para o efeito, que: ocorreu, na data indicada na petição inicial, o acidente de viação descrito nesse articulado; em consequência directa do referído sinistro, BB sofreu trauma cervical; a Demandada assumiu a responsabilidade pelo referido acidente, pagando à lesada uma indemnização pelo "...dano biológico e danos morais associados;" foi requerida, na CGA, a reparação do acidente nos termos do disposto no regime de protecção social em matéria de acidentes e doenças profissionais ocorridos no domínio da Administração Pública; na data do acidente, a sinistrada era, como ainda hoje é, trabalhadora do Instituto dos Registos e Notariado, l.P., e subscritora da CGA; o apontado acidente foi qualificado como tendo ocorrido em serviço pela entidade empregadora de que a mesma dependia e depende; a Junta Médica da Autora atribuiu à sinistrada uma incapacidade permanente parcial de 10% e fixou-lhe uma pensão anual vitalícia por acidente em serviço; a Ré foi interpelada pela Autora para proceder ao pagamento do capital necessário para suportar os encargos com a pensão vitalícia por acidente em serviço provocados pelo seu segurado mas veio declinar tal pagamento.

A Demandada contestou a acção, concluindo pela respectiva improcedência e pela necessidade de ser decretada a sua absolvição do pedido. Em tal sede, aceitou alguns factos, impugnou outros, revelou o seu desconhecimento de alguns, referiu que a sinistrada ficou sem qualquer incapacidade para o trabalho e alegou que já a indemnizou dos danos sofridos.

Foi realizada a discussão e julgamento da causa, tendo sido proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente e absolveu a Ré do pedido contra si formulado.

Dessa sentença interpôs a A. recurso de apelação, sem sucesso já que a Relação julgou a apelação totalmente improcedente e, em consequência, confirmou a sentença impugnada.

Não se conformando com tal decisão, dela recorreu a A. de revista excepcional, tendo a Formação admitido o referido recurso, com fundamento na alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.

A A. conclui as suas alegações com as seguintes conclusões:

1.ª A presente revista prende-se com o esclarecimento do regime de prova subjacente ao exercício do direito de regresso previsto no artigo 46.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, designadamente o valor da prova documental que a CGA juntou aos autos (refletida. aliás, nos factos que vieram a constituir matéria assente), para efetivar aquele direito de regresso. sendo que houve a violação do disposto no art.º 7.º, n.º 7, no art.º 38.º, n.º 1 do art.º 51.º daquele diploma.

2.ª Ligado à violação destas normas, encontra-se ainda em causa a violação de regras probatórias à luz do NCPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, tributário da verdade material e do primado da substância sobre a forma ‑ art.º 411.º do NCPC.

3.ª Nos últimos anos, têm sido proferidas dezenas de decisões judiciais neste mesmo âmbito. com base em prova documental em tudo idêntica àquela que foi feita nos presentes autos, a qual tem sido uniformemente aceite pelos Tribunais de todo o país, importando, por isso, o esclarecimento do STJ sobre esta matéria, relativa às regras de alegação e produção de prova, para uma melhor aplicação do direito, tal como previsto no art.º 672.º, n.º 1, alínea a) do NCPC.

4.ª Acresce que o presente recurso deverá ainda ser aceite nos termos do art.º 672.º, n.º 2, alínea b) do NCPC por estarmos perante um regime de produção de prova no contexto da reparação de acidentes em serviço/de trabalho (constitucionalmente garantido), pelo facto de esta ser uma questão nova, no âmbito de um diploma legal de grande importância social que interessa a um número alargado de outros casos e que ainda não mereceu aprofundado tratamento jurisprudencial por parte do STJ.

5.ª A CGA provou documentalmente, sob o doc. 11.º 1, que a qualificação do acidente em serviço foi feita pelo Instituto dos Registos e Notariado, LP, através do «formulário obrigatório» previsto no art.º 51.º do Decreto-Lei n.º 503/99, facto aliás, levado ao ponto 6 da matéria de facto assente.

6.ª A CGA também provou documentalmente, sob o doc. n.º 3, que a perícia médica legalmente constituída nos termos dos artigos 34.º e 38.º do Decreto-Lei n.º 503/99, atribuiu à sinistrada uma incapacidade permanente parcial de 10%, facto, aliás, levado ao ponto 7 da matéria de facto assente.

7.ª Não obstante a factualidade assente. o Tribunal a quo não valorou ou efetuou qualquer valoração nem retirou qualquer conclusão crítica dos documentos juntos pela CGA aos autos, antes considerou não estar feita a prova dos factos que permitissem a qualificação: do acidente como acidente de serviço e, bem assim, da existência e do grau de incapacidade permanente resultante desse acidente..... o que contende com o disposto no art.º 7.º, n.º 7, no art.º 38.º, n.º 1 alínea a) e no art.º 51.º do Decreto-Lei 11.º 503/99, de 20 de novembro.

8.ª Não se compreende como possa ser exigida à CGA a prova dos factos integradores da qualificação do acidente em serviço, quando a competência para essa qualificação está legalmente cometida à entidade empregadora (e não à CGA) pelo art.º 7.º, n.º 7 do Decreto-Lei n.º 503/99, diploma que vai ao pormenor de, no art.º 51.º, explicitar qual o formalismo legal a que deve obedecer essa mesma qualificação.

9.ª Por outro lado, foi provado que o acidente foi qualificado como sendo um acidente de trabalho pela entidade legalmente competente para essa qualificação, e que tal qualificação foi efetuada de acordo com o formalismo legal exigido no art.º 51.º do Decreto-Lei n.º 503/99, através do «formulário obrigatório» ali previsto. bem como que a sinistrada foi presente à perícia médica exigida no art.º 38.º, n.º 1, alínea a) daquele diploma, e que essa perícia lhe atribuiu uma incapacidade permanente parcial de 10%.

10.ª Há que reconhecer que os documentos administrativos produzidos por uma autoridade administrativa têm força probatória autêntica, como resulta da leitura conjunta dos artigos 1.º e 3.º do Decreto-Lei n.º 131/2012. de 25 de junho ‑ que aprovou a lei orgânica da CGA ‑ e 369.º. n.º 1, do Código Civil.

II," A decisão recorrida coloca, assim, em causa, a força probatória que tem sido conferida em inúmeras decisões judiciais proferidas sobre esta mesma matéria, não só nas diversas ações de iniciativa da CGA, como a vertente, no contexto do n.º 3 do art.º 46.º do Decreto-Lei n.º 503/99, mas também no âmbito da intervenção genérica da segurança social (CGA ou Centro Nacional de Pensões) sempre que é citada para deduzir pedido de reembolso ao abrigo do Decreto-Lei n.º 59/89, de 22 de fevereiro, onde se prevê o "Pedido de reembolso de prestações em acção cível" (cfr. art.º 1.º) e o "Pedido de reembolso de prestações em ação penal (cfr. art.º 2.º).

12.ª Ao exigir da CGA a submissão a um regime de prova que vai para além do disposto no art.º 7.º, n.º 7 e, bem assim, o art.º 38.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 503/99, a decisão recorrida acaba, na prática, por esvaziar de conteúdo a norma legal prevista no n.º 3 do art.º 46.º do Decreto-Lei n.º 503/99 e, pelas mesmas razões, o direito de reembolso ao abrigo do Decreto-Lei n.º 59/89, de 22 de fevereiro, quer em matéria civil (cfr. art.º 1.º) quer em matéria penal (cfr. art.º 2.º).

13.ª Desconsiderou-se, assim, também, as regras probatórias á luz do NCPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, cujo diploma preambular realça o propósito de conferir conteúdo útil aos princípios da verdade material e ao primado da substância sobre a forma ‑ art.º 411.º do NCPC.

14.ª Termos em que considera a CGA que, ao contrário do decidido. o regime de prova documental a utilizar nos presentes autos é o que reflete o consagrado no Decreto-Lei n.º 503/99, sendo que, nesse âmbito, se alegou e provou documentalmente os factos necessários à efetivação do direito previsto no n.º 3 do art.º 46,° daquele diploma ‑ como vem sendo entendido pelos Tribunais ‑ ou seja, que o acidente foi qualificado como tendo ocorrido em serviço pela entidade com competência para tal qualificação e que foi realizada a perícia médico-legal legalmente prevista neste diploma, que, no caso, atribuiu à sinistrada uma incapacidade permanente parcial de 10% (factos que a CGA provou e que foram levados à matéria assente, pontos 6 e 7).

15.º Assim, o douto Acórdão recorrido ofendeu o disposto nos artigos 7.º, n.º 7, 38.º, n.º 1, 46.º, n.º 3, e 51.º do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, e no art.º 411.º do NCPC. que estabelece o princípio da verdade material e o primado da substância sobre a forma, pelo que, com o douto suprimento de V.ªs Ex.ªs deverá o presente recurso ser admitido. e, por via dele, ser revogada aquela decisão, com as legais consequências.

Termos em que com o douto suprimento de V.ª Ex. deve ser dado provimento ao presente recurso. com as legais consequências.

Houve contralegações, sustentando a bondade do decidido.

Cumpridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

II.A.1 – De facto

II.A.2. Com interesse para a decisão da causa está provado que:

1) No dia 25 de Março de 2010, pelas 08h50, no Eixo Norte-Sul, sentido Norte-Sul (Telheiras ‑ Hospital de Santa Maria), em Lisboa, ocorreu um acidente que envolveu o veículo automóvel ligeiro matricula -6S-, conduzido por BB, e a viatura pesada matrícula -VR, pertencente a "CC, Lda.".

2) Em consequência directa do referido acidente, BB sofreu trauma cervical.

3) A responsabilidade civil emergente da circulação da viatura pesada encontrava-se transferida para a ré, através de contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice n.º ….

4) A ré assumiu a responsabilidade pela produção do referido acidente.

5) À data do acidente, a sinistrada era funcionária da Conservatória do Registo Nacional de Pessoas Colectivas, com a categoria de segunda ajudante, e era subscritora da Caixa Geral de Aposentações com o nº ….

6) O acidente foi qualificado pela entidade empregadora da sinistrada, como tendo ocorrido em serviço.

7) A junta médica da Caixa Geral de Aposentações atribuiu à sinistrada, em 14 de Dezembro de 2011, uma incapacidade permanente parcial de dez por cento.

8) A Direcção da Caixa Geral de Aposentações homologou o auto da referida junta médica em 22 de Dezembro de 2011.

9) Em 9 de Maio de 2012, a ré informou a Caixa Geral de Aposentações, a solicitação desta, que indemnizou a sinistrada em € 5.975,52 (cinco mil novecentos e setenta e cinco euros e cinquenta e dois cêntimos), "pelo dano biológico emergente do acidente".

10) A Direcção da Caixa Geral de Aposentações atribuiu à sinistrada, em 31 de Maio de 2012, uma pensão anual vitalícia no valor de € 3.713,26 (três mil setecentos e treze euros e vinte e seis cêntimos), com efeitos reportados a 25 de Novembro de 2010, a que corresponde a pensão mensal de € 265,23 (duzentos e sessenta e cinco euros e vinte e três cêntimos), paga catorze vezes ao ano, tendo considerado que a referida pensão s6 será de atribuir quando forem esgotados os € 5.975,52 (cinco mil novecentos e setenta e cinco euros e cinquenta e dois cêntimos) correspondentes à indemnização paga pela ora ré seguradora.

11) Em 5 de Julho de 2012, a Caixa Geral de Aposentações procedeu ao cálculo do capital necessário para suportar os encargos com a referida pensão, que se cifra em € 54.246,72 (cinquenta e quatro mil duzentos e quarenta e seis euros e setenta e dois cêntimos), após a dedução do valor de € 5.975,52 (cinco mil novecentos e setenta e cinco euros e cinquenta e dois cêntimos), correspondente à indemnização paga pela ora ré seguradora.

II.B. De Direito

II.B.1. Apenas está em questão nos presentes autos o entendimento subscrito nas instâncias de que competia à Caixa Geral de Aposentações a prova de que o acidente que vitimou a lesada foi um acidente em serviço e o grau de incapacidade dele resultante.

Trata-se de matéria residual da competência do STJ referida aos casos em ocorre o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa.

Acontece que, logo na primeira instância, se decidiu que haveria duas questões relativamente às quais se impunha a produção de prova:

a) Saber se o acidente dos autos ocorreu em serviço da sinistrada…;

b) Saber se em consequência directa e necessária do acidente a sinistrada ficou portadora de uma incapacidade permanente parcial para o trabalho e, no caso afirmativo, qual o grau respectivo (cfr. fls. 250).

Estas duas questões foram, em sede de matéria de facto, dadas como não provadas.

Na sequência desta decisão afirmou-se, mais adiante, na sentença:

«Vale isto dizer que, na nossa opinião, os actos que qualificam o acidente como acidente de trabalho e reconhecem o direito a prestações a cargo da Caixa Geral de Aposentações, não são oponíveis, directamente, isto é, eficazes, em relação ao terceiro civilmente responsável, para efeitos de exercício do direito de regresso previsto no artigo 46.º, n.º 3 do Decreto-lei n. 0503199.

Assim sendo, como parece ser, o terceiro responsável, incluindo a seguradora do responsável civil do sinistro automóvel, uma vez demandado judicialmente pela Caixa Geral de Aposentações, pode discutir, livremente, na respectiva acção de condenação, quer a qualificação do acidente quer a incapacidade permanente atribuída pela Caixa Geral de Aposentações.

A entender-se de modo diferente, o direito constitucionalmente garantido de defesa do réu sofreria uma compressão dificilmente compreensível e justificável, pois que o procedimento de qualificação do acidente e de avaliação dos danos decorre sem que aquele nele seja chamado a intervir.

Cabia, por isso, à autora, na nossa opinião, o ónus da prova dos factos que permitissem a qualificação do acidente como acidente de serviço e, bem assim, da existência e do grau de incapacidade permanente resultante desse acidente, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil.

Ora, no caso dos autos, essa prova não foi feita, o que conduz, inevitavelmente, à improcedência da acção.»

Em sede de recurso de apelação, a A. arguiu fundamentalmente a nulidade do artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC e entendeu que a decisão deveria ser substituída por outra que não violasse o disposto no artigo 46.º, n.º 3, do DL 503/99, o artigo 70.º da Lei n.º 4/2007, o artigo 9.º do DL 187/2007 e a jurisprudência que citou (Acs. do STJ de 12.09.2006, proc. 06A2213 e de 19.05.2011, proc. 1029/06.0TBTVN.C1.S1.).

A Relação, perante a ausência de impugnação da matéria de facto e considerando inexistente a nulidade arguida, manteve a decisão.

Conquanto se nos afigure que a questão que ora se nos apresenta dificilmente não se deverá considerar nova e, por isso excluída do âmbito do recurso, face à decisão da Formação, não deixaremos de dela conhecer, tomando por bom o entendimento, que também aqui se quer atacar, sufragado nas instâncias sobre a insuficiência da provas.

Ora, consagra o artigo 674.º, n.º 3 do NCPC que “[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

É esta uma excepção consagrada na lei, em que o STJ pode alterar a matéria de facto.

Aqui o STJ não exerce uma simples função cassatória, devendo proceder directa e imediatamente às modificações da matéria de facto que o direito probatório material impuser.

Porém, o virtual erro da Relação na apreciação das provas e na consequente fixação dos factos materiais da causa contido nas conclusões de recurso, inexiste.

De facto, não se controverte o valor de documentos autênticos.

Mesmo a força probatória material destes restringe-se, nos termos do artigo 371.º, n.º 1, do Código Civil, aos factos praticados ou percepcionados pela autoridade ou oficial público que emanam dos documentos, já não abarcando, porém, a sinceridade, a veracidade e a validade das declarações emitidas pelas partes perante essa mesma autoridade ou oficial público (Embora corresponda a jurisprudência uniforme, referem-se, a título meramente exemplificativo, os Acórdãos do STJ de 3.2.05, proc. 4500/04-2ª, de 25.3.04, proc. 370/04-2ª, de 9.5.02, proc. 1342/02-2ª e de 20.06.00, proc. 447/00-1ª, todos in www.dgsi.pt).

De qualquer modo, nada há nos autos a impor uma prova vinculativa, pelo que o decidido, apreciado segundo a livre apreciação do julgador (artigo 655.º do CPC), não merece reparo.

Com efeito, os documentos apresentados pela CG de Aposentações (meras fotocópias) foram devidamente valorados, como fazendo prova bastante de que foi considerado pela entidade empregadora que o acidente ocorrera em serviço e que a Junta médica da Caixa Geral de Aposentações atribuiu à sinistrada uma incapacidade de 10%.

Mas estes factos não podem considerar-se prova absoluta relativamente à ré, por forma a que esta deva suportar o pagamento da prestação fixada, nos termos peticionados.

Não resulta de nenhuma das disposições invocadas do Decreto-Lei n.º 503/99, ou de qualquer outra do mesmo diploma, que a CGA tem que se limitar a peticionar o seu direito de regresso, sem que o terceiro responsável ou a seguradora respectiva nada possam opor.

Tão pouco resulta dos artigos 1.º e 3.º do Decreto-Lei n.º 131/2012, de 25/06, qualquer especial valor probatório relativamente aos dois documentos referidos.

Como facilmente se constata da leitura do artigo 1.º e 2.º do Decreto-Lei 59/89, as instituições de segurança sociais não estão isentas de deduzirem os seus pedidos nos processos cíveis ou crime pendentes, de se submeterem ao contraditório e de apresentarem provas.

Nada, oposto ao que se acaba de afirmar, resulta dos dois acórdãos invocados pela recorrente.

Em qualquer dos casos, está uma pensão de sangue em que não se controverte a causalidade nem qualquer grau de incapacidade permanente.

O que no primeiro se discute é se “a pensão de preço de sangue … é uma prestação própria da CGA, nada tendo a ver com a indemnização a pagar por terceiros, não se verificando, assim, os pressupostos para aplicação da sub-rogação legal prevista no art. 592.º do CC.” E no segundo, perante uma situação idêntica, decidiu-se que a CGA optar por pedir a condenação no pagamento do capital necessário para pagar as pensões que pagou e que vai ter que suportar, determinado por cálculo actuarial (em sentido contrário a este o Ac. deste STJ de 30-05-2013, processo n.º 056/10.3TJVNF.P1.S1, numa situação de incapacidade).

Embora o assunto não se apresente controvertido na jurisprudência, encontrámos o ac. da Relação de Coimbra de 23.06.1 2015, processo n.º 2988/12.0TBVIS.C1., onde se determina a baixa do processo à 1.ª instância para se discutir qual a efectiva incapacidade que se verifica, por haver valores divergentes, sendo que um foi o fixado pela junta médica da CGA, tendo sido ainda controvertido e decidido que “Em caso de demanda judicial pela CGA contra seguradora, com base em acidente de viação e de serviço, para reembolso da quantia fixada a título de pensão vitalícia ao sinistrado/servidor do Estado fundada num determinado grau de IPP, fixado no procedimento administrativo interno pela CGA, deve recorrer-se à Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais para apurar tal grau de IPP e não à Tabela de Incapacidades Permanentes em Direito Civil.”

Perante o exposto haverá que concluir que o exame da junta médica, apesar de se ter tornado definitivo para a CGA e a sinistrada, é, para os efeitos destes autos, mera prova pericial, sujeita a livre apreciação do julgador. E igualmente definitiva e válida na relação entre a entidade empregadora, a funcionária e CGA, a qualificação como acidente em serviço, mas igualmente carecido de especial força probatória, quanto à seguradora.

Se é patente que não se está perante uma situação de “ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto”, também é evidente que não se violaram ou infringiram as disposições que fixam a força probatória de “documentos autênticos”.

Por isso, não ocorreu qualquer erro na apreciação das provas ou na fixação dos factos materiais da causa.

Consequentemente, a A. não poderia limitar-se a alegar ter atribuído determinada pensão a uma funcionária pública, teria também, perante a impugnação da seguradora, ter feito prova de que a incapacidade atribuída resultou do concreto acidente de viação pelo qual a seguradora responde e aplicou correctamente a TNIATDP, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do CC, por se tratar de factos constitutivos do seu direito.

III. Pelo exposto, acordam em negar a revista excepcional, mantendo a decisão recorrida.

Custas a suportar aqui e nas instâncias pela recorrente.


Lisboa, 15 de Dezembro de 2015


Paulo Sá (Relator)

Garcia Calejo

Helder Roque

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[1] N.º 726
   Relator:    Paulo Sá
   Adjuntos: Garcia Calejo e
                      Hélder Roque